segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Grupo Corpo - No es por ti

No es por ti 

Grupo Corpo 

Lecuona




os corpos
a música
a dança

qué despiertan
ciúmes qui atormentan

es por ti









Grupo Corpo performs "No es por ti" by the master Ernesto Lecuona. Zoraida Marrero sings, choreography by Rodrigo Pederneiras.




No Es Por Ti




Provided to YouTube by Ingrooves 
No Es Por Ti · Zoraida Marrero 
Tributo a Ernesto Lecuona (1895-1995): Con Sus Mejores Interpretes 

℗ 1996 AF Records 
Released on: 1996-05-12 
Writer: Ernesto Lecuona 
Auto-generated by YouTube.



O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (9)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


Além dos colegas empreendedores, das amigas perversas, há o joelho que no cinema pressiona o da menina, a mão que à noite no trem desliza ao longo da perna, os rapazes que escarnecem ao passarem por ela, os homens que a seguem na rua, os amplexos, os toques furtivos. Ela compreende mal o sentido dessas aventuras. Há, amiúde, numa cabeça de 15 anos, uma estranha confusão, porque os conhecimentos teóricos e as experiências concretas não se ajustam. Tal menina já experimentou todas as sensações da perturbação e do desejo, mas imagina — como Clara d'Ellébeuse, inventada por Francis Jammes — que bastaria um beijo masculino para torná-la mãe; outra tem noções exatas acerca da anatomia genital mas, quando seu parceiro na dança a aperta nos braços, toma por enxaqueca e emoção que sente. Seguramente, as moças estão hoje mais bem informadas do que outrora. Entretanto, certos psiquiatras afirmam que mais de uma adolescente ignora ainda que os órgãos sexuais sirvam para outra coisa que não apenas urinar (1). Como quer que seja, elas estabelecem pouca relação entre as emoções sexuais e a existência de seus órgãos genitais, pelo fato de que nenhum sinal, tão preciso como o da ereção masculina, lhes indica a correlação. Entre seus devaneios romanescos acerca do homem, do amor, e a crueza de certos fatos que lhes são revelados, existe um tal hiato que elas não inventam nenhuma síntese entre eles. Thyde Monnier (Moi) conta que fizera, com algumas amigas, a promessa de olharem como era feito um homem e o contarem às outras: 

(1) Cf. H. Deutsch. Psychology of Women, 1946.

Tendo entrado propositadamente no quarto de meus pais, sem bater, assim o descrevi: "É como um negócio de segurar pernil, isto é, um rolo e no fim tem uma coisa redonda". Era difícil explicar. Fiz um desenho, fiz mesmo três e cada uma delas levou o seu escondido no corpinho e de quando em quando rebentava de rir, olhando-o, e depois ficava sonhando. . . Como, para meninas inocentes como nós, estabelecer uma ligação entre esse objeto e as canções sentimentais, as bonitas histórias romanescas em que o amor, todo respeito, timidez, suspiros, beija-mão é sublimado até tornar-se eunuco?

Contudo, através de suas leituras, de suas conversas, dos espetáculos e palavras que surpreende, a moça dá um sentido à comoção de sua carne; esta faz-se apelo, desejo. Em suas febres, arrepios, suores, incômodos incertos, seu corpo assume uma nova e inquietante dimensão. 0 rapaz reivindica suas tendências eróticas porque assume alegremente sua virilidade; nele o desejo sexual é agressivo, preensivo; ele vê nesse desejo uma afirmação de sua subjetividade e de sua transcendência; vangloria-se disso junto dos amigos; o sexo permanece para ele um duplo de que se orgulha; o impulso que o impele para a mulher é da mesma natureza do que o que o impele para o mundo, por isso nele se reconhece. Ao contrário, a vida sexual da menina sempre foi clandestina; quando seu erotismo se transforma e invade toda a carne, o mistério vira angústia: ela suporta a comoção como se sé tratasse de uma doença vergonhosa; não é ativa: é um estado, e mesmo em imaginação não pode livrar-se dela mediante nenhuma decisão autônoma; não sonha com pegar, amassar, violentar: é espera e apelo; sente-se dependente; e em perigo na sua carne alienada.

Isso porque sua esperança difusa, seu sonho de passividade feliz lhe revelam com evidência o corpo como um objeto destinado a outrem. Ela não quer conhecer a experiência sexual senão em sua imanência; é o contato da mão, da boca, de uma outra carne que ela pede e não a mão, a boca, a carne alheia; ela deixa na sombra a imagem de seu parceiro, ou a afoga em devaneios ideais; não pode entretanto impedir que a presença dele a obsidie. Seus terrores, suas repulsas juvenis em relação ao homem assumiram um caráter mais equívoco do que antes e por isso mesmo mais angustiante. Nasciam outrora de um divórcio profundo entre o organismo infantil e seu futuro de adulta; agora, têm eles sua fonte nessa complexidade mesma que a moça experimenta em sua carne. Ela compreende que se destina à posse porquanto a chama: e revolta-se contra seus próprios desejos. Ela almeja e teme a um tempo a vergonhosa passividade da presa que consente. A ideia de se pôr nua diante de um homem comove-a profundamente; mas ela sente também que será então entregue sem apelo ao olhar dele. A mão que pega, que toca, tem uma presença ainda mais imperiosa que a dos olhos: assusta mais. Mas o símbolo mais evidente e mais detestável da posse física é a penetração pelo sexo do macho. Esse corpo que ela confunde consigo mesma, a jovem detesta que o possam perfurar como se perfura um couro, rasgá-lo como se rasga um pano. Mais porém do que o ferimento e a dor subsequente, o que a moça recusa é que ferimento e dor sejam infligidos. "É horrível a ideia de ser furada por um homem , dizia-me um dia uma jovem. Não é o medo do membro viril que engendra o horror ao homem, esse medo é a confirmação e o símbolo; a ideia de penetração assume seu sentido obsceno e humilhante no interior de uma forma mais geral, de que é em compensação um elemento essencial.

A ansiedade da menina traduz-se por pesadelos que a atormentam e fantasias que a obsidiam: é no momento em que ela sente em si uma insidiosa complacência que a ideia de violação se torna em muitos casos obsessiva. Manifesta-se nos sonhos e nas condutas através de numerosos símbolos mais ou menos claros. A jovem explora o quarto antes de se deitar, com medo de descobrir algum ladrão de intenções equívocas; acredita estar ouvindo gatunos dentro de casa; um agressor entra pela janela com uma faca e a traspassa. De uma maneira mais ou menos aguda, os homens inspiram-lhe pavor. Ela põe-se a sentir certa repugnância pelo pai; não pode suportar o cheiro de seu fumo, detesta entrar no banheiro depois dele; ainda que o continue a amar, a repulsa física é freqüente; toma uma forma exasperada como se a menina já fosse hostil ao pai, como acontece não raro com as caçulas. Há um sonho que os psiquiatras dizem ter encontrado amiúde nas jovens pacientes: imaginam ser violentadas por um homem sob as vistas de uma mulher idosa e com o consentimento dela. É claro que pedem simbolicamente à mãe a permissão de se entregarem a seus desejos. Pois um dos constrangimentos que pesam mais odiosamente sobre elas é o da hipocrisia. A jovem acha-.se votada à "pureza", à inocência, precisamente no momento em que descobre em si e em derredor os perturbadores mistérios da vida e do sexo. Querem-na branca como o arminho, transparente como um cristal, vestem-na de vaporoso organdi, cobrem- -lhe as paredes do quarto com cortinas cor de confeitos, baixam a voz perto dela, proíbem-lhe livros escabrosos; ora, não há uma só filha de Maria que não acarinhe imagens e desejos "abomináveis". Ela se esforça por dissimulá-los à melhor amiga, a si mesma; não quer mais viver nem pensar senão em obediência a ordens recebidas; sua desconfiança de si própria dá-lhe um ar matreiro, infeliz, doentio; e mais tarde nada lhe será mais difícil do que combater essas inibições. Mas apesar de todos os recalques, sente-se acabrunhada pelo peso de faltas indizíveis. Suporta sua metamorfose em mulher, não somente na vergonha mas ainda no remorso.

Compreende-se que a idade ingrata seja para a menina um período de desnorteamento doloroso. Ela não quer continuar criança. Mas o mundo dos adultos parece-lhe assustador ou tedioso:

Procurava crescer portanto, mas nunca pensava seriamente em levar a vida que via os adultos levarem, diz Colette Audry. . . E ainda assim alimentava-se em mim a vontade de crescer sem jamais assumir a condição de adulto, sem nunca me tornar solidária com os pais, donas de casa, mulheres caseiras, chefes de família.

Gostaria de libertar-se do jugo da mãe; mas tem também uma necessidade ardente de proteção. São as faltas que lhe pesam na consciência: práticas solitárias, amizades equívocas, más leituras que fazem tal refúgio necessário. A carta seguinte escrita a uma amiga por uma jovem de 15 anos, é característica (2):

(2) Citada por H. Deutsch.

Mamãe quer que use vestido comprido no grande baile dos X; meu primeiro vestido comprido. Está espantada por eu não querer. Supliquei- lhe que me deixasse usar meu vestidinho côr-de-rosa pela última vez. Tenho tanto 'medo. Parece-me, pondo o vestido comprido, que mamãe vai partir para uma longa viagem e que eu não sei quando voltará. Não é estúpido? E às vezes ela me olha como se eu fosse uma menininha. Ah! Se ela soubesse! Amarraria minhas mãos à cama e me desprezaria!

