sexta-feira, 30 de junho de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: O que o Estado faz

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


7
O que o Estado faz


Para não complicar, vamos observar logo que o Estado faz, basicamente, três tipos de coisas: 1) elabora as leis — atividade legislativa; 2) administra os negócios públicos, executa a lei — atividade administrativa e executiva; 3) aplica a lei a casos particulares — atividade judicial.

As pessoas mais bem informadas dirão logo que este foi um jeito rebuscado de dizer que o Estado tem “três Poderes”: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Mas isto não é bem verdade, no sentido de que nem todos os Estados, mesmo os contemporâneos e desenvolvidos, têm três Poderes distintos em sua estrutura. Além disso, dizer simplesmente “Legislativo, Executivo e Judiciário” é uma maneira muito formal de ver as coisas, bastante útil em muitas circunstâncias, mas não satisfatória em nosso caso, pois decidimos adotar outra perspectiva desde o início — ou seja, procurar visualizar os processos concretos.

O Estado sempre exerceu essas atividades. Sempre houve alguém que formulou normas, alguém que as executou e alguém que as aplicou, notadamente em casos de conflitos ou problemas de interpretação. A separação entre essas três atividades (os tais três Poderes) é mais ou menos uma novidade, coisa comparativamente recente. Raciocinou-se que, se essas três atividades ficassem concentradas numa só pessoa ou grupo de pessoas, o perigo da tirania seria muito grande. Se eu mesmo faço a lei, eu mesmo a executo e eu mesmo a aplico, é evidente que fico com um grau de arbítrio muito grande nas mãos — até porque não permaneço sujeito à própria lei, depois de posta em vigor, já que posso modificá-la como desejar.

Assim, concebeu-se que as atividades do Estado constituiriam poderes independentes entre si. Na prática, contudo, o que se vem notando é que a divisão em três Poderes, não importa que recursos imaginosos se criem para garanti-la, não basta para evitar os abusos de poder (isto é, excessivo predomínio nos processos decisórios — para ficarmos dentro de nossa perspectiva metodológica). Na verdade, a separação entre os três Poderes é inevitavelmente relativa, havendo grande número de pontos de contato entre eles.

Em segundo lugar, há Estados onde os abusos de poder não são problema (como a Inglaterra) e não há separação entre os três Poderes. E há Estados (como o Brasil) onde existe a separação e os abusos de poder são freqüentes. Portanto a separação por si só não é sinal de que não existe tirania.

Há várias formas pelas quais as atividades podem ser conduzidas. Por exemplo, a função executiva pode ser desempenhada pelo Parlamento (ou seja, por uma assembléia de representantes do povo), no caso dos regimes parlamentaristas. Nestes pode haver um presidente (repúblicas) ou um rei (monarquias), mas o comum é que nem o presidente nem o rei exerçam papéis de grande relevância na condução da administração pública. É possível também que a função executiva seja exercida por um presidente, como no caso do Brasil e dos Estados Unidos, cujos regimes são presidencialistas.

A função legislativa é normalmente desempenhada por assembléias, ou parlamentos, escolhidos das formas mais diversas. Mas há casos em que outros poderes exercem atividades legislativas. Em circunstâncias normais, por exemplo, cabe ao Executivo baixar regulamentos que possibilitem a execução das leis emanadas do Legislativo (e o regulamento é um decreto), o que equivale a uma atividade legislativa. Também o Judiciário realiza atividade desse tipo, quando, por exemplo, elabora e põe em vigor seus regimentos internos.

No Brasil, desde a primeira Constituição republicana, a de 1891, uma série de atividades legislativas é exercida pelo Executivo, invadindo a seara do Legislativo. Vamos ver alguns exemplos:

