(1) Cf. H. Deutsch. Psychology of Women, 1946.
Tendo entrado propositadamente no quarto de meus pais, sem bater, assim o descrevi: "É como um negócio de segurar pernil, isto é, um rolo e no fim tem uma coisa redonda". Era difícil explicar. Fiz um desenho, fiz mesmo três e cada uma delas levou o seu escondido no corpinho e de quando em quando rebentava de rir, olhando-o, e depois ficava sonhando. . . Como, para meninas inocentes como nós, estabelecer uma ligação entre esse objeto e as canções sentimentais, as bonitas histórias romanescas em que o amor, todo respeito, timidez, suspiros, beija-mão é sublimado até tornar-se eunuco?
Contudo, através de suas leituras, de suas conversas, dos espetáculos e palavras que surpreende, a moça dá um sentido à comoção de sua carne; esta faz-se apelo, desejo. Em suas febres, arrepios, suores, incômodos incertos, seu corpo assume uma nova e inquietante dimensão. 0 rapaz reivindica suas tendências eróticas porque assume alegremente sua virilidade; nele o desejo sexual é agressivo, preensivo; ele vê nesse desejo uma afirmação de sua subjetividade e de sua transcendência; vangloria-se disso junto dos amigos; o sexo permanece para ele um duplo de que se orgulha; o impulso que o impele para a mulher é da mesma natureza do que o que o impele para o mundo, por isso nele se reconhece. Ao contrário, a vida sexual da menina sempre foi clandestina; quando seu erotismo se transforma e invade toda a carne, o mistério vira angústia: ela suporta a comoção como se sé tratasse de uma doença vergonhosa; não é ativa: é um estado, e mesmo em imaginação não pode livrar-se dela mediante nenhuma decisão autônoma; não sonha com pegar, amassar, violentar: é espera e apelo; sente-se dependente; e em perigo na sua carne alienada. Isso porque sua esperança difusa, seu sonho de passividade feliz lhe revelam com evidência o corpo como um objeto destinado a outrem. Ela não quer conhecer a experiência sexual senão em sua imanência; é o contato da mão, da boca, de uma outra carne que ela pede e não a mão, a boca, a carne alheia; ela deixa na sombra a imagem de seu parceiro, ou a afoga em devaneios ideais; não pode entretanto impedir que a presença dele a obsidie. Seus terrores, suas repulsas juvenis em relação ao homem assumiram um caráter mais equívoco do que antes e por isso mesmo mais angustiante. Nasciam outrora de um divórcio profundo entre o organismo infantil e seu futuro de adulta; agora, têm eles sua fonte nessa complexidade mesma que a moça experimenta em sua carne. Ela compreende que se destina à posse porquanto a chama: e revolta-se contra seus próprios desejos. Ela almeja e teme a um tempo a vergonhosa passividade da presa que consente. A ideia de se pôr nua diante de um homem comove-a profundamente; mas ela sente também que será então entregue sem apelo ao olhar dele. A mão que pega, que toca, tem uma presença ainda mais imperiosa que a dos olhos: assusta mais. Mas o símbolo mais evidente e mais detestável da posse física é a penetração pelo sexo do macho. Esse corpo que ela confunde consigo mesma, a jovem detesta que o possam perfurar como se perfura um couro, rasgá-lo como se rasga um pano. Mais porém do que o ferimento e a dor subsequente, o que a moça recusa é que ferimento e dor sejam infligidos. "É horrível a ideia de ser furada por um homem , dizia-me um dia uma jovem. Não é o medo do membro viril que engendra o horror ao homem, esse medo é a confirmação e o símbolo; a ideia de penetração assume seu sentido obsceno e humilhante