volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Talvez, entretanto, o instinto de conservação, a engenhosidade da inteligência que nos preserva da dor, já começasse a reconstruir sobre ruínas ainda fumegantes, a colocar os primeiros alicerces de sua obra útil e nefasta, e eu desfrutasse por demais a doçura de me lembrar tais e tais opiniões da criatura querida, lembrá-las como se ela pudesse tê-las ainda, como se ela existisse, como se eu continuasse a existir para ela. Porém, logo que cheguei a adormecer, nessa hora, mais verídica, em que meus olhos se fechavam às coisas de fora, o mundo do sono (em cujo limiar a inteligência e a vontade, momentaneamente paralisadas, não mais podiam disputar-me à crueldade de minhas impressões verdadeiras) refletiu, refratou a dolorosa síntese da sobrevivência e do nada, na profundeza orgânica, tornada translúcida, das vísceras misteriosamente iluminadas. Mundo do sono, onde o conhecimento interno, posto sob a dependência das perturbações de nossos órgãos, acelera o ritmo do coração ou da respiração, pois que uma mesma dose de terror, de tristeza, de remorso, age com centuplicada força se é desse modo injetada em nossas veias; logo que, para percorrermos as artérias da cidade subterrânea, sulcamos as águas escuras do nosso próprio sangue como por um Letes interior de dobras sêxtuplas, surgem-nos grandes figuras solenes, abordam-nos e nos abandonam, deixando-nos em lágrimas. Em vão procurei minha avó, assim que desembarquei sob os pórticos sombrios; no entanto sabia que ela existia ainda, mas de uma vida diminuída, tão pálida como a da recordação; a escuridão aumentava, assim como o vento; tardava meu pai, que devia conduzir me à presença dela. De repente, faltou-me a respiração, senti o coração como que endurecido, acabava de me lembrar que desde longas semanas me esquecera de escrever à minha avó. Que deveria ela pensar de mim? "Meu Deus", dizia comigo, "como não deve estar infeliz nesse pequeno quarto que alugaram para ela, tão pequeno como para uma antiga criada, onde ela está sozinha com a guarda que puseram para cuidá-la e onde ela não pode se mexer, pois está sempre um tanto paralisada e não quis se levantar uma só vez! Ela deve acreditar que a esqueço desde que morreu, como deve se sentir sozinha e abandonada! Oh! Preciso correr para vê-la, não posso esperar um segundo, não posso esperar que meu pai chegue, mas onde? Como pude esquecer o endereço? Contanto que ela ainda me reconheça! Como pude esquecê-la durante meses?" Está escuro, não encontrarei, o vento impede de prosseguir; mas eis meu pai que passeia à minha frente; grito-lhe: “Onde está minha avó? Dê-me o endereço. Ela está bem? Tem certeza de que não lhe falta nada? - Claro que não - responde meu pai -, podes ficar tranquilo. Seu guarda é uma pessoa muito organizada. De vez em quando manda-se uma pequena quantia para que lhe seja possível comprar-lhe o estritamente necessário. Às vezes ela pergunta o que é feito de ti. Disseram-lhe até que ias escrever um livro. Ela pareceu contente. Enxugou uma lágrima. Então julguei lembrar-me que, um pouco antes de sua morte, minha avó me dissera, soluçando, com ar humilde, como uma velha que o criado expulsa, como uma estranha: "Hás de permitir que, mesmo assim, te vejo algumas vezes, não passes muitos anos sem me visitar. Pensa que fostes meu netinho e que as avós não esquecem." Revendo aquele rosto tão submisso, tão suave, tão infeliz, que ela possuía, queria correr logo para ela e dizer-lhe aquilo que deveria ter dito então: "Mas, avó, tu me verás quantas vezes quiseres, só tenho a ti neste mundo, não te deixarei nunca mais.” Como a deve ter feito soluçar o meu silêncio, durante todos esses meses em que não fui até lá onde ela está deitada! O que não terá imaginado? E foi também soluçando que disse a meu pai: - Depressa, depressa, o endereço, leva-me até lá. Mas ele: - É que... não sei se poderás vê-la. Depois, sabes, está muito fraca, muito fraca, já não é mais ela mesma, creio que isto vai ser até penoso para ti. E não me lembro do número exato da avenida. - Mas dize-me, tu que sabes, não é verdade que os mortos não