quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VII(1)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção VII

DA IDÉIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA[1]

PRIMEIRA PARTE
 

     A grande vantagem das ciências matemáticas sobre as ciências morais consiste nisto: as ideias das primeiras, sendo sensíveis, são sempre claras e distintas; assim a menor diferença entre elas é imediatamente perceptível e, ademais, os mesmos termos exprimem sempre as mesmas ideias sem ambiguidade ou variação. Um óvulo nunca se confunde com um círculo, nem uma hipérbole com uma elipse. Os triângulos isósceles e escaleno diferenciam-se por limites mais exatos que o vício e a virtude, o bem e o mal. Se se define um termo em geometria, o espírito imediatamente e por si mesmo substitui em todas as ocasiões a definição pelo termo definido, ou ainda, quando utiliza a definição, o próprio objeto pode apresentar-se aos sentidos e, por este meio, apreende-o com firmeza e claramente. Mas os sentimentos mais sutis do espírito, as funções do entendimento, as diversas agitações das paixões, embora realmente diferenciados em si mesmos, esquivam-se facilmente de nós quando os examinamos pela reflexão; e temos o poder de recordar o objeto original tão frequentemente como temos ocasião de contemplá-lo. Desta maneira, a ambiguidade se introduz gradualmente em nossos raciocínios: objetos semelhantes são facilmente considerados como idênticos, e a conclusão torna-se afinal muito afastada das premissas.
     Pode-se, portanto, afirmar com toda a segurança que, se considerarmos estas ciências de modo adequado, suas vantagens e desvantagens quase se compensam e ambas se igualam. Se o espírito retém com mais facilidade as ideias geométricas claras e distintas, deve, todavia, desenvolver uma cadeia de raciocínios muito mais extensa e bem mais complicada, e deve comparar ideias bastante afastadas entre si, a fim de alcançar as verdades mais abstrusas dessa ciência. E, se as ideias morais tendem, a menos que se tenha grande cuidado, a cair na obscuridade e na confusão, as inferências são muito mais curtas nestas pesquisas, e os passos intermediários que levem à conclusão, bem menores que os da ciência que trata da quantidade e do número. Na realidade, é raro encontrar na geometria de Euclides uma proposição tão simples, que não tenha mais partes que as que se encontram em qualquer raciocínio moral, a menos que este se refira a coisas quiméricas ou fantásticas. Quando localizamos os princípios do espírito humano através de alguns passos, podemos contentar nos com nosso progresso, se considerarmos quão rapidamente a natureza antepõe uma barreira a todas as nossas investigações sobre as causas e nos obriga a reconhecer nossa ignorância. Portanto, o principal obstáculo para o nosso aperfeiçoamento nas ciências morais ou metafísicas consiste na obscuridade das ideias e na ambiguidade dos termos. A principal dificuldade nas matemáticas refere-se à extensão das inferências e do pensamento necessário para formular qualquer conclusão. E, talvez, nosso progresso em filosofia natural se retarde principalmente pela escassez de experimentos e de fenômenos adequados, que são frequentemente descobertos por acaso e nem sempre localizados quando requeridos, mesmo pela mais diligente e prudente investigação. Como a filosofia moral se revela até agora menos aperfeiçoada do que a geometria ou a física, podemos concluir que, se há alguma diferença sob este aspecto entre estas ciências, os obstáculos que impedem o progresso da primeira necessitam de maior cautela e habilidade para serem sobrepujados.
     Não há ideias mais obscuras e incertas em metafísica do que as de poder, força, energia ou conexão necessária,[2] às quais necessitamos reportar-nos constantemente em todas as nossas inquirições. Tentaremos, portanto, nesta seção, estabelecer e, por este meio, remover parte da obscuridade tão lamentada neste gênero de filosofia.
