sexta-feira, 7 de novembro de 2025

O Sol é para todos: 2ª Parte (16)

Harper Lee

O Sol é para todos

Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto

Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB

SEGUNDA PARTE

16
.

      Jem me ouviu. Enfiou a cabeça na porta entreaberta que ligava nossos quartos. Quando ele veio até o meu quarto, a luz do quarto de Atticus se acendeu. Ficamos imóveis até ela se apagar. Ouvimos ele se virar e esperamos até que ficasse imóvel novamente.
     Jem me levou para o seu quarto e me pôs na cama ao lado dele.

— Tente dormir, vai estar tudo acabado depois de amanhã — prometeu.

     Tínhamos entrado em casa sem fazer barulho para não acordar a tia. Atticus desligou o motor do carro na entrada e dirigiu em ponto morto até a garagem. Entramos pelos fundos e fomos para nossos quartos sem dizer uma palavra.
     Eu estava muito cansada e quase pegando no sono quando a lembrança de Atticus dobrando o jornal com cuidado e empurrando o chapéu para trás se transformou na imagem de Atticus no meio de uma rua deserta e perigosa, colocando os óculos na testa. Entendi tudo o que tinha se passado naquela noite e comecei a chorar. Jem foi muito cuidadoso e, pela primeira vez, não disse que uma pessoa com quase nove anos de idade não fazia uma coisa daquelas.
      De manhã, todo mundo estava sem fome, exceto Jem, que comeu três ovos. Atticus ficou olhando com franca admiração. Tia Alexandra tomava café e lançava olhares de desaprovação. Crianças que fugiam de casa à noite eram uma desgraça para a família. Atticus disse que estava contente por suas desgraças terem aparecido na frente da cadeia, mas a tia apartou:

— Que besteira, o sr. Underwood estava lá o tempo todo.
— Braxton é engraçado: detesta negros, não chega nem perto deles — disse Atticus.

      Segundo a opinião corrente, o sr. Underwood era um sujeitinho agitado e irreverente, cujo pai, com um toque de humor, batizou-o de Braxton Bragg, nome que o sr. Underwood se esforçava para ignorar. Atticus dizia que batizar filhos com o nome de generais confederados era uma forma de criar bêbados preguiçosos.
      Calpúrnia estava servindo mais café para tia Alexandra, e balançou a cabeça diante da súplica muda que fiz.

— Você ainda é muito pequena — ela disse. — Quando for maior, eu deixo.

     Eu disse que café fazia bem para o meu estômago.

— Então está bem — ela concordou.

     Pegou uma xícara no armário, pôs uma colher de sobremesa de café e encheu o resto da xícara com leite. Agradeci dando a língua para ela e esperei que minha tia fizesse cara feia. Mas ela estava fazendo cara feia para Atticus. Esperou Calpúrnia ir para a cozinha e disse:

— Não deve falar assim na frente deles. 
— Falar o que, na frente de quem? — ele perguntou. 
— Na frente de Calpúrnia. Você disse que Braxton Underwood detesta negros. 
— Bom, tenho certeza de que Cal sabe disso. Todo mundo em Maycomb sabe.

      Comecei a notar uma pequena mudança em meu pai naqueles dias, que ficava mais evidente quando ele falava com a tia Alexandra. Era uma investida silenciosa, não uma irritação clara. Sua voz soava um pouco áspera quando ele disse:

— Qualquer coisa que possa ser dita à mesa pode ser dita na presença de Calpúrnia. Ela sabe o que representa para nossa família. 
— Não acho que seja um bom hábito, Atticus. Isso os encoraja. Você sabe como falam entre eles. Tudo que acontece nesta cidade é comentado no mesmo dia no bairro negro.

     Meu pai pousou a faca sobre a mesa.

— Não conheço nenhuma lei que proíba eles de falar. Se nós não déssemos tanto assunto, talvez eles não falassem nada. Por que não toma o seu café, Scout?

     Eu estava brincando com a colher no café. 
— Pensei que o sr. Cunningham fosse nosso amigo. Você disse, há muito tempo, que ele era. 
— Ele continua sendo. 
— Mas na noite passada ele queria bater em você.