vivem mais. Mesmo assim, não é verdade, apesar do que se diz, visto que a minha avó existe ainda. Meu pai sorriu tristemente: Oh, bem pouco, sabes bem pouco. Creio que farias melhor em não ir até lá. Não lhe falta nada tudo está em ordem. - Mas ela fica muitas vezes sozinha? - Sim, mas é preferível isto para ela. É preferível que não pense, só poderia lhe fazer mal. Frequentemente faz mal pensar. Aliás, tu sabes, está muito abatida. Deixar-te-ei a indicação precisa para que possas ir até lá; não vejo o que poderias fazer ali e não creio que o guarda permitiria que a visses. - No entanto, sabes bem que viverei sempre junto dela, cervos, cervos, Francis Jammes. Porém já atravessara de volta o rio de tenebrosos meandros, regressara à superfície onde se abre o mundo dos vivos; de forma que, se ainda repetia: "Francis Jammes, cervos, cervos", a sequência dessas palavras não me oferecia o sentido límpido e a lógica que exprimiam tão naturalmente para mim há um instante apenas, e que não mais podia recordar. Já nem sequer percebia por que a palavra Aias, que meu pai dissera há pouco, significara de imediato: "Cuidado com o frio", sem qualquer dúvida possível. Esquecera-me de fechar os postigos e decerto o dia claro me havia despertado. Mas não pude suportar ter debaixo dos olhos aquelas ondas do mar que minha avó outrora podia contemplar durante horas; a nova imagem de sua beleza indiferente era logo completada pela ideia de que ela não as via mais; desejaria tapar os ouvidos ao seu rumor, pois agora a plenitude luminosa da praia cavava um vazio em meu peito; tudo parecia dizer-me, como aquelas alamedas e gramados de um jardim público onde outrora me perdera dela, quando era bem pequeno: "Não a vimos", e, sob o redondo céu pálido e divino, eu me sentia oprimido, como debaixo de uma imensa cúpula azulada que fechasse um horizonte no qual não estava a minha avó. Para não ver mais coisa alguma, desviei-me para o lado da parede, mas, ai de mim, o que ficava à minha frente era aquele tabique que antigamente servia, entre nós, de mensageiro matinal; aquele tabique tão dócil como um violino para traduzir todos os matizes de um sentimento, que dizia tão exatamente à minha avó o meu temor a um tempo de despertá-la e, se já estivesse acordada, de não ser ouvido por ela e de que ela não se animasse a mover-se, e, logo depois, como a réplica de um segundo instrumento, me anunciava a sua vinda e me convidava ao sossego. Não tinha coragem de me aproximar dessa divisória mais que de um piano em que minha avó teria tocado e que vibraria ainda com seu toque. Sabia que poderia agora bater até com mais força, que nada mais conseguiria despertá-la, que eu não ouviria resposta alguma, que minha avó não mais viria. E eu nada mais pedia a Deus, se existe um paraíso, senão poder bater naquela divisória as três pancadinhas que minha avó reconheceria entre mil, e às quais responderia por essas três outras pancadinhas que queriam dizer: "Não te inquietes, meu ratinho, compreendo que estejas impaciente, mas já estou indo", e que me deixasse ficar com ela por toda a eternidade, que não seria bastante longa para nós dois.
O gerente veio indagar se eu não queria descer. De qualquer modo, havia cuidado do meu
"posto" na sala de jantar. Como não me visse, receara que estivesse com minhas sufocações de
antigamente. Esperava que aquilo não passasse de pequena "dor de garganta" e me garantiu ter
ouvido dizer que era acalmada com o auxílio do que ele denominava o "calipto". Entregou-me um
bilhete de Albertine. Ela não deveria vir a Balbec este ano, mas, tendo mudado de intenção,
estava há três dias, não exatamente em Balbec, mas a dez minutos de trem numa estação
vizinha. Temendo que eu estivesse cansado da viagem, abstivera-se na primeira noite, mas
mandava perguntar quando poderia recebê-la. Informei-me se ela tinha vindo em pessoa, não
para vê-la, mas para cuidar de não a ver; respondeu-me o gerente. Mas ela queria que fosse o
mais cedo possível; a menos que o senhor não tenha motivos absolutamente "necessito” , senhor
vê concluiu que todo mundo aqui o deseja, em definitivo. Mas eu não queria ver ninguém.