no interior de uma forma mais geral, de que é em compensação um elemento essencial. A ansiedade da menina traduz-se por pesadelos que a atormentam e fantasias que a obsidiam: é no momento em que ela sente em si uma insidiosa complacência que a ideia de violação se torna em muitos casos obsessiva. Manifesta-se nos sonhos e nas condutas através de numerosos símbolos mais ou menos claros. A jovem explora o quarto antes de se deitar, com medo de descobrir algum ladrão de intenções equívocas; acredita estar ouvindo gatunos dentro de casa; um agressor entra pela janela com uma faca e a traspassa. De uma maneira mais ou menos aguda, os homens inspiram-lhe pavor. Ela põe-se a sentir certa repugnância pelo pai; não pode suportar o cheiro de seu fumo, detesta entrar no banheiro depois dele; ainda que o continue a amar, a repulsa física é freqüente; toma uma forma exasperada como se a menina já fosse hostil ao pai, como acontece não raro com as caçulas. Há um sonho que os psiquiatras dizem ter encontrado amiúde nas jovens pacientes: imaginam ser violentadas por um homem sob as vistas de uma mulher idosa e com o consentimento dela. É claro que pedem simbolicamente à mãe a permissão de se entregarem a seus desejos. Pois um dos constrangimentos que pesam mais odiosamente sobre elas é o da hipocrisia. A jovem acha-.se votada à "pureza", à inocência, precisamente no momento em que descobre em si e em derredor os perturbadores mistérios da vida e do sexo. Querem-na branca como o arminho, transparente como um cristal, vestem-na de vaporoso organdi, cobrem- -lhe as paredes do quarto com cortinas cor de confeitos, baixam a voz perto dela, proíbem-lhe livros escabrosos; ora, não há uma só filha de Maria que não acarinhe imagens e desejos "abomináveis". Ela se esforça por dissimulá-los à melhor amiga, a si mesma; não quer mais viver nem pensar senão em obediência a ordens recebidas; sua desconfiança de si própria dá-lhe um ar matreiro, infeliz, doentio; e mais tarde nada lhe será mais difícil do que combater essas inibições. Mas apesar de todos os recalques, sente-se acabrunhada pelo peso de faltas indizíveis. Suporta sua metamorfose em mulher, não somente na vergonha mas ainda no remorso. Compreende-se que a idade ingrata seja para a menina um período de desnorteamento doloroso. Ela não quer continuar criança. Mas o mundo dos adultos parece-lhe assustador ou tedioso: Procurava crescer portanto, mas nunca pensava seriamente em levar a vida que via os adultos levarem, diz Colette Audry. . . E ainda assim alimentava-se em mim a vontade de crescer sem jamais assumir a condição de adulto, sem nunca me tornar solidária com os pais, donas de casa, mulheres caseiras, chefes de família.
Gostaria de libertar-se do jugo da mãe; mas tem também uma necessidade ardente de proteção. São as faltas que lhe pesam na consciência: práticas solitárias, amizades equívocas, más leituras que fazem tal refúgio necessário. A carta seguinte escrita a uma amiga por uma jovem de 15 anos, é característica (2):
(2) Citada por H. Deutsch.
Mamãe quer que use vestido comprido no grande baile dos X; meu primeiro vestido comprido. Está espantada por eu não querer. Supliquei- lhe que me deixasse usar meu vestidinho côr-de-rosa pela última vez. Tenho tanto 'medo. Parece-me, pondo o vestido comprido, que mamãe vai partir para uma longa viagem e que eu não sei quando voltará. Não é estúpido? E às vezes ela me olha como se eu fosse uma menininha. Ah! Se ela soubesse! Amarraria minhas mãos à cama e me desprezaria!