Encontra-se no livro de Stekel, A Mulher Fria, um documento notável acerca de uma infância feminina. Trata-se de uma "Siissel Mädel" vienense que redigiu por volta de 21 anos uma confissão pormenorizada, a qual constitui uma síntese concreta de todos os momentos que estudamos separadamente.

"Com a idade de 5 anos escolhi meu primeiro companheiro de brinquedo, um menino, Ricardo, que tinha 6 ou 7. Eu queria sempre saber como se reconhece que uma criança é menino ou menina. Diziam-me que era pelos brincos, pelo nariz. . . Contentava-me com essa explicação, embora com a sensação de que me escondiam alguma coisa. Subitamente Ricardo desejou fazer x i x i . . . Tive a ideia de lhe emprestar meu urinol. Vendo-lhe o membro, algo inteiramente surpreendente para mim, exclamei cheia de alegria.; "Mas que é que tens aí? Como é bonito! Meus Deus, gostaria de ter um também". Ao mesmo tempo toquei-o corajosamente..." Uma tia surpreendeu-os e desde então as crianças passaram a ser muito vigiadas. Com 9 anos, ela brinca de casamento com dois meninos de 8 e 10 anos; e também de médico. Bolem em seus órgãos genitais e um dia um dos meninos toca-a com o sexo dizendo depois que os pais dela haviam feito a mesma coisa quando se casaram: "Estava francamente indignada: não, não fizeram coisa tão feia!" Ela continua com esses brinquedos e tem uma grande amizade amorosa e sexual com os dois meninos. A tia vem a sabê-lo um dia e acontece uma cena horrível em que a ameaçam de botá-la num reformatório. Ela deixa de ver Artur que era seu predileto e sofre muito com isso: põe-se a trabalhar mal, sua letra deforma-se, fica vesga. Reinicia outra amizade com Valter e Francisco. "Valter açambarcava todas as minhas idéias e os meus sentidos. Permiti-lhe tocar-me por baixo da saia, de pé ou sentada diante dele enquanto fazia minhas lições de caligrafia. . . Logo que minha mãe abria a porta ele retirava a mão e eu continuava escrevendo. . . Enfim tivemos relações normais entre homem e mulher, mas não lhe permitia muita coisa; logo que ele pensava ter penetrado em minha vagina eu me afastava dizendo que havia alguém. . . Não imaginava que fosse um pecado."

Suas amizades com 'meninos acabam e sobram-lhe somente amizades com moças. "Apeguei-me a Emmy, jovem bem educada e instruída. De uma feita, no Natal, com a idade de 12 anos, trocamos pequenos corações de ouro com nossos nomes gravados dentro. Considerávamos isso uma espécie de noivado jurando-nos "fidelidade eterna". Devo parte de minha instrução a Emmy. Ela me informou também acerca dos problemas sexuais. No quinto ano, eu já começara a duvidar das histórias de cegonha que traz as crianças. Acreditava que os filhos vinham do ventre e que era preciso abri-lo para que pudessem sair. Emmy assustava-me principalmente por causa da masturbação. Na escola, vários evangelhos abriram-nos os olhos acerca das questões sexuais. Por exemplo, quando Santa Maria ia ver Santa Isabel. "O filho em seu seio pulava de alegria" e outros trechos curiosos da Bíblia. Sublinhávamos esses trechos e por pouco a classe não teve uma má nota de conduta quando o descobriram. Ela mostrava-me também a "recordação de nove meses" de que fala Schiller em Os Salteadores. O pai de Emmy foi transferido e fiquei novamente só. Escrevemo-nos num código secreto que havíamos inventado mas, como me sentia muito sozinha, liguei-me com uma pequena judia, Hedl. De uma feita Emmy surpreendeu- me saindo da escola com Hedl. Fez-me uma cena de ciúmes. Continuei com Hedl até entrarmos para a escola de comércio e éramos as melhores amigas, sonhando tornarmo-nos cunhadas pois eu gostava de um de seus irmãos que era estudante. Quando ele falava comigo, eu ficava confusa a ponto de lhe responder de um modo ridículo. Ao crepúsculo, abraçada com Hedl num pequeno sofá, chorava quanto podia, sem saber por que, quando ele tocava piano.

"Antes de minha amizade com Hedl, frequentei durante várias semanas uma certa Ella, filha de gente pobre. Ela observara os pais "a sós", despertada pelo barulho da cama. Veio dizer-me que o pai se deitara sobre a mãe que gritara muito e que o pai dissera: "Vai lavar-te depressa para que não haja nada". Fiquei intrigada com a conduta do pai, evitava-o na rua e sentia muita pena da mãe (devia ter sofrido cruelmente para gritar tanto). Conversei com outra colega acerca do comprimento do pênis; ouvi de uma feita falarem de 12 a 15 centímetros; durante a lição de costura pegávamos o metro para medir a partir do lugar em questão ao longo do vestre por cima da saia. Chegávamos evidentemente pelo menos ao umbigo e ficávamos apavoradas à ideia de sermos literalmente empaladas quando nos casássemos."

Ela vê um cão cobrir uma cadela. "Se na rua eu via um cavalo urinar, não podia desviar o olhar, acho que o comprimento do pênis me impressionava." Observava as moscas e os animais no campo.

"Com a idade de 12 anos tive uma forte angina e consultaram um médico amigo; sentado perto da cama ele colocou de repente a mão sob as cobertas tocando quase no "lugar". Sobressaltei-me gritando: "Não tem vergonha!" Minha mãe precipitou-se, o doutor estava horrivelmente embaraçado e afirmou que eu era uma pequena impertinente e que ele quisera apenas beliscar-me a perna. Fui obrigada a pedir-lhe perdão. . . Quando tive, enfim, minhas regras e meu pai descobriu minhas toalhas manchadas de sangue, houve uma cena terrível. Porque ele, homem limpo, era "forçado a viver entre tantas mulheres sujas" e parecia-me que era minha culpa ficar indisposta." Aos 15 anos tem outra amiguinha com quem se comunica em estenografia "para que em casa ninguém pudesse ler nossas cartas. Havia tanta coisa a escrever sobre nossas conquistas. Ela me comunicava também grande número de versos que lera nas paredes das privadas; lembro-me de um porque degradava até à imundície o amor que era tão sublime em nossa imaginação: "Qual o fim supremo do amor? Quatro nádegas suspensas a uma haste". Resolvi não chegar nunca a esse ponto; um homem que ama uma moça não pode pedir-lhe semelhante coisa. Com 15 1/2 anos tive um irmão. Senti muito ciúme porque sempre fora filha única. Minha amiga pedia-me sempre que olhasse como meu irmão era feito, mas eu não podia absolutamente dar-lhe as informações que me solicitava. Nessa época uma outra amiga fez-me a descrição de uma noite de núpcias e depois disso tive a ideia de me casar por curiosidade; só que "resfolegar como um cavalo", segundo a descrição, ofendia meu senso estético. . . Qual de nós não quisera casar para se deixar despir pelo marido amado e ser carregada para a cama por ele. Era tão tentador . . ."

Dirão talvez — embora se trate de um caso normal e não patológico — que essa menina era de uma "perversidade" excepcional; era apenas menos fiscalizada do que outras. Se as curiosidades e os desejos das jovens "bem educadas" não se traduzem por atos, nem por isso existem menos sob a forma de fantasias e de jogos. Conheci outrora uma moça devota e de uma desnorteante inocência — que se tornou depois uma mulher perfeita, cristalizada na maternidade e na devoção — que certa noite confiou toda trêmula a uma amiga mais velha: "Como deve ser maravilhoso despir-se diante de um homem! Suponhamos que sejas meu marido"; e pôs-se a despir-se toda comovida. Nenhuma educação pode impedir a menina de tomar consciência de seu corpo e de sonhar com seu destino; quando muito poderão impor-lhe estritos recalques que pesarão mais tarde sobre toda a sua vida sexual. Fora desejável, isso sim, que lhe ensinassem ao contrário a aceitar-se sem complacência nem vergonha.

Compreende-se agora que drama dilacera a adolescente no momento da puberdade: ela não pode tornar-se adulta sem aceitar sua feminilidade; ela já sabia que seu sexo a condenava a uma existência mutilada e imota; descobre-o agora sob a forma de uma doença impura e de um crime obscuro. Sua inferioridade era somente apreendida, a princípio, como uma privação: a ausência do pênis converteu-se em mácula e em falta. É ferida, envergonhada, inquieta, culpada que ela se encaminha para o futuro.





continua página 66...

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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.



"O que é uma mulher?"



Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXIII

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XXIII

EM QUE O NARIZ DE PASSEPARTOUT FICA MUITO MUITO LONGO




No dia seguinte, Passepartout, estafado, esfomeado, resolveu que era preciso comer a todo custo, e quanto mais cedo melhor. Tinha, é verdade, o recurso de vender seu relógio, mas preferiria morrer de fome. Era uma oportunidade para este bravo rapaz usar a voz forte, melodiosa, com que a natureza o dotara. Sabia alguns refrões da França e da Inglaterra, e resolveu experimentá-los. Os japoneses deveriam certamente gostar de música, pois que tudo se faz entre ao som dos címbalos, do tantã e dos tambores, e não deveriam por certo apreciar os talentos de um virtuose europeu. 

