terça-feira, 11 de novembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / I - Um antigo salão

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     I - Um antigo salão
     
          Quando Gillenormand morava na rua Servandoni, frequentava muitos salões da mais alta nobreza, nos quais era admitido apesar da sua qualidade de burguês.
     Como era um homem duplamente talentoso, porque não só possuía o talento que Deus lhe dera, mas o que os homens lhe atribuíam, era a sua presença desejada e até festejada. Não ia a parte nenhuma senão para lá dominar. Há gente que quer ter influência a todo o transe e que o resto das pessoas se ocupem deles, e, quando não podem ser oráculos, encarregam-se do papel de bufões. Gillenormand não era dessa natureza; o seu domínio nos salões realistas que frequentava, em nada desluzia o respeito da própria pessoa. Em toda a parte era oráculo. Chegava às vezes a fazer frente ao senhor de Bonald e ao próprio Bengy-Puy-Vallée.
     Por 1817, Gillenormand ia invariavelmente passar duas tardes cada semana, a uma casa da vizinhança, situada na rua Férou, pertencente à baronesa de T..., senhora digna e respeitável, cujo marido, no reinado de Luís XVI, tinha sido embaixador de França em Berlim. O barão de T..., que, enquanto vivo, tivera a mono mania dos êxtases e visões magnéticas, morrera emigrado e sem um real de seu, deixando por única herança dez volumes manuscritos, encadernados em marroquim vermelho e folhas douradas, de curiosíssimas memórias sobre Mesmer e a sua maravilhosa tina. Por dignidade, a baronesa, deixara inéditas as memórias eruditas de seu falecido marido, e, para se sustentar, valiam-lhe alguns pequenos rendimentos, que não sabemos porque arte escaparam aos perniciosos efeitos do mesmerismo. Esta senhora vivia retirada da corte, que já não era a que fora, dizia ela, em pobre mas altivo e nobre isolamento. No meio da sua viuvez, porém, reuniam-se alguns amigos em torno do seu fogão duas vezes por semana, o que constituía um salão realista puro, onde se tomava chá e se soltavam, consoante soprava o vento da alegria ou do ditirambo, lamentos ou gritos de horror contra o século, contra a Carta, contra os bonapartistas, contra a prostituição das condecorações concedidas a qualquer plebeu, contra o jacobinismo de Luís XVIII, e onde muito em recato falavam das esperanças que dava o irmão do rei, depois Carlos X.
     Ali eram recolhidas com transporte de alegria algumas cantigas, em que as regateiras chamavam Nicolau a Napoleão. Duquesas havia, delicadas e formosas como poucas, que se extasiavam com coplas como esta, dirigida aos «federados». 

Mergulhai dentro das calças 
Patriotas, a camisa. 
Cuja fralda está de fora 
Que não digam que se arvora 
A bandeira branca e lisa.

      Passavam o tempo a fazer calemburgos, que se julgavam terríveis; em arranjar inocentes jogos de palavras, que supunham venenosos; em compor quartetos e até dísticos, como o seguinte, a respeito do ministério Dessolles, gabinete moderado de que faziam parte os senhores Decases e Deserre:

Pour raffermir le trône, ébranlé sur sa base, 
Il faut changer de sol, et de serre et de case.

     Outras vezes ocupavam-se em formar a lista da câmara dos pares. «Câmara abominavelmente jacobina», combinando os nomes de modo a formar frases inteiras, como, por exemplo, a seguinte: Damas. Sabran. Goavion-Saint-Cyr.
     Tudo prazenteiramente.
     Ali se parodiavam as revoluções, havendo não sei que veleidade em afiar até as cóleras em sentido inverso.

Cantava-se ali também o seu: eia avante! 
Eia avante! Eia avante! Eia avante! 
Enforquemos os bonapartistas!

