David Hume
Seção VII
DA IDÉIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA[1]
PRIMEIRA PARTE
A grande vantagem das ciências matemáticas sobre as ciências morais consiste nisto: as ideias das primeiras, sendo sensíveis, são sempre claras e distintas; assim a menor diferença entre elas é imediatamente perceptível e, ademais, os mesmos termos exprimem sempre as mesmas ideias sem ambiguidade ou variação. Um óvulo nunca se confunde com um círculo, nem uma hipérbole com uma elipse. Os triângulos isósceles e escaleno diferenciam-se por limites mais exatos que o vício e a virtude, o bem e o mal. Se se define um termo em geometria, o espírito imediatamente e por si mesmo substitui em todas as ocasiões a definição pelo termo definido, ou ainda, quando utiliza a definição, o próprio objeto pode apresentar-se aos sentidos e, por este meio, apreende-o com firmeza e claramente. Mas os sentimentos mais sutis do espírito, as funções do entendimento, as diversas agitações das paixões, embora realmente diferenciados em si mesmos, esquivam-se facilmente de nós quando os examinamos pela reflexão; e temos o poder de recordar o objeto original tão frequentemente como temos ocasião de contemplá-lo. Desta maneira, a ambiguidade se introduz gradualmente em nossos raciocínios: objetos semelhantes são facilmente considerados como idênticos, e a conclusão torna-se afinal muito afastada das premissas.
Pode-se, portanto, afirmar com toda a segurança que, se considerarmos estas ciências de modo adequado, suas vantagens e desvantagens quase se compensam e ambas se igualam. Se o espírito retém com mais facilidade as ideias geométricas claras e distintas, deve, todavia, desenvolver uma cadeia de raciocínios muito mais extensa e bem mais complicada, e deve comparar ideias bastante afastadas entre si, a fim de alcançar as verdades mais abstrusas dessa ciência. E, se as ideias morais tendem, a menos que se tenha grande cuidado, a cair na obscuridade e na confusão, as inferências são muito mais curtas nestas pesquisas, e os passos intermediários que levem à conclusão, bem menores que os da ciência que trata da quantidade e do número. Na realidade, é raro encontrar na geometria de Euclides uma proposição tão simples, que não tenha mais partes que as que se encontram em qualquer raciocínio moral, a menos que este se refira a coisas quiméricas ou fantásticas. Quando localizamos os princípios do espírito humano através de alguns passos, podemos contentar nos com nosso progresso, se considerarmos quão rapidamente a natureza antepõe uma barreira a todas as nossas investigações sobre as causas e nos obriga a reconhecer nossa ignorância. Portanto, o principal obstáculo para o nosso aperfeiçoamento nas ciências morais ou metafísicas consiste na obscuridade das ideias e na ambiguidade dos termos. A principal dificuldade nas matemáticas refere-se à extensão das inferências e do pensamento necessário para formular qualquer conclusão. E, talvez, nosso progresso em filosofia natural se retarde principalmente pela escassez de experimentos e de fenômenos adequados, que são frequentemente descobertos por acaso e nem sempre localizados quando requeridos, mesmo pela mais diligente e prudente investigação. Como a filosofia moral se revela até agora menos aperfeiçoada do que a geometria ou a física, podemos concluir que, se há alguma diferença sob este aspecto entre estas ciências, os obstáculos que impedem o progresso da primeira necessitam de maior cautela e habilidade para serem sobrepujados.
Não há ideias mais obscuras e incertas em metafísica do que as de poder, força, energia
ou conexão necessária,[2] às quais necessitamos reportar-nos constantemente em todas as
nossas inquirições. Tentaremos, portanto, nesta seção, estabelecer e, por este meio, remover
parte da obscuridade tão lamentada neste gênero de filosofia.