No entanto na véspera, à chegada, sentira-me retomado pelo canto indolente da vida dos
banhos de mar. O mesmo ascensorista silencioso, desta vez por respeito, não por desdém, e
rubro de prazer, pusera o elevador em andamento. Erguendo-me ao longo da coluna que subia,
para atravessar o que outrora fora para mim o mistério de um hotel desconhecido, onde, quando
se chega, turista sem proteção e sem prestígio, um hóspede que se recolhe ao quarto, cada moça
que desce para jantar, cada um que passa nos corredores estranhamente delineados, e a jovem
chega da América com sua dama de companhia e que desce para jantar levantam sobre nós um
olhar onde não se lê nada daquilo que nos agradaria. Dessa vez, ao contrário, eu experimentava
o prazer bem repousante de subir no hotel conhecido, onde me sentia em casa, onde mais uma
vez cumpria aquela operação de começar sempre, mais longa, mais difícil que o revirar das
pálpebras, e que consiste em pousar nas coisas a alma que nos é familiar em vez das que nos
aterrorizava. Seria necessário agora, disse eu comigo, sem suspeitar da brusca mudança da alma
que me esperava; sempre há outros hotéis onde jantaria pela primeira vez, onde o hábito ainda
não teria matado em cada andar, diante de cada porta, o terrífico dragão que parecia velar por
uma existência encantada, onde teria eu de aproximar-me dessas mulheres desconhecidas que
os palácios, os cassinos, as praias à maneira de vastos politiqueiros, não fazem mais que reunir e
obrigar a viver em comum?
Agradara-me até que o aborrecido presidente do conselho tivesse tanta pressa de me ver;
observava, no primeiro dia, as vagas, as cadeias das montanhas; do azul do mar, suas geleiras e
cascatas; sua elevação e sua majestade negligente apenas ao sentir, pela primeira vez em muitos
anos, ao lavar as mãos, esse cheiro especial dos sabonetes, excessivamente perfumados, do
Grande Hotel, o qual, parecendo pertencer, a um tempo, elos do momento presente à estada
passada, flutuava entre eles como o encanto real de uma vida particular à qual só se volta para
mudar a gravata. Quando os cortinados da cama, muito finos, muito leves e muito amplos,
impossíveis de bordar, de prender, e que permaneciam estufados em torno das cobertas; em
volutas moventes, me entristeceriam outrora. Somente embalaram na redonda incômoda e bojuda
de suas velas, o sol glorioso e cheio de esperanças da primeira manhã. Mas este não teve tempo
de aparecer. Na primeira noite, a atroz e divina presença havia ressuscitado. Pedi ao gerente que
saísse, e que não deixasse entrar ninguém. Disse-lhe que ficaria deitado e recusei sua oferta de
mandar buscar na farmácia a excelente droga. Gostou da minha recusa, pois temia que os
hóspedes ficassem incomodados pelo cheiro do "calipto". O que me valeu este cumprimento:
- O senhor está em dia - (queria dizer "certo"), e essa recomendação: - Cuidado para não
se sujar à porta, pois mandei "untar" as fechaduras, e, se um empregado se permitisse bater em
seu quarto, seria "moído" de pancadas. E que isto fique estabelecido, pois não gosto de
"repetições" (evidentemente aquilo significava: "não gosto de dizer duas vezes a mesma coisa").
Apenas uma observação: não quer que lhe mande subir um pouco de vinho velho do qual tenho lá
embaixo uma burrica (sem dúvida por barrica)? Não lha trarei sobre uma salva de prata como a
cabeça de “lonathan" (João Batista) e previno-lhe que não se trata de um Château-Lafite, mas é
mais ou menos equívoco (em vez de "equivalente"). E como é leve, poderiam lhe preparar um
pequeno linguado. - Recusei tudo, mas assombrou-me ouvir o nome do peixe (sole) ser
pronunciado como o da árvore (saule, salgueiro), por um homem que deveria ter encomendado
tantos em sua vida.