     As cantigas são como a guilhotina; cortam indiferentemente hoje uma cabeça, amanhã outra. É apenas uma variante.
     Por ocasião do processo Fualdès, que teve lugar naquela época, 1816, tomaram os frequentadores do salão da baronesa de T... o partido de Bastilde e Jausion, por Fualdès ser o «bonapartista». Aos liberais denominavam-nos «irmãos e amigos». Era o último grau da injúria.
     Do mesmo modo que alguns campanários, tinha dois galos o salão da baronesa de T... Um era Gillenormand, o outro era o conde de Lamothe-Valois, de quem se dizia pela boca pequena com uma espécie de veneração: «Conhece? É o Lamotte da história do colar». Os partidos têm destas singulares amnistias.
     Acrescentemos, porém, uma coisa. Entre os burgueses, as posições respeitadas perdem de valor pela demasiada facilidade com que se travam relações; é necessário tomar cuidado na escolha das pessoas com quem se há de conviver; assim como os que se colocam ao pé de uma pessoa que tem frio sofrem uma perda de calórico, assim experimentam diminuição de consideração os que se juntam com pessoas desprezíveis.
     A antiga aristocracia, porém, desprezava esta lei, como todas as outras. Marigny, irmão da cortesã Pompadour, tinha entrada nos salões do príncipe de Soubise. Apesar do que era? Não: pelo que era. Du Barry, padrinho da Vaubernier, era graciosamente recebido e atenciosamente tratado pelo marechal de Richelieu, cuja casa era o Olympo, em que nem mesmo faltava um Mercúrio, que era o príncipe de Guemenée. Era admitido até um salteador, uma vez que fosse um deus.
     O conde de Lamothe, que em 1815 era um velho de setenta e cinco anos, não possuía coisa que o tornasse notável, a não ser o seu ar silencioso e sentencioso, o seu anguloso e frio rosto, as suas maneiras perfeitamente polidas, a sua casaca abotoada até ao pescoço e as suas pernas enfiadas numas calças cor de gengibre amarelo e constantemente cruzadas. O rosto era da mesma cor das calças.
     Este senhor conde de Lamothe era «dos contados» naquele salão, em virtude da sua «celebridade», e, coisa singular, mas em todo o caso verídica, em virtude de seu apelido de Valois.
      Quanto a Gillenormand, a veneração que lhe tributavam era do melhor cunho. O que ele dizia era um dogma. Apesar da sua leviandade, e sem que isso em nada lhe atenuasse a natural jovialidade, tinha uns modos respeitáveis, dignos, honestos e burguesmente altivos, a que se unia o aspecto da sua avançada idade. Um século de alguma coisa serve a quem viveu. Os anos chegam por derradeiro a circundar a fronte de qualquer de um resplendor que infunde respeito.
     Além disso, Gillenormand tinha ditos coruscantes, só próprios dos caracteres enérgicos. Quando o rei da Prússia, por exemplo, depois de ter restaurado Luís XVIII, veio visitar este monarca com o pseudónimo de conde de Ruppin e foi recebido pelo neto de Luís XIV quase como um marquês de Brandeburgo, quer dizer, com a mais delicada impolidez, Gillenormand aprovou, dizendo: «Todos os mais reis, tirando o de França, não passam de reis de província». Um dia, na presença dele, fizeram esta pergunta e deram esta resposta: «Então a que foi condenado o redator do Correio Francês!» «A ser suspenso. Mas não pelo pescoço», observou Gillenormand. Palavras assim fazem a reputação de quem as profere.
     Por ocasião de um Te-Deum comemorativo da restauração dos Bourbons, vendo ele passar o senhor Talleyrand, disse para os circunstantes: «Ali vai S. Ex.ª o Mal».
     Gillenormand, de ordinário, ia acompanhado de sua filha, e esguia donzela que havia então completado quarenta anos, mas que parecia ter cinquenta, e de um galante rapazinho de sete anos, branco, rosado, fresco, olhos transluzindo de prazer e confiança, que nunca aparecia naquele salão que não ouvisse em roda dele este zumbido de todas as vozes dos que se achavam presentes: «Tão bonito! Que pena! Pobre menino!»
     Este menino era o de quem acima falámos. Chamavam-lhe «pobre menino» porque seu pai era «um bandido do Loire».
      O bandido do Loire era o genro de Gillenormand, de quem já fizemos menção e aquele a quem ele apelidava «a vergonha da sua família».

continua na página 458...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - I - Um antigo salão
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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