      Atticus pousou o garfo ao lado da faca e afastou o prato. 

— No fundo, o sr. Cunningham é uma boa pessoa. Só que tem alguns defeitos, como todos nós.

      Jem se manifestou. 

— Eu não chamaria aquilo de defeito. Ontem à noite ele foi lá disposto a matar você. 
— Talvez quisesse mesmo me bater — concordou Atticus. — Mas, filho, quando você for mais velho, vai entender melhor as pessoas. Uma multidão, qualquer que seja ela, é sempre formada por pessoas. Na noite passada, o sr. Cunningham fazia parte de um grupo, mas continuava sendo uma pessoa. Todo grupo em toda cidadezinha do sul é sempre formado por pessoas que a gente conhece. O que não diz muito a favor dessas pessoas, não é? 
— Eu diria que não — concordou Jem. 
— Foi preciso uma menina de oito anos para fazer eles recobrarem o bom senso, não foi? — perguntou Atticus. — Isso prova que um bando de homens ensandecidos pode ser contido, simplesmente porque eles continuam sendo humanos. Hum, talvez precisássemos de uma força policial formada por crianças… Na noite passada, vocês crianças fizeram Walter Cunningham se colocar no meu lugar por um minuto. Foi o suficiente.

      Bom, eu esperava que Jem entendesse as pessoas um pouco melhor quando ficasse mais velho. Eu não ia entender nunca. 

— A próxima vez que Walter for à escola vai ser a última — garanti. 
— Você não vai encostar um dedo nele — disse Atticus, calmo. — Não quero que vocês briguem por causa disso, não importa o que aconteça. 
— Agora você está vendo no que resultam essas coisas. Não diga que não avisei — disse tia Alexandra.

     Atticus retrucou que jamais diria isso, afastou a cadeira da mesa e levantou-se. 

— Com licença, mas tenho um dia inteiro de trabalho pela frente. Jem, não quero você e Scout no centro da cidade hoje, por favor.

      Quando Atticus foi embora, Dill entrou na sala de jantar correndo. 

— Não se fala de outro assunto na cidade hoje de manhã. As pessoas só falam de como colocamos cem homens para correr só com as nossas mãos… — anunciou.

      Bastou um olhar de tia Alexandra para fazer Dill se calar. 

— Não eram cem homens e ninguém botou ninguém para correr. Era só um bando daqueles Cunningham, bêbados e arruaceiros — ela disse. 
— Ah, tia, é só o jeito de falar de Dill — explicou Jem. Fez sinal para nós o acompanharmos. 
— Vocês hoje não saiam do quintal — ela ordenou, quando fomos para a varanda da frente.

      O dia parecia um sábado. As pessoas do sul do condado passavam na frente da nossa casa num passo descansado, mas contínuo.
     O sr. Dolphus Raymond passou montado em seu puro-sangue. 

— Não sei como ele se aguenta na sela. Como alguém consegue ficar bêbado antes das oito da manhã? — perguntou Jem.

     Uma carroça barulhenta, cheia de senhoras, passou por nós. Usavam toucas de algodão para se proteger do sol e vestidos de mangas compridas. Um homem barbudo, com chapéu de lã, dirigia a carroça. 

— Devem ser menonitas. Não usam botão nas roupas — disse Jem para Dill.

      Os menonitas viviam no meio do bosque, faziam a maioria de suas transações nas balsas do rio e raramente iam a Maycomb. Dill ficou interessado. 

— Todos têm olhos azuis e os homens não podem fazer a barba depois que se casam — explicou Jem. — As mulheres gostam que a barba dos maridos faça cócegas nelas.

      O sr. X Billups passou montado em uma mula e acenou para nós. 

— Esse cara é engraçado. O nome dele é X mesmo, não é só a inicial. Uma vez, ele estava no tribunal e perguntaram como se chamava e ele respondeu X Billups. O funcionário do tribunal pediu para ele soletrar e ele disse X. Ficaram nisso até que ele escreveu X num papel e mostrou para todo mundo ver. Perguntaram de onde ele tinha tirado esse nome, e ele disse que quando nasceu os pais o registraram assim.

