Elias Canetti
AS ENTRANHAS DO PODER
Captura e Incorporação
A psicologia da captura e da incorporação — tanto quanto a do
comer, de um modo geral — permanece ainda um objeto de estudo
totalmente inexplorado; nesse campo, tudo nos parece extremamente
óbvio. Desenrolam-se aí, porém, muitos processos de natureza
enigmática sobre os quais nunca refletimos. Nada há em nós que seja
mais antigo; até hoje, o fato de compartilharmos com os animais de
tanto do que ocorre nesses processos não os tornou mais espantosos
para nós.
A aproximação de uma criatura rumo a outra, em relação à qual
nutre propósitos hostis, dá-se mediante diversos atos, cada um dos quais
possuindo seu significado tradicional específico. Dentre esses atos tem
se, por exemplo, o do espreitar a presa: esta encontra-se já sob
perseguição muito antes de aperceber-se de nosso propósito. Nós a
contemplamos, observamos e vigiamos munidos de um sentimento de
aprovação e satisfação; encaramo-la como carne, visto que ela vive
ainda, e o fazemos tão intensa e irrevogavelmente que nada poderia
jamais demover-nos do propósito de obtê-la. Ao longo de todo esse
tempo em que a circundamos, sentimos já em que grande medida ela
nos pertence; a partir do momento em que a definimos como presa,
imaginamo-la já incorporada a nós.
A espreita é um estado tão peculiar de tensão que, apartada de tudo o
mais, ela pode, por si só, adquirir um significado. Tende-se a prolongá-la e, mais tarde, evocá-la como um estado em si, independentemente de
se ter ou não uma presa qualquer em mira. O homem não se coloca à
espreita e se entrega à perseguição impunemente. Tudo quanto
empreende de modo ativo nesse sentido, ele o vivencia de modo passivo,
e exatamente da mesma forma, na própria pele; vivencia-o, porém, com
maior intensidade, pois sua maior inteligência percebe mais perigos,
tornando-lhe o ser perseguido um tormento maior.
Nem sempre ele é forte o bastante para obter sua presa de forma
direta. A perseguição que empreende, assaz hábil e precisa à sua
maneira, conduz às mais complicadas armadilhas. Amiúde, ele se serve
também da metamorfose, que é seu verdadeiro dom, ajustando-se com
precisão ao animal de que está atrás. Logra imitá-lo tão bem que o
animal acredita nele. Pode-se caracterizar como adulação essa
modalidade do espreitar. Diz-se ao animal: “Eu sou igual a você; sou
você, e você pode deixar que eu me aproxime”.
Posteriormente à aproximação furtiva e ao salto — que aqui será
tratado em outro contexto —, segue-se então o primeiro contato. Este é,
talvez, o que o homem mais teme. Os dedos tocam o que logo
pertencerá inteiramente ao corpo. A captura por meio dos outros
sentidos — da visão, da audição, do olfato — não é tão perigosa. Esta
deixa ainda um espaço entre o homem e sua vítima; enquanto esse
espaço existir, haverá ainda uma oportunidade de escapar, de modo que
tudo permanece irresolvido. Mas o tatear, como contato, é já o
prenúncio do degustar. A bruxa do conto de fadas pede à vítima que
estique o dedo, a m de que possa apalpá-lo e saber, assim, se sua vítima
já está suficientemente gorda.
Do momento do contato em diante, o propósito de um corpo em
relação ao outro torna-se concreto. Já no tocante às formas de vida mais
inferiores, tal momento possui algo de decisivo. Ele contém os medos
mais antigos; nós sonhamos com ele e o cantamos em verso; nossa vida
em civilização nada mais constitui do que um único empenho em evitá-lo. Se, a partir desse momento, seguirá havendo resistência, ou se se
abrirá mão dela completamente, isso depende da relação de forças entre
aquele que toca e o que é tocado — e, mais ainda do que da efetiva
relação de forças, da ideia que faz dela este último. Na maioria das
vezes, ele buscará ainda defender sua pele, somente deixando de tomar
qualquer atitude quando em face de um poder que lhe pareça
avassalador. Em nossa vida social, o contato definitivo — aquele que
ocorre porque toda resistência, sobretudo a futura, afigura-se vã —
transformou-se na prisão. Basta que o indivíduo sinta no ombro a mão
daquele que dispõe da autoridade legítima para prendê-lo, e ele
normalmente se entregará, antes mesmo que chegue a haver a captura
propriamente dita. Ele se renderá e o acompanhará; dará a impressão de
comportar-se de forma controlada; e, no entanto, quase nunca se
encontrará ele numa posição que lhe permita encarar os
acontecimentos subsequentes com tranquilidade e confiança.
