sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Moby Dick: 41 - Moby Dick (a)

 Moby Dick

Herman Melville

41 -  Moby Dick
      
     Eu, Ishmael, era um dos homens daquela tripulação; meus gritos se juntaram aos dos outros; meu juramento uniu-se ao deles; e ainda mais alto gritei e ainda mais bati e finquei os cravos de meu juramento, pelo pavor que sentia em minha alma. Um sentimento de solidariedade violenta e mística me assaltava; o ódio inextinguível de Ahab parecia meu. Com ouvidos atentos escutei a história do monstro assassino contra o qual eu e todos os outros havíamos dedicado nossas juras de violência e vingança.
     Por algum tempo, embora apenas em raras ocasiões, a reclusa e desacompanhada Baleia Branca havia assombrado aqueles mares bravios frequentados pelos pescadores de Cachalotes. Mas nem todos sabiam de sua existência; comparativamente, apenas alguns poucos a tinham visto; ao passo que o número daqueles que de fato lutaram contra ela era muito pequeno. Pois, devido ao grande número de navios baleeiros; à forma desordenada com que se espalhavam pelo globo das águas, muitos deles audaciosos a ponto de conduzir sua busca por ermas latitudes, de modo que pouco ou quase nunca, durante o espaço de um ano ou mais, encontravam um ou outro navio que trouxesse notícias; à extraordinária distância percorrida em cada viagem; à irregularidade da época das saídas da pátria; todas essas e outras circunstâncias, diretas ou indiretas, por muito tempo obstruíam a difusão, entre as frotas baleeiras de todo o mundo, de notícias específicas sobre Moby Dick. Sabemos que muitos navios relataram ter encontrado, num ou noutro momento, ou neste e naquele meridiano, um Cachalote de magnitude e perversidade incomuns, e que essa baleia, depois de causar muitos danos a seus agressores, escapara completamente dos mesmos; imagino que, para alguns, não era despropósito crer que aquela baleia não fosse outra senão Moby Dick. Contudo, como a pesca do Cachalote tem sido marcada ultimamente por vários e frequentes exemplos de grande ferocidade, astúcia e malícia dos monstros atacados; talvez por isso aqueles que por acaso lutaram contra Moby Dick sem o saber, em sua maioria, tenham se contentado em atribuir os horrores que ele suscitava mais à pesca do Cachalote em geral do que a uma baleia em particular. Era essencialmente dessa forma que, até então, quase todos chamavam à lembrança o desastroso encontro de Ahab com a baleia.
      E quanto àqueles que, tendo notícia prévia da Baleia Branca, acidentalmente a avistavam; de início quase todos, muito audaciosos e sem medo, desciam os botes para persegui-la, como fariam com qualquer outra baleia daquela espécie. Mas, com o passar do tempo, muitos foram os desastres decorrentes desses ataques jamais restritos a pulsos e tornozelos torcidos, braços e pernas quebradas, ou a amputações vorazes – mas fatais até o último grau de fatalidade; e essas calamidades, repulsivas e repetidas, somavam e amontoavam terrores sobre Moby Dick; essas coisas tinham ido longe a ponto de abalar a fortaleza de muitos caçadores corajosos, aos quais a história da Baleia Branca havia porventura chegado.
      Não faltavam rumores violentos de todos os tipos, que exagerassem e tornassem mais tenebrosas as verdadeiras histórias daqueles encontros mortais. Pois não eram meros rumores fabulosos, que crescem naturalmente do conjunto de todos os eventos surpreendentes e terríveis – como a árvore abatida, que dá vida a seus fungos; na vida marítima, muito mais do que em terra firme, abundam rumores violentos, havendo ou não realidade adequada para sustentá-los. E, tal como o mar suplanta a terra nesse assunto, também a pesca de baleias suplanta qualquer outro tipo de vida marítima, na maravilha e no terror dos rumores que ali, vez ou outra, circulam. Pois não são os baleeiros que, em seu conjunto, estão sujeitos à ignorância e à superstição hereditária dos marinheiros; a questão é que, de todos os marinheiros, são eles os trazidos para o contato mais direto com tudo que existe de mais surpreendente e terrível no oceano; enfrentam cara a cara não apenas sua maior maravilha, como – mãos sobre mandíbulas – lutam contra ela. Sozinho, em águas tão remotas que, mesmo se você navegasse mil milhas e passasse por mil praias, não veria sequer a chaminé de uma lareira ou qualquer coisa hospitaleira sob aquele lado do sol; em tais latitudes e longitudes, e seguindo sua vocação, como segue, o baleeiro está preso a influências que tendem a tornar sua fantasia prenhe dos mais extraordinários rebentos.
     Portanto, não é de se admirar que, sempre crescendo em volume com o simples transitar pelas mais selvagens regiões marítimas, os rumores exagerados sobre a Baleia Branca, enfim, incorporassem toda sorte de palpite mórbido e sugestão mal formada em sua procedência; os quais acabaram por envolver Moby Dick em novos terrores destituídos de qualquer evidência visível. Tanto que, em muitos casos, tal era o pânico por ele suscitado que poucos dos que conheciam a Baleia Branca por esses rumores, poucos desses caçadores estavam interessados em enfrentar os perigos de sua mandíbula.
