sábado, 15 de novembro de 2025

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Captura e Incorporação(a)

Elias Canetti

AS ENTRANHAS DO PODER

     Captura e Incorporação

      A psicologia da captura e da incorporação — tanto quanto a do comer, de um modo geral — permanece ainda um objeto de estudo totalmente inexplorado; nesse campo, tudo nos parece extremamente óbvio. Desenrolam-se aí, porém, muitos processos de natureza enigmática sobre os quais nunca refletimos. Nada há em nós que seja mais antigo; até hoje, o fato de compartilharmos com os animais de tanto do que ocorre nesses processos não os tornou mais espantosos para nós.
     A aproximação de uma criatura rumo a outra, em relação à qual nutre propósitos hostis, dá-se mediante diversos atos, cada um dos quais possuindo seu significado tradicional específico. Dentre esses atos tem se, por exemplo, o do espreitar a presa: esta encontra-se já sob perseguição muito antes de aperceber-se de nosso propósito. Nós a contemplamos, observamos e vigiamos munidos de um sentimento de aprovação e satisfação; encaramo-la como carne, visto que ela vive ainda, e o fazemos tão intensa e irrevogavelmente que nada poderia jamais demover-nos do propósito de obtê-la. Ao longo de todo esse tempo em que a circundamos, sentimos já em que grande medida ela nos pertence; a partir do momento em que a definimos como presa, imaginamo-la já incorporada a nós.
     A espreita é um estado tão peculiar de tensão que, apartada de tudo o mais, ela pode, por si só, adquirir um significado. Tende-se a prolongá-la e, mais tarde, evocá-la como um estado em si, independentemente de se ter ou não uma presa qualquer em mira. O homem não se coloca à espreita e se entrega à perseguição impunemente. Tudo quanto empreende de modo ativo nesse sentido, ele o vivencia de modo passivo, e exatamente da mesma forma, na própria pele; vivencia-o, porém, com maior intensidade, pois sua maior inteligência percebe mais perigos, tornando-lhe o ser perseguido um tormento maior.
     Nem sempre ele é forte o bastante para obter sua presa de forma direta. A perseguição que empreende, assaz hábil e precisa à sua maneira, conduz às mais complicadas armadilhas. Amiúde, ele se serve também da metamorfose, que é seu verdadeiro dom, ajustando-se com precisão ao animal de que está atrás. Logra imitá-lo tão bem que o animal acredita nele. Pode-se caracterizar como adulação essa modalidade do espreitar. Diz-se ao animal: “Eu sou igual a você; sou você, e você pode deixar que eu me aproxime”.
     Posteriormente à aproximação furtiva e ao salto — que aqui será tratado em outro contexto —, segue-se então o primeiro contato. Este é, talvez, o que o homem mais teme. Os dedos tocam o que logo pertencerá inteiramente ao corpo. A captura por meio dos outros sentidos — da visão, da audição, do olfato — não é tão perigosa. Esta deixa ainda um espaço entre o homem e sua vítima; enquanto esse espaço existir, haverá ainda uma oportunidade de escapar, de modo que tudo permanece irresolvido. Mas o tatear, como contato, é já o prenúncio do degustar. A bruxa do conto de fadas pede à vítima que estique o dedo, a m de que possa apalpá-lo e saber, assim, se sua vítima já está suficientemente gorda.
     Do momento do contato em diante, o propósito de um corpo em relação ao outro torna-se concreto. Já no tocante às formas de vida mais inferiores, tal momento possui algo de decisivo. Ele contém os medos mais antigos; nós sonhamos com ele e o cantamos em verso; nossa vida em civilização nada mais constitui do que um único empenho em evitá-lo. Se, a partir desse momento, seguirá havendo resistência, ou se se abrirá mão dela completamente, isso depende da relação de forças entre aquele que toca e o que é tocado — e, mais ainda do que da efetiva relação de forças, da ideia que faz dela este último. Na maioria das vezes, ele buscará ainda defender sua pele, somente deixando de tomar qualquer atitude quando em face de um poder que lhe pareça avassalador. Em nossa vida social, o contato definitivo — aquele que ocorre porque toda resistência, sobretudo a futura, afigura-se vã — transformou-se na prisão. Basta que o indivíduo sinta no ombro a mão daquele que dispõe da autoridade legítima para prendê-lo, e ele normalmente se entregará, antes mesmo que chegue a haver a captura propriamente dita. Ele se renderá e o acompanhará; dará a impressão de comportar-se de forma controlada; e, no entanto, quase nunca se encontrará ele numa posição que lhe permita encarar os acontecimentos subsequentes com tranquilidade e confiança.
