quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Platão: O Banquete - Apolodoro e um Companheiro(f)

Apolodoro[1] e um Companheiro


- Bem, eu te obedecerei - tornou-lhe Erixímaco; - e com efeito teu discurso foi para mim de um agradável teor. E se por mim mesmo eu não soubesse que Sócrates e Agatão são terríveis nas questões do amor, muito temeria que sentissem falta de argumentos, pelo muito e variado que se disse; de fato porém eu confio neles.

     Sócrates então disse:

- É que foi bela, ó Erixímaco, tua competição! Se porém ficasses na situação em que agora estou, ou melhor, em que estarei, depois que Agatão tiver falado, bem grande seria o teu temor, e em tudo por tudo estarias como eu agora. 
- Enfeitiçar é o que me queres, ó Sócrates, disse-lhe Agatão, a fim de que eu me alvoroce com a ideia de que o público está em grande expectativa de que eu vá falar bem. 
- Desmemoriado eu seria, Agatão - tornou-lhe Sócrates - se depois de ver tua coragem e sobranceria, quando subias no estrado com os atores e encaraste de frente uma tão numerosa plateia, no momento em que ias apresentar uma peça tua, sem de modo algum te teres abalado, fosse eu agora imaginar que tu te alvoroçarias por causa de nós, tão poucos.  
- O quê, Sócrates! - exclamou Agatão; - não me julgas sem dúvida tão cheio de teatro que ignore que, a quem tem juízo, poucos sensatos são mais temíveis que uma multidão insensata!
- Realmente eu não faria bem, Agatão - tornou-lhe Sócrates - se a teu respeito pensasse eu em alguma deselegância; ao contrário, bem sei que, se te encontrasses com pessoas que considerasses sábias, mais te preocuparias com elas do que com a multidão. No entanto, é de temer que estas não sejamos nós - pois nós estávamos lá e éramos da multidão - mas se fosse com outros que te encontrasses, com sábios, sem dúvida tu te envergonharias deles, se pensasses estar talvez cometendo algum ato que fosse vergonhoso; senão, que dizes?
- É verdade o que dizes - respondeu-lhe.
- E da multidão não te envergonharias, se pensasses estar fazendo algo vergonhoso?

     E eis que Fedro, disse Aristodemo, interrompeu e exclamou:

- Meu caro Agatão, se responderes a Sócrates, nada mais lhe importará do programa, como quer que ande e o que quer que resulte, contanto que ele tenha com quem dialogue, sobretudo se é com um belo. Eu por mim é sem dúvida com prazer que ouço Sócrates a conversar, mas é me forçoso cuidar do elogio ao Amor e recolher de cada um de vós o seu discurso; pague então cada um o que deve ao deus e assim já pode conversar.
- Muito bem, Fedro! exclamou Agatão - nada me impede de falar, pois com Sócrates depois eu poderei ainda conversar muitas vezes. 

“Eu então quero primeiro dizer como devo falar, e depois falar. Parece-me com efeito que todos os que antes falaram, não era o deus que elogiavam, mas os homens que felicitavam pelos bens de que o deus lhes é causador; qual porém é a sua natureza, em virtude da qual ele fez tais dons, ninguém o disse. Ora, a única maneira correta de qualquer elogio a qualquer um é, no discurso, explicar em virtude de que natureza vem a ser causa de tais efeitos aquele de quem se estiver falando. Assim então com o Amor, é justo que também nós primeiro o louvemos em sua natureza. tal qual ele é, e depois os seus dons. Digo eu então que de todos os deuses, que são felizes, é o Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer em vingança, o mais feliz, porque é o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é o mais belo por ser tal como se segue. Primeiramente, é o mais jovem dos deuses, ó Fedro. E uma grande prova do que digo ele próprio fornece, quando em fuga foge da velhice, que é rápida evidentemente, e que em todo caso, mais rápida do que devia, para nós se encaminha. De sua natureza Amor a odeia e nem de longe se lhe aproxima. Com os jovens ele está sempre em seu convívio e ao seu lado; está certo, com efeito, o antigo ditado, que o semelhante sempre do semelhante se aproxima. Ora, eu, embora com Fedro concorde em muitos outros pontos, nisso não concordo, em que Amor seja mais antigo que Crono e Jápeto, mas ao contrário afirmo ser ele o mais novo dos deuses e sempre jovem, e que as questões entre os deuses, de que falam Hesíodo e Parmênides, foi por Necessidade não por Amor que ocorreram, se é verdade o que aqueles diziam; não haveria, com efeito, mutilações nem prisões de uns pelos outros, e muitas outras violências, se Amor estivesse entre eles, mas amizade e paz, como agora, desde que Amor entre os deuses reina. Por conseguinte, jovem ele é, mas além de jovem ele é delicado; falta-lhe porém um poeta como era Homero para mostrar sua delicadeza de deus. Homero afirma. com efeito, que Ate é uma deusa, e delicada - que os seus pés em todo caso são delicados quando diz: 

seus pés são delicados; pois não sobre o solo se move, 
mas sobre as cabeças dos homens ela anda. 

