volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
A Sra d'Arpajon dizia à Sra. Swann que se divertira bastante na casa desta na antevéspera e que, por ela, abandonara com alegria a Sra. de Saint-Euverte. E era verdade, pois preferir a Sra. Swann era mostrar-se inteligente, como ir a um concerto em vez de comparecer a um chá. Mas, quando a Sra. de Saint-Euverte ia à casa da Sra. d'Arpajon ao mesmo tempo que Odette, como a Sra. de Saint-Euverte era muito esnobe e a Sra. d'Arpajon, embora a tratasse de cima, fazia questão de manter suas recepções, esta não apresentava Odette para que a Sra. de Saint Euverte não soubesse de quem se tratava. A marquesa imaginava que deveria ser alguma princesa que saía muito pouco, visto que não a conhecia, e prolongava a visita, respondia indiretamente ao que Odette dizia, mas a Sra. d'Arpajon permanecia de ferro. E, quando a Sra. de Saint-Euverte, derrotada, ia embora:
- Eu não lhe apresentei - dizia a dona da casa à Odette - porque a gente; gosta muito de ir
à casa dela e ela convida imensamente; você não poderia se livrar.
- Oh, isso não tem importância - dizia Odette. Mas manteve a ideia de que não gostavam
de ir à casa da Sra. de Saint-Euverte, o que até certo ponto era verdade, e daí concluiu que
possuía uma situação muito superior à Sra. de Saint-Euverte, conquanto a posição dela fosse
muito boa e Odette ainda não tivesse nenhuma. Ela não percebia isso e, embora todas as amigas
da Sra. de Guermantes tivessem relações com a Sra. d'Arpajon, quando esta convidava a Sra.
Swann, Odette dizia com ar escrupuloso:
- Vou à casa da Sra. d'Arpajon, mas vocês vão me achar muito antiquada; isto me deixa
contrariada por causa da Sra. de Guermantes - (que, aliás, ela não conhecia. Os homens distintos
pensavam que o fato da Sra. Swann conhecer certas pessoas da alta sociedade se atribuía a que
ela fosse uma mulher superior, provavelmente uma grande musicista, e que ir à sua casa seria
uma espécie de título extramundano, como para um duque ser doutor em ciências. As mulheres
completamente nulas eram atraídas para Odette por uma razão oposta; sabendo que ela ia ao
concerto Colonne e se declarava wagneriana, concluíam daí que devia ser uma "farsista" e
ficavam muito entusiasmadas à ideia de conhecê-la. Mas, pouco seguras de sua própria situação,
temiam comprometer-se em público parecendo estar ligadas à Odette e, se num concerto de
caridade viam a Sra. Swann, desviavam o rosto, achando impossível cumprimentar, aos olhos da
Sra. de Rochochouart, uma mulher que era bem capaz de ter ido à Bayreuth o que significava
capaz de levar uma vida desregrada.
Toda pessoa em visita a outra fazia-se diferente. Sem falar das maravilhosas
metamorfoses que assim se efetuavam entre as fadas na reunião da Sra. Swann, o Sr. de
Bréauté. Subitamente valorizado pela ausência de pessoas que de hábito o rodeavam, pelo ar de
satisfação que tinha de se encontrar tão bem ali, como se, em vez de ir a uma festa, tivesse posto
os óculos para encerrar-se a fim de ler La Revoe des Deux Mondes, pelo rito misterioso que
parecia cumprir vindo visitar Odette, o próprio Sr. de Bréauté dava a impressão de um novo
homem. Eu teria dado muito para ver quais alterações sofreria a duquesa de Montmorency
Luxembourg naquele meio novo. Mas ela era uma das pessoas a quem nunca se poderia
apresentar à Odette. A Sra. de Montmorency, muito mais benevolente para com Oriane do que
esta o era quanto a ela, espantava-me bastante ao dizer a propósito da Sra. de Guermantes:
- Ela conhece pessoas de espírito, todos gostam dela, e creio que, se tivesse tido um
pouco mais de coerência, chegaria formar um salão. A verdade é que não liga para isso, está
coberta de razão e é feliz assim, requisitada por todos. -
Se a Sra. de Guermantes não tinha um "salão", então o que era um "salão"? A
estupefação em que me lançaram tais palavras não era maior do que aquela que causei à Sra. de
Guermantes ao lhe dizer que apreciava bastante ir à casa da Sra. de Montmorency. Oriane
achava-a uma velha cretina.