Parece que esta proposição não admitirá muita controvérsia: todas as nossas ideias são
cópias de impressões ou, em outras palavras, é-nos impossível pensar em algo que antes não
tivéramos sentido, quer pelos nossos sentidos externos quer pelos internos. Tenho intentado[3] explicar e provar esta proposição, e tenho também manifestado minhas expectativas de que,
mediante sua adequada aplicação, se possa alcançar mais clareza e exatidão nos raciocínios
filosóficos do que até agora se tem podido obter. As ideias complexas podem, talvez, ser bem
entendidas por definição, consistindo na enumeração das porções ou ideias simples que as
compõem. Contudo, quando encaminhamos as definições às ideias mais simples e deparamos
ainda alguma ambiguidade e obscuridade, que recurso possuímos? Que invenção nos permite
iluminar estas ideias e fazê-las completamente exatas e determinadas à consideração
intelectual? É preciso produzir as impressões ou sensações originais das quais as ideias são
cópias. Essas impressões são todas fortes e sensíveis. Não admitem ambiguidade. Elas
próprias não estão apenas colocadas em plena luz, mas podem também iluminar suas ideias
correspondentes que jazem na obscuridade. Podemos, talvez por este meio, obter um novo
microscópio ou novo sistema de óptica que possibilita, nas ciências morais, a ampliação das
ideias mais simples e diminutas de modo que possamos apreendê-las facilmente e possamos
conhecê-las do mesmo modo que as ideias mais palpáveis e sensíveis, que devem ser o objeto
de nossa inquirição.
Portanto, para atingir um conhecimento total da ideia de poder ou de conexão
necessária, devemos examinar sua impressão e, a fim de desvendar a impressão com maior
segurança, busquemo-la em todas as fontes das quais ela possivelmente deve derivar.
Quando olhamos em torno de nós na direção dos objetos externos e consideramos a
ação das causas, não somos jamais capazes, a partir de um único caso, de descobrir algum
poder ou conexão necessária, alguma qualidade que ligasse o efeito à causa e tomasse um a
consequência infalível do outro. Apenas constatamos que um, realmente, segue o outro. O
impulso de uma bola de bilhar é acompanhado pelo movimento de segunda. Eis tudo que se
manifesta aos sentidos externos. O espírito não sente nenhuma sensação ou impressão interna
em virtude desta sucessão de objetos; por conseguinte, não há, num só caso isolado e
particular de causa e efeito, nada que possa sugerir a ideia de poder ou de conexão necessária.
A partir da primeira aparição de um objeto, jamais podemos conjeturar que efeito
resultará dele. Mas se o espírito pudesse descobrir o poder ou a energia de qualquer causa,
poderíamos prever o efeito, mesmo sem a experiência, e poderíamos também, desde o
principio, pronunciarmos com certeza a seu respeito, apenas pela força do pensamento e do
raciocínio.
Na realidade, não há nenhuma porção da matéria que nos revele, através de suas
qualidades sensíveis, um poder ou energia, ou que nos dê fundamento para imaginar que
poderia produzir algo, ou que seria seguida por um outro objeto que poderíamos denominar
seu efeito. A solidez, a extensão e o movimento são qualidades completas em si mesmas e
não indicam outro evento que possa resultar delas. As cenas do universo variam
continuamente; e um objeto acompanha outro em sucessão ininterrupta; porém, o poder ou a
força que move toda a máquina está completamente oculto de nós e nunca se revela em
nenhuma das qualidades sensíveis dos corpos. Sabemos que, de fato, o calor é um
acompanhante constante de chama, mas não temos ensejo para conjeturar ou imaginar qual é
a sua conexão. Portanto, é impossível que a ideia de poder possa derivar da contemplação de
corpos em casos isolados de sua operação, porque jamais um corpo nos revela um poder que
seja a origem desta ideia.[4]
Portanto, já que os objetos externos, tal como aparecem aos sentidos, não nos fornecem
nenhuma ideia de poder ou conexão necessária, através de suas operações em casos
particulares, vejamos se esta ideia deriva da reflexão sobre as operações de nosso próprio
espírito e se ela é copiada de alguma impressão interna. Pode-se dizer que, em todo momento,
temos consciência de nosso poder interno, porquanto sentimos que, pela mera ordem de nossa
vontade, podemos mover os órgãos de nosso corpo ou governar nossas faculdades espirituais.
