Germinal
Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Terceira Parte
III
continuando...Todos se olharam. O velho Boa-Morte escarrou no lenço Maheu não mais acendeu o cachimbo e esqueceu-o na boca. Alzire escutava entre Lénore e Henri, que tinham adormecido debruçados sobre a mesa. Mas era sobretudo Catherine, com o queixo apoiado na mão, quem fitava Etienne com seus grandes olhos claros quando ele proclamava sua fé e pintava para a família o futuro maravilhoso do seu sonho social. Em torno deles o conjunto habitacional adormecia; ouviam-se apenas o choro longínquo de uma criança e os gritos de um bêbado retardatário. Na sala, o relógio batia lentamente um frescor de umidade subia do chão de lajes espargido de areia apesar da temperatura elevada.
— Santa ignorância! — exclamou o rapaz. — Então vocês ainda
precisam de um Deus e do seu paraíso para serem felizes? Não podem
construir com as próprias mãos a felicidade na terra?
E, com uma voz cheia de paixão, continuou falando. Era como se,
de repente, o horizonte cerrado explodisse; um facho de luz começava a
iluminar a vida sombria dessa pobre gente. O eterno recomeçar da miséria,
o trabalho pesado, o destino de rebanho que dá a lã e é degolado, todas
essas desgraças desapareciam, como que varridas por um raio de sol, e, num
desabar feérico, a justiça descia do céu. Já que Deus estava morto, a justiça
asseguraria a felicidade humana, fazendo reinar a igualdade e a
fraternidade. Uma sociedade nova surgiria em um dia, como nos sonhos:
uma cidade imensa, esplêndida como uma miragem, onde cada cidadão
viveria do seu trabalho e teria o seu quinhão nas alegrias comuns. O velho
mundo podre voltaria ao pó, uma humanidade nova, purgada dos seus
crimes, formaria um único povo de trabalhadores, tendo por divisa: a cada
um segundo seu mérito, e a cada mérito segundo suas obras. E este sonho
seria cada vez mais amplo, mais sedutor à medida que fosse atingindo o
impossível.
A princípio, a mulher de Maheu não quis dar ouvidos, presa de
surdo temor. Não, não, era bonito demais, não devia deixar-se levar por tais
ideias, que, em seguida, tornariam a vida um horror e levariam o homem a
destruir tudo em busca da felicidade. Vendo cintilar os olhos do marido,
perturbado e convencido, a mulher, quase em pânico, interrompia Etienne:
— Não deves dar ouvido a essas histórias, marido! É tudo lorota...
Como é que vais acreditar que os burgueses um dia vão aceitar trabalhar
como a gente?
Mas pouco a pouco, o encanto atuava também sobre ela. Acabava
sorrindo, com a imaginação trabalhando, entrando finalmente no mundo
maravilhoso da esperança. Era tão agradável esquecer por uma hora a triste
realidade! Quando se vive como um animal de cabeça baixa, um pouco de
ilusão não faz mal, um escape onde se possa sonhar com as coisas que
jamais estarão ao alcance da mão. Mas o que mais a arrebatava, o que a
punha de acordo com o rapaz, era a ideia de justiça.
— Nisso você tem razão! — exclamava ela. — Quando a justiça
está do meu lado, luto até morrer... Que diabo! Nós também temos direito a
um pouco de bem-estar!
Maheu, então, ousava exaltar-se:
— Juro por Deus! Não sou rico, mas daria com prazer cem soldos
para não morrer antes de ver tudo isso... Que grande farra! Como é? Vai ser
para breve? Como é que a gente vai fazer para dar cabo deles?
Etienne recomeçava a falar. A velha sociedade estava caindo aos
pedaços, não aguentava mais que alguns meses, afirmava ele, peremptório.
Sobre os meios de execução mostrava-se mais vago, misturando o que tinha
lido, não temendo, diante de ignorantes, dar explicações em que ele próprio
se perdia. Misturava todos os sistemas, suavizando-os com a certeza de um
fácil triunfo, uma paz universal que terminaria com a luta de classes, e tudo
isso sem levar em conta a má-fé reinante entre patrões e burgueses, o que
talvez obrigasse os operários a fazê-los serem razoáveis à força.
A tudo isso os Maheu assentiam como se estivessem
compreendendo, aceitavam as soluções miraculosas com a fé cega dos
neófitos, iguais aos cristãos dos primeiros tempos da Igreja, que esperavam
o advento de uma sociedade perfeita sobre os escombros do mundo antigo.
A pequena Alzire apanhava uma ou outra palavra e imaginava a felicidade
sob o ângulo de uma casa aquecida, onde as crianças brincariam e
comeriam à vontade. Catherine, imóvel, sempre com o queixo apoiado na
mão, continuava com os olhos fixos em Etienne, e, quando este se calava,
ela, toda pálida, fremia levemente, como que perpassada por uma corrente
de ar.
Nesse momento a mulher de Maheu olhava para o relógio.
Como é que pode! Já são mais de nove horas... Aposto que amanhã
ninguém se levanta.
E os Maheu deixavam a mesa frustrados e desesperados. Parecia
lhes que tinham sido ricos e de repente voltavam à miséria. O velho Boa
Morte, que partia para a mina, resmungava que todas aquelas histórias não
tornavam a sopa mais suculenta, enquanto os outros subiam em fila,
sentindo a umidade das paredes e mal podendo respirar o râncido ar
ambiente. Em cima, já insulado no pesado sono do conjunto habitacional,
Etienne sentia que Catherine, afinal deitada e tendo apagado a vela,
remexia-se febrilmente antes de conciliar o sono.
