quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: O Assassinato da Terra no Nordeste do Brasil(2)

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas

     14. O Assassinato da Terra no Nordeste do Brasil
          As colônias espanholas proporcionaram, em primeiro lugar, metais. Muito cedo tinham sido descobertos os tesouros e os filões. O açúcar, relegado a um segundo plano, foi cultivado em São Domingos, logo em Veracruz, mais tarde na costa peruana e em Cuba. Em troca, até meados do século XVII o Brasil era o maior produtor mundial de açúcar. Simultaneamente, a colônia portuguesa na América era o principal mercado de escravos; a mão de obra indígena, muito escassa, extinguia-se rapidamente nos trabalhos forçados, e o açúcar exigia grandes contingentes de mão de obra para limpar e preparar a terra, plantar, colher, transportar a cana e, por fim, moê-la e purgá-la. A sociedade colonial brasileira, subproduto do açúcar, floresceu na Bahia e em Pernambuco, até que o descobrimento do ouro deslocou seu núcleo central para Minas Gerais.
     As terras foram cedidas pela Coroa portuguesa, em usufruto, aos primeiros e grandes terras-tenentes do Brasil. A façanha da conquista deveria correr paralela com a organização da produção. Somente doze “capitães” receberam, por carta de doação, todo o imenso território colonial inexplorado [1], para explorá-lo a serviço do monarca. No entanto, foram capitais holandeses que, na maior parte, financiaram o negócio, que a rigor era mais flamengo do que português. As empresas holandesas não participavam tão só da instalação de engenhos e da importação de escravos, elas recolhiam o açúcar bruto em Lisboa e o refinavam, obtendo ganhos que chegavam à terça parte do valor do produto [2], e o vendiam na Europa. Em 1630, a Dutch West India Company invadiu e conquistou a costa nordeste do Brasil, para assumir diretamente o controle do produto. Era preciso multiplicar as fontes do açúcar para multiplicar os lucros, e a empresa ofereceu aos ingleses da ilha de Barbados todas as facilidades para o início do cultivo em grande escala nas Antilhas. Trouxe colonos do Caribe para o Brasil, de modo que, em seus flamantes domínios, adquirissem os necessários conhecimentos técnicos e a capacidade de organização.
     Quando os holandeses, em 1654, foram expulsos do Nordeste brasileiro, já haviam solidificado as bases para que Barbados se lançasse numa furiosa e ruinosa concorrência. Tinham levado negros e raízes de cana, tinham construído engenhos, proporcionando-lhes todos os implementos. As exportações brasileiras, rapidamente, caíram pela metade, e à metade também caíram os preços do açúcar em fins do século XVII. Entretanto, em duas décadas se multiplicou por dez a população negra de Barbados. As Antilhas estavam mais perto do mercado europeu. Barbados proporcionava terras ainda virgens e produzia com melhor nível técnico. As terras brasileiras estavam cansadas. A formidável magnitude das rebeliões de escravos no Brasil e o aparecimento do ouro no Sul, que arrebatava mão de obra das plantações, precipitaram também a crise do Nordeste açucareiro. Foi uma crise definitiva. Prolonga-se, arrastando-se penosamente de século em século, até nossos dias.
      O açúcar arrasou o Nordeste. A úmida faixa litorânea, bem regada pelas chuvas, tinha um solo de grande fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto de matas da Bahia ao Ceará. Esta região de matas tropicais se transformou, como disse Josué de Castro, numa região de savanas [3]. Naturalmente nascida para produzir alimentos, passou a ser uma região de fome. Onde tudo brotava com vigor exuberante, o latifúndio açucareiro, destrutivo e avassalador, deixou rochas estéreis, solos lavados e terras erodidas. Antes tinham sido feitas ali plantações de laranjeiras e mangueiras, que “logo foram abandonadas à própria sorte e reduzidas a pequenos pomares em torno da casa do dono do engenho, exclusivamente reservados para a família do plantador branco” [4]. Os incêndios, que abriam a terra para os canaviais, devastaram as matas e com elas a fauna; desapareceram os veados, os javalis, os tapires, os coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a fauna e a flora foram sacrificados, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente os solos.