- Quanto a mim, vá lá - dizia ela -, sou forçada a isso, é minha tia; mas você! Ela nem
sequer sabe atrair as pessoas agradáveis. -
A Sra. de Guermantes não percebia que as pessoas agradáveis deixavam-me frio, que,
quando ela me dizia "salão Arpajon", eu via uma borboleta amarela, e "salão Swann" (a Sra.
Swann recebia em casa, no inverno, das seis às sete), uma borboleta preta de asas mosqueadas
de neve. Ainda este último salão, que não o era, a duquesa o julgava, conquanto inacessível para
ela, dispensável para mim, devido às "pessoas de espírito". Mas a Sra. de Luxembourg! Se eu já
houvesse "produzido" algo que me fizesse ser notado, ela teria concluído que uma dose de
esnobismo pode aliar-se ao talento. E levei ao cúmulo a sua decepção: confessei-lhe que não ia à
casa da Sra. de Montmorency (como ela acreditava) para "tomar apontamentos" e "fazer um
estudo". A Sra. de Guermantes, de resto, não se enganava mais que os romancistas mundanos
que analisam cruelmente, de fora, as ações de um esnobe ou de quem é tido como tal, mas
jamais se colocam no seu interior, na época em que floresce na imaginação toda uma primavera
social. Eu mesmo, quando quis saber que tipo tão grande de prazer sentiria em ir à casa da Sra.
de Montmorency, fiquei um tanto desapontado. No faubourg Saint-Germain, ela morava numa
velha casa cheia de pavilhões separados por pequenos jardins. Debaixo da abóbada, uma
estatueta atribuída a Falconet representava uma fonte, de onde, aliás, escorria uma umidade
permanente. Um pouco mais longe, a porteira, com os olhos sempre vermelhos, fosse por
desgostos, fosse por neurastenia, enxaqueca ou gripe, jamais respondia, limitando-se a fazer um
gesto vago indicando que a duquesa se encontrava em casa e deixava cair das pálpebras
algumas gotas sobre uma taça repleta de miosótis. O prazer que me dava observar a estatueta,
porque ela me lembrava um pequeno jardineiro em gesso que havia num jardim de Combray, não
era nada comparado ao que me causavam a grande escadaria úmida e sonora, cheia de ecos,
como a de certos estabelecimentos de banhos de outrora, os vasos cheios de cinerárias azul
sobre azul na antecâmara, e sobretudo o toque da campainha, que era exatamente o do quarto de
Eulalie. Esse toque levava ao auge o meu entusiasmo; mas parecia-me por demais humilde para
que o pudesse explicar à Sra. de Montmorency, de modo que essa dama me via sempre num
deslumbramento de cuja causa nunca suspeitou.
AS INTERMITÊNCIAS DO CORAÇÃO
Minha segunda chegada a Balbec foi bem diversa da primeira o gerente fora em pessoa
me esperar em Pont-à-Couleuvre, repetindo o quanto considerava os hóspedes titulares, o que
me fez recear que ele me via enobrecido, até que compreendi que, na obscuridade de sua
memória gramatical, titular significava simplesmente "preferido". Aliás, à medida que aprendia
novos idiomas, falava pior os idiomas anteriores.
Anunciou que me reservara um quarto bem no alto do hotel.
- Espero - disse, - que o senhor não veja nisso falta de cortesia; aborrecia-me dar-lhe um
quarto do qual o senhor é indigno, porém o fiz em relação aos barulhos, pois assim não terá
ninguém por cima a lhe cansar os trépanos (em vez de rt - “panos"). Fique tranquilo, mandarei
fechar as janelas para que elas não incomodem. Nesse ponto, sou intolerável - (tais palavras não
exprimiam o seu pensamento, que era o de que o achariam sempre inexorável a esse respeito.