      Enquanto os moradores do condado iam passando em frente à nossa casa, Jem contava para Dill as histórias e as peculiaridades das figuras mais importantes. O sr. Tensaw Jones tinha votado a favor da Lei Seca; a srta. Emily Davis cheirava rapé escondido; o sr. Byron Waller sabia tocar violino; o sr. Jake Slade já estava na terceira dentição.
      Então surgiu uma carroça cheia de gente muito séria. Quando apontaram para o jardim da srta. Maudie Atkinson, todo florido, ela apareceu na varanda. A srta. Maudie tinha uma característica estranha: embora não pudéssemos ver a cara dela porque a varanda ficava muito longe, sabíamos como se sentia graças à sua expressão corporal. Naquele momento, ela estava com as mãos na cintura, os ombros ligeiramente caídos, a cabeça inclinada de lado, a lente dos óculos refletindo o sol. Sabíamos que estava sorrindo cheia de malícia.
     O condutor da carroça reduziu o trote das mulas e uma mulher de voz esganiçada berrou: 

— Aquele que mergulha na vaidade sucumbe na escuridão!

     A srta. Maudie retrucou: 

— Um coração feliz faz um semblante alegre!

      O condutor apressou as mulas e eu imaginei que os lavadores de pés deviam estar achando que o demônio estava citando a Bíblia para seus próprios fins. Não sei por que eles não gostavam do jardim da srta. Maudie, sobretudo porque, para uma pessoa que passava o dia inteiro fora de casa, ela conhecia a Bíblia muito bem. 

— Vai ao tribunal esta manhã, srta. Maudie? — perguntou Jem.

      Nós tínhamos atravessado a rua e estávamos em frente à casa dela. 

— Não. Não tenho nada para fazer no tribunal hoje. 
— Não vai nem olhar? — perguntou Dill. 
— Não. É mórbido ver um pobre diabo ser julgado e condenado à morte. Olha toda essa gente, parece até um carnaval romano. 
— O julgamento tinha de ser aberto ao público, srta. Maudie — observei. — Seria errado se fosse a portas fechadas. 
— Eu sei. Mas não é por ser aberto que tenho de ir, não é?

     A srta. Stephanie Crawford apareceu. Estava de chapéu e luvas. 

— Hum, hum, hum. Olha toda essa gente, parece até que vão ouvir um discurso de William Jennings Bryan. 
— E aonde você vai, Stephanie? — quis saber a srta. Maudie. 
— Fazer compras no Jitney Jungle.

      A srta. Maudie disse que nunca tinha visto a srta. Stephanie ir ao armazém de chapéu e luvas. 

— Bom, vou dar uma passada no tribunal para ver o que Atticus vai fazer — disse a srta. Stephanie.
— Cuidado para ele não intimar você a depor.

     Perguntamos à srta. Maudie o que ela queria dizer com isso e ela disse que a srta. Stephanie conhecia tão bem o processo que podia ser chamada como testemunha.
     Esperamos até o meio-dia, quando Atticus foi almoçar e contou que tinham ficado a manhã toda escolhendo os jurados. Depois do almoço, passamos na casa de Dill e fomos para a cidade.
     O julgamento era um acontecimento. Na praça não tinha mais lugar para amarrar um animal que fosse e havia mulas e carroças paradas em todas as sombras. Muita gente fazia piquenique na praça, sentada em folhas de jornal, comendo biscoito com melado e tomando leite morno em vidros de compota. Alguns comiam frango e costeleta de porco frios. Os mais remediados acompanhavam a comida com Coca-Cola comprada no bar, servida em copos abaulados. Crianças com a cara lambuzada de gordura brincavam de pega-pega no meio dos adultos; bebês mamavam no peito das mães.
     Num canto distante da praça, os negros estavam sentados em silêncio ao sol, comendo sardinha, bolachas de água e sal e tomando Nehi Cola. O sr. Dolphus Raymond estava com eles.

— Jem, ele bebe numa garrafa dentro de um saco de papel — estranhou Dill.

      Era isso mesmo: dois canudos amarelos iam da boca do sr. Dolphus até o saco de papel pardo. 