a) o presidente da República tem iniciativa de projeto de lei. Isto significa que o presidente pode enviar diretamente um projeto para a Câmara dos Deputados, em vez de pedir a um deputado aliado que o faça;
b) o presidente da República tem direito a veto parcial, isto é, ele pode vetar artigos, alíneas e parágrafos de leis aprovadas pelo Congresso, modificando a própria lei, e portanto exercendo uma atividade legislativa;
c) há determinados projetos de lei que são de iniciativa exclusiva do presidente da República, como leis sobre aumento do funcionalismo, criação de órgãos públicos, efetivo das Forças Armadas etc, e
d) o presidente pode editar medidas provisórias com força de lei, que passam a vigorar imediatamente, e o Congresso tem trinta dias para recusar ou aprovar. É claro que, passado este tempo, se a medida não for apreciada, o Poder Executivo tem o direito de reeditá-la. Com isso, mais de 70% do trabalho do Legislativo trata de leis que têm origem na Presidência da República. Como pudemos ver, há no Brasil uma certa confusão entre os poderes, com o Executivo mandando muito mais que os outros dois.

Entre as funções do Estado, a judicial apresenta uma característica peculiar: só costuma exercer-se quando provocada. O Poder Judiciário, através de qualquer de seus órgãos, só se manifesta se for solicitado, normalmente na forma de uma ação (o que se chama, na linguagem cotidiana, de processo).

O relacionamento entre os três Poderes (ou mesmo o seu estabelecimento como entidades distintas) depende do direito constitucional positivo de cada Estado, ou seja, das normas e princípios constitucionais vigentes. Em cada Estado, este relacionamento apresenta particularidades, mas o essencial é lembrar como a ação do Estado se equaciona e raciocinar sobre o funcionamento, o sentido e as consequências dessa ação.

A maneira pela qual o Estado desempenha suas funções e a própria definição ou limitação dessas funções têm, evidentemente, mudado muito através da história. Basta que lembremos que o Estado, no mundo de hoje, é gigantesco. Havia países como a antiga União Soviética, para citar um caso ainda recente, em que o Estado assumiu praticamente toda a atividade econômica. Sendo as lojas, as fazendas e as fábricas do Estado, pode-se imaginar o gigantismo da estrutura estatal soviética.

Mas mesmo em países como os Estados Unidos, onde a norma é que a atividade econômica seja desempenhada por particulares — empresas ou indivíduos —, a presença do Estado é muito grande, de várias maneiras.

Quando a economia moderna começou a tomar forma, em países como a Inglaterra, com o advento da Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo (“capitalismo”, por enquanto, pode ser entendido apenas por seu aspecto mais genérico: sistema em que a atividade econômica está majoritariamente em mãos privadas), o Estado não era tão gigante assim, nem se pretendia que ele fosse.

O aparecimento de máquinas movidas a energia não humana ou animal, a produção em massa, o surgimento dos assalariados, a divisão social cada vez maior do trabalho, tudo isso gerava uma realidade socioeconômica extremamente nova, em que a tecnologia iria constantemente exigir a revisão de tudo o que era “verdade” antes.

Naquela nova realidade revolucionária, em que os dominantes não eram mais os aristocratas de antigamente, mas os industriais, os comerciantes, os banqueiros — a classe que agora punha o mundo a andar por caminhos antes nunca explorados ou sequer suspeitados —, viu-se a possibilidade de formular leis do mercado, no sentido cientifico da palavra, de relações constantes e previsíveis entre determinados fatos econômicos. Por exemplo, se um produto existia em abundância, a tendência era que o preço desse produto baixasse. Se, ao contrário, existia muita procura por esse produto e ele era escasso, seu preço subiria. Eis a lei da oferta e da procura (este último termo é frequentemente substituído por “demanda”, com o mesmo significado), até hoje tão invocada.

Além disso, definiram-se certos postulados sobre a natureza e o comportamento humanos tidos como necessários e imutáveis (isto é, necessariamente decorrentes da realidade). Se havia uma atividade econômica não explorada ainda, mas de rentabilidade previsível, algum espírito empreendedor procuraria exercer essa atividade e com isso auferir lucros. O egoísmo humano (até no bom sentido, se se pode falar assim), o desejo de proteger seus próprios interesses, a determinação de progredir, tudo isso, dentro do impecável funcionamento das leis econômicas, dentro dos horizontes que então se abriam para o homem através da ciência e do conhecimento que então pareciam ilimitáveis, iria fazer com que a sociedade, a economia, a Política marchassem harmoniosamente. Não toquem em nada, que tudo funciona por si só — era como se fosse esta a palavra de ordem. É bastante invocada a expressão “a mão invisível do mercado”, que colocaria tudo em ordem.