Mas talvez perfeitamente o de seus camareiros. Aliás, os quartos eram da primeira estada. Não
eram inferiores, mas eu havia subido na estima do gerente. Poderia mandar acender a lareira se
quisesse (pois eu partira pela Páscoa, por ordem dos médicos), mas ele receava não houvesse
"fixuras” no teto.
- Sobretudo, espere sempre, para acender uma fogueira, quando a anterior esteja
consumada (em vez de "consumida"). Pois é importante evitar incendiar a lareira, tanto mais que
para alegrar um pouco, mandei colocar por cima um grande vaso de porcelana chinesa que isso
poderia danificar.
Informou-me, com muita tristeza, da morte do presidente da Ordem dos Advogados de
Cherburgo.
- Era um velho experiente - disse-me ele (provavelmente por "espertalhão"), e deu-me a
entender que seu fim foi antecipado por uma vida de "devastações", o que significava
"devassidões".
- Há já algum tempo eu notava que, após o jantar, ele cochichava no salão (sem dúvida em
vez de "cochilava"). Ultimamente, havia mudado de tal forma que, se não soubessem que era ele,
ao vê-lo não tinha nada de reconhecido (em vez de "reconhecível", sem dúvida).
- Compensação feliz, o presidente do conselho de Caen acabava de receber a "chibata" de
comandante da Legião de Honra. Certamente que ele tem capacidade, mas creio que a deram
sobretudo por sua grande "impotência".
Aliás, voltavam a falar dessa "decoração" no Écho de Paris da véspera, do qual o gerente
lera apenas "o primeiro parafo" (em vez de "parágrafo"). A política do Sr. Caillaux estava bem
arranjada.
- De resto, acho que eles têm razão - disse ele. - Ele nos põe demais sob a cópula da
Alemanha (sob a "cúpula").
Como esse tipo de assunto, tratado por um hoteleiro, me parecia tedioso, deixei de escutá-lo. Pensava nas imagens as quais me haviam decidido voltar a Balbec. Eram bem diferentes das
de outrora, a visão que eu vinha buscar era tão esplêndida como a primeira era brumosa; não
deviam me decepcionar menos. As imagens escolhidas pela lembrança são tão arbitrárias, tão
estreitas, tão inatingíveis como as que a imaginação havia formado e a realidade destruíra. Não
há motivo para que, fora de nós, um local de verdade possua de preferência os quadros da
memória do que os do sonho. E depois, uma nova realidade nos fará talvez esquecer, e até
mesmo detestar, os desejos em virtude dos quais tínhamos partido. Aqueles que me haviam feito
partir para Balbec se relacionavam em parte com o fato de que os Verdurin (de cujos convites
jamais me aproveitara, e que certamente ficariam felizes por me receberem, caso eu fosse ao
campo a fim de desculpar-me de nunca lhes ter feito uma visita em Paris), sabendo que vários
fiéis passariam as férias naquela costa, e tendo por isso alugado para toda a temporada um dos
castelos do Sr. de Cambremer (La Raspeliere), enviei, feito um verdadeiro doido, o nosso jovem
lacaio para se informar se essa dama levaria a sua camareira à Balbec. Eram onze horas da noite.
O porteiro levou muito tempo para abrir e por milagre não mandou passear o meu mensageiro,
não mandou chamar a polícia, contentando-se em recebê-lo muito mal, dando-lhe porém a
informação desejada. Disse que de fato a camareira principal acompanharia a patroa, primeiro às
águas da Alemanha, depois a Biarritz e, finalmente, à casa da Sra. Verdurin. Desde então eu me
tranquilizara, ficando satisfeito por ter aquele pão no forno. Podia dispensar-me dessas buscas
nas ruas onde estava desprovido, junto às belezas que encontrava, desse cartão de
recomendação que seria, ao lado do "Giorgione", o ter jantado na mesma noite com sua patroa,
na casa dos Verdurin. Além disso, ela faria talvez melhor ideia a meu respeito, ainda mais
sabendo que eu conhecia não somente os burgueses locatários de La Raspeliere como também
seus proprietários, e principalmente Saint-Loup, que, não podendo me recomendar a distância à
camareira (esta ignorava o nome de Robert), escrevera para mim uma calorosa carta aos
Cambremer. Pensava que, afora toda a utilidade de que me poderiam ser, a Sra. de Cambremer,
a nora nascida em Legrandin, haveria de interessar-me para conversar.