Um ato volitivo produz um movimento em nossos membros ou origina uma nova ideia em
nossa imaginação. Conhecemos esta influência da vontade pela consciência. Adquirimos
assim a ideia de poder ou de energia e certificamo-nos que tanto nós como todos os outros
seres inteligentes são dotados deste poder.[5] Esta ideia, portanto, é uma ideia reflexiva porque
surge ao refletir sobre as operações de nosso próprio espírito e sobre o governo que a vontade
exerce tanto sobre os órgãos do corpo como sobre as faculdades da alma.[6]
Examinaremos esta hipótese[7] verificando primeiramente a influência da vontade sobre
os órgãos do corpo. Esta influência, devemos observar, é um fato que, como todos os outros
eventos naturais, unicamente pode ser conhecida pela experiência e jamais pode ser prevista a
partir da aparente energia ou poder situado na causa, unindo-a ao efeito e fazendo de um a
consequência infalível da outra. O movimento de nosso corpo obedece à ordem da vontade.
Disto temos sempre consciência. Mas o modo pelo qual isto se realiza, a energia conferida à
vontade no desempenho deste processo tão extraordinário, distanciam-se de nossa
consciência imediata e devem excluir-se para sempre de nossa mais diligente investigação.
Em primeiro lugar, indagamos se há em toda a natureza algum princípio mais
misterioso que o da união da alma com o corpo, pelo qual uma suposta substância espiritual
adquire influência sobre uma substância material, de tal modo que o pensamento mais
refinado é capaz de mover a matéria mais grosseira? Se tivéssemos o poder, por um desejo
secreto, de mover montanhas ou controlar os planetas em sua órbita, esta ampla autoridade
não seria mais extraordinária e não ultrapassaria demais nossa compreensão. Mas, se a
consciência nos fizesse perceber um poder ou uma energia na vontade, deveríamos apreender
este poder; deveríamos entender sua conexão com o efeito; deveríamos conhecer a união
oculta da alma e do corpo e a natureza destas duas substâncias, por meio da qual uma é capaz
de agir, de tantos modos, sobre a outra.
Em segundo lugar, não somos capazes de mover todos os órgãos do corpo com a
mesma autoridade, embora não possamos designar nenhuma razão, exceto a experiência, para
uma diferença tão marcante entre uns e outros. Por que a vontade tem influência sobre a
língua e os dedos e não sobre o coração ou o fígado? Esta questão jamais nos embaraçaria se
tivéssemos consciência de um poder no primeiro caso, e não no segundo. Deveríamos então
perceber, independentemente da experiência, por que a autoridade da vontade sobre os órgãos
do corpo se circunscreve dentro de limites tão estreitos. Teríamos, neste caso, um
conhecimento completo do poder ou da força que a faz agir, saberíamos também por que sua
ação alcança precisamente tais limites e por que ela não os ultrapassa.
Um homem subitamente atacado por uma paralisia da perna ou do braço ou que tenha
recentemente perdido esses membros tende a princípio e com frequência a movê-los e usá-los
em suas funções habituais. Neste caso, está tão consciente do poder que governa estes
membros como um homem de saúde perfeita é consciente do poder que move qualquer
membro que permanece em sua condição e estado naturais. Mas a consciência nunca ilude.
Por conseguinte nem num caso como no outro jamais temos consciência de um poder.
Somente a experiência nos ensina a ação de nossa vontade. E a experiência nos ensina apenas
como um evento acompanha constantemente outro, sem nos informar sobre a desconhecida
conexão que os liga e que os torna inseparáveis.
Em terceiro lugar, a anatomia nos informa que o objeto imediato do poder no
movimento voluntário não é o próprio membro que é movido, porém certos músculos, nervos
e espíritos animais e, talvez, alguma coisa ainda menor e desconhecida através da qual o
movimento se propaga sucessivamente antes de alcançar o próprio membro, cujo movimento
é o objeto imediato da volição. Pode haver prova mais segura de que o poder que realiza toda
a operação, tão distante de ser direta e completamente conhecido por um sentimento interno
ou consciência, é em última análise misterioso e ininteligível? Logo que o espírito quer certo
evento, imediatamente um outro evento é gerado, que ignoramos e que é totalmente diferente
do evento visado; este evento gera um outro, igualmente desconhecido, até que, finalmente,
através de uma longa sucessão, o evento desejado é gerado. Mas, se se sentisse o poder
original, deveríamos conhecê-lo; se o conhecêssemos, dever-se-ia conhecer também seu
efeito, visto que todo poder é relativo a seu efeito. E vice-versa, se não se conhece o efeito,
não se pode conhecer nem sentir o poder. Como, em verdade, poderíamos ser conscientes de
um poder de mover nossos membros quando não temos um tal poder; mas apenas aquele de
mover certos espíritos animais que, embora produzam em definitivo o movimento de nossos
membros, agem de uma maneira que ultrapassa totalmente nossa compreensão?
