domingo, 30 de novembro de 2025

O Sol é para todos: 2ª Parte (18a)

Harper Lee

O Sol é para todos

Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto

Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB

SEGUNDA PARTE

18

      Outra voz trovejou no tribunal. 

— Mayella Violet Ewell!

     Uma jovem se encaminhou para o banco das testemunhas. Ao levantar a mão e jurar dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade e que Deus a ajudasse, pareceu frágil. Mas, quando ficou de frente para nós, no banco, voltou a ser quem era: uma moça robusta, acostumada ao trabalho pesado.
    Em Maycomb, era fácil saber quem tomava banho regularmente, em vez de uma vez por ano: o sr. Ewell parecia ter sido escaldado; como se, depois de passar uma noite de molho na água, a pele tivesse ficado sensível sem a proteção das camadas de sujeira. Já Mayella parecia uma moça que gostava de limpeza, e lembrei dos gerânios vermelhos enfileirados no quintal dos Ewell.
     O sr. Gilmer pediu que Mayella contasse aos jurados, com suas próprias palavras, o que tinha acontecido no entardecer de vinte e um de novembro do ano anterior. Com suas próprias palavras, por favor.
     Mayella ficou calada.

— Onde você estava ao entardecer daquele dia? — começou o sr. Gilmer, paciente. 
— Na varanda. 
— Que varanda? 
— Só tem uma, na frente da casa. 
— O que você estava fazendo lá? 
— Nada.

     O juiz Taylor pediu: 

— Apenas conte-nos o que houve. Pode fazer isso, não pode?

      Mayella olhou bem para ele e começou a chorar. Cobriu a boca com as mãos e soluçou. O juiz Taylor deixou-a chorar um pouco, depois disse: 

— Agora chega. Não precisa ter medo de ninguém aqui, basta contar a verdade. Sei que tudo isso é estranho para você, mas não precisa se envergonhar, nem ter medo. Do que está com medo?

     Mayella disse alguma coisa por trás das mãos. 

— O que disse? — perguntou o juiz. 
— Dele — ela respondeu, aos soluços, apontando para Atticus. 
— Do sr. Finch?

      Ela confirmou com a cabeça e disse: 

— Não quero que faça comigo o que fez com papai, tentando mostrar que ele é canhoto…

     O juiz Taylor coçou a densa cabeleira branca. Ficou claro que ele nunca tinha enfrentado um problema como aquele. Perguntou a ela: 

— Quantos anos você tem? 
— Dezenove e meio — respondeu Mayella.

     O juiz Taylor pigarreou e tentou inutilmente tranquilizá-la. 

— O sr. Finch não tem a menor intenção de assustá-la e, caso tivesse, eu o impediria — disse, com voz forte. — Essa é uma das razões por que estou aqui. E você é adulta, sente-se direito e conte… conte-nos o que aconteceu com você. Consegue fazer isso, não consegue?

     Cochichei para Jem: 

— Ela tem algum discernimento?

      Jem olhava atento para Mayella. 

— Não sei ainda. Tem discernimento o suficiente para fazer o juiz ter pena dela, mas pode ser que ela esteja apenas… ah, não sei.

      Depois que se acalmou, Mayella dirigiu um último olhar aterrorizado para Atticus e disse ao sr. Gilmer: 

— Bem, senhor, eu estava na varanda e… ele apareceu e, sabe, tinha um velho armário no quintal que papai trouxe para cortar e usar como lenha… Papai disse para eu cortar enquanto ele estava no bosque, mas eu não estava muito bem disposta, então ele apareceu... 
— Ele quem?

     Mayella apontou para Tom Robinson. 