- É uma mulher inteligente - me assegurara - Até certo ponto, naturalmente. Ela não te dirá
coisas definitivas (as coisas "definitivas" tinham sido substituídas pelas coisas "sublimes" por
Robert, que modificava, a cada cinco ou seis anos, algumas de suas expressões prediletas,
sempre conservando as principais), mas é uma natureza, ela tem personalidade e intuição; diz a
propósito a palavra exata. De vez em quando é enervante, solta asneiras para "bancar gente fina",
o que é tanto mais ridículo, visto que nada é menos elegante que os Cambremer; nem sempre
está atualizada, mas enfim, é uma das pessoas mais suportáveis de se frequentar.
Logo que lhes chegou às mãos a recomendação de Robert à Cambremer, fosse pelo
esnobismo que os fazia desejar indiretamente serem amáveis com Saint-Loup, fosse por gratidão
pelo que ele fizera por um de seus sobrinhos em Doncieres, e mais provavelmente, sobretudo, por
bondade e tradições hospitaleiras, tinham escrito longas cartas pedindo que, morasse com eles e,
se preferia ser mais independente, oferecendo-se para procurar um quarto. Quando Saint-Loup
lhes objetou que eu ficaria no Grande Hotel de Balbec, responderam que ao menos esperavam
uma visita desde a minha chegada e, se ela demorasse demais, não deixariam de me procurar
para convidar-me à frequentar os seus garden-parties.
Sem dúvida, nada ligava de modo essencial a camareira da Sra. Putbus à região de
Balbec; ali, ela não seria para mim como a camponesa que eu, sozinho na estrada de Méséglise,
chamara tantas vezes em vão com todas as forças do meu desejo.
Mas há muito eu já deixara de tentar extrair de uma mulher como; que a raiz quadrada de
seu desconhecido, o qual não resistia muitas vezes a uma simples apresentação. Pelo menos em
Balbec, aonde eu não ia há muito tempo, teria essa vantagem na falta da relação necessária que
não existia entre a região e aquela mulher; a de que o sentimento da realidade não me seria
suprimido ali pelo hábito, como em Paris, onde, seja em, minha própria casa, seja num quarto
conhecido, o prazer junto de uma mulher não podia me dar por um só instante a ilusão de que, em
meio às coisas cotidianas, me abria acesso a uma vida nova. (Pois, se o hábito é, uma segunda
natureza, ele nos impede de conhecer a primeira, da qual não tem nem as crueldades nem os
encantos.) Ora, essa ilusão, eu a teria talvez numa região nova onde a sensibilidade renasce ante
um raio de sol, e onde, justamente acabaria de exaltar-me a camareira que eu desejava; porém
iremos ver que as circunstâncias não só impedirão que essa mulher vá à Balbec, mas também
que eu nada temeria tanto quanto a sua provável chegada; de modo que este objetivo principal da
minha viagem não foi alcançado, nem mesmo perseguido. Decerto a Sra. Putbus não deveria ir
tão cedo à casa dos Verdurin naquela temporada; mas tais prazeres escolhidos podem estar
distantes desde que sua vinda esteja assegurada e que, durante a sua espera, possamos
entregar-nos, daqui até lá, à preguiça de tentar agradar e à impotência de amar. Além disso, eu
não ia a Balbec com um espírito tão pouco prático feito da primeira vez; há sempre menos
egoísmo na imaginação pura do que na recordação; e eu sabia que ia precisamente me encontrar
num desses lugares em que pululam as belas desconhecidas. Uma praia não as oferece menos
que um salão de baile; eu pensava previamente nos passeios diante do hotel, sobre o molhe, com
o mesmo tipo de prazer que a Sra. de Guermantes me proporcionaria se, em vez de me mandar
convidar para brilhantes jantares, sugerisse mais vezes o meu nome, para as listas de
cavalheiros, às donas-de-casa que davam bailes. Travar relações femininas em Balbec me seria
tão fácil quanto difícil me fora antigamente, pois agora tinha ali tantos apoios e conhecimentos
como era destituído deles na minha primeira viagem.