Podemos, pois, concluir de toda esta argumentação, sem temeridade, espero, mas com
segurança: nossa ideia de poder não é copiada de um sentimento ou da consciência de nosso
poder interno, quando produzimos o movimento animal ou aplicamos nossos membros à sua
própria função ou uso. Que seu movimento obedece à ordem da vontade é um fato da
experiência corriqueira igual a tantos outros eventos naturais; mas o poder ou a energia que o
realizou, do mesmo modo que em outros eventos naturais, é desconhecido e inconcebível.[8]
Afirmaremos, pois, que somos conscientes de um poder ou energia de nossos espíritos
quando, por um ato ou ordem de nossa vontade, suscitamos uma nova ideia, firmamos o
espírito em sua consideração, a visamos sob todos os ângulos e por fim a rejeitamos por outra
ideia quando pensamos que a temos examinado com suficiente exatidão? Acredito que os
mesmos argumentos provarão que esta ordem da vontade não nos fornece nenhuma ideia real
de força ou de energia.
Primeiramente, deve-se admitir que, quando conhecemos um poder, apreendemos na
causa a precisa circunstância que o capacita para produzir seu efeito, porque ambos se
supõem sinônimos. Portanto, devemos conhecer tanto a causa como o efeito e a relação entre
eles. Mas aspiramos conhecer a natureza da alma humana e a natureza de uma ideia, ou a
capacidade de uma produzir a outra? Esta é uma criação real; uma produção de alguma coisa
a partir do nada; que implica um poder tão grande, que à primeira vista parece estar fora do
alcance de todo ser menor que o infinito. Pelo menos, deve-se reconhecer que um tal poder
não é nem sentido nem conhecido e nem mesmo concebível pelo espírito. Apenas sentimos o
evento, a saber, a existência de uma ideia consequente a uma ordem da vontade; porém, a
maneira como se realiza esta operação e o poder pelo qual ela é produzida estão inteiramente
fora de nossa compreensão.
Secundariamente, o governo do espírito sobre si mesmo é limitado, assim como seu
controle sobre o corpo; e estes limites não são conhecidos pela razão ou por qualquer
conhecimento da natureza de causas e efeitos, mas apenas pela observação ou pela
experiência, como em todos os outros eventos naturais e na operação de objetos externos.
Nossa autoridade sobre nossos sentimentos e nossas paixões é muito mais débil do que sobre
nossas ideias; e mesmo esta última se circunscreve dentro dos mais estreitos limites. Quem
pretenderá dar a razão última destes limites ou mostrar por que o poder é débil em alguns
casos, e não em outros?
Terceiramente, este domínio de si mesmo é muito diferente em diferentes momentos.
Um homem sadio o possui em maior grau do que alguém que se consome com a doença.
Somos mais donos de nossos pensamentos pela manhã do que pela noite; em jejum, do que
após uma refeição copiosa. Podemos dar alguma razão destas variações exceto a experiência?
Onde está, pois, o poder do qual pretenderíamos ser conscientes? Não há aqui, seja em uma
substância espiritual ou material, seja em ambas, algum mecanismo desconhecido ou
estrutura de elementos do qual depende o efeito e que, por nos ser inteiramente desconhecido,
torna o poder ou energia da vontade igualmente desconhecidos e incompreensíveis?
A vontade é certamente um ato do espírito, com a qual estamos suficientemente
familiarizados. Refleti sobre ela. Considerai-a sob todos os ângulos. Encontrastes nela algo
de semelhante a este poder criador, pelo qual do nada gera uma nova ideia, e, por uma
espécie de fiat, imita a Onipotência de seu Criador — se se me permite falar assim — que
converge para a existência os diferentes panoramas da natureza? Esta energia da vontade
acha-se tão afastada de nossa consciência que necessitamos recorrer à experiência — como a
que possuímos — para convencer-nos de que tão extraordinários efeitos resultam
efetivamente de um simples ato da vontade.
