PRIMEIRA PARTE
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
14. O Assassinato da Terra no Nordeste do Brasil
As colônias espanholas proporcionaram, em primeiro lugar,
metais. Muito cedo tinham sido descobertos os tesouros e
os filões. O açúcar, relegado a um segundo plano, foi
cultivado em São Domingos, logo em Veracruz, mais tarde
na costa peruana e em Cuba. Em troca, até meados do
século XVII o Brasil era o maior produtor mundial de açúcar.
Simultaneamente, a colônia portuguesa na América era o
principal mercado de escravos; a mão de obra indígena,
muito escassa, extinguia-se rapidamente nos trabalhos
forçados, e o açúcar exigia grandes contingentes de mão de
obra para limpar e preparar a terra, plantar, colher,
transportar a cana e, por fim, moê-la e purgá-la. A
sociedade colonial brasileira, subproduto do açúcar,
floresceu na Bahia e em Pernambuco, até que o
descobrimento do ouro deslocou seu núcleo central para
Minas Gerais.
As terras foram cedidas pela Coroa portuguesa, em
usufruto, aos primeiros e grandes terras-tenentes do Brasil.
A façanha da conquista deveria correr paralela com a
organização da produção. Somente doze “capitães”
receberam, por carta de doação, todo o imenso território
colonial inexplorado
[1],
para explorá-lo a serviço do
monarca. No entanto, foram capitais holandeses que, na
maior parte, financiaram o negócio, que a rigor era mais
flamengo do que português. As empresas holandesas não
participavam tão só da instalação de engenhos e da
importação de escravos, elas recolhiam o açúcar bruto em
Lisboa e o refinavam, obtendo ganhos que chegavam à
terça parte do valor do produto
[2], e o vendiam na Europa.
Em 1630, a Dutch West India Company invadiu e conquistou
a costa nordeste do Brasil, para assumir diretamente o
controle do produto. Era preciso multiplicar as fontes do
açúcar para multiplicar os lucros, e a empresa ofereceu aos
ingleses da ilha de Barbados todas as facilidades para o
início do cultivo em grande escala nas Antilhas. Trouxe
colonos do Caribe para o Brasil, de modo que, em seus
flamantes
domínios,
adquirissem
os
necessários
conhecimentos técnicos e a capacidade de organização.
Quando os holandeses, em 1654, foram expulsos do
Nordeste brasileiro, já haviam solidificado as bases para que
Barbados se lançasse numa furiosa e ruinosa concorrência.
Tinham levado negros e raízes de cana, tinham construído
engenhos, proporcionando-lhes todos os implementos. As
exportações brasileiras, rapidamente, caíram pela metade,
e à metade também caíram os preços do açúcar em fins do
século XVII. Entretanto, em duas décadas se multiplicou por
dez a população negra de Barbados. As Antilhas estavam
mais perto do mercado europeu. Barbados proporcionava
terras ainda virgens e produzia com melhor nível técnico. As
terras
brasileiras
estavam cansadas. A formidável
magnitude das rebeliões de escravos no Brasil e o
aparecimento do ouro no Sul, que arrebatava mão de obra
das plantações, precipitaram também a crise do Nordeste
açucareiro. Foi uma crise definitiva. Prolonga-se, arrastando-se penosamente de século em século, até nossos dias.
O açúcar arrasou o Nordeste. A úmida faixa litorânea,
bem regada pelas chuvas, tinha um solo de grande
fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto de
matas da Bahia ao Ceará. Esta região de matas tropicais se
transformou, como disse Josué de Castro, numa região de
savanas
[3]. Naturalmente nascida para produzir alimentos,
passou a ser uma região de fome. Onde tudo brotava com
vigor exuberante, o latifúndio açucareiro, destrutivo e
avassalador, deixou rochas estéreis, solos lavados e terras
erodidas. Antes tinham sido feitas ali plantações de
laranjeiras e mangueiras, que “logo foram abandonadas à
própria sorte e reduzidas a pequenos pomares em torno da
casa do dono do engenho, exclusivamente reservados para
a família do plantador branco”
[4]. Os incêndios, que abriam
a terra para os canaviais, devastaram as matas e com elas
a fauna; desapareceram os veados, os javalis, os tapires, os
coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a fauna e a
flora foram sacrificados, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente os
solos.