Apesar das promessas do gerente, pouco depois me trouxeram o cartão de visitas dobrado
da marquesa de Cambremer. Tendo vindo visitar-me, a velha senhora mandara perguntar se me
achava presente, e, ao saber que minha chegada datava apenas da véspera, e que eu estava
adoentado, ela não insistira, e (sem dúvida não sem parar na farmácia ou na mercearia, onde o
lacaio, saltando da sege, entrava para pagar alguma conta ou comprar mantimentos) voltara a
partir para Féterne, na sua velha caleche de oito molas tirada por dois cavalos. Aliás, bem
frequentemente se ouvia o rodar e se admirava o aparato da sua caleche nas ruas de Balbec e de
algumas outras pequenas localidades da costa, situadas entre Balbec e Féterne. Não que essas
paradas nas lojas de fornecedores fossem o objetivo desses passeios. Ao contrário, o objetivo era
algum chá ou garden-party, na casa de um fidalgo provinciano ou de um burguês bastante
indignos da marquesa. Porém esta, embora dominasse de muito alto, pelo nascimento e pela
fortuna, a pequena nobreza das vizinhanças, possuía, em sua bondade e simplicidade perfeitas,
tanto receio de decepcionar alguém que a convidasse, que comparecia às mais insignificantes
reuniões mundanas dos arredores. Decerto, em vez de rodar tanto para vir escutar, no calor do
salãozinho sufocante, uma cantora em geral sem talento e que, a qualidade de grande dama da
região e musicista famosa, era preciso felicitar com exagero, a Sra. de Cambremer teria preferido
ir dar um passeio ou permanecer nos maravilhosos jardins de Féterne, onde a mansa de uma
pequena baía vem morrer em meio às flores. Mas ela sabia que sua vinda provável fora
anunciada pelo dono da casa, fosse este nobre, ou um burguês de Maineville-la-Teinturiere ou de
Chattoncourt-e-gueilleux. Ora, se a Sra. de Cambremer tinha saído nesse dia sem fazer presença
na festa, este ou aquele convidado, vindo de alguma praiazinha que se estendem à beira-mar,
pudera ouvir e ver a caleche da marquesa, o que anularia a desculpa de não ter podido deixar
Féterne. Por outro lado, por mais que esses donos de casa vissem a Sra. de Cambremer
comparecer aos concertos dados em casa de pessoas onde eles a consideravam deslocada, a
pequena diminuição que, a seus olhos, era por esse efeito infligida à posição da boníssima
marquesa, desaparecia logo que eram os que a recebiam, e era febrilmente que se indagavam se
a teriam ou não para o seu chá. Que alívio para as inquietações sentidas durante vários dias, se,
depois do primeiro trecho cantado pela filha dos donos da casa, ou por algum amador em férias,
um convidado anunciava (sinal infalível de que a marquesa compareceria à vesperal) ter visto os
cavalos da famosa caleche, parados diante do relojoeiro ou do farmacêutico! Então a Sra. de
Cambremer (que de fato não demoraria a entrar junto com sua nora, os convidados naquele
momento hospedados em sua casa e que ela pedira permissão, com que alegria concedida para
trazer) retomava todo o seu brilho aos olhos dos donos da casa, para quem a recompensa de sua
esperada viram talvez fosse a causa determinante e inconfessa da decisão que haviam tomado há
um mês: infligirem-se a balbúrdia e a despesa para dar um vesperal. Vendo a marquesa presente
a seu chá, recordavam, não mais sua complacência em comparecer ao dos vizinhos pouco
qualificados, numa antiguidade de sua família, o luxo de seu castelo, a descortesia de sua nora
nascida Legrandin que, por sua arrogância, realçava a bonomia, um tanto antiquada da sogra. Já
acreditavam ler, nas notas sociais do Guermantes, o tópico que eles próprios cozinhariam em
família, todas as portas fechadas à chave, sobre "o pequeno recanto da Bretanha onde a gente se
diverte de fato, a vesperal ultrassecreta que só se dissolveu depois que se ter dos donos da casa
a promessa de que em breve dariam outra". Todos os dias esperavam o jornal, ansiosos por não
terem visto ainda figurar nele sua vesperal, temendo haver conseguido a Sra. de Cambremer
apenas por seus convidados, não para a multidão dos leitores. Por fim chegava o bendito:
"A temporada está excepcionalmente brilhante este ano em Balbec. A moda são os
pequenos concertos das tardes, etc.."