Os homens, em geral, não encontram jamais qualquer obstáculo para explicar as mais
comuns e usuais operações da natureza, tais como a queda dos corpos pesados, o crescimento
das plantas, a procriação dos animais ou a nutrição dos corpos pelos alimentos; e eles
admitem que, em todos estes fenômenos, percebem com exatidão a força ou a energia da
causa, que a põe em conexão com seu efeito e sempre é infalível em sua operação. Adquirem,
por longo hábito, tal modo de pensar que, ao aparecer uma causa, esperam imediatamente e
com segurança o seu acompanhante usual e dificilmente concebem que seja possível que um
outro evento possa resultar dela. Apenas quando descobrem fenômenos extraordinários, tais
como o terremoto, a peste e outros prodígios deste gênero, encontram-se embaraçados para
designar uma causa apropriada e para explicar de que modo produz o efeito. Os homens têm
o hábito, em tais dificuldades, de recorrer a algum principio invisível e inteligente como
causa imediata do evento que os surpreende e que, pensam eles, não pode ser explicado pelos
poderes corriqueiros da natureza. Mas os filósofos, que levam suas pesquisas um pouco mais
adiante, percebem imediatamente que, mesmo nos eventos mais familiares, a energia da
causa é tão ininteligível como no mais invulgar, e que apenas apreendemos da experiência a
frequente conjunção dos objetos, sem que jamais sejamos capazes de compreender nada
semelhante à conexão entre eles. Daqui, pois, que muitos filósofos se julguem obrigados
pela razão a recorrer, em todas as ocasiões, ao mesmo principio que o vulgo nos invoca
apenas nos casos aparentemente miraculosos e sobrenaturais. Reconhecem que o espírito e a
inteligência são, não apenas a causa última e original de todas as coisas, mas também a única
causa e a causa imediata de todo evento que aparece na natureza. Pretendem que os objetos
geralmente denominados causas não são em realidade nada mais do que ocasiões, e que o
verdadeiro e direto princípio de todo efeito não é nenhum poder ou força natural, mas a
vontade do Ser Supremo, que quer que tais objetos particulares estejam sempre ligados entre
si. Em vez de dizer que uma bola de bilhar move outra por uma força derivada do autor da
natureza, dizem eles que a própria Divindade move a segunda bola por um ato da vontade,
em consequência das leis gerais impostas a si mesma no governo do universo. Mas os
filósofos, persistindo em suas investigações, descobrem que, do mesmo modo que ignoramos
totalmente o poder do qual depende a ação mútua dos corpos, ignoramos também o poder do
qual depende a operação do espírito sobre o corpo ou do corpo sobre o espírito; e não somos
capazes, a partir de nossos sentidos ou de nossa consciência, de assinalar o princípio último
tanto num caso como no outro. A mesma ignorância, portanto, os leva à mesma conclusão.
Afirmam que a Divindade é a causa imediata da união da alma e do corpo, e que não são os
órgãos dos sentidos que, agita dos pelos objetos externos, produzem as sensações no espírito;
porém, trata-se de um ato da vontade de nosso onipotente Criador que excita uma dada
sensação em consequência de um movimento do órgão. De maneira análoga, não é nenhuma
energia da vontade que produz o movimento local de nossos membros: é Deus mesmo quem
se deleita em ajudar nossa vontade, em si mesma impotente, e em ordenar o movimento que
erroneamente atribuímos ao nosso próprio poder e à nossa própria eficácia. Os filósofos não
se detêm nesta conclusão. As vezes estendem a mesma inferência ao próprio espírito em suas
operações internas. Nossa visão mental ou nossa concepção de ideias nada mais é do que uma
revelação que nos faz nosso Criador. Quando voluntariamente dirigimos nossos pensamentos
para um objeto e suscitamos sua imagem na fantasia, não é a vontade que cria esta ideia, é o
Criador Universal quem a descobre e a revela ao espírito.