     Em fins do século XVI, havia no Brasil não menos de 120 engenhos, que somavam um capital aproximado de dois milhões de libras, mas seus donos, que possuíam as melhores terras, não cultivavam alimentos. Importavam nos, assim como importavam também uma vasta gama de artigos de luxo, que chegavam de ultramar juntamente com escravos e bolsas de sal. Como de costume, a abundância e a prosperidade eram simétricas à miséria da maioria da população, que vivia em estado de crônica subnutrição. A pecuária foi empurrada para os desertos do interior, distantes da faixa úmida do litoral: o sertão que, com duas reses por quilômetro quadrado, proporcionava (e ainda proporciona) uma carne dura e sem sabor, sempre escassa.
     Daqueles tempos coloniais nasce o costume de comer terra, ainda vigente. A falta de terra causa anemia; o instinto compele as crianças nordestinas a compensar com terra os sais minerais ausentes de sua alimentação habitual, limitada à farinha de mandioca, ao feijão e, com sorte, ao charque. Antigamente castigava-se esse “vício africano” das crianças, pondo-lhes focinheiras ou pendurando-as dentro de cestas de vime distantes do chão [5].
     O Nordeste do Brasil é, na atualidade, a região mais subdesenvolvida do hemisfério ocidental [6]. Gigantesco campo de concentração para 30 milhões de pessoas, hoje amarga a herança da monocultura do açúcar. De suas terras brotou o negócio mais lucrativo da economia agrícola colonial na América Latina. Atualmente, menos da quinta parte da zona úmida de Pernambuco está dedicada ao cultivo da cana-de-açúcar, e o resto não é usado para nada [7]: os donos dos grandes engenhos centrais, que são os maiores plantadores de cana, dão-se ao luxo do desperdício, mantendo improdutivos seus vastos latifúndios. Não é nas zonas áridas e semiáridas do interior nordestino que as pessoas comem pior, como erradamente se acredita. O sertão, deserto de pedra e ralos arbustos, de escassa vegetação, padece fomes periódicas: o sol rascante da seca abate-se sobre a terra e a transforma numa paisagem lunar; obriga os homens ao êxodo e planta cruzes à beira dos caminhos. Mas é no litoral úmido que se sofre a fome endêmica. Ali onde mais opulenta é a opulência, mais indigente – terra de contradições – é a miséria: a região eleita pela natureza para produzir todos os alimentos, nega os todos: a faixa litorânea conhecida – a ironia do vocabulário – como zona da mata, em homenagem ao passado remoto e aos míseros vestígios da florestação que sobreviveram aos séculos do açúcar. O latifúndio açucareiro, estrutura do desperdício, continua exigindo a importação de alimentos de outras zonas, sobretudo do centro-sul do país, a preços crescentes. O custo de vida em Recife é o mais alto do Brasil, acima dos índices do Rio de Janeiro. O feijão custa mais caro no Nordeste do que em Ipanema, a requintada praia da baía carioca. Meio quilo de farinha de mandioca equivale ao salário diário de um trabalhador adulto nas plantações de açúcar, em jornadas de sol a sol: se o trabalhador protesta, o capataz manda chamar o carpinteiro para lhe tirar as medidas do corpo. Para os proprietários e seus administradores segue em vigor, em vastas zonas, o “direito à primeira noite” de cada moça. A terça parte da população de Recife sobrevive marginalizada em casebres da conflagrada periferia; no bairro Casa Amarela, mais de metade das crianças que nascem morre antes de completar um ano [8]. A prostituição infantil – meninas de dez ou doze anos vendidas pelos pais – é frequente nas cidades do nordeste. Em algumas plantações, o pagamento das jornadas de trabalho é inferior às diárias que são pagas na Índia. Um informe da FAO, órgão das Nações Unidas, assegurava em 1957 que na localidade de Vitória, perto de Recife, a deficiência de proteínas “causa nas crianças uma perda de peso 40 por cento mais aguda do que aquela que geralmente se observa na África”. Em numerosas plantações ainda subsistem as prisões privadas, “mas os responsáveis pelos assassinatos por subnutrição”, diz René Dumont, “não são encerrados nelas porque são os mesmos que têm as chaves”. [9]
     Pernambuco produz menos da metade do açúcar que produz o estado de São Paulo, e com rendimentos menores por hectare; mas Pernambuco vive do açúcar, e dele vivem seus habitantes densamente concentrados na zona úmida, enquanto o estado de São Paulo contém o centro industrial mais poderoso da América Latina. No Nordeste nem sequer o progresso é progressista, pois até o progresso está nas mãos de poucos proprietários. O alimento das minorias se converte na fome das maiorias. A partir de 1870, a indústria açucareira se modernizou consideravelmente com a construção de grandes moinhos centrais, e então “a absorção das terras pelos latifúndios prosperou de modo alarmante, acentuando a miséria alimentar dessa zona” [10]. Na década de 1950, a industrialização em seu auge incrementou o consumo de açúcar no Brasil. A produção nordestina teve um grande impulso, mas sem que aumentasse o rendimento por hectare. Integraram-se aos canaviais novas terras, de inferior qualidade, e o açúcar novamente devorou as poucas áreas dedicadas à produção de alimentos. Convertido em assalariado, o camponês que antes cultivava sua pequena parcela não melhorou com a nova situação, pois não ganhava o suficiente para comprar os alimentos que antes produzia [11]. Como de costume, a expansão expandiu a fome.