— Nunca vi isso. Como a bebida fica lá dentro? — perguntou Dill.

      Jem riu. 

— Ele encheu uma garrafa de Coca-Cola de uísque e colocou dentro do saco de papel para não escandalizar as senhoras. Vai beber a tarde inteira, de vez em quando vai sumir para encher a garrafa outra vez. 
— Por que ele está sentado com os negros? 
— Ele sempre faz isso. Gosta mais deles do que de nós. Mora perto da divisa do condado, com uma negra e um monte de crianças mestiças. Se eles vierem, eu mostro a você. 
— Ele não parece um pé-rapado — disse Dill. 
— E não é mesmo, é dono de um monte de terras à margem do rio e vem de uma família muito tradicional. 
— Então, por que vive assim? 
— É o jeito dele. Dizem que não conseguiu superar o que aconteceu no casamento… Ia se casar com uma das… das moças Spender, acho, e ia ser uma festa daquelas, mas acabou não acontecendo. Depois do ensaio na igreja, a moça foi para casa e deu um tiro na cabeça. Puxou o gatilho com os dedos do pé. 
— Descobriram por que ela fez isso? 
— Não, só ele sabia. Dizem que foi porque a noiva descobriu que ele tinha um caso com essa negra e achava que podia continuar com ela e se casar. Desde então, ele está sempre meio bêbado. Mas sempre foi muito bom com aquelas crianças... 
— Jem, o que é uma criança mestiça? — perguntei. 
— É metade branca, metade negra. Você já viu uma, Scout. Sabe aquele entregador da farmácia de cabelo encarapinhado? Ele é metade branco. São uma gente triste… 
— Por quê? 
— Porque não são nem uma coisa nem outra. Os negros não os aceitam porque são metade brancos, e os brancos não os aceitam porque são metade negros, então eles não são nada. Dizem que o sr. Dolphus mandou dois filhos para o norte, onde ninguém se importa com isso. Lá vem um deles.

     Uma negra vinha na nossa direção com um menino pequeno pela mão. Ele parecia totalmente negro para mim: era cor de chocolate, de nariz achatado e lindos dentes. Ele às vezes pulava, animado, e a mulher puxava-o para que sossegasse.
      Jem esperou eles passarem por nós. 

— Esse é um dos mesticinhos — disse ele. 
— Como você sabe? Para mim ele parece negro — disse Dill. 
— Às vezes não dá para saber, a menos que você conheça a pessoa. Mas ele é filho de Dolphus Raymond, sem dúvida. 
— Como você sabe? — insisti. 
— Já disse, Scout, você tem que saber quem eles são. 
— Bem, então como você sabe que não somos negros? 
— Tio Jack diz que na verdade não dá para saber. Ele disse que, até onde conhece a linhagem dos Finch, não somos, mas podemos descender direto dos etíopes do Antigo Testamento. 
— Bom, se é da época do Antigo Testamento, já faz muito tempo, não importa mais. 
— É — disse Jem —, mas aqui no sul, basta uma gota de sangue negro para a pessoa ser considerada negra. Ei, olha…

     A um sinal invisível, as pessoas na praça se levantaram e pedaços de jornal, celofane e papel de embrulho ficaram espalhados por todo canto. Crianças procuraram as mães, bebês foram enganchados nos quadris enquanto homens de chapéu marcado de suor juntaram suas famílias e foram para a porta do tribunal. Do outro lado da praça, os negros e o sr. Dolphus se levantaram e bateram a poeira das calças. Havia poucas mulheres e crianças entre eles, o que parecia dissipar o ar de feriado. Eles esperavam pacientes diante das portas, atrás das famílias brancas. 

— Vamos entrar — disse Dill. 
— Acho melhor esperar eles entrarem. Atticus pode não gostar de nos ver — disse Jem.