Muitas vezes, durante aquelas conversas, apareciam os vizinhos:
Levaque, que se deixava inflamar pelas ideias de partilha, ou Pierron, que
por prudência ia logo dormir assim que atacavam a companhia. De tempos
em tempos Zacharie também vinha, mas a política aborrecia-o, preferia dar
um pulo até o Avantage e beber uma cerveja. Chaval era o que ia mais
longe: queria sangue. Quase todas as noites passava uma hora com os
Maheu; nessa assiduidade havia um ciúme inconfessado, o medo de que lhe
roubassem Catherine. A moça, de quem já começava a cansar, tornara-se
lhe repentinamente cara a partir do momento em que um homem dormia
perto dela e era capaz de tomá-la em seus braços durante a noite.
A influência de Etienne crescia, ele revolucionava pouco a pouco o
conjunto habitacional. Fazia uma propaganda surda e dela já colhia frutos,
graças à estima cada vez maior de que gozava. A mulher de Maheu, apesar
de sua desconfiança de hospedeira prudente, tratava-o com toda a
consideração devida a um rapaz que pagava a pensão pontualmente, não
bebia nem jogava e estava sempre com o nariz colado em algum livro. Por
esse motivo, fazia-lhe, junto às vizinhas, uma reputação de homem
instruído, da qual elas abusavam, pedindo-lhe para que escrevesse suas
cartas.
Transformara-se numa espécie de sábio, encarregado da
correspondência, consultado pelas famílias nos casos delicados.
Mas, a partir de setembro, sua famosa caixa de previdência
finalmente entrou em funcionamento, muito precária ainda, contando
apenas com as pessoas do conjunto habitacional. Esperava, no entanto,
obter a adesão dos mineiros de todas as galerias, sobretudo se a companhia,
até o momento inativa, não passasse ao ataque. Acabava de ser nomeado
secretário da associação e recebia até um pequeno salário pela escrita. Isso
o fazia quase rico. Se um mineiro casado não consegue viver sem dívidas,
um rapaz sóbrio, sem qualquer compromisso, pode fazer sua economia.
A partir dessa época, operou-se em Etienne uma transformação
lenta. Uma inclinação para a elegância e o viver bem, até agora abafada
pela pobreza, revelou-se, levou-o a comprar roupas de bons tecidos e um
par de botas finas. Transformou-se num chefe e todo o conjunto
habitacional passou a ouvi-lo. Seu amor-próprio foi-se enfunando, vivia
embriagado com a fruição de sua incipiente popularidade: estar à frente dos
outros, tão jovem e já no comando, ele, que ainda na véspera não passava
de um simples trabalhador braçal... Isso enchia-o de orgulho, fazia que se
tornasse mais certo do seu sonho de uma revolução para breve, na qual
desempenharia um papel. Sua fisionomia transformou-se, adotou um ar
grave, passou a ouvir a própria voz. Ao mesmo tempo, a ambição nascente
tornava ainda mais candentes suas teorias e levava-o a fazer planos de
combate.
Enquanto isso, o outono avançava, os frios de outubro tinham
queimado os pequenos jardins do conjunto habitacional. Por trás dos
mirrados lilases, os rapazes já não deitavam as operadoras de vagonetes no
galpão. E restavam apenas os legumes de inverno, as couves peroladas de
gotas de geada, os alhos-porros e as saladas de conserva. De novo as
bátegas de chuva lavavam as telhas vermelhas e escorriam para os tonéis
debaixo das goteiras com um ruído de torrente. Nas casas, os fogões
estavam sempre acesos, carregados de hulha, envenenando as salas
fechadas. Era outra estação de grande miséria que começava.
Em outubro, por uma dessas primeiras noites glaciais, Etienne,
febril de tanto ter falado, no térreo, não conseguia dormir. Observara
Catherine escorregando para dentro das cobertas e depois apagando a vela.
A moça também parecia estar tremendo, atormentada por um daqueles
pudores que a faziam apressar-se para não ser vista, o que, às vezes, por
alguma falta de jeito, mais a deixava à mostra. Na escuridão, ela ficou como
se estivesse morta, mas o rapaz sentia que a moça também não dormia, que
ambos estavam pensando um no outro. Nunca antes aquela silenciosa troca
dos seus seres os enchera de tanta perturbação. Os minutos passavam,
nenhum dos dois se movia, mas suas respirações se encontravam, apesar
dos esforços que faziam para contê-las. Por duas vezes ele esteve na
iminência de levantar-se para tomá-la em seus braços. Era estúpido ter tal
desejo mútuo e nunca satisfazê-lo. Por que remar contra a correnteza? As
crianças dormiam, ela estava tremendo de desejo, ele tinha certeza de que
era esperado, de que ela sufocava, de que o apertaria em seus braços, muda,
de dentes cerrados. E assim transcorreu cerca de uma hora. O rapaz não foi
para os braços da moça, que também não se voltou, com medo de o chamar.
Quanto mais viviam sob o mesmo teto, mais alta ficava a barreira que os
separava: de vergonha, de repugnâncias, de gestos de amizade que nem eles
mesmos conseguiriam explicar.
continua na página 149...
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Terceira Parte - (III.b) Todos se olharam
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
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