Para isso era indispensável, portanto, que o Estado interviesse o mínimo possível não só na economia, como na vida dos cidadãos. Liberdade para a atividade econômica, liberdade para o cidadão. Esta é a essência clássica do liberalismo: liberalismo econômico e liberalismo político, que se identificavam, eram como duas faces de uma mesma moeda.

Mas o liberalismo econômico não contava com seu próprio desenvolvimento e com as condições criadas pela expansão tecnológica que ele próprio teorizou, justificou e possibilitou. De repente (para configurar apenas uma entre muitas hipóteses possíveis), por uma razão ou por outra, um fabricante de sapatos, desejando eliminar a concorrência, conseguiu enfrentar prejuízos intencionais durante vários meses, vendendo sapatos abaixo do preço de custo. Seu principal concorrente, sem reservas para agüentar a guerra, acabou em sérias dificuldades, porque ninguém comprava mais os seus sapatos.

Em conseqüência disso, o primeiro fabricante pôde adquirir o estabelecimento concorrente e conquistar uma faixa tão grande do mercado que já não havia mais sombra que lhe pudesse ser feita: só quem fabricava sapatos era ele, era ele quem fazia os preços e estipulava as condições de comércio. Estava formado um monopólio, uma das piores pragas da economia capitalista.

Há muito as pessoas haviam deixado de saber fazer seus próprios calçados (como não sabem criar os animais que comem, nem podem; como não sabem, nem podem, tecer o pano que vestem e assim por diante, dependendo inapelavelmente da divisão social do trabalho, pois, sem os outros, morreriam).

Ao mesmo tempo, a consolidação do Estado nacional, a identificação de interesses entre setores das elites dominantes e outros fatores foram contribuindo para que se notasse, às vezes muito penosamente, que, se o Estado não interferisse na vida econômica, a situação poderia ficar fora de controle, numa espécie de processo autodestrutivo. Se o Estado não interviesse, por exemplo, para impor determinadas limitações à autoridade dos patrões sobre os empregados, através de legislação trabalhista, previdência social e assim por diante, os conflitos tenderiam a tornar-se insustentáveis. A mesma coisa pode ser dita em relação aos monopólios e outras práticas de manipulação predatória do mercado.

De outro lado, se o Estado não procurasse ingressar em empreendimentos econômicos que, de pronto, não interessassem à iniciativa privada, as áreas para esses empreendimentos podiam ser negligenciadas, prejudicando, a médio ou longo prazo, o bom funcionamento da economia. E nada melhor que o Estado para usar o dinheiro de todos, a fim de garantir a situação de alguns e conferir estabilidade ao modelo vigente. É lógico que o Estado não pode permitir que as leis econômicas, deixadas “soltas”, causem problemas de magnitude insuportável, como aconteceu com a Grande Depressão, a partir de 1929.

Por essas e outras razões de grande complexidade, o Estado liberal veio a ser substituído pelo Estado intervencionista, o Estado que interfere na atividade econômica e, por conseqüência, em todas as áreas da vida do cidadão. O Estado passou a não somente regular a atividade econômica, mas também a ingressar nela diretamente, inclusive por meio de empresas estatais, ou seja, empresas em que os proprietários particulares são substituídos pelo Estado. A crueza, a lei da selva da economia de mercado, é orientada para equilibrar o sistema, para não deixar que ele se destrua.

Vamos dar um exemplo claro e simplificado, para que tudo fique bem entendido. Um Estado qualquer não possui grupos econômicos em condições de explorar atividades como a mineração, certos serviços públicos, a distribuição de combustíveis e outras. O Estado interfere para explorar essas atividades com recursos de todos. Quando essas atividades se tornam lucrativas, o Estado, como acontece bastante, pode passá-las à iniciativa privada. Ou pode continuar a explorá-las, com “objetivos sociais”. A verdade, contudo, é que o Estado representa interesses e, enquanto representar os interesses X, jamais vai fazer alguma coisa em benefício dos interesses Y.