     Parece que esta proposição não admitirá muita controvérsia: todas as nossas ideias são cópias de impressões ou, em outras palavras, é-nos impossível pensar em algo que antes não tivéramos sentido, quer pelos nossos sentidos externos quer pelos internos. Tenho intentado[3]  explicar e provar esta proposição, e tenho também manifestado minhas expectativas de que, mediante sua adequada aplicação, se possa alcançar mais clareza e exatidão nos raciocínios filosóficos do que até agora se tem podido obter. As ideias complexas podem, talvez, ser bem entendidas por definição, consistindo na enumeração das porções ou ideias simples que as compõem. Contudo, quando encaminhamos as definições às ideias mais simples e deparamos ainda alguma ambiguidade e obscuridade, que recurso possuímos? Que invenção nos permite iluminar estas ideias e fazê-las completamente exatas e determinadas à consideração intelectual? É preciso produzir as impressões ou sensações originais das quais as ideias são cópias. Essas impressões são todas fortes e sensíveis. Não admitem ambiguidade. Elas próprias não estão apenas colocadas em plena luz, mas podem também iluminar suas ideias correspondentes que jazem na obscuridade. Podemos, talvez por este meio, obter um novo microscópio ou novo sistema de óptica que possibilita, nas ciências morais, a ampliação das ideias mais simples e diminutas de modo que possamos apreendê-las facilmente e possamos conhecê-las do mesmo modo que as ideias mais palpáveis e sensíveis, que devem ser o objeto de nossa inquirição.
     Portanto, para atingir um conhecimento total da ideia de poder ou de conexão necessária, devemos examinar sua impressão e, a fim de desvendar a impressão com maior segurança, busquemo-la em todas as fontes das quais ela possivelmente deve derivar.
     Quando olhamos em torno de nós na direção dos objetos externos e consideramos a ação das causas, não somos jamais capazes, a partir de um único caso, de descobrir algum poder ou conexão necessária, alguma qualidade que ligasse o efeito à causa e tomasse um a consequência infalível do outro. Apenas constatamos que um, realmente, segue o outro. O impulso de uma bola de bilhar é acompanhado pelo movimento de segunda. Eis tudo que se manifesta aos sentidos externos. O espírito não sente nenhuma sensação ou impressão interna em virtude desta sucessão de objetos; por conseguinte, não há, num só caso isolado e particular de causa e efeito, nada que possa sugerir a ideia de poder ou de conexão necessária.
     A partir da primeira aparição de um objeto, jamais podemos conjeturar que efeito resultará dele. Mas se o espírito pudesse descobrir o poder ou a energia de qualquer causa, poderíamos prever o efeito, mesmo sem a experiência, e poderíamos também, desde o principio, pronunciarmos com certeza a seu respeito, apenas pela força do pensamento e do raciocínio.
     Na realidade, não há nenhuma porção da matéria que nos revele, através de suas qualidades sensíveis, um poder ou energia, ou que nos dê fundamento para imaginar que poderia produzir algo, ou que seria seguida por um outro objeto que poderíamos denominar seu efeito. A solidez, a extensão e o movimento são qualidades completas em si mesmas e não indicam outro evento que possa resultar delas. As cenas do universo variam continuamente; e um objeto acompanha outro em sucessão ininterrupta; porém, o poder ou a força que move toda a máquina está completamente oculto de nós e nunca se revela em nenhuma das qualidades sensíveis dos corpos. Sabemos que, de fato, o calor é um acompanhante constante de chama, mas não temos ensejo para conjeturar ou imaginar qual é a sua conexão. Portanto, é impossível que a ideia de poder possa derivar da contemplação de corpos em casos isolados de sua operação, porque jamais um corpo nos revela um poder que seja a origem desta ideia.[4]
     Portanto, já que os objetos externos, tal como aparecem aos sentidos, não nos fornecem nenhuma ideia de poder ou conexão necessária, através de suas operações em casos particulares, vejamos se esta ideia deriva da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito e se ela é copiada de alguma impressão interna. Pode-se dizer que, em todo momento, temos consciência de nosso poder interno, porquanto sentimos que, pela mera ordem de nossa vontade, podemos mover os órgãos de nosso corpo ou governar nossas faculdades espirituais. Um ato volitivo produz um movimento em nossos membros ou origina uma nova ideia em nossa imaginação. Conhecemos esta influência da vontade pela consciência. Adquirimos assim a ideia de poder ou de energia e certificamo-nos que tanto nós como todos os outros seres inteligentes são dotados deste poder.[5] Esta ideia, portanto, é uma ideia reflexiva porque surge ao refletir sobre as operações de nosso próprio espírito e sobre o governo que a vontade exerce tanto sobre os órgãos do corpo como sobre as faculdades da alma.[6]
     Examinaremos esta hipótese[7] verificando primeiramente a influência da vontade sobre os órgãos do corpo. Esta influência, devemos observar, é um fato que, como todos os outros eventos naturais, unicamente pode ser conhecida pela experiência e jamais pode ser prevista a partir da aparente energia ou poder situado na causa, unindo-a ao efeito e fazendo de um a consequência infalível da outra. O movimento de nosso corpo obedece à ordem da vontade. Disto temos sempre consciência. Mas o modo pelo qual isto se realiza, a energia conferida à vontade no desempenho deste processo tão extraordinário, distanciam-se de nossa consciência imediata e devem excluir-se para sempre de nossa mais diligente investigação.