Encontra-se no livro de Stekel, A Mulher Fria, um documento notável acerca de uma infância feminina. Trata-se de uma "Siissel Mädel" vienense que redigiu por volta de 21 anos uma confissão pormenorizada, a qual constitui uma síntese concreta de todos os momentos que estudamos separadamente. "Com a idade de 5 anos escolhi meu primeiro companheiro de brinquedo, um menino, Ricardo, que tinha 6 ou 7. Eu queria sempre saber como se reconhece que uma criança é menino ou menina. Diziam-me que era pelos brincos, pelo nariz. . . Contentava-me com essa explicação, embora com a sensação de que me escondiam alguma coisa. Subitamente Ricardo desejou fazer x i x i . . . Tive a ideia de lhe emprestar meu urinol. Vendo-lhe o membro, algo inteiramente surpreendente para mim, exclamei cheia de alegria.; "Mas que é que tens aí? Como é bonito! Meus Deus, gostaria de ter um também". Ao mesmo tempo toquei-o corajosamente..." Uma tia surpreendeu-os e desde então as crianças passaram a ser muito vigiadas. Com 9 anos, ela brinca de casamento com dois meninos de 8 e 10 anos; e também de médico. Bolem em seus órgãos genitais e um dia um dos meninos toca-a com o sexo dizendo depois que os pais dela haviam feito a mesma coisa quando se casaram: "Estava francamente indignada: não, não fizeram coisa tão feia!" Ela continua com esses brinquedos e tem uma grande amizade amorosa e sexual com os dois meninos. A tia vem a sabê-lo um dia e acontece uma cena horrível em que a ameaçam de botá-la num reformatório. Ela deixa de ver Artur que era seu predileto e sofre muito com isso: põe-se a trabalhar mal, sua letra deforma-se, fica vesga. Reinicia outra amizade com Valter e Francisco. "Valter açambarcava todas as minhas idéias e os meus sentidos. Permiti-lhe tocar-me por baixo da saia, de pé ou sentada diante dele enquanto fazia minhas lições de caligrafia. . . Logo que minha mãe abria a porta ele retirava a mão e eu continuava escrevendo. . . Enfim tivemos relações normais entre homem e mulher, mas não lhe permitia muita coisa; logo que ele pensava ter penetrado em minha vagina eu me afastava dizendo que havia alguém. . . Não imaginava que fosse um pecado."
Suas amizades com 'meninos acabam e sobram-lhe somente amizades com moças. "Apeguei-me a Emmy, jovem bem educada e instruída. De uma feita, no Natal, com a idade de 12 anos, trocamos pequenos corações de ouro com nossos nomes gravados dentro. Considerávamos isso uma espécie de noivado jurando-nos "fidelidade eterna". Devo parte de minha instrução a Emmy. Ela me informou também acerca dos problemas sexuais. No quinto ano, eu já começara a duvidar das histórias de cegonha que traz as crianças. Acreditava que os filhos vinham do ventre e que era preciso abri-lo para que pudessem sair. Emmy assustava-me principalmente por causa da masturbação. Na escola, vários evangelhos abriram-nos os olhos acerca das questões sexuais. Por exemplo, quando Santa Maria ia ver Santa Isabel. "O filho em seu seio pulava de alegria" e outros trechos curiosos da Bíblia. Sublinhávamos esses trechos e por pouco a classe não teve uma má nota de conduta quando o descobriram. Ela mostrava-me também a "recordação de nove meses" de que fala Schiller em Os Salteadores. O pai de Emmy foi transferido e fiquei novamente só. Escrevemo-nos num código secreto que havíamos inventado mas, como me sentia muito sozinha, liguei-me com uma pequena judia, Hedl. De uma feita Emmy surpreendeu- me saindo da escola com Hedl. Fez-me uma cena de ciúmes. Continuei com Hedl até entrarmos para a escola de comércio e éramos as melhores amigas, sonhando tornarmo-nos cunhadas pois eu gostava de um de seus irmãos que era estudante. Quando ele falava comigo, eu ficava confusa a ponto de lhe responder de um modo ridículo. Ao crepúsculo, abraçada com Hedl num pequeno sofá, chorava quanto podia, sem saber por que, quando ele tocava piano.
"Antes de minha amizade com Hedl, frequentei durante várias semanas uma certa Ella, filha de gente pobre. Ela observara os pais "a sós", despertada pelo barulho da cama. Veio dizer-me que o pai se deitara sobre a mãe que gritara muito e que o pai dissera: "Vai lavar-te depressa para que não haja nada". Fiquei intrigada com a conduta do pai, evitava-o na rua e sentia muita pena da mãe (devia ter sofrido cruelmente para gritar tanto). Conversei com outra colega acerca do comprimento do pênis; ouvi de uma feita falarem de 12 a 15 centímetros; durante a lição de costura pegávamos o metro para medir a partir do lugar em questão ao longo do vestre por cima da saia. Chegávamos evidentemente pelo menos ao umbigo e ficávamos apavoradas à ideia de sermos literalmente empaladas quando nos casássemos."