Fui arrancado de meus devaneios pela voz do gerente, cujas dissertações políticas não
havia escutado. Mudando de assunto, falou-me da alegria do presidente do conselho de Caen ao
saber da minha chegada, e que viria visitar-me no quarto na mesma noite. A ideia dessa visita me
assustou de tal maneira pois principiava a sentir-me esgotado, que lhe implorei que a evitasse (o
que me prometeu) e, para maior segurança, que mandasse seus empregados montarem guarda
no meu andar, na primeira noite.
O gerente parecia não apreciá-los muito.
- Sou obrigado o tempo todo a correr atrás deles, pois falta-lhes inércia demais. Se eu não
estivesse aí, eles não se mexeriam. Vou colocar o ascensorista de plantão na sua porta. -
Perguntei se este era afinal "chefe dos grooms".
- Ainda não é bem velho na casa - respondeu-me. - Tem companheiros mais velhos que
ele. Isso causaria protestos. Em todas as coisas é necessário “granulações.”("gradações").
Reconheço que ele possui uma boa atitude (em vez de "atitude") diante de seu ascensor. Mas
ainda é um pouco jovem para situações semelhantes. Isto faria contraste com os outros, que são
bem antigos. Falta-lhe um pouco de seriedade, que é a qualidade primitiva (sem dúvida, a
qualidade primordial, a qualidade mais importante). É preciso que seja mais repensável (meu
interlocutor queria dizer responsável). De resto, só pode confiar em mim. Conheço o assunto.
Antes de tomar meus galões como gerente do Grande Hotel, fiz minhas primeiras armas às
ordens do Sr. Paillard. -
Essa comparação impressionou-me e agradeci ao gerente o ter vindo em pessoa até Pont
à-Couleuvre.
- Ora, de nada. Isto só me fez perder um tempo infinito (em vez de "ínfimo"). - Além disso,
já tínhamos chegado.
Forte perturbação de todo o meu ser. Desde a primeira noite, como eu sofresse de uma
violenta crise de fadiga cardíaca, tratando de vencer meu sofrimento, abaixei-me com prudência e
bem devagar para tirar os sapatos. Porém mal tocara o primeiro botão de minha botina, meu peito
inchou-se, repleto de uma presença desconhecida, divina, soluços me sacudiram, lágrimas me
rolaram dos olhos. A criatura que vinha em meu socorro, me salvava da secura da alma, era
aquela que, muitos anos antes, num momento de aflição e solitude idênticas, num momento em
que eu não mais possuía de mim, havia entrado e me devolvera a mim mesmo, pois, era eu e
mais do que eu (o continente que é mais que o conteúdo e como ela me trazia). Eu acabava de
perceber, em minha memória, debruçado sobre minha fadiga, o rosto preocupado, terno e
desapontado de minha avó, assim como estivera na primeira noite da chegada; o rosto de minha
avó; daquela que eu me espantara e censurara de lamentar tão pouco e que dela só possuía o
nome, mas de minha avó verdadeira, de quem, pela primeira vez desde os Champs-Élysées onde
ela tivera o seu ataque, eu encontrara a realidade viva numa lembrança involuntária e completa.