Mas talvez fosse um pouco cedo demais para organizar um concerto, e os dilettanti, inopinadamente despertos, não iriam talvez pagar o cantor em moeda com a efígie do mikado.

Passepartout decidiu-se, pois, esperar algumas horas; mas, caminhando, pensou que parecia bem vestido demais para um artista ambulante, e veio-lhe a ideia de trocar suas roupas por trajes usados, mais em harmonia com sua posição. Esta troca, ainda, deveria deixar um saldo, que poderia imediatamente aplicar para saciar seu apetite.

Tomada esta resolução, faltava executá-la. Foi só depois de longas buscas que Passepartout descobriu um brechó indígena, no qual expôs seu pedido. O traje europeu agradou ao comerciante e logo depois Passepartout saía envolto em uma velha roupa japonesa e com uma espécie de turbante na cabeça, desbotado pela ação do tempo. Mas, em compensação, algumas moedas de prata tilintavam em seu bolso.

— Bem, pensou, vou imaginar que estamos no carnaval!

O primeiro cuidado de Passepartout, assim japonificado, foi entrar numa “teahouse”, de aparência modesta, e aí, com uns restos de ave e um punhado de arroz, almoçou como um homem para quem o jantar seria ainda um problema a ser resolvido.

— Agora, disse para si, depois de comer copiosamente, é bom não perder a cabeça. Não tenho mais o recurso de trocar estes andrajos por outro ainda mais japonês. É preciso, portanto, encontrar um meio de deixar o mais rápido possível este país do Sol, do qual só guardarei uma lamentável lembrança!

Passepartout cogitou então em visitar os paquetes de partida para a América. Contava oferecer-se como cozinheiro ou criado, não pedindo outra retribuição além da passagem e comida. Uma vez em São Francisco, veria o que fazer. O importante era atravessar estas quatro mil e setecentas milhas do Pacífico que se estendem entre o Japão e o Novo Mundo. Passepartout, não sendo homem de deixar fenecer uma idéia, dirigiu-se para o porto de Yokohama. Mas, à medida que se aproximava das docas, o projeto, que lhe havia parecido tão simples no momento em que o concebera, parecia cada vez mais inexequível. Porque é que teriam necessidade de um cozinheiro ou de um criado a bordo de um paquete americano, e que confiança inspiraria, vestido assim? Que recomendações poderia dar? Que referências indicar?

Enquanto assim pensava, seus olhos caíram sobre um imenso cartaz que uma espécie de clown desfilava pelas ruas de Yokohama. Este cartaz estava também escrito em inglês:


O cartaz dizia o seguinte, em inglês:

TRUPE JAPONESA ACROBÁTICA
DO
RESPEITÁVEL WILLIAM BATULCAR

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ÚLTIMAS REPRESENTAÇÕES
Antes de partir para os Estados Unidos da América
DOS
NARI-LONGOS-NARI-LONGOS
SOB A INVOCAÇÃO DIRETA DO DEUS TINGOU

Grande Atração!


Os Estados Unidos da América! exclamou Passepartout, é justamente o que procuro!...

Seguiu o homem-sanduíche, e voltou à cidade japonesa. Um quarto de hora mais tarde, parava diante de uma vasta barraca, coroada por fileiras de bandeirinhas, e cujas paredes externas representavam, sem perspectiva, mas em cores fortes, todo um grupo de malabaristas.

Era o estabelecimento do respeitável Batulcar, espécie de Barnum americano, diretor de uma companhia de saltimbancos, malabaristas, clowns, acrobatas, equilibristas, ginastas, que, segundo o cartaz, fazia suas últimas apresentações antes de deixar o império do Sol para os Estados da União.

Passepartout entrou num peristilo que precedia a barraca, e chamou Mr. Batulcar. Apareceu Batulcar em pessoa.

— O que quer? disse a Passepartout, a quem tomou à princípio por um nativo.

— Precisa de um criado? perguntou Passepartout.

— Um criado, exclamou Batulcar cofiando a espessa barbicha grisalha sob o queixo, tenho dois, obedientes, fiéis, que nunca me deixaram, que me servem por nada, com a condição que os alimente... E eles aqui estão, acrescentou mostrando seus dois braços robustos, sulcados por veias grossas como cordas de contrabaixo.

— Então não posso ser-lhe útil em nada?

— Em nada.

— Diacho! teria sido muito conveniente para mim partir consigo.

— Ah, então é isso! disse o respeitável Batulcar, você é tão japonês quanto eu sou um macaco! Porque está vestido assim?

— A gente se veste como pode!

— É verdade. É francês?

— Sim, um parisiense de Paris.

— Então deve saber fazer caretas?

— Claro, respondeu Passepartout, vexado por ver sua nacionalidade provocar esta pergunta, nós os franceses, sabemos fazer caretas, é verdade, mas não melhor do que os americanos!

— Exato. Pois bem, se não o contrato como criado, posso contratá-lo como clown. Compreenda, meu bravo. Na França exibem-se comediantes estrangeiros e no estrangeiro comediantes franceses!

— Ah!

— É vigoroso, não é?

— Principalmente quando saio da mesa.

— E sabe cantar?

— Sim, respondeu Passepartout, que em outros tempos participara de alguns concertos de rua.

— Mas sabe cantar de cabeça para baixo, com um pião girando na planta do pé esquerdo, e um sabre em equilíbrio na planta do pé direito?

— Se sei! respondeu Passepartout, que se lembrava dos primeiros exercícios da sua tenra idade.

— Então está bem! respondeu o respeitável Batulcar.

A contratação foi concluída hic et nunc.

Afinal, Passepartout achara uma posição. Estava contratado para fazer de tudo na célebre companhia japonesa. Era pouco lisonjeiro, mas em menos de oito dias estaria a caminho de São Francisco.

A representação, anunciada em altos brados pelo ilustre Batulcar, deveria começar às três horas, e logo os ensurdecedores instrumentos de uma orquestra japonesa, tambores e tantãs, tocavam à porta. Comprendam que Passepartout não tinha podido estudar um papel, mas deveria emprestar o apoio de seus sólidos ombros no grande exercício da “pirâmide humana” executado pelos Nari- Longos do deus Tingou. Esta “great-attraction” do espetáculo deveria encerrar a série dos exercícios.

Antes das três horas, os espectadores tinham invadido a grande tenda. Europeus e indígenas, Chineses e Japoneses, homens, mulheres e crianças, precipitavam-se sobre as estreitas bancadas nos camarotes que ficavam de frente para a cena. Os músicos tinham voltado para dentro, e a orquestra completa, gongos, tantãs, castanholas, flautas, tamborins e grandes bumbos, tocava com furor.

Esta representação foi como são todas as exibições de acrobatas. Mas é preciso confessar que os japoneses são os melhores equilibristas do mundo. Um, armado com sua ventarola e pequenos pedaços de papel, executava o exercício tão gracioso das borboletas e das flores. Outro, com a fumaça odorífera de seu cachimbo, traçava rapidamente no ar uma série de palavras azuladas, que formavam um comprimento dirigido à platéia. Este brincava com velas acesas, que sucessivamente apagava quando passavam na frente dos seus lábios, e que tornava a acender uma na outra — sem por um instante interromper o seu jogo de prestidigitação. Aquele, produzia, com piões giratórios, as mais inverossímeis combinações; em suas mãos, estas máquinas roncadoras pareciam adquirir vida própria em seu giro interminável; corriam sobre cabos de cachimbo, sobre fios de sabres, sobre arames, cabelos de verdade estendidos de um a outro lado do palco; giravam nas bordas de grandes copos de cristal, subiam degraus de bambu, dispersavam-se para todos os lados, produzindo efeitos harmônicos exóticos ao combinarem seus diversos tons. Os malabaristas as lançavam e elas giravam no ar; eles as lançavam como petecas, com raquetes de madeira, giravam sempre; eles as enfurnavam no bolso, e quando as retiravam, giravam ainda — até o momento em que uma mola distendida as fazia desabrochar em ramalhetes artificiais!

Inútil descrever aqui os prodigiosos exercícios dos acrobatas e dos ginastas da companhia. As piruetas na escada, na vara, na bola, nos barris, etc., foram executados com incrível precisão. Mas a principal atração do espetáculo era a exibição dos “Nari-Longos”, assombrosos equilibristas que a Europa ainda não conhece.

Os “Nari-Longos” formam uma corporação particular colocada sob a proteção direta do deus Tingou. Vestidos como os arautos da Idade Média, traziam um esplêndido par de asas nas costas. Mas o que mais os distinguia, era o longo nariz com que suas faces estavam ornamentadas, e principalmente o uso que faziam deles. Estes narizes nada mais eram que bambus, com o comprimento de cinco, seis e dez pés, uns direitos, outros recurvos, estes lisos, aqueles verruguentos. Ora, sobre estes apêndices, fixados de modo sólido, é que faziam todos os exercícios de equilíbrio. Uma dúzia dos seguidores do deus Tingou deitaram-se de costas, e seus camaradas vieram cair sobre seus narizes, eretos como pára-raios, saltando, volteando deste para aquele, executando as voltas mais inacreditáveis.

Para terminar, anunciara-se especialmente ao público a pirâmide humana, em que uns cinquenta Nari-Longos deveriam representar o “Carro de Jaggernaut”.