     Mas ainda havia outras e mais fatais influências em ação. Nem mesmo nos dias de hoje o prestígio original do Cachalote, que inspirando medo se destaca das outras espécies de Leviatã, esmoreceu na imaginação dos baleeiros. Existem aqueles que, embora tenham coragem e esperteza para enfrentar uma baleia da Groenlândia ou uma baleia franca, preferem – por inexperiência profissional, incompetência, ou timidez – recusar uma luta contra o Cachalote; de qualquer modo, há um grande número de baleeiros, especialmente entre as nações baleeiras que não usam a bandeira norte-americana, que nunca tiveram um encontro hostil com o Cachalote, mas cujo único conhecimento sobre o Leviatã se restringe ao monstro ignóbil primitivamente caçado ao norte; sentados em seus compartimentos, esses homens escutam as histórias fantásticas das viagens baleeiras ao sul com o interesse e o assombro de crianças sentadas ao fogo da lareira. A preeminente monstruosidade do grande Cachalote não é compreendida com maior paixão do que a bordo dessas proas que o enfrentam.
     E, como se a realidade atestada jogasse agora sua sombra sobre as lendas dos tempos passados; encontramos em alguns livros de naturalistas – Olassen e Povelsen – declarações de que o Cachalote não apenas causa medo em todas as outras criaturas do mar, como também é incrivelmente feroz, a ponto de estar sempre sedento de sangue humano. Nem mesmo numa época tão tardia quanto a de Cuvier essa impressão e outras similares se desvaneceram. Porque em sua História Natural, o próprio Barão afirma que, ao avistar um Cachalote, todos os peixes (inclusive os tubarões) “ficam tomados do mais vivo terror” e “muitas vezes, na fuga desembestada, se jogam contra os rochedos com tal violência que acabam mortos instantaneamente”. E, embora a experiência da pescaria possa corrigir descrições como esta; ainda assim, com todo o seu horror, chegando à sede por sangue descrita por Povelsen, a superstição é renovada, por algumas vicissitudes da profissão, na memória dos pescadores.
     Assombrados pelos rumores e presságios relacionados a ela, não são poucos os pescadores que lembram, em referência a Moby Dick, os primórdios da pesca do Cachalote, quando era muitas vezes difícil convencer os baleeiros mais experientes a embarcar nos perigos dessa nova e ousada guerra; esses homens protestavam, diziam que, muito embora outros Leviatãs pudessem ser abatidos sem maiores problemas, perseguir e apontar as lanças para uma criatura do porte do Cachalote não seria tarefa para um homem mortal. Tentar semelhante feito tornaria o caminho da eternidade inevitavelmente mais curto. Há documentos notáveis a esse respeito que podem ser consultados.
     Mesmo assim, havia quem, mesmo confrontado com essas coisas, estivesse pronto a dar combate a Moby Dick; e ainda outros que, tendo a seu respeito notícias vagas e distantes, ignorantes de detalhes específicos de alguma catástrofe e desprovidos de superstições, eram fortes o suficiente para não fugir de uma batalha quando esta lhes fosse oferecida.
      Uma das fantasias mais extravagantes que surgiram, como as que por fim acabaram associadas à Baleia Branca na mente dos inclinados à superstição, era a ideia sobrenatural de que Moby Dick tivesse o dom da ubiquidade, que tivesse de fato sido encontrado em latitudes opostas ao mesmo tempo.
      E crédulas como devem ter sido tais mentes, essa ideia não deixava de ter certo matiz de probabilidade supersticiosa. Pois assim como os segredos das correntes nos mares até agora não foram revelados, mesmo aos mais eruditos pesquisadores; da mesma forma os caminhos obscuros do Cachalote quando submerso permanecem, em grande parte, desconhecidos de seus perseguidores; e, de tempos em tempos, dão origem às mais curiosas e contraditórias especulações, especialmente no que se refere aos modos místicos pelos quais, depois de sondar as profundezas do mar, ele se transporta com enorme velocidade para os pontos mais distantes.
     É fato bem conhecido dos navios baleeiros norte-americanos e Ingleses, também registrado com autoridade há anos por Scoresby, que algumas baleias capturadas no extremo setentrional do Pacífico traziam em seu dorso farpas de arpões que lhes foram cravados nos mares da Groenlândia. Nem se pode deixar de dizer que, em alguns casos, se declarou que o espaço de tempo entre os dois ataques não teria excedido alguns poucos dias. Disso decorria, por inferência, a crença de alguns baleeiros em que a passagem noroeste, há tanto tempo um problema para o homem, nunca tivesse sido um problema para a baleia. E tanto que aqui, na experiência real conhecida pelo homem vivente, os prodígios relatados nos tempos antigos sobre o monte da Estrela no interior de Portugal (perto de cujo topo se dizia haver um lago no qual os destroços de navios naufragados flutuavam na superfície); ou a história ainda mais fantástica sobre a fonte de Aretusa, perto de Siracusa (cujas águas viriam da Terra Santa por meio de uma passagem subterrânea); esses relatos fabulosos são quase plenamente igualados pelas realidades dos baleeiros.
     Forçados, pois, à familiaridade com tais prodígios; e sabendo que, depois de repetidos e intrépidos ataques, a Baleia Branca havia escapado com vida; não causa surpresa alguma que alguns baleeiros fossem além em suas superstições; declarando Moby Dick não apenas ubíquo como imortal (já que a imortalidade é somente a ubiquidade no tempo); que, a despeito de florestas de lanças cravadas em seus flancos, ele poderia sair nadando incólume; ou que, se realmente fizessem com que ele esguichasse sangue espesso, tal visão não seria mais do que uma terrível decepção, pois centenas de léguas mais adiante, em vagalhões limpos de sangue, seu jato imaculado poderia mais uma vez ser visto.

Continua na página 174...
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Moby Dick: 1  - Miragens
Moby Dick: 41 -  Moby Dick (a)
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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