De qualquer maneira, é visível que a função onde o Estado é mais complexo é a função administrativa, a função de gerência da sociedade onde está implantado. As chamadas máquinas estatais adquiriram dimensões descomunais, são hoje verdadeiros mamutes burocráticos, que muitas vezes a própria administração pública não conhece direito, como no caso do Brasil. Aqui, ainda, isto é agravado pela prática do clientelismo, dos cabides de emprego e instituições semelhantes, além do paternalismo que sempre se praticou em relação à sociedade e à economia, tudo sempre terminando em alguma coisa “para o governo resolver”.

Entretanto, a partir da década de 1980 muitos países começaram a perceber que o Estado era, na maioria das vezes, um mau gerente: gastador, corrupto, empreguista, perdulário, incompetente, ineficiente. Uma série de privilégios foi sendo atribuída às empresas do Estado, cujo custo, para os cidadãos como um todo, que não participaram dessas empresas, ficou insuportável. Vários países europeus como a Inglaterra, a França e a Alemanha começaram a vender suas empresas estatais, ou seja, a privatizar.

No Brasil, o processo de privatização só teve início em 1990. Antes disso, o Estado estava em toda parte: na siderurgia, na produção de energia elétrica, nos transportes, na produção de combustível, na produção e distribuição de alimentos, nas comunicações — em toda parte mesmo, enfim. Mas o Estado brasileiro não tem conseguido cumprir suas funções básicas: garantir boa escola pública para todos, boas condições de atendimento na saúde pública, moradia para as populações de baixa renda, saneamento básico etc. Por isso, para garantir este atendimento mínimo das necessidades dos cidadãos, o Estado brasileiro começou a se desfazer da maior parte de suas empresas, num processo que ainda está longe do fim.

Por ironia da história, hoje o liberalismo econômico, que é irmão gêmeo do liberalismo político, distanciou-se daquele junto ao qual nasceu. O liberalismo econômico puro gera iniquidades, destrói o liberalismo político depois de algum tempo. O “Estado ausente” não pode mais ser mantido; hoje o Estado precisa manter algumas atividades básicas em suas mãos e regular as atividades nas mãos da iniciativa privada, para corrigir as distorções da “mão invisível do mercado”. O problema é definir que atividades devem permanecer na mão do Estado. Isto nos remete à seguinte pergunta: quem dirige o Estado? Quem manda?

*

1 Que é que quer dizer “o rei reina, mas não governa”?
2 Os cinco grandes comerciantes que, num país qualquer, controlam todo o feijão disponível para venda, como não estão satisfeitos com os preços, provocam uma escassez artificial do produto, pondo à venda apenas pequenos estoques. Pode-se dizer que estes comerciantes estão violando a lei da oferta e da procura? Se o governo interferir para corrigir a situação, que significa isso, quanto às relações entre o Estado e a economia?
3 Você vê vantagens ou desvantagens em deixar o Executivo legislar à vontade? Por exemplo, há quem diga que assim ele adquire mais velocidade e eficiência, sem ser prejudicado pela morosidade do Legislativo.
4 Na Inglaterra, a rainha pode nomear, teoricamente, qualquer membro do Parlamento que deseje, para o cargo de primeiroministro. No entanto, ela sempre nomeia o líder do partido que ganhou as eleições, o partido majoritário. Isto significa, na sua opinião, que o costume pode ser parte da ordem jurídica num Estado qualquer?
5 Na antiga União Soviética, o Estado elaborava e procurava cumprir planos econômicos, numa economia inteira mente controlada pelo Estado. No Brasil, o Estado também elabora e procura cumprir planos econômicos, numa economia em que a iniciativa privada é encorajada. Procure imaginar as diferenças de significado dessa interferência estatal, entre um caso e outro.
6 Qual é o interesse de um Estado como o brasileiro em investir em mais saúde pública? Procure pensar para além das implicações mais superficiais. Faça o mesmo em relação a investimentos semelhantes como saneamento, transporte, educação.