     As Antilhas eram as Sugar Islands, as ilhas do açúcar: sucessivamente integradas ao mercado mundial como produtoras de açúcar, ao açúcar foram condenadas, em nossos dias, Barbados, as ilhas de Sotavento, Trinidad Tobago, Guadalupe, Porto Rico e a ilha de São Domingos (Dominicana e Haiti). Prisioneiras da monocultura da cana nos latifúndios de vastas terras exaustas, as ilhas padecem o desemprego e a pobreza: o açúcar é cultivado em grande escala, e em grande escala irradia suas maldições. Também Cuba continua dependendo, de modo incontornável, de suas vendas de açúcar, mas a partir da reforma agrária de 1959, foi iniciado um intenso processo de diversificação da economia da ilha, mudança que pôs um ponto final no desemprego: os cubanos já não trabalham apenas cinco meses por ano, durante as safras, mas no ano todo, ao longo da ininterrupta e por certo difícil construção de uma sociedade nova.
      “Pensareis talvez, senhores”, dizia Karl Marx em 1848, “que a produção de café e açúcar é o destino natural das Índias Ocidentais. Há dois séculos, a natureza, que nada tem a ver com o comércio, não plantara ali a árvore do café e tampouco a cana-de-açúcar”. [12] A divisão internacional do trabalho não se estruturou por obra e graça do Espírito Santo, mas através dos homens ou, mais precisamente, como efeito do desenvolvimento mundial do capitalismo.
      Barbados foi a primeira ilha do Caribe em que se cultivou o açúcar para a exportação em grande quantidade, isto em 1641, ainda que anteriormente os espanhóis tivessem plantado cana na Dominicana e em Cuba. Foram os holandeses, como vimos, que introduziram as plantações na minúscula ilha britânica; em 1666 já havia em Barbados 800 plantações de açúcar e mais de 80 mil escravos. Vertical e horizontalmente ocupada pelo latifúndio nascente, Barbados não teve melhor sorte do que o Nordeste do Brasil. Antes, a ilha desfrutava a policultura; produzia, em pequenas propriedades, algodão e tabaco, laranjas, vacas e porcos. Os canaviais devoraram as culturas agrícolas e devastaram as densas matas, em nome de um apogeu que resultou efêmero. Rapidamente a ilha descobriu que seus solos estavam esgotados, que não tinha como alimentar sua população e que estava produzindo açúcar com preços fora de concorrência. [13]
     O açúcar, então, já se propagara a outras ilhas, chegando ao arquipélago de Sotavento, à Jamaica e, em terras continentais, às Guianas. No início do século XVIII, na Jamaica, os escravos eram dez vezes mais numerosos do que os colonos brancos. Também seu solo cansou em pouco tempo. Na segunda metade do século, o melhor açúcar do mundo brotava do solo esponjoso das planuras costeiras do Haiti, colônia francesa que então se chamava Saint Domingue. Ao norte e no oeste, o Haiti se transformou num desaguadouro de escravos: o açúcar exigia cada vez mais braços. Em 1786, chegaram à colônia 27 mil escravos, e no ano seguinte 40 mil.