     Em primeiro lugar, indagamos se há em toda a natureza algum princípio mais misterioso que o da união da alma com o corpo, pelo qual uma suposta substância espiritual adquire influência sobre uma substância material, de tal modo que o pensamento mais refinado é capaz de mover a matéria mais grosseira? Se tivéssemos o poder, por um desejo secreto, de mover montanhas ou controlar os planetas em sua órbita, esta ampla autoridade não seria mais extraordinária e não ultrapassaria demais nossa compreensão. Mas, se a consciência nos fizesse perceber um poder ou uma energia na vontade, deveríamos apreender este poder; deveríamos entender sua conexão com o efeito; deveríamos conhecer a união oculta da alma e do corpo e a natureza destas duas substâncias, por meio da qual uma é capaz de agir, de tantos modos, sobre a outra.
     Em segundo lugar, não somos capazes de mover todos os órgãos do corpo com a mesma autoridade, embora não possamos designar nenhuma razão, exceto a experiência, para uma diferença tão marcante entre uns e outros. Por que a vontade tem influência sobre a língua e os dedos e não sobre o coração ou o fígado? Esta questão jamais nos embaraçaria se tivéssemos consciência de um poder no primeiro caso, e não no segundo. Deveríamos então perceber, independentemente da experiência, por que a autoridade da vontade sobre os órgãos do corpo se circunscreve dentro de limites tão estreitos. Teríamos, neste caso, um conhecimento completo do poder ou da força que a faz agir, saberíamos também por que sua ação alcança precisamente tais limites e por que ela não os ultrapassa.
     Um homem subitamente atacado por uma paralisia da perna ou do braço ou que tenha recentemente perdido esses membros tende a princípio e com frequência a movê-los e usá-los em suas funções habituais. Neste caso, está tão consciente do poder que governa estes membros como um homem de saúde perfeita é consciente do poder que move qualquer membro que permanece em sua condição e estado naturais. Mas a consciência nunca ilude. Por conseguinte nem num caso como no outro jamais temos consciência de um poder. Somente a experiência nos ensina a ação de nossa vontade. E a experiência nos ensina apenas como um evento acompanha constantemente outro, sem nos informar sobre a desconhecida conexão que os liga e que os torna inseparáveis.
     Em terceiro lugar, a anatomia nos informa que o objeto imediato do poder no movimento voluntário não é o próprio membro que é movido, porém certos músculos, nervos e espíritos animais e, talvez, alguma coisa ainda menor e desconhecida através da qual o movimento se propaga sucessivamente antes de alcançar o próprio membro, cujo movimento é o objeto imediato da volição. Pode haver prova mais segura de que o poder que realiza toda a operação, tão distante de ser direta e completamente conhecido por um sentimento interno ou consciência, é em última análise misterioso e ininteligível? Logo que o espírito quer certo evento, imediatamente um outro evento é gerado, que ignoramos e que é totalmente diferente do evento visado; este evento gera um outro, igualmente desconhecido, até que, finalmente, através de uma longa sucessão, o evento desejado é gerado. Mas, se se sentisse o poder original, deveríamos conhecê-lo; se o conhecêssemos, dever-se-ia conhecer também seu efeito, visto que todo poder é relativo a seu efeito. E vice-versa, se não se conhece o efeito, não se pode conhecer nem sentir o poder. Como, em verdade, poderíamos ser conscientes de um poder de mover nossos membros quando não temos um tal poder; mas apenas aquele de mover certos espíritos animais que, embora produzam em definitivo o movimento de nossos membros, agem de uma maneira que ultrapassa totalmente nossa compreensão?