Em fins do século XVI, havia no Brasil não menos de 120
engenhos, que somavam um capital aproximado de dois
milhões de libras, mas seus donos, que possuíam as
melhores terras, não cultivavam alimentos. Importavam
nos, assim como importavam também uma vasta gama de
artigos de luxo, que chegavam de ultramar juntamente com
escravos e bolsas de sal. Como de costume, a abundância e
a prosperidade eram simétricas à miséria da maioria da
população, que vivia em estado de crônica subnutrição. A
pecuária foi empurrada para os desertos do interior,
distantes da faixa úmida do litoral: o sertão que, com duas
reses por quilômetro quadrado, proporcionava (e ainda
proporciona) uma carne dura e sem sabor, sempre escassa.
Daqueles tempos coloniais nasce o costume de comer
terra, ainda vigente. A falta de terra causa anemia; o
instinto compele as crianças nordestinas a compensar com
terra os sais minerais ausentes de sua alimentação habitual,
limitada à farinha de mandioca, ao feijão e, com sorte, ao
charque. Antigamente castigava-se esse “vício africano” das
crianças, pondo-lhes focinheiras ou pendurando-as dentro
de cestas de vime distantes do chão
[5].
O Nordeste do Brasil é, na atualidade, a região mais
subdesenvolvida do hemisfério ocidental
[6]. Gigantesco
campo de concentração para 30 milhões de pessoas, hoje
amarga a herança da monocultura do açúcar. De suas terras
brotou o negócio mais lucrativo da economia agrícola
colonial na América Latina. Atualmente, menos da quinta
parte da zona úmida de Pernambuco está dedicada ao
cultivo da cana-de-açúcar, e o resto não é usado para
nada
[7]: os donos dos grandes engenhos centrais, que são
os maiores plantadores de cana, dão-se ao luxo do
desperdício, mantendo improdutivos seus vastos latifúndios.
Não é nas zonas áridas e semiáridas do interior nordestino
que as pessoas comem pior, como erradamente se acredita.
O sertão, deserto de pedra e ralos arbustos, de escassa
vegetação, padece fomes periódicas: o sol rascante da seca
abate-se sobre a terra e a transforma numa paisagem lunar;
obriga os homens ao êxodo e planta cruzes à beira dos
caminhos. Mas é no litoral úmido que se sofre a fome
endêmica. Ali onde mais opulenta é a opulência, mais
indigente – terra de contradições – é a miséria: a região
eleita pela natureza para produzir todos os alimentos, nega
os todos: a faixa litorânea conhecida – a ironia do
vocabulário – como zona da mata, em homenagem ao
passado remoto e aos míseros vestígios da florestação que
sobreviveram aos séculos do açúcar. O latifúndio açucareiro,
estrutura do desperdício, continua exigindo a importação de
alimentos de outras zonas, sobretudo do centro-sul do país,
a preços crescentes. O custo de vida em Recife é o mais alto
do Brasil, acima dos índices do Rio de Janeiro. O feijão custa
mais caro no Nordeste do que em Ipanema, a requintada
praia da baía carioca. Meio quilo de farinha de mandioca
equivale ao salário diário de um trabalhador adulto nas
plantações de açúcar, em jornadas de sol a sol: se o
trabalhador protesta, o capataz manda chamar o carpinteiro
para lhe tirar as medidas do corpo. Para os proprietários e
seus administradores segue em vigor, em vastas zonas, o
“direito à primeira noite” de cada moça. A terça parte da
população de Recife sobrevive marginalizada em casebres
da conflagrada periferia; no bairro Casa Amarela, mais de
metade das crianças que nascem morre antes de completar
um ano
[8]. A prostituição infantil – meninas de dez ou doze
anos vendidas pelos pais – é frequente nas cidades do
nordeste. Em algumas plantações, o pagamento das
jornadas de trabalho é inferior às diárias que são pagas na
Índia. Um informe da FAO, órgão das Nações Unidas,
assegurava em 1957 que na localidade de Vitória, perto de
Recife, a deficiência de proteínas “causa nas crianças uma
perda de peso 40 por cento mais aguda do que aquela que
geralmente se observa na África”. Em numerosas
plantações ainda subsistem as prisões privadas, “mas os
responsáveis pelos assassinatos por subnutrição”, diz René
Dumont, “não são encerrados nelas porque são os mesmos
que têm as chaves”.