     No outono de 1791, eclodiu a revolução. Num só mês, duzentas plantações de cana foram queimadas; os incêndios e os combates se sucederam sem trégua, à medida que os escravos insurretos iam empurrando os exércitos franceses na direção do oceano. As embarcações zarpavam carregando cada vez mais franceses e cada vez menos açúcar. A guerra verteu rios de sangue e devastou as plantações. Foi longa. O país, em cinzas, ficou paralisado; no fim do século a produção tinha caído verticalmente. “Em novembro de 1803 quase toda a colônia, antigamente florescente, era um grande cemitério de cinzas e escombros”, diz Lepkowski o [14]. A revolução haitiana coincidira – e não só no tempo – com a revolução francesa, e Haiti sofreu na carne o bloqueio da coalizão internacional contra a França: a Inglaterra dominava os mares. Porém, logo sofreu também, enquanto se tornava inevitável sua independência, o bloqueio da França. Cedendo à pressão francesa, o Congresso dos Estados Unidos, em 1806, proibiu o comércio com o Haiti. Somente em 1825 a França reconheceu a independência de sua antiga colônia, mas em troca de uma gigantesca indenização em dinheiro. Em 1802, pouco depois de ter sido preso o general Toussaint-Louverture, o general Leclerc escreveu do Haiti para seu cunhado Napoleão: “Eis aqui minha opinião sobre o país: é preciso suprimir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, conservando as crianças menores de 12 anos, exterminar a metade dos negros da planície e não deixar na colônia nem um só mulato que use farda [15]. O trópico se vingou de Leclerc, ele morreu “agarrado pelo vômito negro”, apesar dos esconjuros mágicos de Paulina Bonaparte [16], e sem poder cumprir seu plano, mas a indenização em dinheiro foi uma pedra esmagadora nos ombros dos haitianos independentes, que tinham sobrevivido aos banhos de sangue das sucessivas expedições militares enviadas contra eles. O país nasceu em ruínas e não se recuperou jamais: hoje é o país mais pobre da América Latina.
     A crise do Haiti ocasionou o auge açucareiro de Cuba, que rapidamente se tornou o principal país no abastecimento do mundo. Também a produção cubana de café, outro artigo de intensa demanda no ultramar, teve seu incremento graças à queda da produção haitiana, mas o açúcar ganhou a corrida da monocultura: em 1862, Cuba será obrigada a importar café do exterior. Um membro dileto da “sacarocracia” cubana chegou a escrever sobre “as grandes vantagens que se podem tirar da desgraça alheia” [17]. À rebelião haitiana seguiram-se os preços mais fabulosos da história do açúcar no mercado europeu, e em 1806 Cuba já havia duplicado, ao mesmo tempo, os engenhos e a produtividade.

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: O Assassinato da Terra no Nordeste do Brasil(2)
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[1] BAGÚ, Sergio. Economía de la sociedad colonial. Ensayo de historia comparada de América Latina. Buenos Aires, 1949.
[2] FURTADO, Celso. Formación económica del Brasil. México; Buenos Aires, 1959.
[3] CASTRO, José de. Biografia da fome. São Paulo, 1963.
[4] Ibid.
[5]  Ibid Um viajante inglês, Henry Koster, atribuía o costume de comer terra ao contato das crianças brancas com os negrinhos, “que as contagiavam com este vício africano”.
[6] O Nordeste padece, por várias vias, uma espécie de colonialismo interno em benefício do industrializado Sul. Dentro do Nordeste, por sua vez, a região do sertão está subordinada à zona que ela abastece, a açucareira, e os latifúndios açucareiros dependem dos estabelecimentos industrializadores do produto. A velha instituição do senhor de engenho está em crise; os moinhos centrais devoraram as plantações.
[7] Segundo as investigações do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de Pernambuco, citadas por TAYLOR, Kit Sims. “El nordeste brasileño: azúcar y plusvalía.” Monthly Review (63). Santiago de Chile, jun. 1969.
[8] OLIVEIRA, Franklin de. Revolución y contrarrevolución en el Brasil. Buenos Aires, 1965.
[9] DUMONT, René. Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo. México, 1963.
[10] CASTRO, op. cit.
[11] FURTADO, Celso. Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1964.
[12] MARX, Karl. Discurso sobre el libre cambio. In: Miseria de la filosofía. Moscou, s.d.
[13] HARLOW, Vincent T. A History of Barbados. Oxford, 1926.
[14] LEPKOWSKI, Tadeusz. Haití. La Habana, 1968. t.1.
[15] Ibid
[16] Há um romance esplêndido de Alejo Carpentier, El reino de este mundo, sobre este alucinante período de vida do Haiti. Traz uma perfeita reconstituição das andanças de Paulina e seu marido no Caribe.
[17] Citado por FRAGINALS, Manuel Moreno. El ingenio. La Habana, 1964.

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