     O tribunal do condado de Maycomb lembrava um pouco o de Arlington em um aspecto: as colunas de concreto que sustentavam a parte sul eram pesadas demais. As colunas foram tudo que sobrou depois do incêndio que destruiu o antigo prédio, em 1865. O novo tribunal foi construído ao redor das colunas ou, melhor dizendo, apesar delas. Sem levar em conta o pórtico sul, a construção era em estilo vitoriano e tinha uma aparência agradável quando vista pelo lado norte. Pelo outro lado, entretanto, as colunas gregas contrastavam com uma enorme torre de relógio do século XIX de mostrador enferrujado e pouco confiável, indicando que os moradores queriam preservar todos os sinais concretos do passado.
     Para chegar ao tribunal, no segundo andar, era preciso passar por vários recintos escuros e apertados: o superintendente e o coletor de impostos, o notário e o procurador do condado, o fiscal de distrito e o juiz testamentário trabalhavam em buracos frios e escuros que cheiravam a arquivos caindo aos pedaços, cimento velho e úmido e urina azeda. De dia, as luzes tinham que ficar acesas e havia sempre uma camada de poeira no piso de madeira áspera. Os ocupantes daqueles escritórios eram criaturas adaptadas ao seu ambiente: homenzinhos de cara cinzenta, que pareciam intocados pelo sol ou pelo vento.
      Sabíamos que o julgamento atrairia muita gente, mas não tínhamos previsto a multidão que estava no corredor do primeiro andar. Eu me perdi de Jem e Dill e fiquei na parede junto da escada, onde sabia que Jem acabaria me achando. Sem querer, me vi no meio do Clube dos Ociosos e fiz o possível para passar despercebida. O Clube era formado por velhos de camisa branca, calças cáqui e suspensórios que tinham passado a vida sem fazer nada e no fim da vida se dedicavam a essa mesma ocupação, sentados nos bancos de madeira sob os carvalhos da praça. Críticos implacáveis dos assuntos do tribunal, Atticus dizia que, depois de tantos anos observando, eles conheciam a lei tão bem quanto o presidente da Suprema Corte. Os Ociosos costumavam ser a única plateia no tribunal e naquele dia pareciam não estar gostando muito da mudança em sua confortável rotina. Quando se manifestaram, foi com uma leve arrogância e o tema era o meu pai. 

— … ele pensa que sabe o que está fazendo — disse um deles. 
— Ah, não, Atticus Finch lê muito, é um homem muito instruído — disse outro. 
— Lê mesmo, é só o que faz — disse outro. Todos deram risadinhas. 
— Billy, deixa eu te dizer uma coisa: foi o tribunal que o designou para fazer a defesa desse preto — disse um terceiro. 
— Sim, mas ele realmente quer defender esse homem. É isso que não me agrada.

      Isso era novidade para mim e lançava uma nova luz sobre a história: Atticus tinha de aceitar o caso, quisesse ou não. Achei estranho ele não ter dito nada sobre isso, podíamos ter usado essa informação várias vezes para defendê-lo e nos defendermos. O argumento de que Atticus tinha sido obrigado a fazer a defesa teria evitado muitas discussões e confusões. Mas será que explicava a atitude dos moradores da cidade? O tribunal designou Atticus para fazer a defesa do negro, Atticus tinha a intenção de defendê-lo, era disso que eles não gostavam. Eu estava confusa.
      Os negros, que tinham ficado esperando os brancos subirem, começaram a entrar no tribunal. 

— Epa, espera aí — disse um membro do Clube, levantando a bengala no ar. — Não comecem a subir a escada ainda.

      Os membros do clube foram subindo com dificuldade e trombaram com Dill e Jem, que desciam à minha procura. Eles se espremeram pelo meio dos velhos e Jem chamou: 

— Scout, anda, não tem mais lugar, vamos ter que ficar em pé. Vem logo — ele disse, irritado, quando os negros começaram a subir. Os velhos que vinham na frente ocupariam quase todos os lugares em pé. Não tivemos sorte, e era tudo culpa minha, reclamou Jem. Desanimados, nos encostamos na parede. 
— Não conseguiram lugar? — perguntou o reverendo Sykes, olhando para nós com seu chapéu preto na mão. 
— Olá, reverendo. Não, Scout atrapalhou tudo. 
— Bem, vejamos o que eu posso fazer.

      O reverendo abriu caminho escada acima e voltou em seguida. 