Essa realidade, não existe para nós enquanto não for recriada pelo nosso pensamento (todos os
homens que participassem de uma gigantesca batalha seriam grandes poetas épicos). E assim,
num desejo louco de me precipitar em seus braços, era apenas naquele instante (mais de um ano
após o seu falecimento devido a esse anacronismo que muitas vezes impede o calendário dos
fatos de coincidir com o dos sentimentos) que eu acabava de saber que a estava morta. Muitas
vezes falara eu nela desde esse momento, e até pensara nela, mas sob as minhas palavras e
pensamentos de rapaz ingrato, egoísta e cruel, nunca houvera nada que se assemelhasse à
minha avó, pois que, na minha leviandade, no meu amor pelo prazer, no meu hábito de vê-la
enferma, eu continha em mim apenas em estado virtual a lembrança do que ela havia sido. Em
qualquer momento que a consideremos, nossa alma total só tem um valor quase fictício, apesar
do saldo numeroso de suas riquezas, pois ora umas, ora outras são indisponíveis, quer se trate de
riquezas efetivas ou de riquezas da imaginação; e para mim, por exemplo, tanto as do antigo
nome de Guermantes, como aquelas, bem mais graves, da verdadeira lembrança de minha avó.
Pois às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a
existência do nosso corpo, para nós semelhante a um vaso em que estaria encerrada a nossa
espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, nossas alegrias
passadas, todas as nossas dores estão perpetuamente sob nossa posse. Talvez também seja
incorreto crer que nos fujam ou que retornem. Em todo caso, se permanecem dentro de nós, na
maior parte do tempo ficam num domínio desconhecido onde não têm nenhuma utilidade para
nós, e onde até os mais comuns são recalcados por lembranças de ordem diferente e que
excluem toda simultaneidade com eles na consciência. Mas, se o quadro de sensações em que
estão conservados se recupera, têm por sua vez aquele mesmo poder de expulsar tudo o que
lhes é incompatível, de instalar sozinho em nós o eu que lhes deu vida. Ora, como esse que eu
acabara subitamente de tornar-me não havia existido desde aquela noite remota em que minha
avó me despira quando da minha chegada a Balbec, foi bem naturalmente, não depois do dia
atual, que esse eu ignorava, mas como se houvesse no tempo séries diversas e paralelas sem
solução de continuidade, logo após a primeira noite de outrora, que aderi ao instante em que
minha avó se debruçara sobre mim.
O eu que eu era então, e que desaparecera durante tanto tempo, estava de novo tão perto
de mim que me parecia ouvir ainda as palavras que tinham imediatamente precedido e que no
entanto não passavam de um sonho, como um homem mal desperto julga perceber bem pertinho
os rumores de seu sonho que se desvanece. Eu já não era senão aquela criatura que buscava
refugiar-se nos braços de sua avó, a apagar com beijos os vestígios de suas mágoas, essa
criatura que, quando eu era este ou aquele que em mim se haviam sucedido desde algum tempo,
eu teria, para imaginar, tanta dificuldade que agora me seria necessário fazer esforços, aliás
inúteis, para voltar a sentir os desejos e as alegrias de um daqueles que eu já não era, pelo
menos por algum tempo. Lembrava-me como, uma hora antes do momento em que minha avó se
inclinara desse modo, em seu chambre, para as minhas botinhas, vagando eu na rua sufocante
de calor, diante da confeitaria, achara que jamais poderia, dada a necessidade que sentia de
beijá-la, esperar a hora que ainda devia passar sem ela. E agora que essa mesma necessidade
renascia, sabia que poderia esperar horas e horas, que ela nunca mais estaria a meu lado; não
fazia mais que descobri-lo porque, sentindo-a pela primeira vez, viva, verdadeira, enchendo meu
coração a ponto de parti-lo, reencontrando-a enfim, acabava de saber que a perdera para sempre.
Perdida para sempre; eu não podia compreender e me exercitava em sofrer a dor dessa
contradição: de um lado, uma existência, uma ternura, sobreviventes em mim tais como as havia
conhecido, ou seja, feitas para mim, um amor onde tudo achava de tal modo em mim o seu
complemento, seu objetivo, sua direção constante, que o gênio de grandes homens, todos os
gênios que pudessem ter existido desde o começo do mundo não teriam valido para a minha avó
um só de meus defeitos; e de outro lado, logo que eu revivera essa felicidade como atual, senti-la
atravessada pela certeza, que se lançava como uma dor física à repetição, de um nada que havia
apagado minha imagem dessa ternura, que havia destruído essa existência, abolido
retrospectivamente nossa mútua predestinação e feito de minha avó, no momento em que a
reencontrava como num espelho, uma simples estranha que um acaso fizera passar alguns anos
junto de mim, como poderia ter sido junto de qualquer outro, mas para quem, antes e depois, eu
não era nada e não seria nada.