Assim, segundo estes filósofos, toda coisa está plena de Deus. Descontentes com o
princípio de que nada existe a não ser por sua vontade, de que nada possui poder senão por
sua concessão, despojam tanto a natureza como todos os seres criados de todo poder a fim de
tornar sua subordinação a Deus ainda mais sensível e imediata. Não consideram que,
mediante esta teoria, diminuem, em vez de aumentar, a grandeza destes atributos que
pretendem tanto celebrar. Certamente, comprova-se mais poder em Deus, delegando às
criaturas inferiores certa porção do poder do que fazendo-o produzir tudo por sua vontade
imediata. Demonstra mais sabedoria organizar a princípio toda estrutura do universo com
tanta perfeição que, por si mesmo e por sua própria operação, pode servir completamente aos
desígnios da providência, do que obrigar o grande Criador a ajustar e a animar
constantemente toda a engrenagem desta prodigiosa máquina.
Mas, se quisermos refutar filosoficamente esta teoria, talvez as duas seguintes reflexões
serão suficientes.
Em primeiro lugar, parece-me que a teoria referente à energia e ação universal do Ser
Supremo afigura-se bastante arrojada para convencer quem tenha suficiente consciência da
debilidade da razão humana e dos estreitos limites que a confinam em todas as suas
operações. Embora a cadeia de argumentos conduzindo a ela seja logicamente correta,
persiste a forte suspeita, senão uma certeza absoluta, de que ela nos levou a transbordar o
alcance de nossas faculdades conduzindo-nos a conclusões tão extraordinárias e distanciadas
da vida diária e da experiência. Somos levados ao país das fadas, bem antes de chegarmos aos
últimos estágios de nossa teoria; e lá não temos motivos para confiar em nossos métodos
usuais de argumentação, nem de supor que nossas analogias e probabilidades usuais tenham
alguma autoridade. Nossa linha é muito curta para sondar a imensidão de semelhantes
abismos. E por mais que pretendamos crer que em cada passo que damos nos guia uma
espécie de verossimilhança e de experiência, podemos assegurar-nos de que esta experiência
imaginária não tem autoridade quando a aplicamos a casos inteiramente estranhos ao campo
da experiência. Todavia, mais adiante teremos ocasião para retomar este tópico.[9]
Em segundo lugar, não consigo perceber nenhuma força nos argumentos que
fundamentam esta teoria. De fato, ignoramos a maneira segundo a qual os corpos agem entre
si. Sua força ou energia é inteiramente incompreensível. Mas não ignoramos também de que
maneira ou força um espírito, mesmo o Supremo Espírito, age sobre si mesmo ou sobre um
corpo? De onde, pergunto-vos, adquirimos essa ideia? Não temos sentimento ou consciência
deste poder em nós mesmos. Não temos outra ideia do Ser Supremo a não ser aquela que
aprendemos ao refletir sobre nossas próprias faculdades. Portanto, se nossa ignorância fosse
uma boa razão para rejeitar algo, seríamos induzidos ao princípio de negar energia quer ao
Ser Supremo quer à matéria mais vulgar. Certamente não entendemos bem as atividades de
um como de outro. É mais difícil conceber que o movimento pode surgir do impulso que da
vontade? Tudo o que conhecemos é nossa profunda ignorância em ambos os casos.[10]
________________
Notas:
[1] Nas edições K e L o título era: “Da ideia de poder ou de conexão necessária”. Hume
escreve, no Tratado, que considerava esclarecida a fundamental questão da inferência causal,
ou melhor, a maneira segundo a “qual raciocinamos além de nossas impressões imediatas, e,
concluído que tais causas particulares devem ter tais efeitos particulares” (I, iii, XIV, p.
155), verifica-se que devemos agora “retornar sobre nossos passos e examinar a questão, que
em primeiro lugar nos ocorreu e foi deixada para trás em nosso caminho, a saber: em que
consiste nossa ideia de necessidade, quando dizemos que dois objetos estão necessariamente
unidos entre si” (Idem, p. 155). A relevante questão colocada entre parênteses
momentaneamente indica que para Hume a ideia de necessidade sempre esteve em sua
cogitação, como também sugere que ela representa uma das principais peças de sua filosofia.
[N. do T.]
[2] Além dessas ideias, o Tratado apresenta: “eficácia, agente, necessidade, conexão e
qualidade produtiva”, e adverte que, sendo aqueles termos “quase sinônimos”, não se deve
supor que a definição de um define os outros. (T, iii, XIV, p. 157) [N. do T.]