Graças a Deus, o nome da Sra. de Cambremer fora bem grafado e "citado ao acaso", mas
ao alto. Restava apenas parecer aborrecido com essa indiscrição dos jornais, que podia causar
rixas com pessoas a quem não fora possível convidar, e perguntar hipocritamente à Sra. de
Cambremer quem fora capaz da perfídia de enviar aquele eco, ao que a marquesa, benevolente e
grande dama, dizia:
- Compreendo que isto os aborreça, mas quanto a mim fiquei muito feliz que soubessem
que estava em casa dos senhores.
No cartão que me enviou, a Sra. de Cambremer havia escrito que dava uma vesperal dois
dias depois. E certamente há apenas dois dias, por mais cansado que estivesse da vida
mundana, teria sido um verdadeiro prazer para mim desfrutá-la transplantada para aqueles jardins
onde cresciam em plena terra, graças à exposição de Féterne; as figueiras, as palmeiras, os
canteiros de rosas, e até ao mar, muitas vezes de um azul e de um sossego mediterrâneos e no
qual o pequeno iate dos proprietários, antes do começo da festa, ia apanhar, nas praias do outro
lado da baía, os convidados mais importantes, e que, com seus toldos estendidos contra o sol,
servia de refeitório, quando todos já haviam chegado, e voltava à tardinha para reconduzir
aqueles que trouxera. Luxo encantador, mas tão dispendioso que, em parte, a fim de cortar as
despesas que ele acarretava, é que a Sra. de Cambremer havia procurado aumentar seus
rendimentos de diversas maneiras, principalmente alugando pela primeira vez uma de suas
propriedades, bem diferente de Féterne: La Raspeliere. Sim, dois dias antes, o quanto uma
vesperal dessas, povoada de pequenos nobres desconhecidos, num ambiente novo, não teria me
distraído da "alta roda" parisiense! Mas agora os prazeres não tinham mais nenhum sentido para
mim. Assim, escrevi à Sra. de Cambremer para desculpar-me, da mesma forma como, uma hora
antes, mandara despedir Albertine: o desgosto abolira em mim a possibilidade do desejo, de modo
tão completo como uma febre muito alta tira o apetite. Minha mãe devia chegar no dia seguinte.
Parecia-me que era menos indigno de viver junto dela, que a compreenderia melhor agora que
toda uma vida estranha e degradante dera lugar ao retorno das lancinantes lembranças que
cingiam e enobreciam minha alma e a sua de coroas de espinhos. Acreditava-o assim; na
realidade, há muita distância entre os desgostos verdadeiros, como era o de mamãe que
literalmente nos tiram a vida por muito tempo, às vezes para sempre, quando se perde a criatura
amada -, e os demais desgostos, apesar de tudo passageiros, como devia ser o meu, que se vão
tão depressa como tarde chegaram, que só são conhecidos muito tempo depois do acontecimento
porque, para senti-los, houve necessidade de os "compreender"; desgostos como tantas pessoas
os experimenta dos quais o que atualmente me torturava só se diferenciava pela modalidade da
lembrança involuntária.
Quanto a um desgosto tão profundo como o de minha mãe, eu devia conhecê-lo um dia, e
o veremos na continuação desta narrativa; mas, era agora e nem assim que eu o imaginava. Não
obstante, como recitador que deveria conhecer o seu papel e estar no seu posto há muito; que
apareceu apenas no último segundo e, tendo lido somente uma vez o que tem a dizer, sabe
dissimular com extrema habilidade ao chegar o momento em que deve dar a réplica; para que
ninguém perceba o atraso do meu desgosto, inteiramente novo, permitiu-me, quando minha mãe
chegou, que lhe falasse como se tivesse sido sempre o mesmo. Apenas imaginou que a vista
daqueles lugares onde eu tinha estado com minha avó (e aliás não era isto) o havia despertado.