     Podemos, pois, concluir de toda esta argumentação, sem temeridade, espero, mas com segurança: nossa ideia de poder não é copiada de um sentimento ou da consciência de nosso poder interno, quando produzimos o movimento animal ou aplicamos nossos membros à sua própria função ou uso. Que seu movimento obedece à ordem da vontade é um fato da experiência corriqueira igual a tantos outros eventos naturais; mas o poder ou a energia que o realizou, do mesmo modo que em outros eventos naturais, é desconhecido e inconcebível.[8]
     Afirmaremos, pois, que somos conscientes de um poder ou energia de nossos espíritos quando, por um ato ou ordem de nossa vontade, suscitamos uma nova ideia, firmamos o espírito em sua consideração, a visamos sob todos os ângulos e por fim a rejeitamos por outra ideia quando pensamos que a temos examinado com suficiente exatidão? Acredito que os mesmos argumentos provarão que esta ordem da vontade não nos fornece nenhuma ideia real de força ou de energia.
     Primeiramente, deve-se admitir que, quando conhecemos um poder, apreendemos na causa a precisa circunstância que o capacita para produzir seu efeito, porque ambos se supõem sinônimos. Portanto, devemos conhecer tanto a causa como o efeito e a relação entre eles. Mas aspiramos conhecer a natureza da alma humana e a natureza de uma ideia, ou a capacidade de uma produzir a outra? Esta é uma criação real; uma produção de alguma coisa a partir do nada; que implica um poder tão grande, que à primeira vista parece estar fora do alcance de todo ser menor que o infinito. Pelo menos, deve-se reconhecer que um tal poder não é nem sentido nem conhecido e nem mesmo concebível pelo espírito. Apenas sentimos o evento, a saber, a existência de uma ideia consequente a uma ordem da vontade; porém, a maneira como se realiza esta operação e o poder pelo qual ela é produzida estão inteiramente fora de nossa compreensão.
     Secundariamente, o governo do espírito sobre si mesmo é limitado, assim como seu controle sobre o corpo; e estes limites não são conhecidos pela razão ou por qualquer conhecimento da natureza de causas e efeitos, mas apenas pela observação ou pela experiência, como em todos os outros eventos naturais e na operação de objetos externos. Nossa autoridade sobre nossos sentimentos e nossas paixões é muito mais débil do que sobre nossas ideias; e mesmo esta última se circunscreve dentro dos mais estreitos limites. Quem pretenderá dar a razão última destes limites ou mostrar por que o poder é débil em alguns casos, e não em outros?
     Terceiramente, este domínio de si mesmo é muito diferente em diferentes momentos. Um homem sadio o possui em maior grau do que alguém que se consome com a doença. Somos mais donos de nossos pensamentos pela manhã do que pela noite; em jejum, do que após uma refeição copiosa. Podemos dar alguma razão destas variações exceto a experiência? Onde está, pois, o poder do qual pretenderíamos ser conscientes? Não há aqui, seja em uma substância espiritual ou material, seja em ambas, algum mecanismo desconhecido ou estrutura de elementos do qual depende o efeito e que, por nos ser inteiramente desconhecido, torna o poder ou energia da vontade igualmente desconhecidos e incompreensíveis?
     A vontade é certamente um ato do espírito, com a qual estamos suficientemente familiarizados. Refleti sobre ela. Considerai-a sob todos os ângulos. Encontrastes nela algo de semelhante a este poder criador, pelo qual do nada gera uma nova ideia, e, por uma espécie de fiat, imita a Onipotência de seu Criador — se se me permite falar assim — que converge para a existência os diferentes panoramas da natureza? Esta energia da vontade acha-se tão afastada de nossa consciência que necessitamos recorrer à experiência — como a que possuímos — para convencer-nos de que tão extraordinários efeitos resultam efetivamente de um simples ato da vontade.