Ela vê um cão cobrir uma cadela. "Se na rua eu via um cavalo urinar, não podia desviar o olhar, acho que o comprimento do pênis me impressionava." Observava as moscas e os animais no campo.
"Com a idade de 12 anos tive uma forte angina e consultaram um médico amigo; sentado perto da cama ele colocou de repente a mão sob as cobertas tocando quase no "lugar". Sobressaltei-me gritando: "Não tem vergonha!" Minha mãe precipitou-se, o doutor estava horrivelmente embaraçado e afirmou que eu era uma pequena impertinente e que ele quisera apenas beliscar-me a perna. Fui obrigada a pedir-lhe perdão. . . Quando tive, enfim, minhas regras e meu pai descobriu minhas toalhas manchadas de sangue, houve uma cena terrível. Porque ele, homem limpo, era "forçado a viver entre tantas mulheres sujas" e parecia-me que era minha culpa ficar indisposta." Aos 15 anos tem outra amiguinha com quem se comunica em estenografia "para que em casa ninguém pudesse ler nossas cartas. Havia tanta coisa a escrever sobre nossas conquistas. Ela me comunicava também grande número de versos que lera nas paredes das privadas; lembro-me de um porque degradava até à imundície o amor que era tão sublime em nossa imaginação: "Qual o fim supremo do amor? Quatro nádegas suspensas a uma haste". Resolvi não chegar nunca a esse ponto; um homem que ama uma moça não pode pedir-lhe semelhante coisa. Com 15 1/2 anos tive um irmão. Senti muito ciúme porque sempre fora filha única. Minha amiga pedia-me sempre que olhasse como meu irmão era feito, mas eu não podia absolutamente dar-lhe as informações que me solicitava. Nessa época uma outra amiga fez-me a descrição de uma noite de núpcias e depois disso tive a ideia de me casar por curiosidade; só que "resfolegar como um cavalo", segundo a descrição, ofendia meu senso estético. . . Qual de nós não quisera casar para se deixar despir pelo marido amado e ser carregada para a cama por ele. Era tão tentador . . ."
Dirão talvez — embora se trate de um caso normal e não patológico — que essa menina era de uma "perversidade" excepcional; era apenas menos fiscalizada do que outras. Se as curiosidades e os desejos das jovens "bem educadas" não se traduzem por atos, nem por isso existem menos sob a forma de fantasias e de jogos. Conheci outrora uma moça devota e de uma desnorteante inocência — que se tornou depois uma mulher perfeita, cristalizada na maternidade e na devoção — que certa noite confiou toda trêmula a uma amiga mais velha: "Como deve ser maravilhoso despir-se diante de um homem! Suponhamos que sejas meu marido"; e pôs-se a despir-se toda comovida. Nenhuma educação pode impedir a menina de tomar consciência de seu corpo e de sonhar com seu destino; quando muito poderão impor-lhe estritos recalques que pesarão mais tarde sobre toda a sua vida sexual. Fora desejável, isso sim, que lhe ensinassem ao contrário a aceitar-se sem complacência nem vergonha. Compreende-se agora que drama dilacera a adolescente no momento da puberdade: ela não pode tornar-se adulta sem aceitar sua feminilidade; ela já sabia que seu sexo a condenava a uma existência mutilada e imota; descobre-o agora sob a forma de uma doença impura e de um crime obscuro. Sua inferioridade era somente apreendida, a princípio, como uma privação: a ausência do pênis converteu-se em mácula e em falta. É ferida, envergonhada, inquieta, culpada que ela se encaminha para o futuro.
continua página 66...
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
"O que é uma mulher?"