— Vou ter que pedir que seja mais específica, por favor. O estenógrafo não pode anotar gestos — explicou o sr. Gilmer. 
— Aquele lá — disse ela. — Robinson. 
— O que aconteceu depois? 
— Eu disse a ele: “Venha cá, preto, cortar esse armário com o machado para mim. Dou uma moeda para você.” Ele podia fazer aquilo fácil, com certeza podia. Ele entrou no quintal e fui pegar a moeda, então me virei e, quando percebi, ele estava em cima de mim. Tinha ido correndo atrás de mim. Me segurou pelo pescoço, xingando e dizendo coisas sujas… Lutei e gritei, mas ele não largou o meu pescoço. Bateu em mim várias vezes…

      O sr. Gilmer aguardou Mayella se recompor: o lenço na mão dela estava tão torcido que parecia uma corda suarenta. Quando ela abriu o lenço para secar o rosto, estava todo amassado pelas mãos úmidas. Esperou o sr. Gilmer fazer outra pergunta; como ele não fez, ela continuou: 

— … ele me jogou no chão, me sufocou e se aproveitou de mim. 
— Você gritou? Reagiu? — perguntou o sr. Gilmer. 
— Gritei até não poder mais, chutei e berrei bem alto. 
— O que aconteceu então? 
— Não lembro direito, só lembro de papai na sala me olhando e berrando “quem fez isso com você, quem foi?”. Então eu acho que desmaiei, depois só me lembro do sr. Tate me levantando do chão e me levando até o balde de água.

     Dava a impressão de que Mayella tinha ficado mais segura depois do depoimento, mas ela não era ousada como o pai, era meio desconfiada, como um gato que olha fixamente enquanto fica balançando o rabo. 

— Você disse que reagiu com toda a sua força? Mordeu e arranhou? — perguntou o sr. Gilmer. 
— Com certeza — ela respondeu, repetindo as palavras do pai. 
— Confirma que ele abusou de você?

      Mayella fez uma careta e temi que ela começasse a chorar outra vez. Mas ela disse: 

— Ele fez o que queria.

      O sr. Gilmer passou a mão na cabeça e com isso chamou a atenção para o calor que fazia. Disse então: 

— Por enquanto, é só, mas não saia daí. Creio que o grande e cruel sr. Finch tem algumas perguntas a fazer — disse o sr. Gilmer cordialmente. 
— O Estado não deve colocar a testemunha contra o advogado de defesa. Pelo menos não por enquanto — avisou o juiz Taylor, sério.

     Atticus levantou-se sorrindo, mas, em vez de ir até o banco das testemunhas, abriu o paletó, enfiou um dedo de cada lado do colete e andou lentamente pela sala até as janelas. Olhou para fora, mas não parecia ter nenhum interesse especial pelo que via, então se virou e voltou ao banco das testemunhas. Graças a anos de experiência, eu sabia que ele estava tentando tomar uma decisão a respeito de algo. 

— Srta. Mayella, não vou tentar assustá-la por enquanto, ainda não. Só quero saber um pouco mais a seu respeito. Quantos anos tem? — perguntou, sorrindo. 
— Já disse ao juiz, tenho dezenove — ela respondeu, indicando a cátedra, ofendida. 
— Tem razão, tem razão, senhorita. Tenha paciência comigo, srta. Mayella, estou ficando velho e minha memória não é mais a mesma. Posso perguntar coisas que já foram ditas, mas mesmo assim responda, por favor. Pode ser? Ótimo.

     A cara de Mayella não dava nenhum sinal de que iria cooperar plenamente com Atticus. Ela o olhava furiosa. 

— Não vou responder nada enquanto ficar zombando de mim — ela disse. 
— Como? — repetiu Atticus, surpreso. 
— Enquanto ficar zombando de mim.

     O juiz Taylor interrompeu: 

— O sr. Finch não está zombando de você. Qual é o problema?

      Mayella olhou para Atticus com os olhos semicerrados, mas disse ao juiz: 

— Ele fica me chamando de srta. Mayella isso, srta. Mayella aquilo. Não admito esse descaramento, e não tenho que aguentar isso, não mesmo.

     Atticus foi mais uma vez até as janelas e deixou o problema por conta do juiz Taylor. Ele não era do tipo que inspira compaixão, mas tive pena dele enquanto tentava explicar: 

— É só o jeito do sr. Finch tratar as pessoas. Trabalhamos juntos nesse tribunal há muitos anos e ele sempre foi gentil com todos. Não está zombando de você, só está querendo ser educado. É o jeito dele — disse o juiz a Mayella.

     Ele se recostou na cadeira e disse: 

— Atticus, vamos continuar o depoimento, e que fique registrado que a testemunha não foi tratada com desrespeito, apesar de sua alegação em contrário.