     Os homens, em geral, não encontram jamais qualquer obstáculo para explicar as mais comuns e usuais operações da natureza, tais como a queda dos corpos pesados, o crescimento das plantas, a procriação dos animais ou a nutrição dos corpos pelos alimentos; e eles admitem que, em todos estes fenômenos, percebem com exatidão a força ou a energia da causa, que a põe em conexão com seu efeito e sempre é infalível em sua operação. Adquirem, por longo hábito, tal modo de pensar que, ao aparecer uma causa, esperam imediatamente e com segurança o seu acompanhante usual e dificilmente concebem que seja possível que um outro evento possa resultar dela. Apenas quando descobrem fenômenos extraordinários, tais como o terremoto, a peste e outros prodígios deste gênero, encontram-se embaraçados para designar uma causa apropriada e para explicar de que modo produz o efeito. Os homens têm o hábito, em tais dificuldades, de recorrer a algum principio invisível e inteligente como causa imediata do evento que os surpreende e que, pensam eles, não pode ser explicado pelos poderes corriqueiros da natureza. Mas os filósofos, que levam suas pesquisas um pouco mais adiante, percebem imediatamente que, mesmo nos eventos mais familiares, a energia da causa é tão ininteligível como no mais invulgar, e que apenas apreendemos da experiência a frequente conjunção dos objetos, sem que jamais sejamos capazes de compreender nada semelhante à conexão entre eles. Daqui, pois, que muitos filósofos se julguem obrigados pela razão a recorrer, em todas as ocasiões, ao mesmo principio que o vulgo nos invoca apenas nos casos aparentemente miraculosos e sobrenaturais. Reconhecem que o espírito e a inteligência são, não apenas a causa última e original de todas as coisas, mas também a única causa e a causa imediata de todo evento que aparece na natureza. Pretendem que os objetos geralmente denominados causas não são em realidade nada mais do que ocasiões, e que o verdadeiro e direto princípio de todo efeito não é nenhum poder ou força natural, mas a vontade do Ser Supremo, que quer que tais objetos particulares estejam sempre ligados entre si. Em vez de dizer que uma bola de bilhar move outra por uma força derivada do autor da natureza, dizem eles que a própria Divindade move a segunda bola por um ato da vontade, em consequência das leis gerais impostas a si mesma no governo do universo. Mas os filósofos, persistindo em suas investigações, descobrem que, do mesmo modo que ignoramos totalmente o poder do qual depende a ação mútua dos corpos, ignoramos também o poder do qual depende a operação do espírito sobre o corpo ou do corpo sobre o espírito; e não somos capazes, a partir de nossos sentidos ou de nossa consciência, de assinalar o princípio último tanto num caso como no outro. A mesma ignorância, portanto, os leva à mesma conclusão. Afirmam que a Divindade é a causa imediata da união da alma e do corpo, e que não são os órgãos dos sentidos que, agita dos pelos objetos externos, produzem as sensações no espírito; porém, trata-se de um ato da vontade de nosso onipotente Criador que excita uma dada sensação em consequência de um movimento do órgão. De maneira análoga, não é nenhuma energia da vontade que produz o movimento local de nossos membros: é Deus mesmo quem se deleita em ajudar nossa vontade, em si mesma impotente, e em ordenar o movimento que erroneamente atribuímos ao nosso próprio poder e à nossa própria eficácia. Os filósofos não se detêm nesta conclusão. As vezes estendem a mesma inferência ao próprio espírito em suas operações internas. Nossa visão mental ou nossa concepção de ideias nada mais é do que uma revelação que nos faz nosso Criador. Quando voluntariamente dirigimos nossos pensamentos para um objeto e suscitamos sua imagem na fantasia, não é a vontade que cria esta ideia, é o Criador Universal quem a descobre e a revela ao espírito.