     O nível seguinte de aproximação é a captura. Os dedos da mão formam um espaço oco rumo ao qual buscam pressionar uma porção da criatura que tocam. Fazem-no sem se preocupar com seu corpo, com o contexto orgânico da presa. Nesse estágio, não faz realmente diferença se vão machucá-la ou não. Algo de seu corpo, porém, precisa penetrar naquele espaço construído pelos dedos, na qualidade de uma fiança para o todo. O espaço no interior da mão curvada é a antessala da boca e do estômago, através dos quais a presa será, então, definitivamente incorporada. Em muitos animais, é a boca armada, em vez das garras ou da mão, que cuida da captura. Entre os homens, a mão que não solta mais constitui o verdadeiro símbolo do poder. “Ele o entregou em suas mãos.” “Estava em suas mãos.” “Está nas mãos de Deus.” Expressões assim são frequentes e conhecidas em todas as línguas.
     Para o processo da captura propriamente dita, o verdadeiramente importante é a pressão que a mão humana exerce. Os dedos se fecham sobre aquilo que apanharam; estreita-se o espaço oco para o qual foi puxado. O que se apanhou, quer-se senti-lo em toda a superfície interior da mão; quer-se senti-lo com mais vigor. A leveza e a mansidão do contato primeiro se propagam para depois, finalmente, fortalecerem-se e concentrarem-se, até que se esteja pressionando o máximo possível a porção da presa que se apanhou. Esse tipo de pressão superou o dilacerar das garras. Em cultos antigos, praticava-se ainda o dilaceramento; era, porém, considerado animal: tratava-se de um jogo entre animais. Já de há muito, porém, passou-se a recorrer aos dentes.
     A pressão pode intensificar-se até o esmagamento. Até onde se vai com ela — se até o esmagamento de fato ou não —, isso depende da periculosidade da presa. Se se teve de enfrentar uma dura luta com ela; se se foi seriamente ameaçado; se ela provocou a ira ou infligiu um ferimento, com prazer far-se-á com que ela o sinta, pressionando-a mais do que o necessário para se ter segurança da sua posse.
     Mas, mais ainda do que a periculosidade e a ira, é o desdém que conduz ao esmagamento. Algo minúsculo, que mal conta — um inseto —, é esmagado porque, do contrário, não se saberia o que aconteceu com ele. Um espaço oco estreito o suficiente para ele, a mão humana não é capaz de formar. Contudo, independentemente do fato de que as pessoas desejam livrar-se de algo que as importuna e saber que efetivamente dele se livraram, tal comportamento em relação a uma mosca ou a uma pulga trai o desdém pelo que é completamente indefeso, por aquilo que vive numa ordem de grandeza e poder em tudo diversa da nossa, algo com o qual nada temos em comum, no qual jamais nos metamorfoseamos e do qual nunca temos medo, a não ser que, subitamente, ele apareça em massa. A destruição dessas criaturas minúsculas é o único ato de violência que permanece inteiramente impune inclusive dentro de nós mesmos. Seu sangue jamais se derrama sobre nossa cabeça e não lembra o nosso. Não fitamos seus olhos moribundos, nem tampouco as comemos. Pelo menos entre nós, ocidentais, essas criaturas jamais foram incluídas no reino crescente, ainda que não muito eficaz, dos seres humanos. São, em suma, livres como pássaros — ou, melhor dizendo, livres como moscas ou pulgas. Se digo a alguém: “Posso te esmagar com as mãos”, o que exprimo com isso é o maior desdém que se pode conceber. O que estou dizendo é, mais ou menos: “Você é um inseto que não significa nada para mim. Posso fazer com você o que eu quiser, e você continuará não significando nada para mim. Você não significa nada para ninguém. Pode ser impunemente aniquilado, e ninguém notaria. Ninguém lembraria, tampouco eu”.