Mas, em vez de formarem a pirâmide tomando os ombros como ponto de apoio, os artistas do respeitável Batulcar deveriam sobrepor-se uns aos outros pelo nariz.

Ora, um dos que formavam a base do carro havia deixado a companhia, e como bastava ser vigoroso e reto, Passepartout havia sido escolhido para o substituir.

Claro, o digno moço se sentira todo pesaroso, quando — triste recordação de sua mocidade — tinha envergado seu traje da Idade Média, ornado com asas multicoloridas, e quando um nariz de seis pés lhe tinha sido aplicado ao rosto!

Mas, enfim, este nariz era o seu ganha-pão, e resignou-se.

Passepartout entrou em cena, e veio alinhar-se com seus colegas que deveriam figurar na base do Carro de Jaggernaut. Todos estenderam-se no chão com o nariz para o céu. Uma segunda seção de equilibristas veio pousar sobre estes longos apêndices, uma terceira colocou-se por cima, depois uma quarta, e sobre estes narizes que só se tocavam pelas pontas, um monumento humano se elevou bem depressa até as frisas do teatro.

Ora, os aplausos redobravam, e os instrumentos da orquestrá explodiam como trovoadas, quando a pirâmide oscilou, o equilíbrio se rompeu, faltou um dos narizes da base, e o monumento desmoronou como um castelo de cartas...

A culpa foi de Passepartout, que, abandonando seu posto, saltando a rampa sem o auxílio das asas, e trepando à galeria da direita, caía aos pés de um espectador, gritando:

— Ah! meu patrão! meu patrão!

— Você?

— Eu!

— Bem! neste caso, para o paquete, meu rapaz, para o paquete!...

Mr. Fogg, Mrs. Aouda, que o acompanhava, Passepartout, tinham se precipitado pelos corredores para fora da tenda. Mas lá encontraram o digno Batulcar, furioso, que reclamava indenização pelo fiasco. Phileas Fogg apagou seu furor atirando-lhe um punhado de bank-notes.

E, às seis horas e meia, no momento em que ele ia partir, Mr. Fogg e Mrs. Aouda puseram o pé no paquete americano, seguidos por Passepartout, as asas nas costas, e sobre a face o nariz de seis pés que ainda não havia podido arrancar do rosto!





continua pag 147...

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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.

Promessa que manteve em mais de oitenta livros.

Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.

Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.

Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.

Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.

Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.

Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.

A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).

Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.

Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


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Leia também:

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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster



sábado, 29 de agosto de 2020

Grupo Corpo - Celos

Celos

Grupo Corpo

Lecuona




os corpos
a música
a dança

qué despiertan
ciúmes qui atormentan

Siento ciúmes de tus brazos,
de todo tu cuerpo,
de todo tu calor









Trecho do balé "Lecuona" com o Grupo Corpo Companhia de Dança. Coreografia de Rodrigo Pederneiras. Música de Ernesto Lecuona.
Prestigie o Grupo Corpo, acesse o site oficial: www.grupocorpo.com.br




Si ya sabes qui te quiero
que por ti me muero
que todo es
padecer,
si tu amor es mi querella
y eres tú
la estrella qui alumbra
ya mi ser.
Dime tú
por qué despiertan
celos qui atormentan
y amargan mi existir.
Si tu amor
no ha de ser mío
que es lo que yo ansío
no me hagas más sufrir.
Celos,
tengo celos del aire,
celos,
del aire qui respira
siento
que se me va la vida
por que tengo celos de ti.
Tengo celos de tus ojos
que al mirar provocan
una estraña pasión.
Siento celos de tus labios
que al besar incitan
una bella ilusión.
Siento celos de tus brazos,
de todo tu cuerpo,
de todo tu calor.
No me brindes tus caricias
no quiero
sentirme celoso
de tu amor.
Celos,
tengo celos del aire,
celos,
del aire qui respira
siento
que se me va la vida
por que tengo celos de ti.











Ernesto Lecuona plays...



Curta-metragem do compositor / pianista cubano Ernesto Lecuona (1895-1963), provavelmente realizado em 1945. Infelizmente, um pouco "fora de sincronia".


Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (c) ... No mesmo momento

Capítulo 2




continuando... 


No mesmo momento, Nick Greene chegava à conclusão exatamente oposta. Descansando na cama de manhã, com travesseiros fofos, lençóis macios, e olhando pela sacada para o gramado que há séculos não conhecia nem dente-de-leão nem erva daninha, pensou que, se não conseguisse escapar, seria sufocado vivo. Levantar-se ouvindo o arrulho dos pombos, vestir-se ouvindo o correr das fontes... pensou que, se não ouvisse o rodar das carroças nas pedras da rua Fleet, nunca mais escreveria um verso. Se isso continuar por muito tempo — pensava enquanto ouvia o lacaio reparando a lareira e espalhando pratos de prata sobre a mesa na sala ao lado — eu cairei no sono e (a esta altura deu um prodigioso bocejo) morrerei dormindo. 

Assim, foi procurar Orlando em seu quarto e explicou que não conseguira pregar os olhos a noite inteira, por causa do silêncio. (Na verdade, a casa era cercada por um parque de 15 milhas de circunferência e um muro de dez pés de altura.) Disse que o silêncio era a coisa mais opressiva que havia para seus nervos. Com a permissão de Orlando, terminaria sua visita naquela manhã mesmo. Orlando sentiu certo alívio com isso, mas também grande relutância em deixá-lo partir. A casa, pensou, pareceria muito insípida sem ele. Na partida (pois antes nunca mencionara o assunto) ele cometeu a temeridade de entregar sua peça sobre “A Morte de Hércules” ao poeta e pedir-lhe a opinião. O poeta recebeu; murmurou algo sobre “Glour” e Cícero, que Orlando interrompeu, prometendo pagar-lhe uma pensão trimestral; depois do que, Greene, com muitos protestos de afeto, saltou para a carruagem e partiu.

O grande salão nunca parecera tão grande, tão suntuoso ou tão vazio como quando a carruagem se foi. Orlando sabia que nunca mais teria ânimo para tostar queijo na lareira italiana. Nunca mais teria espírito para contar piadas sobre as pinturas italianas; não teria a habilidade para misturar o ponche como deveria ser misturado; mil pilhérias e trocadilhos estariam perdidos para ele. Contudo, que alívio ficar livre do som daquela voz lamuriante, que luxo estar sozinho mais uma vez — não podia deixar de refletir, enquanto soltava o mastim que estivera amarrado durante seis semanas, pois nunca via o poeta sem mordê-lo.

Nick Greene desceu na esquina de Fetter Lane nessa mesma tarde e encontrou as coisas mais ou menos como as deixara. A sra. Greene estava dando à luz uma criança num quarto; Tom Fletcher bebia gim noutro. Os versos estavam esparramados pelo chão; o jantar — ou coisa parecida — estava sobre uma penteadeira onde as crianças tinham feito bolos de lama. Mas esta, Greene sentiu, era a atmosfera para escrever; aqui podia escrever e escreveu. O tema era talhado para ele. Um Lorde em casa. Uma visita a um nobre no campo — seu novo poema teria um título como este. Tomando a pena, com a qual seu filho pequeno estava fazendo cócegas na orelha do gato, mergulhando-a num porta-ovo que servia de tinteiro, Greene compôs, de pronto, uma sátira muito espirituosa. Era tão bem-feita que ninguém tinha dúvidas de que o jovem Lorde ridicularizado era Orlando; seus ditos e feitos mais secretos, seus entusiasmos e loucuras, a cor exata de seu cabelo, sua maneira estrangeira de pronunciar os erres estavam ali, ao vivo. E se ainda houvesse alguma dúvida, Greene esclarecia o assunto, introduzindo quase sem disfarces passagens daquela tragédia aristocrática “A Morte de Hércules”, que achou, conforme o esperado, extremamente prolixa e bombástica.

O panfleto, que imediatamente atingiu várias edições e pagou as despesas do décimo parto da sra. Greene, foi logo enviado a Orlando por amigos que se encarregam dessas tarefas. Quando o leu, o que fez com absoluta compostura do princípio ao fim, chamou um lacaio; entregou-lhe o documento na ponta de uma pinça; ordenou que o jogasse no centro do ponto mais sujo e fétido de sua propriedade. E, quando o homem ia saindo, ele o deteve: “Pega o cavalo mais veloz do estábulo”, disse, “galopa a rédea solta para Harwich. Lá embarca num navio para a Noruega. Compra-me, do próprio canil do rei, os mais belos galgos da matilha real, um macho e uma fêmea. Traga-os sem demora. Pois”, murmurou, quase como num sopro, voltando-se para os livros, “estou cansado dos homens.”

O lacaio, perfeitamente treinado em suas obrigações, inclinou-se e desapareceu. Desempenhou sua tarefa tão eficientemente que estava de volta em três semanas, conduzindo na mão na trela com os mais belos galgos, um dos quais, a fêmea, naquela mesma noite deu à luz uma ninhada de oito lindos cachorrinhos, sob a mesa de jantar. Orlando mandou levá-los para o seu quarto de dormir.

— Pois — disse —, não quero mais saber dos homens.

No entanto, pagou a pensão trimestralmente.