      Fiquei me perguntando se ela alguma vez já tinha sido chamada de senhora ou de senhorita Mayella na vida. Certamente não, já que se ofendia com uma cortesia normal. Que tipo de vida ela devia levar? Descobri logo. 

— Você disse que tem dezenove anos — continuou Atticus, voltando da janela para a tribuna. — Quantos irmãos e irmãs? 
— Sete — ela respondeu e fiquei pensando se todos seriam como o exemplar que conheci no primeiro dia de aula. 
— Você é a primogênita? A mais velha? 
— Sou. 
— Sua mãe morreu há quanto tempo? 
— Não sei. Há muito tempo. 
— Você foi à escola? 
— Sei ler e escrever como meu pai.

     Mayella parecia o personagem sr. Jingle, de um livro que li. 

— Durante quanto tempo foi à escola? 
— Dois anos, três… não sei.

     Aos poucos comecei a entender a estratégia do interrogatório de Atticus: ao fazer perguntas que o sr. Gilmer não considerou irrelevantes ou impertinentes o bastante a ponto de protestar, Atticus estava aos poucos desenhando para os jurados um retrato da vida doméstica dos Ewell. Assim eles ficaram sabendo que o seguro-desemprego era insuficiente para sustentar a família e havia fortes indícios de que o pai bebesse todo o dinheiro de qualquer forma — ele às vezes passava dias no pântano e voltava doente. Raramente fazia tanto frio que fosse preciso usar sapatos, mas, quando fazia, era possível fazer ótimos sapatos com tiras de pneus velhos. A família usava baldes para pegar a água em um manancial que jorrava num extremo do lixão — eles mantinham a área ao redor limpa e em se tratando de higiene pessoal, era cada um por si. Quem quisesse tomar banho que fosse buscar água. As crianças menores estavam sempre resfriadas e com coceira. De vez em quando, aparecia uma senhora na casa deles e perguntava a Mayella por que ela não ia à escola. Essa senhora anotava a resposta e, como havia duas pessoas na família que sabiam ler e escrever, os outros não precisavam aprender — o pai precisava deles em casa. 

— Srta. Mayella — disse Atticus, sem querer —, uma moça de dezenove anos deve ter amigos. Quem são seus amigos?

     A testemunha franziu o cenho, intrigada. 

— Amigos? 
— É. Não conhece ninguém da sua idade, um pouco mais velho ou mais jovem? Rapazes ou moças? Simples amigos?

     A hostilidade de Mayella, que tinha se reduzindo a uma certa neutralidade, voltou a se inflamar. 

— Está zombando de mim outra vez, sr. Finch?

      Atticus deixou que a pergunta dela servisse de resposta à dele. 

— Gosta do seu pai, srta. Mayella? — foi a pergunta seguinte. 
— Gostar, como assim? 
— Quero dizer, ele é bom para você, é fácil de lidar? 
— Dá para aguentar, a não ser quando… 
— Quando o quê?

     Mayella olhou para o pai, que tinha inclinado a cadeira apoiando-a na balaustrada do tribunal. Ele se empertigou e esperou a resposta. 

— Nada. Eu disse que dá para aguentar.

     O sr. Ewell recostou-se na cadeira de novo. 

— A não ser quando ele bebe? — Atticus perguntou com tanta delicadeza que Mayella concordou. 
— Ele já foi atrás de você? 
— Como assim? 
— Quando está… irritado, ele bate em você?

     Mayella olhou as pessoas em volta, o estenógrafo e o juiz. 

— Responda, srta. Mayella — pediu o juiz Taylor. 
— Meu pai nunca tocou num fio de cabelo meu, nunca — ela garantiu, firme. — Ele nunca pôs a mão em mim.

     Os óculos de Atticus escorregaram um pouco no nariz e ele os empurrou para cima. 

— Já tivemos uma boa conversa, srta. Mayella, agora acho melhor voltarmos ao caso. Declarou que pediu a Tom Robinson para cortar com um machado um… o que era mesmo? 
— Era um armário velho, que tinha gavetas de um lado. 
— Conhecia bem Tom Robinson? 
— Como assim? 
— Sabia quem ele era, onde morava?

continua página 123...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.

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