     Assim, segundo estes filósofos, toda coisa está plena de Deus. Descontentes com o princípio de que nada existe a não ser por sua vontade, de que nada possui poder senão por sua concessão, despojam tanto a natureza como todos os seres criados de todo poder a fim de tornar sua subordinação a Deus ainda mais sensível e imediata. Não consideram que, mediante esta teoria, diminuem, em vez de aumentar, a grandeza destes atributos que pretendem tanto celebrar. Certamente, comprova-se mais poder em Deus, delegando às criaturas inferiores certa porção do poder do que fazendo-o produzir tudo por sua vontade imediata. Demonstra mais sabedoria organizar a princípio toda estrutura do universo com tanta perfeição que, por si mesmo e por sua própria operação, pode servir completamente aos desígnios da providência, do que obrigar o grande Criador a ajustar e a animar constantemente toda a engrenagem desta prodigiosa máquina.
     
     Mas, se quisermos refutar filosoficamente esta teoria, talvez as duas seguintes reflexões serão suficientes.

     Em primeiro lugar, parece-me que a teoria referente à energia e ação universal do Ser Supremo afigura-se bastante arrojada para convencer quem tenha suficiente consciência da debilidade da razão humana e dos estreitos limites que a confinam em todas as suas operações. Embora a cadeia de argumentos conduzindo a ela seja logicamente correta, persiste a forte suspeita, senão uma certeza absoluta, de que ela nos levou a transbordar o alcance de nossas faculdades conduzindo-nos a conclusões tão extraordinárias e distanciadas da vida diária e da experiência. Somos levados ao país das fadas, bem antes de chegarmos aos últimos estágios de nossa teoria; e lá não temos motivos para confiar em nossos métodos usuais de argumentação, nem de supor que nossas analogias e probabilidades usuais tenham alguma autoridade. Nossa linha é muito curta para sondar a imensidão de semelhantes abismos. E por mais que pretendamos crer que em cada passo que damos nos guia uma espécie de verossimilhança e de experiência, podemos assegurar-nos de que esta experiência imaginária não tem autoridade quando a aplicamos a casos inteiramente estranhos ao campo da experiência. Todavia, mais adiante teremos ocasião para retomar este tópico.[9]
     Em segundo lugar, não consigo perceber nenhuma força nos argumentos que fundamentam esta teoria. De fato, ignoramos a maneira segundo a qual os corpos agem entre si. Sua força ou energia é inteiramente incompreensível. Mas não ignoramos também de que maneira ou força um espírito, mesmo o Supremo Espírito, age sobre si mesmo ou sobre um corpo? De onde, pergunto-vos, adquirimos essa ideia? Não temos sentimento ou consciência deste poder em nós mesmos. Não temos outra ideia do Ser Supremo a não ser aquela que aprendemos ao refletir sobre nossas próprias faculdades. Portanto, se nossa ignorância fosse uma boa razão para rejeitar algo, seríamos induzidos ao princípio de negar energia quer ao Ser Supremo quer à matéria mais vulgar. Certamente não entendemos bem as atividades de um como de outro. É mais difícil conceber que o movimento pode surgir do impulso que da vontade? Tudo o que conhecemos é nossa profunda ignorância em ambos os casos.[10]
________________

Notas:
[1] Nas edições K e L o título era: “Da ideia de poder ou de conexão necessária”. Hume escreve, no Tratado, que considerava esclarecida a fundamental questão da inferência causal, ou melhor, a maneira segundo a “qual raciocinamos além de nossas impressões imediatas, e, concluído que tais causas particulares devem ter tais efeitos particulares” (I, iii, XIV, p. 155), verifica-se que devemos agora “retornar sobre nossos passos e examinar a questão, que em primeiro lugar nos ocorreu e foi deixada para trás em nosso caminho, a saber: em que consiste nossa ideia de necessidade, quando dizemos que dois objetos estão necessariamente unidos entre si” (Idem, p. 155). A relevante questão colocada entre parênteses momentaneamente indica que para Hume a ideia de necessidade sempre esteve em sua cogitação, como também sugere que ela representa uma das principais peças de sua filosofia. [N. do T.]
[2] Além dessas ideias, o Tratado apresenta: “eficácia, agente, necessidade, conexão e qualidade produtiva”, e adverte que, sendo aqueles termos “quase sinônimos”, não se deve supor que a definição de um define os outros. (T, iii, XIV, p. 157) [N. do T.]