Assim, aos trinta anos, mais ou menos, este jovem nobre tivera não apenas todas as experiências que a vida oferece como também vira a inutilidade de todas elas. Amor e ambição, mulheres e poetas eram igualmente vãos. A literatura era uma farsa. Na noite seguinte à leitura de “Visita a um Nobre no Campo”, de Greene, queimou num grande incêndio 57 obras poéticas, conservando apenas “O Carvalho”, que era seu sonho de adolescente e muito curto. Duas coisas restavam-lhe para confiar: cachorros e a natureza; um galgo e uma roseira. O mundo, com toda a sua variedade, e a vida, com toda a sua complexidade, tinham sido reduzidos a isso. Cães e um arbusto eram tudo. Então, sentindo-se livre de uma vasta montanha de ilusão, e por conseguinte, despido, chamou seus cachorros e caminhou a passos largos pelo parque.

Tanto tempo ficara enclausurado escrevendo e lendo que andava meio esquecido das amenidades da natureza, que em junho podem ser grandes. Quando atingiu aquele morro alto, de onde, nos dias claros, se avistava metade da Inglaterra e ainda uma faixa de Gales e da Escócia, deitou-se sob o seu carvalho favorito e sentiu como se não precisasse mais falar com nenhum homem ou mulher enquanto vivesse; se os seus cães não desenvolvessem o dom da fala; se nunca encontrasse novamente um poeta ou uma princesa, poderia viver os anos que lhe restavam razoavelmente satisfeito.

Ali voltou então, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Viu as faias ficarem douradas e as samambaias novas abrirem-se; viu a lua em foice e depois redonda; viu — mas provavelmente o leitor pode imaginar a passagem que se segue e como cada árvore e planta das proximidades é descrita primeiro verde, depois dourada; como a lua nasce e o sol se põe; como a primavera sucede ao inverno e o outono ao verão; como a noite sucede ao dia e o dia à noite; como acontece primeiro um temporal e depois a bonança; como as coisas permanecem as mesmas por dois ou três séculos, exceto por um pouco de poeira e algumas teias de aranha que uma velha pode varrer em meia hora; uma conclusão a que se poderia chegar mais rapidamente, sem dúvida, pela simples afirmativa de que “o Tempo passou” (aqui a duração exata poderia vir entre parênteses) e de que nada aconteceu.

Mas o Tempo, infelizmente, embora faça florescerem e murcharem animais e vegetais com surpreendente pontualidade, não tem o mesmo efeito simples sobre a mente humana. A mente humana, por outro lado, atua com igual estranheza sobre o corpo do tempo. Uma hora, uma vez alojada no estranho elemento do espírito humano, pode ser estendida cinquenta a cem vezes mais do que a sua duração no relógio; inversamente, uma hora pode ser representada com precisão por um segundo, no tempo mental. Esta extraordinária discrepância entre o tempo do relógio e o tempo da mente é menos conhecida do que deveria ser e merece investigação mais completa. Mas o biógrafo, cujos interesses são, como dissemos, bastante restritos, deve ater-se a uma simples afirmação: quando um homem chega à idade dos trinta, como Orlando, o tempo, quando ele pensa, se torna desordenadamente longo; quando age, desordenadamente curto. Assim, Orlando dava ordens e fazia num relâmpago os negócios de suas vastas propriedades; mas logo que estava sozinho no morro, debaixo do carvalho, os segundos começavam a arredondar-se e a completar-se até parecer que não acabariam nunca. Preenchiam-se, além disso, com a mais surpreendente variedade de objetos. Pois não apenas ele se defrontava com problemas que têm confundido os maiores sábios — tais como: O que é o amor? O que é a amizade? O que é a verdade? —, mas, quando pensava nisso, todo o seu passado, que lhe parecia tão longo e variado, precipitava-se num segundo prestes a cair, dilatava-lhe uma dúzia de vezes o tamanho natural, coloria-o com mil matizes e enchia-o com toda a miscelânea do universo.

Com tal pensamento (ou qualquer que seja o nome que lhe dermos) ele passou meses e anos de sua vida. Não seria exagero dizer que saía depois do café da manhã como um homem de trinta e voltava para casa para jantar como um homem de pelo menos 55. Algumas semanas acrescentavam um século à sua idade, outras não mais que três segundos, no máximo. De um modo geral, a tarefa de calcular a duração da vida humana (dos animais não pretendemos falar) está acima da nossa capacidade, pois quando dizemos que algo dura séculos somos lembrados de que é mais breve do que a queda de uma pétala de rosa. Das duas forças que alternadamente e — o que é mais confuso ainda — ao mesmo tempo dominam nossas infelizes estupidezes — brevidade e diuturnidade — Orlando ficava às vezes sob a influência de uma divindade com pés de elefante, e outras, da de um mosquito alado. A vida parecia-lhe de uma prodigiosa duração. Mesmo assim, ela corria como um raio. Mas, mesmo quando se alongava ao máximo e os momentos se dilatavam, ele parecia vaguear sozinho nos desertos da vasta eternidade, não havia tempo para alisar e decifrar aqueles pergaminhos rabiscados que durante trinta anos homens e mulheres tinham amarrado apertadamente em seu coração e cérebro. Muito antes que ele refletisse sobre o Amor (o carvalho lançara suas folhas e sacudira-as ao chão uma dúzia de vezes), este seria expulso do campo pela Ambição e substituído pela Amizade ou pela Literatura. E como a primeira questão — O que é o Amor? — não tinha sido resolvida, ela retornaria à menor ou nenhuma provocação e motivaria Livros ou Metáforas sobre Por que se vive à margem, para ali esperar até surgir a chance de vir à tona novamente. O que tornava o processo ainda mais longo era ser profusamente ilustrado, não apenas com figuras, como a da velha rainha Elizabeth deitada no seu divã de tapeçaria, de brocado cor-de-rosa, com uma caixa de rapé de marfim na mão e uma espada de cabo de ouro a seu lado, mas com cheiros — ela está fortemente perfumada — e com sons — os veados estavam balindo no parque Richmond naquele dia de inverno. E então o pensamento do amor ficaria todo amarelado de neve e inverno; com toras de árvores queimando; com mulheres russas, espadas de ouro e o balir dos versos; com o velho rei Jaime babando, e fogos e sacos e tesouros nos porões dos navios elisabetanos. Cada uma das coisas, toda vez que tentava deslocar de lugar em sua mente, ele encontrava obstruída com outro assunto, como a protuberância do vidro que, depois de um ano no fundo do mar, aumentou com ossos, libélulas e moedas e cachos de mulheres afogadas.

“Por Júpiter, outra metáfora!”, exclamaria ao dizer isso (o que demonstra a maneira desordenada e circular como sua mente trabalha, e explica por que o carvalho floresceu e murchou tantas vezes antes que ele chegasse a uma conclusão sobre o Amor). “E qual a razão disso?”, perguntava-se. “Por que não dizer simplesmente em tantas palavras —” e então tentava pensar durante meia hora — ou seriam dois anos e meio? — como dizer simplesmente em tantas palavras o que é o amor. “Uma imagem como esta é evidentemente falsa”, argumentava, “pois nenhuma libélula, exceto sob circunstâncias muito excepcionais, poderia viver no fundo do mar. E se a literatura não é a Noiva e Companheira da Verdade, então o que é? Tudo é confuso”, gritava, “por que dizer Companheira se já se disse Noiva? Por que não dizer simplesmente o que se quer e pronto?”

Assim ele tentou dizer que a grama é verde e o céu é azul e então propiciar o espírito austero à poesia, a quem, embora a uma grande distância, ele não podia deixar de reverenciar. “O céu é azul”, dizia, “a grama é verde.” Olhando para o alto, viu o contrário, o céu é como os véus que mil Madonas deixam cair de seus cabelos; e a grama foge e escurece como um voo de meninas fugindo dos abraços de sátiros cabeludos das florestas encantadas. “Palavra de honra”, dizia (pois adquirira o mau hábito de falar alto), “não vejo que uma seja mais verdadeira que a outra. Ambas são totalmente falsas.” E ele se desesperava por não ser capaz de resolver o problema — o que é a poesia, o que é a verdade —, e caiu em profunda depressão.

E aqui podemos aproveitar uma pausa neste solilóquio e refletir como era estranho ver Orlando estendido no chão, apoiado no cotovelo num dia de junho e ponderar que este belo rapaz com todas as suas faculdades e com o corpo saudável, conforme testemunham as faces e os membros — um homem que nunca pensou duas vezes para encabeçar um ataque ou enfrentar um duelo —, pudesse ser tão sujeito à letargia do pensamento e se tornasse tão suscetível que, em se tratando de poesia, ou de sua competência nela, ficasse tão tímido quanto uma menininha atrás da porta da cabana de sua mãe. Em nossa opinião, a ridicularização de sua tragédia, feita por Greene, feriu-o tanto quanto a princesa ridicularizando o seu amor.

Mas voltando — Orlando continuou a pensar.