O nível seguinte de aproximação é a captura. Os dedos da mão
formam um espaço oco rumo ao qual buscam pressionar uma porção da
criatura que tocam. Fazem-no sem se preocupar com seu corpo, com o
contexto orgânico da presa. Nesse estágio, não faz realmente diferença
se vão machucá-la ou não. Algo de seu corpo, porém, precisa penetrar
naquele espaço construído pelos dedos, na qualidade de uma fiança para
o todo. O espaço no interior da mão curvada é a antessala da boca e do
estômago, através dos quais a presa será, então, definitivamente
incorporada. Em muitos animais, é a boca armada, em vez das garras ou
da mão, que cuida da captura. Entre os homens, a mão que não solta
mais constitui o verdadeiro símbolo do poder. “Ele o entregou em suas
mãos.” “Estava em suas mãos.” “Está nas mãos de Deus.” Expressões
assim são frequentes e conhecidas em todas as línguas.
Para o processo da captura propriamente dita, o verdadeiramente
importante é a pressão que a mão humana exerce. Os dedos se fecham
sobre aquilo que apanharam; estreita-se o espaço oco para o qual foi
puxado. O que se apanhou, quer-se senti-lo em toda a superfície
interior da mão; quer-se senti-lo com mais vigor. A leveza e a mansidão
do contato primeiro se propagam para depois, finalmente,
fortalecerem-se e concentrarem-se, até que se esteja pressionando o
máximo possível a porção da presa que se apanhou. Esse tipo de pressão
superou o dilacerar das garras. Em cultos antigos, praticava-se ainda o
dilaceramento; era, porém, considerado animal: tratava-se de um jogo
entre animais. Já de há muito, porém, passou-se a recorrer aos dentes.
A pressão pode intensificar-se até o esmagamento. Até onde se vai com
ela — se até o esmagamento de fato ou não —, isso depende da
periculosidade da presa. Se se teve de enfrentar uma dura luta com ela;
se se foi seriamente ameaçado; se ela provocou a ira ou infligiu um
ferimento, com prazer far-se-á com que ela o sinta, pressionando-a mais
do que o necessário para se ter segurança da sua posse.
Mas, mais ainda do que a periculosidade e a ira, é o desdém que
conduz ao esmagamento. Algo minúsculo, que mal conta — um inseto
—, é esmagado porque, do contrário, não se saberia o que aconteceu
com ele. Um espaço oco estreito o suficiente para ele, a mão humana
não é capaz de formar. Contudo, independentemente do fato de que as
pessoas desejam livrar-se de algo que as importuna e saber que
efetivamente dele se livraram, tal comportamento em relação a uma
mosca ou a uma pulga trai o desdém pelo que é completamente
indefeso, por aquilo que vive numa ordem de grandeza e poder em tudo
diversa da nossa, algo com o qual nada temos em comum, no qual
jamais nos metamorfoseamos e do qual nunca temos medo, a não ser
que, subitamente, ele apareça em massa. A destruição dessas criaturas
minúsculas é o único ato de violência que permanece inteiramente
impune inclusive dentro de nós mesmos. Seu sangue jamais se derrama
sobre nossa cabeça e não lembra o nosso. Não fitamos seus olhos
moribundos, nem tampouco as comemos. Pelo menos entre nós,
ocidentais, essas criaturas jamais foram incluídas no reino crescente,
ainda que não muito eficaz, dos seres humanos. São, em suma, livres
como pássaros — ou, melhor dizendo, livres como moscas ou pulgas. Se
digo a alguém: “Posso te esmagar com as mãos”, o que exprimo com
isso é o maior desdém que se pode conceber. O que estou dizendo é,
mais ou menos: “Você é um inseto que não significa nada para mim.
Posso fazer com você o que eu quiser, e você continuará não
significando nada para mim. Você não significa nada para ninguém.
Pode ser impunemente aniquilado, e ninguém notaria. Ninguém
lembraria, tampouco eu”.