[3] Seção II (Hume).
Hume indica, assim, sua intenção de aplicar rigorosamente o método de desafio:
“quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo empregado sem nenhum significado
ou ideia — o que é muito frequente — devemos apenas perguntar: de que impressão é
derivada aquela suposta ideia?” (p. 71) [N. do T]
[4] Locke diz, em seu capítulo acerca do poder, que ao verificar mediante a experiência
que há uma variedade de novas criações na matéria, conclui que em algum lugar deve haver
um poder capaz de produzi-las, raciocínio esse que o leva à ideia de poder. Mas nenhum
raciocínio pode dar-nos uma nova, original e simples ideia, como este mesmo filósofo
confessa. Portanto, esse raciocínio não pode jamais ser a origem desta ideia (Hume).
[5] Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: ‘As operações e a mútua
influência dos corpos são, talvez, suficientes para provar que eles são também dotados disto”.
[6] Nas edições de K a N: “do Espírito’.
[7] Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: “Examinaremos esta
hipótese e tentaremos evitar, na medida do possível, todo jargão e confusão sobre temas tão
profundos e sutis. Afirmo, pois, em primeiro lugar, que a influência da volição sobre os
órgãos é um fato etc.”.
[8] Pode-se pretender que a resistência que encontramos nos corpos e que nos obriga a
empregar toda nossa força e a reunir todo nosso poder nos dá a ideia de força e de poder. Este
nisus ou vigoroso esforço de que somos conscientes é a impressão original de onde se copia
esta ideia. Mas, em primeiro lugar, atribuímos poder a um grande número de objetos, nos
quais jamais poderíamos supor que aparecesse esta resistência ou emprego de força: ao Ser
Supremo, que jamais depara com esta resistência; ao espírito, em seu governo sobre as ideias
e membros, sobre o pensamento e movimentos ordinários, em que o efeito segue
imediatamente a vontade sem emprego ou concentração de forças; a matéria inanimada que
não é suscetível deste sentimento. Em segundo lugar, este sentimento de esforço para vencer
a resistência não tem nenhuma conexão conhecida com qualquer evento. Conhecemos através
da experiência aquilo que lhe segue, mas não poderíamos conhecê-lo a priori. Portanto, é
preciso admitir que o nisus animal experienciado por nós, embora não nos possa fornecer
nenhuma ideia rigorosa e determinada de poder, responde, até certo ponto, à idéia vulgar e
impressão que dele temos formado (Hume).
[9] Seção XII (Hume).
[10] Não é preciso examinar extensamente a vis inertiae, da qual tanto se tem falado na
nova filosofia e que tem sido atribuída à matéria. Sabemos por experiência que um corpo em
repouso ou movimento continua no mesmo estado até que é tirado dele por alguma causa e
que o corpo que recebe o impulso incorpora o movimento do corpo impulsor. Estes são os
fatos. Quando denominamos este processo de vis inertiae, apenas destacamos estes fatos sem
a pretensão de ter uma ideia do poder de inércia, do mesmo modo que, quando falamos da
gravidade, entendemos certos efeitos sem compreendermos esta força ativa. Sir Isaac Newton
nunca teve a intenção de despojar as causas segundas de toda a sua força ou energia, embora
alguns de seus seguidores tenham tentado fundar esta teoria sob sua autoridade. Pelo
contrário, o grande filósofo recorreu a um fluido etéreo ativo para explicar sua atração
universal; assim mesmo foi tão cauteloso e modesto que admitiu que era apenas mera
hipótese e que não devia apoiá-la sem recorrer a experimentos complementares. Devo
confessar que algo extraordinário ocorre com o destino das opiniões. Descartes sugeriu esta
doutrina da universal e única eficácia de Deus sem insistir nela. Malebranche e outros
cartesianos fizeram dela o fundamento de sua filosofia. Sem dúvida, esta doutrina não tem
autoridade na Inglaterra. Locke, Clarke e Cudworth não lhe prestaram nenhuma atenção e
sempre supuseram que a matéria tem força real, embora subordinada e derivada. De que
modo ela chegou a ter tanta importância entre os metafísicos modernos? (Hume).
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VII(1)
Nenhum comentário:
Postar um comentário