Então pela primeira vez, e porque eu sentia uma dor que nada era, ao lado da sua, mas que me
abria os olhos, dei-me conta, com terror, do que ela podia sofrer. Pela primeira vez compreendi
que aquele olhar fixo e sem lágrimas (o que fazia com que Françoise pouco lamentasse), que ela
apresentava desde a morte de minha avó, estava preso naquela incompreensível contradição da
lembrança e do nada. Além disso, embora sempre com seus véus negros, mais vestidos naquela
região nova, mais me impressionava a transformação que se fizera nela. Não é muito dizer que
havia perdido toda a alegria; fundida, fixa numa espécie de imagem implorando; ela parecia ter
medo de ofender com movimento excessivamente brusco, com um tom de voz alto demais, a
dolorosa presença que não a abandonava. Mas principalmente, desde que vi entrar com seu
manto de crepe, percebi o que me havia escapado em Paris; que já não era minha mãe quem eu
tinha diante dos olhos: mas minha avó. Como nas famílias reais e ducais, à morte do chefe, o filho
assume o seu título e, de duque de Orléans, de príncipe de Tarento, ou de príncipe des Laumes,
torna-se rei da França, duque de La Trémoille, duque Guermantes, assim muitas vezes, devido a
um acontecimento de outra ordem e de mais profunda origem, o morto se apodera do vivo, que se
torna seu sucessor análogo, o continuador de sua vida interrompida. Talvez a grande mágoa que
se segue, numa filha como era mamãe, à morte da sua não faça mais que romper mais cedo a
crisálida, apressar a metamorfose do aparecimento de um ser que trazemos em nós, e que, sem
essa crise faz queimar as etapas e saltar de um pulo os períodos, só teria sobrevivido mais
lentamente. Talvez, na saudade daquela que já não existe, haja espécie de sugestão que acaba
por trazer às nossas feições semelhança que aliás, teríamos em potencial, e sobretudo talvez haja
uma parado nossa atividade mais particularmente individual (em minha mãe, o bom senso, a
alegria zombeteira que lhe vinha do pai), que não receávamos exercer enquanto vivia o ser
amado, mesmo que fosse às suas custas, e que contrabalançava o caráter que havíamos herdado
exclusivamente dele. Uma vez que a pessoa amada está morta, sentiríamos escrúpulos em ser
outra, não mais admiramos senão o que ela era, o que já éramos, porém misturado à outra coisa,
e que vamos unicamente ser de hoje em diante. É neste sentido (e não naquele tão vago, tão
falso, em que é geralmente entendido) que se pode dizer que a morte não é inútil, que o morto
continua a agir sobre nós. Trata-se até mais que um vivo porque, sendo a verdadeira realidade
apreendida apenas pelo espírito, só conhecemos de fato o que somos obrigados a recriar pelo
pensamento, aquilo que a vida cotidiana nos oculta... Enfim, neste culto da dor pelos nossos
mortos, devotamos uma idolatria pelo que eles amaram. Não só minha mãe não podia separar-se
da bolsa de minha avó, que se tornara mais preciosa do que se fosse de safiras e diamantes, de
seu regalo, de todos aqueles vestuários que ainda mais acentuavam a semelhança de aspecto
entre elas, mas até mesmo dos volumes da Sra. de Sévigné que minha avó trazia sempre
consigo, exemplares que minha mãe não trocaria nem mesmo pelo próprio manuscrito das Cartas.
Antigamente, ela gracejava com a mãe, que jamais lhe escrevia sem citar uma frase da
Sra. de Sévigné ou da Sra. de Beausergent. Em cada uma das três cartas que recebi de mamãe
antes de sua chegada a Balbec, ela citou a Sra. de Sévigné, como se essas três cartas não
tivessem sido endereçadas por ela a mim, mas por minha avó a ela. Quis descer e ir até o molhe
para ver aquela praia de que minha avó lhe falava todos os dias ao lhe escrever. Segurando a
sombrinha da mãe, eu a vi pela janela adiantar-se, toda de preto, com passos tímidos, piedosos,
pela areia que os pés queridos haviam pisado antes dela, e dava a impressão de ir em busca de
uma morta que as ondas deviam trazer. Para não deixá-la jantar sozinha, tive de descer com ela.