— Lá embaixo está lotado. Gostariam de ficar comigo no balcão? 
— Gostaríamos muito! — exclamou Jem.

     Animados, fomos para o térreo, andando na frente do reverendo. Subimos uma escada coberta e esperamos à porta. O reverendo veio atrás, ofegante, e nos conduziu gentilmente pelo meio dos negros no balcão. Quatro negros se levantaram e nos ofereceram seus lugares na primeira fila.
     O balcão deles se estendia por três lados do tribunal, como se fosse uma varanda no segundo andar, e de lá tínhamos uma visão ampla.
     Os jurados ficavam à esquerda, sob largas janelas. Magros, queimados de sol, pareciam ser todos trabalhadores do campo, mas isso era natural: os moradores da cidade raramente faziam parte do júri: eram dispensados ou recusados. Um ou outro dos membros do júri parecia um Cunningham bem-vestido. Naquele momento, estavam sentados eretos e atentos.
      O promotor do distrito acompanhado de um outro homem, Atticus e Tom Robinson estavam em suas mesas, de costas para nós. Na mesa do promotor havia um livro marrom e dois blocos de papel amarelo. A mesa de Atticus estava vazia.
      Do outro lado da grade que separava o tribunal do público, ficavam as testemunhas do processo, sentadas em cadeiras de assento de couro, de costas para nós.
      O juiz Taylor ocupava a tribuna como um velho tubarão sonolento — acompanhado de seu peixe-piloto, o estenógrafo, que anotava tudo rapidamente, sentado abaixo dele. O juiz Taylor se parecia com a maioria dos juízes que eu conhecia: afável, de cabelos brancos e rosto ligeiramente corado, presidia o tribunal com uma incrível informalidade. De vez em quando, apoiava os pés em cima da mesa e, às vezes, limpava as unhas com um canivete. Nas longas audiências sobre disputas de bens, principalmente as que aconteciam depois do almoço, ele parecia cochilar, impressão que se desfez quando, um dia, um advogado derrubou de propósito uma pilha de livros com o intuito de acordá-lo. Sem abrir os olhos, o juiz resmungou: 

— Sr. Whitley, se fizer isso de novo, será multado em cem dólares.

     O juiz era um profundo conhecedor das leis e, embora parecesse não levar a sério seu cargo, presidia os processos com mão de ferro. Só se absteve uma vez, em um julgamento aberto envolvendo os Cunningham. Old Sarum, local onde eles viviam, no começo foi ocupado por duas famílias que, infelizmente, tinham o mesmo nome. Os Cunningham se casaram com os Coningham tantas vezes que a grafia dos sobrenomes virou uma questão acadêmica — acadêmica até que um Cunningham brigou com um Coningham por causa de títulos de propriedade de terras e recorreu à lei. Durante a controvérsia, Jeems Cunningham declarou que sua mãe assinava Cunningham em documentos e papéis mas, na verdade, era uma Coningham, pois escrevia mal, não lia direito e às vezes ficava com o olhar perdido quando sentava na varanda à tarde. Depois de ouvir durante nove horas as excentricidades dos moradores de Old Sarum, o juiz Taylor declarou que a questão não era da alçada do tribunal. Quando lhe perguntaram com que fundamento, ele respondeu “litigância de má-fé” e disse que esperava que os litigantes ficassem satisfeitos por terem tido a oportunidade de se manifestar em público, já que isso era tudo que eles queriam desde o começo.
     O juiz Taylor tinha um hábito curioso: permitia que se fumasse no tribunal, mas ele mesmo não fumava. Às vezes, com um pouco de sorte, era possível vê-lo com um longo charuto apagado na boca, que ficava mastigando. Aos poucos, o charuto sumia para reaparecer horas depois como uma massa viscosa misturada aos sucos digestivos do juiz. Uma vez, perguntei a Atticus como a sra. Taylor conseguia beijá-lo, mas Atticus disse que eles não se beijavam muito.
     O banco de testemunhas ficava à direita do juiz e quando nos sentamos, o sr. Heck Tate já estava lá.

continua página 108...
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Leia também:

O Sol é para todos: 2ª Parte (16)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.

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