Continuou a olhar a grama e o céu, procurando imaginar o que diria a respeito deles um verdadeiro poeta, que tem seus versos publicados em Londres. A memória, entretanto (cujos hábitos já foram descritos), mantinha firme diante de seus olhos o rosto de Nicholas Greene como se aquele homem sardônico, de lábios frouxos, traiçoeiro conforme demonstrara, fosse a Musa em pessoa e a quem Orlando devesse render homenagens. Assim, Orlando, naquela manhã de verão, ofereceu-lhe uma variedade de frases, umas simples, outras figuradas, e Nick Greene continuava a sacudir a cabeça, a escarnecer e a murmurar algo sobre “Glour”, Cícero e a morte da poesia na nova época. Finalmente, pondo-se de pé (era inverno e fazia muito frio), Orlando pronunciou um dos mais importantes juramentos de sua vida, pois amarrou-o à mais severa das servidões. “Que eu seja fulminado”, disse, se algum dia escrever mais uma palavra ou tentar escrever uma palavra a mais para agradar a Nick Greene ou à Musa. Bom, mau, ou medíocre, escreverei de hoje em diante para agradar a mim mesmo”; e aqui fez como se estivesse rasgando uma pilha de papéis e atirando-a na cara daquele homem beiçudo e escarnecedor. Então, como um vira-lata se esquiva se lhe atiram uma pedra, a Memória apagou a imagem de Nick Greene, substituindo-a... por nada.

Mas Orlando, mesmo assim, continuou a pensar. Na verdade, tinha muito em que pensar. Pois quando rasgou o pergaminho, e o fez de uma só vez, o rolo brasonado que fizera em seu próprio favor na solidão de seu quarto nomeando-se — como o rei nomeia os embaixadores — o primeiro poeta de sua raça, o primeiro escritor de sua época, conferindo eterna imortalidade à sua alma e garantindo para o seu corpo um túmulo em meio a loureiros e bandeiras intangíveis, perpetuamente reverenciadas por um povo. Por mais eloquente que fosse tudo isso, ele rasgava nesse momento e atirava na lixeira. “A Fama”, dizia, “é como (e, como não havia um Nick Greene para interrompê-lo, continuou a se divertir com imagens das quais escolheremos apenas uma ou duas das mais tranquilas) um casaco trançado que tolhe os membros; uma jaqueta de prata que refreia o coração; um escudo pintado que cobre um espantalho” etc. etc. O cerne de suas frases era que, enquanto a fama impede e tolhe, a obscuridade envolve o homem como um nevoeiro; a obscuridade é escura, ampla e livre; a obscuridade deixa que a mente tome seu caminho sem impedimentos. Sobre o homem desconhecido é derramada a misericordiosa inundação da obscuridade. Ninguém sabe aonde ele vai ou de onde vem. Pode procurar a verdade e dizê-la; só ele é livre; só ele é verdadeiro; só ele está em paz. E assim caiu num estado de tranquilidade, embaixo do carvalho, cujas duras raízes expostas acima da terra pareceram-lhe mais confortáveis do que nunca.

Mergulhado por muito tempo em profundos pensamentos quanto ao valor da obscuridade, o prazer de não ter um nome, mas ser como uma onda que retorna às profundezas do mar; pensando como a obscuridade liberta a mente dos aborrecimentos da inveja e do rancor; como faz correr nas veias as águas livres da generosidade e da magnanimidade; como permite dar e tomar sem agradecimentos ou louvores; o que deve ter sido a maneira de todos os grandes poetas, supunha (embora o seu conhecimento de grego não fosse suficiente para confirmá-lo), pois, pensava, Shakespeare deve ter escrito assim e os construtores da igreja construíam assim, anonimamente, sem necessitar de agradecimentos nem de citações, mas só pelo seu trabalho durante o dia e um pouco de cerveja à noite — ”como esta vida é admirável”, pensou, esticando as pernas sobre o carvalho. “E por que não aproveitar este exato momento?” O pensamento o atingiu como uma bala. A ambição caiu como um prumo. Livre da aflição do amor desprezado e da vaidade exprobrada e de todos os outros espinhos e ferrões com que as urtigas da vida o tinham queimado quando ambicionava a fama, mas que não podiam mais se impor a uma pessoa desinteressada da glória, abriu os olhos, que tinham estado bem abertos todo esse tempo, mas tinham visto apenas os pensamentos, e viu, jazendo no vale a seus pés, sua casa.

Lá estava ela, ao sol precoce da primavera. Parecia mais uma cidade do que uma casa, mas uma cidade construída, não aqui e ali, como este ou aquele homem queriam, porém deliberadamente, por um único arquiteto, com uma única ideia na cabeça. Pátios e prédios, cinzentos, vermelhos, cor de ameixa, dispunham-se ordenada e simetricamente; uns pátios eram oblongos, outros quadrados; neste havia uma fonte; naquele uma estátua; alguns prédios eram baixos, outros pontudos; aqui havia uma capela, ali um campanário; espaços de grama verde entre moitas de cedro e canteiros de flores brilhantes; o todo era cercado por um sólido muro cilíndrico — mas tão bem-distribuído que cada parte parecia ter espaço para se desenvolver apropriadamente; enquanto a fumaça de inúmeras chaminés volteava perpetuamente no ar. Esta vasta e harmoniosa construção, que podia abrigar mil homens e talvez dois mil cavalos, foi construída, pensava Orlando, por operários cujos nomes eram desconhecidos. Aqui viveram, por mais séculos do que eu posso contar, as obscuras gerações da minha própria obscura família. Nenhum desses Ricardos, Joões, Ana, Elisabetes deixou vestígio de si, embora todos trabalhando juntos, com suas pás e agulhas, seus amores e maternidades, tenham deixado isto.





continua pag 47...
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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.

No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.

A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).

As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.



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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)

Diante da Dor dos Outros





para David




… aux vaincus!
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A sórdida mentora, a Experiência...
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2.

continuando...



Num sistema calcado na máxima reprodução e difusão de imagens, o ato de testemunhar requer a criação de testemunhas brilhantes, célebres por sua coragem e por sua dedicação na obtenção de fotos importantes e perturbadoras. Um dos primeiros números de Picture Post (3 de dezembro de 1938), que apresentava uma coletânea de fotos de Capa sobre a Guerra Civil Espanhola, usou na capa uma foto do belo rosto do fotógrafo, de perfil, segurando uma câmera junto ao rosto: “O maior fotógrafo de guerra do mundo: Robert Capa”. Os fotógrafos de guerra herdaram o glamour que o ato de ir para uma guerra ainda desfrutava entre os antibelicistas , em especial quando a guerra parecia ser um desses raros conflitos em que uma pessoa consciente era compelida a tomar partido. (A guerra na Bósnia, quase sessenta anos depois, inspirou sentimentos partidários semelhantes entre os jornalistas que viveram algum tempo na Sarajevo sitiada.) E, em contraste com a guerra de 1914- 18, que, como logo ficou claro para muitos dos vencedores, fora um erro colossal, a Segunda “Guerra Mundial” foi considerada de forma unânime, pelo lado vencedor, como uma guerra necessária, uma guerra que tinha de ser travada. 

O fotojornalismo conquistou o reconhecimento que lhe era devido no início da década de 1940 — tempo de guerra. Esta que foi a menos controvertida das guerras modernas, cuja justiça foi ratificada pela revelação cabal do mal nazista quando a guerra terminou, em 1945, conferiu aos fotojornalistas uma nova legitimidade, deixando pouco espaço para a dissidência de esquerda que marcara grande parte do uso sério das fotos no período entre as guerras, inclusive Guerra contra guerra!, de Friedrich, e as primeiras fotos de Capa, a mais famosa personagem de uma geração de fotógrafos politicamente engajados cuja obra concentrava-se na guerra e nas vítimas. Em resultado do novo consenso liberal dominante acerca da maleabilidade dos problemas sociais agudos, as questões relativas aos meios de vida e à independência dos próprios fotógrafos deslocaram-se para o primeiro plano. Uma das consequências foi a criação, por iniciativa de Capa e de alguns amigos (entre eles Chim e Henri Cartier-Bresson), de uma cooperativa, a Agência Fotográfica Magnum, em Paris, em 1947. O propósito imediato da Magnum — que rapidamente se tornou o consórcio de fotojornalistas mais prestigioso e mais influente — era prático: representar fotógrafos autônomos e aventureiros perante as revistas fotográficas, que os enviavam em missões jornalísticas. Ao mesmo tempo, o regulamento da Magnum, moralista a exemplo de outros regulamentos de novas organizações e associações internacionais criadas no imediato pós-guerra, preconizava uma missão ampla e eticamente árdua para os fotojornalistas: fazer a crônica de seu tempo, fosse este de guerra ou de paz, como testemunhas honestas, livres de preconceitos chauvinistas.

Na voz da agência Magnum, a fotografia declarava-se uma atividade mundial. A nacionalidade do fotógrafo e sua filiação jornalística eram, em princípio, irrelevantes. O fotógrafo poderia ser de qualquer parte. E sua esfera de ação era “o mundo”. O fotógrafo era um errante que tinha como destino predileto guerras de interesse incomum (pois havia numerosas guerras).