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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: O que o Estado faz

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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Catalogação-na-fonte S
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

A Montanha Mágica - O Sr. Albin

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo III

O Sr. Albin

No jardim, lá embaixo, a brisa levantava de vez em quando a bandeira adornada de um caduceu. O céu voltara a nublar-se em toda parte. Desapareceu o sol, e quase imediatamente surgiu um frio pouco hospitaleiro. O alpendre de repouso parecia estar cheio; ouviam-se conversas e risos abafados.

– Por amor de Deus, Sr. Albin, guarde essa faca. Pode acontecer uma desgraça! – lamentava-se uma voz aguda, suplicante, de mulher.

- Meu caro Sr. Albin, por favor, tenha consideração pelos nos nervos e afaste essa arma homicida – interveio outra. E um jovem louro, que com um cigarro na boca estava sentado na borda da primeira espreguiçadeira, retrucou num tom insolente:

– Nem penso nisso! Será que as senhoras não me permitem brincar com a minha faca? Não nego que é uma faca muito bem afiada. Comprei-a em Calcutá, de um faquir cego. O homem era capaz de a engolir, e logo depois o seu menino ia desenterrá-la a uns cinquenta passos de distância... Querem ver? Corta melhor que uma navalha. Baste tocar no gume, e a carne se abre que nem manteiga. Esperem, vou mostrá-la de perto... – O Sr. Albin levantou-se. Houve gritos estridentes. – Não? Nesse caso vou buscar meu revólver – continuou ele. – Talvez seja mais interessante para as senhoras. É formidável. Tem uma força de percussão que nem imaginam... Vou buscá-lo no meu quarto.

– Sr. Albin, Sr. Albin, não faça isso! – imploravam várias vozes. Mas o Sr. Albin já saíra do alpendre para subir ao quarto. Era muito jovem, com movimentos desengonçados, e tinha uma cara rosada, de criança, ornada de pequenas suíças.

– Sr. Albin! – gritou uma senhora atrás dele. -seria melhor buscar um sobretudo. Ponha um sobretudo, faça o favor! O senhor passou seis semanas na cama, com pneumonia, e agora fica sentado aqui, sem se agasalhar, e ainda fuma cigarros! Palavra de honra, Sr. Albin, isso é tentar a Deus.

Mas ele se limitou a um riso sarcástico e foi-se embora. Poucos minutos após, já estava de volta com o revólver na mão, para desenfrear uma gritaria ainda mais idiota que a anterior. Ouviu-se perfeitamente como algumas dentre as senhoras, levantando-se de um pulo, tropeçavam no cobertor e caíam no chão.

– Vejam só como ele é pequeno e lustroso – disse o Sr. Albin. – Mas ele morde, quando aperto aqui... – Nova gritaria. – Claro que está carregado – acrescentou o Sr. Albin. – Há seis balas no cilindro, que gira a cada disparo... Aliás, não comprei este negócio para brincadeira – concluiu, ao notar que o efeito das suas palavras diminuía. Enfiou o revólver no bolso do paletó, tornou a sentar-se, cruzando as pernas, e acendeu novo cigarro. – Absolutamente não é para brincadeira – repetiu, cerrando os lábios.

– Mas, para quê? Para que, então? – perguntaram algumas vozes trêmulas de pressentimento. – Que horror! – exclamou de repente uma das senhoras, e o Sr. Albin sacudiu a cabeça afirmativamente.

– Vejo que as senhoras começam a compreender – disse – Com efeito, é para isso que ando com ele – continuou num tom displicente, depois de ter tirado uma longa tragada do cigarro, não obstante a pneumonia recém-vencida. – Conservo-o preparado para o dia em que esta coisa aqui começar a me aborrecer muito, e terei a honra de me despedir respeitosamente. É muito simples. Gastei algum tempo em estudar o assunto e sei como melhor se liquida. A palavra “liquida” provocou um grito de susto. – O coração interessa. E um alvo incômodo... Além disso prefiro extinguir a consciência no seu próprio centro, enxertando um corpo estranho engraçadinho neste órgão interessante... – E o Sr. Albin mostrou com o indicador o crânio coberto de cabelos louros, aparados rente – Deve-se apontar aqui – com essas palavras, o Sr. Albin voltou a tirar do bolso o revólver niquelado e bateu com o cano na fronte – aqui, em cima da artéria... É um processo facílimo, até sem espelho...