O presidente do conselho e a viúva do presidente da Ordem dos Advogados fizeram-se
apresentar. E tudo o que se relacionava com minha avó era-lhe tão sensível, que ela se sentiu
infinitamente tocada e conservou sempre a recordação e o reconhecimento pelo que lhe disse o
presidente do conselho, como ao contrário sofreu com indignação o fato de que a viúva do
presidente da Ordem dos Advogados não tivesse tido uma só palavra em lembrança da morta. Na
realidade, o presidente do conselho não se preocupava com ela mais do que a viúva. As palavras
comovidas de um, recebera como o silêncio da outra, embora minha mãe pusesse entre ambos
uma grande distância, não passavam da forma diversa de exprimir aquela indiferença que nos
inspiram os mortos. Creio, porém, que minha mãe achou principalmente doçura nas palavras em
que, contra a minha vontade deixei passar um pouco do meu sofrimento. Aquilo só conseguia
deixar minha mãe feliz (apesar de todo o carinho que sentia por mim), como tudo o que
assegurasse à minha avó uma sobrevivência nos corações. Nos dias seguintes, minha mãe
descia para sentar-se na praia, para fazer exatamente o que sua mãe fizera, e de quem lia os dois
livros preferidos: as Memórias da de Beausergent e as Cartas, da Sra. de Sévigné. Ela, e nenhum
de nós teria suportado que chamassem a esta última de "espirituosa marquesa"; nem a La
Fontaine de "le Bonhomme". Mas, quando lia nas cartas as palavras "minha filha", julgava ouvir
sua mãe lhe falando.
Teve o azar, numa dessas peregrinações em que não queria ser perturbada, de encontrar
na praia uma senhora de Combray, seguida das filhas. Creio que seu nome era Sra. Poussin. Mas
entre nós só a chamávamos de "Vais ver o que te acontece", pois era com essa frase perpétua
que repetia advertindo as filhas para os males que acarretariam às mesmas; por exemplo, dizia a
uma delas que esfregava os olhos: "Quando tiveres uma boa oftalmia, vais ver o que te acontece."
De longe, dirigia à mamãe longas saudações lacrimosas, mas não de condolências, e sim gênero
de educação. Não tivéssemos perdido a minha avó, e só teríamos motivo de estar felizes, ela teria
feito o mesmo. Vivia bastante retirada em Combray, num imenso jardim, nunca achava nada
bastante suave e impunha suavizações até às palavras e nomes próprios da língua francesa.
Achava muito duro chamar de "colher" à peça de prata em que se servisse do seu xarope e, em
consequência, só dizia "coler"; teria receio de maltratar o doce cantor de Telêmaco chamando-o
rudemente Fénelon como o fazia eu mesmo, com conhecimento de causa, pois tinha por amigo a
criatura mais inteligente, mais bondosa e de maior coragem, inesquecível para quantos o
conheceram, Bertrand de Fénelon e ela só dizia "Fénélon", achando que o acento agudo lhe
acrescentava alguma suavidade. O genro desta Sra. Poussin, menos suave, e cujo nome esqueci
de todo, sendo notório em Combray, ocorreu-lhe carregar com a caixa, fazendo principalmente o
meu tio perder uma quantia respeitável.
Mas como a maioria das pessoas de Combray dava-se tão bem com os outros membros
da família, disso não resultou qualquer frieza, contentando-se elas em lamentar a Sra. Poussin.
Ela não costumava receber, mas, cada vez que alguém passava pelas grades do seu jardim,
parava para admirar suas admiráveis sombras, sem poder distinguir mais nada. Ela
absolutamente não nos incomodou em Balbec, onde só a vi uma vez, no momento em que estava
dizendo à filha, que roía as unhas:
- Quando tiveres um boi, panarício, vais ver o que te acontece.
Enquanto mamãe lia na praia, eu ficava sozinho no quarto. Recordava-me dos últimos
tempos de vida da minha avó e tudo o que se relacionava com eles, a porta da escadaria, que se
mantivera aberta quando tínhamos saído para o nosso último passeio. Em contraste com tudo
aquilo, o resto do mundo apenas parecia real, e o meu sofrimento o envenenava todo. Por fim,
minha mãe exigiu que eu saísse. Mas a cada passo, algum aspecto esquecido do cassino, da rua
em que, esperando-a na primeira noite, eu caminhara até o monumento de Duguay-Trouin,
impedia-me de ir adiante, como um vento contra o qual não se pode lutar; baixava os olhos para
não ver. E, depois de recobrar um pouco de força, voltava para o hotel, para o hotel onde sabia
que, de agora em diante, era impossível, por mais que esperasse, encontrar minha avó, minha
avó que eu encontrara outrora, na primeira noite da chegada.
continua na página 79...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - o instinto de conservação, a engenhosidade da inteligência)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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