A memória da guerra, porém, como qualquer memória, é sobretudo local. Os armênios, na maioria em diáspora, mantêm viva a memória do genocídio armênio de 1915; os gregos não esquecem a sangrenta guerra civil que assolou a Grécia, ao longo da década de 1940. Mas para uma guerra ultrapassar sua esfera imediata e tornar-se objeto da atenção internacional, precisa ser vista como uma espécie de exceção entre as guerras e representar algo mais do que o choque de interesses dos próprios beligerantes. A maioria das guerras não alcança a exigida significação mais plena. Um exemplo: a Guerra do Chaco (1932-35), uma carnificina levada a cabo pela Bolívia (1 milhão de habitantes) e pelo Paraguai (3,5 milhões de habitantes) que roubou a vida de 100 mil soldados e foi coberta por um fotojornalista alemão, Willi Ruge, cujas excelentes fotos de batalha em close andam tão esquecidas quanto essa guerra. Mas a Guerra Civil Espanhola na segunda metade da década de 1930, as guerras dos servocroatas contra a Bósnia em meados da década de 1990, o drástico agravamento do conflito entre israelenses e palestinos que teve início em 2000 — essas contendas tiveram assegurada a atenção de muitas câmeras porque se revestiam do significado de lutas mais amplas: a Guerra Civil Espanhola, por ser uma resistência contra a ameaça fascista e (em retrospecto) um ensaio geral para a futura guerra européia, ou “mundial”; a guerra na Bósnia, porque se tratava da resistência de um pequeno e novato país do Sul da Europa que desejava permanecer multicultural e independente, contra o poder dominante na região e contra seu programa neofascista de limpeza étnica; e o contínuo conflito em torno do caráter e do controle dos territórios reivindicados por judeus de Israel e por palestinos, em virtude da diversidade de aspectos explosivos, a começar pela fama, ou triste fama, inveterada do povo judeu, o eco sem paralelo do extermínio nazista dos judeus europeus, o apoio crucial que os Estados Unidos fornecem a Israel e a identificação desse país como um Estado de apartheid que mantém um domínio brutal sobre o território conquistado em 1967. Enquanto isso, guerras muito mais cruéis em que civis são implacavelmente massacrados por ataques aéreos e trucidados no solo (a guerra civil no Sudão, com décadas de duração, as campanhas do Iraque contra os curdos, as invasões e a ocupação russas da Tchetchênia) transcorreram relativamente isentas de documentação fotográfica.
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)

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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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"... conversar me dá a chance de saber o que penso..."


Susan Sontag - O Heroísmo da Visão (02)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



O HEROÍSMO DA VISÃO (02)




continuando...


Os primeiros fotógrafos falavam como se a câmera fosse uma máquina copiadora; como se, embora as pessoas operassem as câmeras, fosse a câmera que visse. A invenção da fotografia foi saudada como um modo de aliviar o fardo de ter de acumular cada vez mais informações e impressões sensoriais. Em seu livro sobre fotógrafos, The pencil of nature [O lápis da natureza] (1844-6), Fox Talbot conta que a ideia da fotografia lhe ocorreu em 1833, na viagem pela Itália que se tornara obrigatória para ingleses de famílias ricas, como ele, enquanto fazia certos esboços da paisagem do lago Como. Ao desenhar com a ajuda de uma camera obscura, equipamento que projetava a imagem mas não a fixava, Talbot foi levado a refletir, diz ele, “sobre a inimitável beleza das imagens de pintura da natureza que as lentes de vidro da câmera lançam sobre o papel” e imaginar “se não seria possível gravar essas imagens naturais de modo durável”. A câmera sugeriu-se a Fox Talbot como uma nova forma de notação, cujo atrativo residia precisamente em ser impessoal — porquanto registrava uma imagem “natural”, ou seja, uma imagem que se manifesta “apenas por intermédio da Luz, sem nenhuma ajuda do lápis do artista”. 

O fotógrafo era visto como um observador agudo e isento — um escrivão, não um poeta. Mas, como as pessoas logo descobriram que ninguém tira a mesma foto da mesma coisa, a suposição de que as câmeras propiciam uma imagem impessoal, objetiva, rendeu-se ao fato de que as fotos são indícios não só do que existe mas daquilo que um indivíduo vê; não apenas um registro mas uma avaliação do mundo.* Tornou-se claro que não existia apenas uma atividade simples e unitária denominada “ver” (registrada e auxiliada pelas câmeras), mas uma “visão fotográfica”, que era tanto um modo novo de as pessoas verem como uma nova atividade para elas desempenharem.

Um francês munido de uma câmera de daguerreótipo já cruzava o Pacífico em 1841, o mesmo ano em que o primeiro volume de Excursions daguerriennes: Vues et monuments les plus remarquables du globe [Excursões daguerrianas: as paisagens e os monumentos mais notáveis do mundo] foi publicado, em Paris. A década de 1850 foi a grande era do orientalismo fotográfico: Maxime Du Camp, ao fazer uma grande viagem pelo Oriente Médio em companhia de Flaubert, entre 1849 e 1851, concentrou sua atividade fotográfica em atrações como o colosso de Abu Simbel e o templo de Baalbek, e não na vida cotidiana dos felás. No entanto, logo os viajantes munidos de câmeras anexaram um tema mais amplo do que importantes paisagens e obras de arte. A visão fotográfica significava uma aptidão para descobrir a beleza naquilo que todos veem mas desdenham como algo demasiado comum. Esperava-se que os fotógrafos fizessem mais do que apenas ver o mundo como é, mesmo suas maravilhas já aclamadas; deveriam criar um interesse, por meio de novas decisões visuais.

Existe um heroísmo peculiar difundido pelo mundo afora desde a invenção das câmeras: o heroísmo da visão. A fotografia inaugurou um novo modelo de atividade autônoma — ao permitir que cada pessoa manifeste determinada sensibilidade singular e ávida. Os fotógrafos partiram em seus safáris culturais, educativos e científicos, à cata de imagens chocantes. Tinham de capturar o mundo, qualquer que fosse o preço em termos de paciência e de desconforto, por meio dessa modalidade de visão ativa, aquisitiva, avaliadora e gratuita. Alfred Stieglitz registra com orgulho que ficou três horas de pé, durante uma nevasca no dia 22 de fevereiro de 1893, “à espera do momento apropriado” para tirar sua famosa foto Fifth Avenue, winter [Quinta Avenida, inverno]. O momento apropriado é aquele em que se consegue ver coisas (sobretudo aquilo que todos já viram) de um modo novo. A busca tornouse a marca registrada do fotógrafo na imaginação popular. Na década de 1920, o fotógrafo se tornara um herói moderno, como o aviador e o antropólogo — sem necessariamente ter saído de sua terra natal. Os leitores da imprensa popular eram convidados a unir-se ao “nosso fotógrafo” em uma “viagem de descoberta”, em visita a reinos novos como “o mundo visto de cima”, “o mundo através de lentes de aumento”, “as belezas de todo dia”, “o universo invisível”, “o milagre da luz”, “a beleza das máquinas”, a imagem que pode ser “encontrada na rua”.

A vida de todos os dias exaltada em apoteose e o tipo de beleza que só a câmera revela — um recanto de realidade material que o olho não enxerga normalmente ou não consegue isolar; ou a visão de cima, como a de um avião —, eis os alvos principais da conquista do fotógrafo. Durante certo tempo, o close pareceu o mais original método de ver da fotografia. Os fotógrafos se deram conta de que, quando ceifavam a realidade mais rente ao solo, surgiam formas magníficas. No início da década de 1840, o versátil e engenhoso Fox Talbot não só compôs fotos nos gêneros praticados pela pintura — retrato, cena doméstica, paisagem urbana, paisagem rural, natureza-morta —, como também exercitou sua câmera numa concha do mar, nas asas de uma borboleta (ampliadas com a ajuda de um microscópio solar), numa seção de duas fileiras de livros em seu escritório. Mas seus temas são ainda identificáveis como uma concha, asas de borboleta, livros. Quando a visão comum foi mais violentada ainda — e o objeto foi isolado de seu contexto, o que o tornou abstrato —, novas convenções sobre o que era belo assumiram o poder. O que é belo tornou-se apenas aquilo que o olho não consegue ver (ou não vê): a visão fraturante, deslocadora, que só a câmera proporciona.

Em 1915, Paul Strand tirou uma foto a que deu o título de Desenhos abstratos formados por tigelas. Em 1917, Strand dedicou-se a closes das formas das máquinas e, ao longo da década de 1920, fez estudos da natureza em closes. A nova técnica — o auge foi entre 1920 e 1935 — parecia prometer delícias visuais ilimitadas. Com um efeito igualmente estonteante, ela atuou nos objetos domésticos, nos nus (tema que se poderia supor praticamente esgotado pelos pintores), nas minúsculas cosmogonias da natureza. A fotografia parecia ter encontrado seu papel grandioso como a ponte entre a arte e a ciência; e os pintores eram exortados a aprender com as belezas das microfotografias e das vistas aéreas no livro de Moholy-Nagy Von Material zur Architektur, publicado pela Bauhaus em 1928 e traduzido para o inglês como The new vision [A nova visão]. Foi o mesmo ano em que surgiu um dos primeiros livros de fotos a entrar na lista dos mais vendidos, de autoria de Albert Renger-Patzsch, intitulado Die Welt ist schön [O mundo é belo], que consistia em cem fotos, closes em sua maioria, cujos temas abrangiam desde uma folha de colocásia até as mãos de um oleiro. A pintura nunca fez uma promessa tão despudorada de comprovar a beleza do mundo.