Ouviram-se muitas vozes de insistente protesto, às quais se misturou ainda um violento soluço.

– Sr. Albin, Sr. Albin, tire esse revólver da fronte, guarde o revólver! Não posso ver uma coisa dessas! Sr. Albin, o senhor é moço, vai recuperar a saúde, voltará à vida e terá uma grande carreira pela frente; garanto-lhe! Bote o sobretudo, deite-se na espreguiçadeira, agasalhe-se bem e continue com o seu tratamento! Não mande o massagista embora, como fez da outra vez, quando ele veio esfregá-lo com álcool. E por amor à sua vida, sua jovem e preciosa vida, Sr. Albin atenda ao nosso conselho: abandone os cigarros!

Mas o Sr. Albin mostrava-se inexorável:

– Não e não! – disse ele. – Não insistam comigo. Está bem. Agradeço-lhes a sua bondade. Nunca neguei nada a uma senhora, mas deve-se compreender que é inútil procurar deter a roda do destino. Faz mais de dois anos que vivo aqui... Estou farto e vou sair do jogo. Que mal há nisso? Incurável, minhas senhoras! Olhem o homem que aqui está à sua frente; é um caso incurável. O próprio Behrens já não disfarça essa sua opinião, nem para guardar as aparências. Então me concedam a pequena liberdade que para mim resulta desse fato! É como no ginásio, quando se decidia que alguém levava bomba e tinha que repetir o ano. Deixavam então de examiná-lo, e ele não precisava mais trabalhar. Eu cheguei definitivamente a essa situação feliz. Nada mais preciso fazer; não entro mais no balanço; posso me rir de tudo... Querem chocolate? Sirvam-se. Não, minhas senhoras, não me privem de nada. Tenho montões de chocolate no meu quarto; oito caixas de bombons, cinco barras de Gala-Peter e quatro libras de chocolate Lindt. Tudo isto me mandaram as senhoras do sanatório durante a minha pneumonia...

Em algum lugar, uma voz de contrabaixo reclamou silêncio. O Sr. Albin deu uma rápida risada; era um riso trêmulo, abrupto... Depois se fez silêncio no alpendre de repouso, um silêncio tão completo, como se se tivesse sumido uma miragem ou uma fantasmagoria. De um modo estranho pareciam ecoar as palavras que haviam sido pronunciadas. Hans Castorp ficou a escutar, até que o último ruído houvesse cessado, e conquanto tivesse a impressão de que o Sr. Albin era um fantoche, não pôde deixar de sentir uma certa inveja. Principalmente aquela comparação tirada da vida escolar causara-lhe viva impressão, já que ele mesmo tivera que repetir o quinto ano do ginásio e ainda se lembrava muito bem daquela situação decerto um pouco ignominiosa, mas também cômica e agradavelmente desembaraçada, que desfrutara durante o último trimestre, quando deixara de se esforçar e pudera “rir-se de tudo”. Não é fácil precisar seus pensamentos, visto serem obscuros e confusos, mas parecia-lhe, em suma, que a honra oferecia consideráveis vantagens, mas que a vergonha não as tinha menores, e que as vantagens desta última eram quase ilimitadas. Enquanto, a título de experiência, representava no seu espírito o papel do Sr. Albin e imaginava o que significaria ver-se definitivamente livre da pressão da honra e gozar para sempre as imensas vantagens da vergonha, assustou-se o jovem diante de uma sensação de gozo dissoluto, que lhe imprimiu às batidas do coração, por alguns instantes, um ritmo ainda mais acelerado.


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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
O Sr. Albin
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.


A Hora da Estrela - Ele...

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

Ele... 
Ele se aproximou e com a voz cantante de nordestino que a emocionou, perguntou-lhe:

– E se me desculpe, senhorita, posso convidar a passear?

– Sim, respondeu atabalhoadamente com a pressa antes que ele mudasse de ideia.

– E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?

– Macabéa.

– Maca -— o quê?

– Bea, foi ela obrigada a completar.

– Me desculpe mas até parece doença, doença de pele.