Em vez dos prazeres que tivera desde algum tempo, o único que seria possível desgrudar
nesse momento teria sido, retocando o passado, diminuir as dores que a minha avó sentira
antigamente. Ora, eu não lembrava apenas naquele chambre, vestimenta apropriada, a ponto de
se ter quase simbólica, às fadigas, sem dúvida malsãs, mas igualmente suave que ela tomava por
mim; pouco a pouco, eis que me lembrava de todas as ocasiões em que eu havia aproveitado,
mostrando-lhe, exagerando, se necessário, os meus sofrimentos, para lhe causar uma dor que eu
logo imaginava desfeita pelos meus beijos, como se a minha ternura fosse tão capaz, a minha
felicidade, de fazer a sua. E pior que isto, eu que agora já não percebia felicidade a não ser
encontrando-a espalhada em minha lembrança sobre os planos daquele rosto modelados e
inclinados pelo carinho, encara outrora uma fúria insensata em tentar extirpar-lhe até os menores
prazeres, como naquele dia em que Saint-Loup tirara a fotografia de minha avó; e quando, tendo
dificuldade de dissimular a puerilidade quase ridícula e sua coqueteria em posar com seu chapéu
de abas largas, numa penúria apropriada, deixara-me levar a proferir uns resmungos impacientes
o ferir que, sentira-o por uma contração de sua face, tinham atingido o alvo; era em mim que tais
resmungos feriam agora, era impossível para sempre o consolo de mil beijos. Porém nunca mais
eu poderia apagar aquela contração de sua face, nem esse sofrimento do seu coração, ou melhor,
do meu. Pois, como os mortos não mais existem senão em nós, é em nós mesmos que batem
sem cessar quando nos obstinamos a recordar os golpes que lhes assentamos. Por mais cruéis
que fossem essas dores, eu me ligava a elas com todas as forças, pois sentia perfeitamente que
elas eram o efeito da recordação de minha avó, a prova de que essa lembrança que eu tinha
estava bastante presente em mim. Sentia que só a recordava de fato através da dor e desejaria
que se encravassem mais solidamente ainda aqueles pregos que cravavam a sua memória. Não
buscava tornar mais suave o sofrimento, embelezá-lo, fingir que minha avó estava apenas
ausente e momentaneamente invisível, ao dirigir à sua fotografia (a que fora tirada por Saint-Loup
e eu trazia comigo) palavras e rogativas como a um ser separado de nós por uma indissolúvel
harmonia. Jamais o fiz, pois não só estava empenhado em sofrer, mas também em respeitar a
originalidade do meu sofrimento tal como o havia sentido de súbito, sem querer, e que desejava
continuar sofrendo; seguindo suas próprias leis, a cada vez que voltasse essa contradição
estranha da sobrevivência e do nada entrecruzados em mim. Essa imposição dolorosa e
atualmente incompreensível, eu não sabia, é claro, se algum dia poderia arrancar-lhe um pouco
de verdade, mas sim que esse pouco de verdade, se alguma vez o pudesse extrair, só poderia ser
dela, tão particular, tão espontânea, que não fora traçada pela minha inteligência nem atenuada
pela minha pusilanimidade, mas que a própria morte, a brusca revelação da morte, como um raio,
abrira em mim um duplo e misterioso sulco, segundo um gráfico sobrenatural, inumano.
(Quanto a olvidar minha avó, em que eu vivera até agora, nem mesmo podia sonhar em ligar-me a
ele para lhe extrair a verdade; porquanto em si mesmo não passava de uma negação, do
enfraquecimento das ideias, incapazes de recriar um momento real da vida e obrigadas a
substituí-lo por imagens convencionais e indiferentes.)
continua na página 74...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - A Sra d'Arpajon dizia à Sra. Swann)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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