O olho que abstrai — representado com brilho especial no período entre as duas guerras mundiais por uma parte da obra de Strand, bem como por Edward Weston e Minor White — parece ter sido possível apenas depois das descobertas feitas pelos pintores e escultores modernistas. Strand e Weston, que reconhecem uma similaridade entre suas maneiras de ver e aquelas de Kandinski e de Brancusi, podem ter sido atraídos para o lado mais afiado do estilo cubista em reação à suavidade das imagens de Stieglitz. Mas é igualmente verdade que a influência se deu na direção oposta. Em 1909, em sua revista Camera Work, Stieglitz registra a influência incontestável da fotografia sobre a pintura, embora cite apenas os impressionistas — cujo estilo de “definição enevoada” inspirou o seu próprio estilo.** E Moholy-Nagy, em The new vision, aponta corretamente que “a técnica e o espírito da fotografia influenciaram, direta ou indiretamente, o cubismo”. Mas a despeito de todas as maneiras como, a partir da década de 1840, os pintores e os fotógrafos influenciaram-se e pilharam-se mutuamente, suas técnicas são basicamente opostas. O pintor constrói, o fotógrafo revela. Ou seja, a identificação do tema de um fotógrafo sempre domina nossa percepção do tema — como não ocorre, necessariamente, numa pintura. O tema da foto de Weston Folha de repolho, tirada em 1931, parece um pano pregueado; é preciso um título para identificá-lo. Assim, a imagem aponta para duas direções. A forma é agradável e é (surpresa!) a forma de uma folha de repolho. Se fosse um pano pregueado, não poderia ser tão belo. Já conhecemos essa beleza, das belas-artes. Portanto os atributos formais do estilo — questão central na pintura — são, no máximo, de importância secundária na fotografia, ao passo que aquilo que uma foto fotografa é sempre de importância capital. A suposição subjacente a todos os empregos da fotografia, a saber, que toda foto é um pedaço do mundo, significa que não sabemos como reagir a uma foto (se a imagem for visualmente ambígua: digamos, vista de muito perto ou de muito longe) antes de sabermos qual parte do mundo é aquela. O que parece uma simples coroa — a famosa foto tirada por Harold Edgeton em 1936 — se torna muito mais interessante quando descobrimos que se trata de um respingo de leite.

A fotografia é vista habitualmente como um instrumento para conhecer as coisas. Quando Thoreau escreveu que “não se pode dizer mais do que se vê”, tinha por certo que cabia à visão a supremacia entre os sentidos. Mas quando, várias gerações depois, a máxima de Thoreau é citada por Paul Strand a fim de louvar a fotografia, ressoa com um significado diferente. As câmeras não se limitam a tornar possível apreender mais por meio da visão (mediante a microfotografia e a teledetecção). Elas alteraram a própria visão, fomentando a ideia de ver por ver. Thoreau ainda vivia num mundo polissensual, embora a observação já tivesse começado a adquirir a estatura de um dever moral. Ele se referia a uma visão não desvinculada dos demais sentidos, e à visão no seu contexto (o contexto a que Thoreau denominava Natureza), ou seja, uma visão ligada a certos pressupostos no tocante àquilo que ele julgava digno de ser visto. Quando Strand cita Thoreau, supõe uma outra atitude com respeito ao sensorial: o aprimoramento didático da percepção, independente das ideias sobre o que é digno de ser visto, que inspira todos os movimentos modernistas nas artes.

A modalidade mais influente dessa atitude se encontra na pintura, a arte que a fotografia ultrapassou sem nenhum remorso e plagiou com entusiasmo desde o início, e com a qual ainda coexiste em uma rivalidade febril. Segundo a versão habitual, a fotografia usurpou a tarefa do pintor de fornecer imagens que transcrevessem a realidade de modo acurado. Por isso, “o pintor devia ser profundamente grato”, insiste Weston, e ver essa usurpação, como fizeram muitos fotógrafos antes e depois dele, como uma libertação, na verdade. Ao tomar para si a tarefa de retratar de forma realista, tarefa que era até então um monopólio da pintura, a fotografia liberou a pintura para a sua grande vocação modernista — a abstração. Mas o impacto da fotografia na pintura não foi tão claramente delimitado. Pois, quando a fotografia entrou em cena, a pintura já estava começando, por conta própria, sua lenta retirada do terreno da representação realista — Turner nasceu em 1775; Fox Talbot, em 1800 —, e o território que a fotografia veio a ocupar com um sucesso tão rápido e completo provavelmente teria sido abandonado de um modo ou de outro. (A instabilidade das realizações estritamente representacionais na pintura do século xix fica demonstrada de modo mais claro pelo destino do retrato, que passou a tratar cada vez mais da própria pintura e não dos modelos retratados — e no fim deixou de interessar aos pintores mais ambiciosos, com notáveis e recentes exceções como Francis Bacon e Warhol, que fazem empréstimos abundantes de imagens fotográficas.)

O outro aspecto importante da relação entre pintura e fotografia omitido nos estudos mais aceitos é que as fronteiras do novo território conquistado pela fotografia começaram a expandir-se imediatamente, assim que alguns fotógrafos recusaram-se a ficar restritos a apresentar triunfos ultrarrealistas contra os quais os pintores não podiam competir. Desse modo, entre os dois famosos inventores da fotografia, Daguerre nunca imaginou ir além do alcance de representação do pintor naturalista, ao passo que Fox Talbot imediatamente depreendeu a faculdade da câmera para isolar formas que normalmente escapam ao olho nu e que a pintura jamais registrara. Aos poucos, os fotógrafos se uniram na busca de imagens mais abstratas, na declaração de escrúpulos reminiscentes da recusa do mimético como mero retrato, formulada pelos pintores modernistas. A vingança dos pintores, se quiserem. A reivindicação de muitos fotógrafos profissionais de que fazem algo totalmente distinto de simplesmente registrar a realidade é o sinal mais claro da imensa contrainfluência que a pintura exerceu sobre a fotografia. Mas, por mais que os fotógrafos tenham passado a partilhar algumas ideias sobre o valor intrínseco da percepção pela percepção e sobre a (relativa) insignificância do tema que dominaram a pintura avançada durante mais de um século, suas aplicações dessas ideias não podem repetir as aplicações da pintura. Pois é da natureza de uma foto não poder nunca transcender completamente seu tema, como pode uma pintura. Nem pode um fotógrafo transcender o visual propriamente dito, o que é, em certo sentido, o objetivo supremo da pintura modernista.

O tipo de atitude modernista mais relevante para a fotografia não se encontra na pintura — mesmo que tenha sido assim então (na época da sua conquista, ou libertação, pela fotografia), como sem dúvida é agora. Exceto por fenômenos marginais, como é o caso do super-realismo, um renascimento do fotorrealismo que não se contenta em apenas imitar fotos, mas pretende mostrar que a pintura pode alcançar uma ilusão de realidade ou uma verossimilhança ainda maior, a pintura é ainda amplamente regida por uma desconfiança daquilo que Duchamp chamou de meramente retiniano. O etos da fotografia — adestrar-nos (segundo a expressão de Moholy-Nagy) para a “visão intensiva” — parece mais próximo do etos da poesia moderna do que do etos da pintura. Enquanto a pintura se tornou cada vez mais conceitual, a poesia (desde Apollinaire, Eliot, Pound e William Carlos Williams) definiu-se cada vez mais como uma atividade ligada ao visual. (“Não há verdade senão nas coisas”, como declarou Williams.) O compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem do poema corresponde ao compromisso da fotografia com a visão pura. Ambos supõem descontinuidade, formas desarticuladas e unidade compensatória: arrancar as coisas de seu contexto (vê-las de um modo renovado), associar as coisas de modo elíptico, de acordo com as imperiosas mas não raro arbitrárias exigências da subjetividade.






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* A restrição da fotografia a uma visão impessoal continuou, é claro, a ter seus defensores. Entre os surrealistas, a fotografia foi vista como liberadora na medida em que ultrapassava a mera expressão pessoal: Breton começa seu ensaio de 1920 sobre Max Ernst classificando a escrita automática de “uma verdadeira fotografia do pensamento”, a câmera era vista como “um instrumento cego” cuja superioridade na “imitação da aparência” dera “um golpe mortal nos antigos modos de expressão, na pintura bem como na poesia”. No campo estético oposto, os teóricos da Bauhaus adotaram uma visão semelhante, tratando a fotografia como um ramo do design, assim como a arquitetura — criativa, mas impessoal, desembaraçada de inutilidades como a superfície pictórica, o toque pessoal. Em seu livro Pintura, fotografia, filme (1925), Moholy-Nagy elogia a câmera por impor a “higiene do óptico”, que no fim irá “abolir esse padrão de associação pictórica e imaginativa [...] que foi estampado na nossa visão pelos grandes pintores individuais”.


** A ampla influência que a fotografia exerceu sobre os impressionistas é um lugar-comum na história da arte. De fato, não chega a ser exagero dizer, como faz Stieglitz, que “os pintores impressionistas aderem a um estilo de composição que é estritamente fotográfico”. A tradução, feita pela câmera, da realidade em áreas extremamente polarizadas de luz e de sombra, o recorte livre ou arbitrário da imagem nas fotos, a indiferença dos fotógrafos quanto a tornar o espaço inteligível, sobretudo o espaço de fundo — essas foram as principais inspirações para as proclamações dos pintores impressionistas de um interesse científico nas propriedades da luz, para suas experiências com a perspectiva chapada, com os ângulos incomuns e com as formas descentralizadas, fatiadas pelo gume da imagem. (“Eles pintam a vida em retalhos e fragmentos”, como observou Stieglitz em 1909.) Um detalhe histórico: a primeira exposição impressionista, em abril de 1874, foi realizada no estúdio fotográfico de Nadar, no Boulevard des Capucines, em Paris.





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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.


Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
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