[9]
Pernambuco produz menos da metade do açúcar que
produz o estado de São Paulo, e com rendimentos menores
por hectare; mas Pernambuco vive do açúcar, e dele vivem
seus habitantes densamente concentrados na zona úmida,
enquanto o estado de São Paulo contém o centro industrial
mais poderoso da América Latina. No Nordeste nem sequer
o progresso é progressista, pois até o progresso está nas
mãos de poucos proprietários. O alimento das minorias se
converte na fome das maiorias. A partir de 1870, a indústria
açucareira se modernizou consideravelmente com a
construção de grandes moinhos centrais, e então “a
absorção das terras pelos latifúndios prosperou de modo
alarmante, acentuando a miséria alimentar dessa
zona”
[10]. Na década de 1950, a industrialização em seu
auge incrementou o consumo de açúcar no Brasil. A
produção nordestina teve um grande impulso, mas sem que
aumentasse o rendimento por hectare. Integraram-se aos
canaviais novas terras, de inferior qualidade, e o açúcar
novamente devorou as poucas áreas dedicadas à produção
de alimentos. Convertido em assalariado, o camponês que
antes cultivava sua pequena parcela não melhorou com a
nova situação, pois não ganhava o suficiente para comprar
os alimentos que antes produzia
[11]. Como de costume, a
expansão expandiu a fome.
As Antilhas eram as Sugar Islands, as ilhas do açúcar:
sucessivamente integradas ao mercado mundial como
produtoras de açúcar, ao açúcar foram condenadas, em
nossos dias, Barbados, as ilhas de Sotavento, Trinidad
Tobago, Guadalupe, Porto Rico e a ilha de São Domingos
(Dominicana e Haiti). Prisioneiras da monocultura da cana
nos latifúndios de vastas terras exaustas, as ilhas padecem
o desemprego e a pobreza: o açúcar é cultivado em grande
escala, e em grande escala irradia suas maldições. Também
Cuba continua dependendo, de modo incontornável, de suas
vendas de açúcar, mas a partir da reforma agrária de 1959,
foi iniciado um intenso processo de diversificação da
economia da ilha, mudança que pôs um ponto final no
desemprego: os cubanos já não trabalham apenas cinco
meses por ano, durante as safras, mas no ano todo, ao
longo da ininterrupta e por certo difícil construção de uma
sociedade nova.
“Pensareis talvez, senhores”, dizia Karl Marx em 1848,
“que a produção de café e açúcar é o destino natural das
Índias Ocidentais. Há dois séculos, a natureza, que nada
tem a ver com o comércio, não plantara ali a árvore do café
e tampouco a cana-de-açúcar”.
[12] A divisão internacional
do trabalho não se estruturou por obra e graça do Espírito
Santo, mas através dos homens ou, mais precisamente,
como efeito do desenvolvimento mundial do capitalismo.
Barbados foi a primeira ilha do Caribe em que se
cultivou o açúcar para a exportação em grande quantidade,
isto em 1641, ainda que anteriormente os espanhóis
tivessem plantado cana na Dominicana e em Cuba. Foram
os holandeses, como vimos, que introduziram as plantações
na minúscula ilha britânica; em 1666 já havia em Barbados
800 plantações de açúcar e mais de 80 mil escravos.
Vertical e horizontalmente ocupada pelo latifúndio nascente,
Barbados não teve melhor sorte do que o Nordeste do
Brasil. Antes, a ilha desfrutava a policultura; produzia, em
pequenas propriedades, algodão e tabaco, laranjas, vacas e
porcos. Os canaviais devoraram as culturas agrícolas e
devastaram as densas matas, em nome de um apogeu que
resultou efêmero. Rapidamente a ilha descobriu que seus
solos estavam esgotados, que não tinha como alimentar sua
população e que estava produzindo açúcar com preços fora
de concorrência.
[13]
O açúcar, então, já se propagara a outras ilhas,
chegando ao arquipélago de Sotavento, à Jamaica e, em
terras continentais, às Guianas. No início do século XVIII, na
Jamaica, os escravos eram dez vezes mais numerosos do
que os colonos brancos. Também seu solo cansou em pouco
tempo. Na segunda metade do século, o melhor açúcar do
mundo brotava do solo esponjoso das planuras costeiras do
Haiti, colônia francesa que então se chamava Saint
Domingue. Ao norte e no oeste, o Haiti se transformou num
desaguadouro de escravos: o açúcar exigia cada vez mais
braços. Em 1786, chegaram à colônia 27 mil escravos, e no
ano seguinte 40 mil.
No outono de 1791, eclodiu a revolução. Num só mês,
duzentas plantações de cana foram queimadas; os
incêndios e os combates se sucederam sem trégua, à
medida que os escravos insurretos iam empurrando os
exércitos franceses na direção do oceano. As embarcações
zarpavam carregando cada vez mais franceses e cada vez
menos açúcar. A guerra verteu rios de sangue e devastou as
plantações. Foi longa. O país, em cinzas, ficou paralisado;
no fim do século a produção tinha caído verticalmente. “Em
novembro de 1803 quase toda a colônia, antigamente
florescente, era um grande cemitério de cinzas e
escombros”, diz Lepkowski
o
[14]. A revolução haitiana
coincidira – e não só no tempo – com a revolução francesa,
e
Haiti sofreu na carne o bloqueio da coalizão
internacional contra a França: a Inglaterra dominava os
mares. Porém, logo sofreu também, enquanto se tornava
inevitável sua independência, o bloqueio da França.