O nível máximo de destruição pela pressão, a trituração, não é mais
possível com as mãos: para tanto, elas são demasiado macias. A
trituração pressupõe uma sobrecarga mecânica bastante grande, uma
dura porção superior e outra inferior entre as quais o objeto é triturado.
Os dentes fazem aqui o que as mãos não conseguem. De um modo
geral, quando se fala em trituração não se pensa mais num ser vivo; o
processo enquanto tal avança já pelo terreno do inorgânico. A palavra é
empregada antes em relação a catástrofes naturais; grandes rochas que
se soltam podem triturar criaturas bem menores. É certo que o termo é
utilizado também em sentido figurado, mas, nesse caso, não é levado
totalmente a sério. Ele transmite a ideia de um poder destruidor
vinculado não propriamente ao homem em si, mas a suas ferramentas.
Há algo de puramente objetivo na trituração; sozinha, a exterioridade
do corpo não é capaz de produzi-a, renunciando generosamente a ela. A
força maior de que o corpo é capaz é o punho de “aço”.
É notável a grande consideração de que goza o ato de agarrar [Griff ].
As funções da mão são tão múltiplas que não há de causar admiração as
muitas expressões idiomáticas a ela vinculadas. Seu verdadeiro prestígio,
porém, ela o deve a esse ato central e mais celebrado de poder que é o
do agarrar. A expressão “estar tomado” [Ergriffenheit], que não poderia
desfrutar de posição mais elevada, constitui, talvez, o mais
impressionante testemunho disso. Ela implica totalidade, total
encerramento do sujeito, e isso em conexão com uma força sobre a qual
ele não exerce nenhuma influência. Aquele que está “tomado” [der
Ergriffene] foi apanhado por uma enorme mão que o abarca por
completo, mas nada faz para defender-se dessa mão, cujas intenções não
lhe é possível conhecer.
É natural que busquemos o ato decisivo de poder onde, desde
sempre, ele mais chama a atenção nos animais e nos homens: justamente
no ato de agarrar [Ergreifen]. Repousa aí o respeito supersticioso de que
desfrutam entre os homens os felinos de rapina, tanto os tigres quanto
os leões. São eles os maiores agarradores; e seu agarramento, eles o
efetuam sozinhos. A espreita, o bote, o cravar das garras, o dilacerar —
neles, tudo isso encontra-se ainda reunido numa coisa só. O ímpeto que
há nesse ato, sua inexorabilidade, a segurança com que ele é executado,
a superioridade jamais contestada de seu executor, o fato de que tudo,
queira ele o que quiser, pode tornar-se presa — todos esses fatores
contribuem para seu portentoso prestígio. Qualquer que seja o ponto
de vista a partir do qual se contemple, tem-se aí o poder em sua
concentração máxima. E, sob tal forma, ele causou uma impressão
indelével no homem; todos os reis gostariam de ter sido leões. O que
admiravam e louvavam era o próprio ato de agarrar, seu êxito. Por toda
parte, caracterizou-se como valentia e grandeza aquilo que repousava
numa força amplamente superior.
O leão não precisa metamorfosear-se para obter sua presa; ele a
consegue na qualidade dele mesmo. Antes de partir para o ataque, ele
ruge, deixando-se reconhecer; único como é, ele pode revelar sua
intenção, anunciando-a bem alto, de forma audível a todas as criaturas.
Há aí uma obstinação que jamais se transforma em qualquer outra coisa
e que, por isso mesmo, espraia um pavor ainda maior. O poder, em seu
cerne e seu ápice, despreza a metamorfose. Ele se basta a si mesmo; quer
apenas a si mesmo. Sob essa forma, ele pareceu notável aos homens;
absoluto e irresponsável, ele não existe em função de coisa ou pessoa
alguma. Sempre que exibiu essa forma, o poder exerceu sobre os
homens seu maior fascínio, e, até hoje, nada é capaz de impedir-lhe a
recorrência sob essa mesma forma.
Há, contudo, um segundo ato de poder, decerto não tão fulgurante,
mas certamente não menos essencial. Em face da grandiosa impressão
causada pelo agarrar, esquece-se de que, paralelamente a ele, verifica-se
algo de igual importância: importante é também não se deixar agarrar.
continua página 309...
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Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Captura e Incorporação(a)
Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Captura e Incorporação(b)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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