     O nível máximo de destruição pela pressão, a trituração, não é mais possível com as mãos: para tanto, elas são demasiado macias. A trituração pressupõe uma sobrecarga mecânica bastante grande, uma dura porção superior e outra inferior entre as quais o objeto é triturado. Os dentes fazem aqui o que as mãos não conseguem. De um modo geral, quando se fala em trituração não se pensa mais num ser vivo; o processo enquanto tal avança já pelo terreno do inorgânico. A palavra é empregada antes em relação a catástrofes naturais; grandes rochas que se soltam podem triturar criaturas bem menores. É certo que o termo é utilizado também em sentido figurado, mas, nesse caso, não é levado totalmente a sério. Ele transmite a ideia de um poder destruidor vinculado não propriamente ao homem em si, mas a suas ferramentas. Há algo de puramente objetivo na trituração; sozinha, a exterioridade do corpo não é capaz de produzi-a, renunciando generosamente a ela. A força maior de que o corpo é capaz é o punho de “aço”.
     É notável a grande consideração de que goza o ato de agarrar [Griff ]. As funções da mão são tão múltiplas que não há de causar admiração as muitas expressões idiomáticas a ela vinculadas. Seu verdadeiro prestígio, porém, ela o deve a esse ato central e mais celebrado de poder que é o do agarrar. A expressão “estar tomado” [Ergriffenheit], que não poderia desfrutar de posição mais elevada, constitui, talvez, o mais impressionante testemunho disso. Ela implica totalidade, total encerramento do sujeito, e isso em conexão com uma força sobre a qual ele não exerce nenhuma influência. Aquele que está “tomado” [der Ergriffene] foi apanhado por uma enorme mão que o abarca por completo, mas nada faz para defender-se dessa mão, cujas intenções não lhe é possível conhecer.
     É natural que busquemos o ato decisivo de poder onde, desde sempre, ele mais chama a atenção nos animais e nos homens: justamente no ato de agarrar [Ergreifen]. Repousa aí o respeito supersticioso de que desfrutam entre os homens os felinos de rapina, tanto os tigres quanto os leões. São eles os maiores agarradores; e seu agarramento, eles o efetuam sozinhos. A espreita, o bote, o cravar das garras, o dilacerar — neles, tudo isso encontra-se ainda reunido numa coisa só. O ímpeto que há nesse ato, sua inexorabilidade, a segurança com que ele é executado, a superioridade jamais contestada de seu executor, o fato de que tudo, queira ele o que quiser, pode tornar-se presa — todos esses fatores contribuem para seu portentoso prestígio. Qualquer que seja o ponto de vista a partir do qual se contemple, tem-se aí o poder em sua concentração máxima. E, sob tal forma, ele causou uma impressão indelével no homem; todos os reis gostariam de ter sido leões. O que admiravam e louvavam era o próprio ato de agarrar, seu êxito. Por toda parte, caracterizou-se como valentia e grandeza aquilo que repousava numa força amplamente superior.
     O leão não precisa metamorfosear-se para obter sua presa; ele a consegue na qualidade dele mesmo. Antes de partir para o ataque, ele ruge, deixando-se reconhecer; único como é, ele pode revelar sua intenção, anunciando-a bem alto, de forma audível a todas as criaturas. Há aí uma obstinação que jamais se transforma em qualquer outra coisa e que, por isso mesmo, espraia um pavor ainda maior. O poder, em seu cerne e seu ápice, despreza a metamorfose. Ele se basta a si mesmo; quer apenas a si mesmo. Sob essa forma, ele pareceu notável aos homens; absoluto e irresponsável, ele não existe em função de coisa ou pessoa alguma. Sempre que exibiu essa forma, o poder exerceu sobre os homens seu maior fascínio, e, até hoje, nada é capaz de impedir-lhe a recorrência sob essa mesma forma.
     Há, contudo, um segundo ato de poder, decerto não tão fulgurante, mas certamente não menos essencial. Em face da grandiosa impressão causada pelo agarrar, esquece-se de que, paralelamente a ele, verifica-se algo de igual importância: importante é também não se deixar agarrar.

continua página 309...
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Leia também:

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Captura e Incorporação(a) 
Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Captura e Incorporação(b)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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