 Assim, bela me parece a prova com que Homero revela a delicadeza da deusa: não anda ela sobre o que é duro, mas sobre o que é mole. Pois a mesma prova também nós utilizaremos a respeito do Amor, de que ele é delicado. Não é com efeito sobre a terra que ele anda, nem sobre cabeças, que não são lá tão moles, mas no que há de mais brando entre os seres é onde ele anda e reside. Nos costumes, nas almas de deuses e de homens ele fez sua morada, e ainda, não indistinta mente em todas as almas, mas da que encontre com um costume rude ele se afasta, e na que o tenha delicado ele habita. Estando assim sempre em contato, nos pés como em tudo, com os que, entre os seres mais brandos, são os mais brandos, necessariamente é ele o que há de mais delicado. É então o mais jovem, o mais delicado, e além dessas qualidades, sua constituição é úmida. Pois não seria ele capaz de se amoldar de todo jeito, nem de por toda alma primeiramente entrar, despercebido, e depois sair, se fosse ele seco. De sua constituição acomodada e úmida é uma grande prova sua bela compleição, o que excepcionalmente todos reconhecem ter o Amor; é que entre deformidade e amor sempre de parte a parte há guerra. Quanto à beleza da sua tez, o seu viver entre flores bem o atesta; pois no que não floresce, como no que já floresceu, corpo, alma ou o que quer que seja, não se assenta o Amor, mas onde houver lugar bem florido e bem perfumado, ai ele se assenta e fica.
Sobre a beleza do deus já é isso bastante, e no entanto ainda muita coisa resta; sobre a virtude de Amor devo depois disso falar, principalmente que Amor não comete nem sofre injustiça, nem de um deus ou contra um deus, nem de um homem ou contra um homem. À força, com efeito, nem ele cede, se algo cede - pois violência não toca em Amor - nem, quando age, age, pois todo homem de bom grado serve em tudo ao Amor, e o que de bom grado reconhece uma parte a outra, dizem “as leis, rainhas da cidade", é justo. Além da justiça, da máxima temperança ele compartilha. É com efeito a temperança, reconhecidamente, o domínio sobre prazeres e desejos; ora, o Amor, nenhum prazer lhe é predominante; e se inferiores, se riam dominados por Amor, e ele os dominaria, e dominando prazeres e desejos seria o Amor excepcionalmente temperante. E também quanto à coragem, ao Amor “nem Ares se lhe opõe”. Com efeito, a Amor não pega Ares, mas Amor a Ares - o de Afrodite, segundo a lenda - e é mais forte o que pega do que é pegado: dominando assim o mais corajoso de todos, seria então ele o mais corajoso. Da justiça portanto, da temperança e da coragem do deus, está dito; da sua sabedoria porém resta dizer; o quanto possível então deve-se procurar não ser omisso. E em primeiro lugar, para que também eu por minha vez honre a minha arte como Erixímaco a dele, é um poeta o deus, e sábio, tanto que também a outro ele o faz; qualquer um em todo caso torna-se poeta, “mesmo que antes seja estranho às Musas”, desde que lhe toque o Amor. E o que nos cabe utilizar como testemunho de que é um bom poeta o Amor, em geral em toda criação artística pois o que não se tem ou o que não se sabe, também a outro não se poderia dar ou ensinar. E em verdade, a criação dos animais todos, quem contestará que não é sabedoria do Amor, pela qual nascem e crescem todos os animais? Mas, no exercício das artes, não sabemos que aquele de quem este deus se toma mestre acaba célebre e ilustre, enquanto aquele em quem Amor não toque, acaba obscuro? E quanto à arte do arqueiro, à medicina, à adivinhação, inventou as Apolo guiado pelo desejo e pelo amor, de modo que também Apolo seria discípulo do Amor. Assim como também as Musas nas belas-artes, Hefesto na metalurgia, Atena na tecelagem, e Zeus na arte “de governar os deuses e os homens”. E dai é que até as questões dos deuses foram regradas, quando entre eles surgiu Amor, evidentemente da beleza - pois no feio não se firma Amor -, enquanto que antes, como a princípio disse, muitos casos terríveis se davam entre os deuses, ao que se diz, porque entre eles a Necessidade reinava; desde porém que este deus existiu, de se amarem as belas coisas toda espécie de bem surgiu para deuses e homens.
Assim é que me parece, ó Fedro, que o Amor, primeiramente por ser em si mesmo o mais belo e o melhor, depois é que é para os outros a causa de outros tantos bens. Mas ocorre-me agora também em verso dizer alguma coisa, que é ele o que produz

paz entre os homens, e no mar bonança, 
repouso tranquilo de ventos e sono na dor.  

É ele que nos tira o sentimento de estranheza e nos enche de familiaridade, promovendo todas as reuniões deste tipo, para mutuamente nos encontrarmos, tornando-se nosso guia nas festas, nos coros, nos sacrifícios; incutindo brandura e excluindo rudeza; pródigo de bem-querer e incapaz de malquerer; propício e bom; contemplado pelos sábios e admirado pelos deuses; invejado pelos desafortunados e conquistado pelos afortunados; do luxo, do requinte, do brilho, das graças, do ardor e da paixão, pai; diligente com o que é bom e negligente com o que é mau; no labor, no temor, no ardor da paixão, no teor da expressão, piloto e combatente, protetor e salvador supremo, adorno de todos os deuses e homens, guia belíssimo e excelente, que todo homem deve seguir, celebrando-o em belos hinos, e compartilhando do canto com ele encanta o pensamento de todos os deuses e homens. 
Este, ó Fedro, rematou ele, o discurso que de minha parte quero que seja ao deus oferecido, em parte jocoso, em parte, tanto quanto posso, discretamente sério.” 

continua página 28...
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Apolodoro e um Companheiro(f)

Platão (428/7-348/7 a.C.)
     Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
     O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
     Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão. 
     De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
     Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara. 
     Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas. 
     Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.  
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)

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