[3] Seção II (Hume).
     Hume indica, assim, sua intenção de aplicar rigorosamente o método de desafio: “quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo empregado sem nenhum significado ou ideia — o que é muito frequente — devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta ideia?” (p. 71) [N. do T]
[4] Locke diz, em seu capítulo acerca do poder, que ao verificar mediante a experiência que há uma variedade de novas criações na matéria, conclui que em algum lugar deve haver um poder capaz de produzi-las, raciocínio esse que o leva à ideia de poder. Mas nenhum raciocínio pode dar-nos uma nova, original e simples ideia, como este mesmo filósofo confessa. Portanto, esse raciocínio não pode jamais ser a origem desta ideia (Hume).
[5] Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: ‘As operações e a mútua influência dos corpos são, talvez, suficientes para provar que eles são também dotados disto”.
[6] Nas edições de K a N: “do Espírito’.
[7] Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: “Examinaremos esta hipótese e tentaremos evitar, na medida do possível, todo jargão e confusão sobre temas tão profundos e sutis. Afirmo, pois, em primeiro lugar, que a influência da volição sobre os órgãos é um fato etc.”.
[8] Pode-se pretender que a resistência que encontramos nos corpos e que nos obriga a empregar toda nossa força e a reunir todo nosso poder nos dá a ideia de força e de poder. Este nisus ou vigoroso esforço de que somos conscientes é a impressão original de onde se copia esta ideia. Mas, em primeiro lugar, atribuímos poder a um grande número de objetos, nos quais jamais poderíamos supor que aparecesse esta resistência ou emprego de força: ao Ser Supremo, que jamais depara com esta resistência; ao espírito, em seu governo sobre as ideias e membros, sobre o pensamento e movimentos ordinários, em que o efeito segue imediatamente a vontade sem emprego ou concentração de forças; a matéria inanimada que não é suscetível deste sentimento. Em segundo lugar, este sentimento de esforço para vencer a resistência não tem nenhuma conexão conhecida com qualquer evento. Conhecemos através da experiência aquilo que lhe segue, mas não poderíamos conhecê-lo a priori. Portanto, é preciso admitir que o nisus animal experienciado por nós, embora não nos possa fornecer nenhuma ideia rigorosa e determinada de poder, responde, até certo ponto, à idéia vulgar e impressão que dele temos formado (Hume).  
[9] Seção XII (Hume).
[10] Não é preciso examinar extensamente a vis inertiae, da qual tanto se tem falado na nova filosofia e que tem sido atribuída à matéria. Sabemos por experiência que um corpo em repouso ou movimento continua no mesmo estado até que é tirado dele por alguma causa e que o corpo que recebe o impulso incorpora o movimento do corpo impulsor. Estes são os fatos. Quando denominamos este processo de vis inertiae, apenas destacamos estes fatos sem a pretensão de ter uma ideia do poder de inércia, do mesmo modo que, quando falamos da gravidade, entendemos certos efeitos sem compreendermos esta força ativa. Sir Isaac Newton nunca teve a intenção de despojar as causas segundas de toda a sua força ou energia, embora alguns de seus seguidores tenham tentado fundar esta teoria sob sua autoridade. Pelo contrário, o grande filósofo recorreu a um fluido etéreo ativo para explicar sua atração universal; assim mesmo foi tão cauteloso e modesto que admitiu que era apenas mera hipótese e que não devia apoiá-la sem recorrer a experimentos complementares. Devo confessar que algo extraordinário ocorre com o destino das opiniões. Descartes sugeriu esta doutrina da universal e única eficácia de Deus sem insistir nela. Malebranche e outros cartesianos fizeram dela o fundamento de sua filosofia. Sem dúvida, esta doutrina não tem autoridade na Inglaterra. Locke, Clarke e Cudworth não lhe prestaram nenhuma atenção e sempre supuseram que a matéria tem força real, embora subordinada e derivada. De que modo ela chegou a ter tanta importância entre os metafísicos modernos? (Hume).

Nenhum comentário:

Postar um comentário