Cedendo à pressão francesa, o Congresso dos Estados
Unidos, em 1806, proibiu o comércio com o Haiti. Somente
em 1825 a França reconheceu a independência de sua
antiga colônia, mas em troca de uma gigantesca
indenização em dinheiro. Em 1802, pouco depois de ter sido
preso o general Toussaint-Louverture, o general Leclerc
escreveu do Haiti para seu cunhado Napoleão: “Eis aqui
minha opinião sobre o país: é preciso suprimir todos os
negros das montanhas, homens e mulheres, conservando as
crianças menores de 12 anos, exterminar a metade dos
negros da planície e não deixar na colônia nem um só
mulato que use farda
[15]. O trópico se vingou de Leclerc,
ele morreu “agarrado pelo vômito negro”, apesar dos
esconjuros mágicos de Paulina Bonaparte
[16], e sem poder
cumprir seu plano, mas a indenização em dinheiro foi uma
pedra
esmagadora
nos
ombros
dos
haitianos
independentes, que tinham sobrevivido aos banhos de
sangue das sucessivas expedições militares enviadas contra
eles. O país nasceu em ruínas e não se recuperou jamais:
hoje é o país mais pobre da América Latina.
A crise do Haiti ocasionou o auge açucareiro de Cuba,
que rapidamente se tornou o principal país no
abastecimento do mundo. Também a produção cubana de
café, outro artigo de intensa demanda no ultramar, teve seu
incremento graças à queda da produção haitiana, mas o
açúcar ganhou a corrida da monocultura: em 1862, Cuba
será obrigada a importar café do exterior. Um membro
dileto da “sacarocracia” cubana chegou a escrever sobre
“as grandes vantagens que se podem tirar da desgraça
alheia”
[17]. À rebelião haitiana seguiram-se os preços mais
fabulosos da história do açúcar no mercado europeu, e em
1806 Cuba já havia duplicado, ao mesmo tempo, os
engenhos e a produtividade.
continua na página...98
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Febre do Ouro, Febre da Prata
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: O Assassinato da Terra no Nordeste do Brasil(2)
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[1] BAGÚ, Sergio. Economía de la sociedad colonial. Ensayo de historia
comparada de América Latina. Buenos Aires, 1949.
[2] FURTADO, Celso. Formación económica del Brasil. México; Buenos Aires,
1959.
[3] CASTRO, José de. Biografia da fome. São Paulo, 1963.
[4] Ibid.
[5] Ibid Um viajante inglês, Henry Koster, atribuía o costume de comer terra ao
contato das crianças brancas com os negrinhos, “que as contagiavam com este
vício africano”.
[6] O Nordeste padece, por várias vias, uma espécie de colonialismo interno em
benefício do industrializado Sul. Dentro do Nordeste, por sua vez, a região do
sertão está subordinada à zona que ela abastece, a açucareira, e os latifúndios
açucareiros dependem dos estabelecimentos industrializadores do produto. A
velha instituição do senhor de engenho está em crise; os moinhos centrais
devoraram as plantações.
[7] Segundo as investigações do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais,
de Pernambuco, citadas por TAYLOR, Kit Sims. “El nordeste brasileño: azúcar y
plusvalía.” Monthly Review (63). Santiago de Chile, jun. 1969.
[8] OLIVEIRA, Franklin de. Revolución y contrarrevolución en el Brasil. Buenos
Aires, 1965.
[9] DUMONT, René. Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo.
México, 1963.
[10] CASTRO, op. cit.
[11] FURTADO, Celso. Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1964.
[12] MARX, Karl. Discurso sobre el libre cambio. In: Miseria de la filosofía.
Moscou, s.d.
[13] HARLOW, Vincent T. A History of Barbados. Oxford, 1926.
[14] LEPKOWSKI, Tadeusz. Haití. La Habana, 1968. t.1.
[15] Ibid
[16] Há um romance esplêndido de Alejo Carpentier, El reino de este mundo,
sobre este alucinante período de vida do Haiti. Traz uma perfeita reconstituição
das andanças de Paulina e seu marido no Caribe.
[17] Citado por FRAGINALS, Manuel Moreno. El ingenio. La Habana, 1964.
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