– Eu também acho esquisito mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se vingasse, até um ano de idade eu não era chamada não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo — parou um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor — pois como o senhor vê eu vinguei... pois é...

– Também no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida de honra.

Eles não sabiam como se passeia. Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos. E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao recém-namorado:

– Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?

Da segunda vez em que se encontraram caía uma chuva 49 fininha que ensopava os ossos. Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo.
Da terceira vez em que se encontraram — pois não é que estava chovendo? — o rapaz, irritado e perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara, disse-lhe:

– Você também só sabe é mesmo chover!

– Desculpe.

Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele, estava em desespero de amor.
Numa das vezes em que se encontraram ela afinal perguntou-lhe o nome.

– Olímpico de Jesus Moreira Chaves — mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que têm pai. Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher.

– Eu não entendo o seu nome — disse ela. — Olímpico? Macabéa fingia enorme curiosidade escondendo dele que ela nunca entendia tudo muito bem e que isso era assim mesmo. Mas ele, galinho de briga que era, arrepiou-se todo com a pergunta tola e que ele não sabia responder. Disse aborrecido:

– Eu sei mas não quero dizer!

– Não faz mal, não faz mal, não faz mal... a gente não precisa entender o nome.

Ela sabia o que era o desejo — embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava faminta mas não de comida, era um gosto meio doloroso que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía. Ficava então meio nervosa e Glória lhe dava água com açúcar.
 
continua pag 51...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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Leia também:

A Hora da Estrela - Ele... 

quinta-feira, 29 de junho de 2023

O Cortiço - VII E notando que ele continuava mais sôfrego

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


VII 

continuando...

E notando que ele continuava mais sôfrego por ter perdido um instante: Espere um pouco, lobo! Que diabo! A comida não foge! Há muito ai com que te fartares por uma vez! Com efeito!

- Beba água, tio Libório! aconselhou Augusta.

E, boa, foi buscar um copo de água e levou-lhe a boca.
O velho bebeu, sem despregar os olhos do prato.

- Arre diabo! resmungou Porfiro, cuspindo para o lado. Este é mesmo capaz de comer-nos a todos nós, sem achar espinhas!

Albino, esse, coitado! é que não comia quase nada e o pouco que conseguia meter no estômago fazia-lhe mal. Rita, para bolir com ele, disse que semelhante fastio era gravidez com certeza.

- Você já começa, hein?... balbuciou o pobre moço, esgueirando-se com a sua xícara de café.

- Olha, cuidado! gritou-lhe a mulata. Pouco café, que faz mal ao leite, e a criança pode sair trigueira!

O Albino voltou para dizer muito sério à Rita que não gostava dessas brincadeiras.
Alexandre, que havia acendido um charuto, depois de oferecer outros, galantemente, aos companheiros, arriscou, para também fazer a sua pilhéria, que o sonso do Albino fora pilhado às voltas com a Bruxa no capinzal dos fundos da estalagem, debaixo das mangueiras.
Só a Leocádia achou graça nisto e riu a bandeiras despregadas. Albino declarou, quase chorando, que ele não mexia com pessoa alguma, e que ninguém, por conseguinte, devia mexer com ele.

- Mas afinal, perguntou Porfiro, é mesmo exato que este pamonha não conhece mulher?...

- Ele é quem pode responder! acudiu a mulata. E esta história vai ficar hoje liquidada! Vamos lá, ó Albino! confessa-nos tudo, ou mal te terás de haver com a gente!

- Se eu soubesse que era para isto que me chamaram não tinha vindo cá, sabe? gaguejou o lavadeiro, amuado. Eu não sirvo de palito!

E ter-se-ia retirado chorando, se a Rita não lhe cortasse a saída, dizendo como se falasse a uma criatura do seu sexo, mais fraca do que ela:

- Ora não sejas tolo! Deixa-te ficar ai! Se deres o cavaco é pior!

Albino limpou as lágrimas e foi sentar-se de novo.
Entretanto, a noite fechava-se, refrescando a tarde com o sudoeste. Bruno roncava no lugar em que tinha jantado. A Leocádia passara livremente a perna para cima da de Porfiro, que a abraçava, bebendo parati aos cálices.
Mas o Firmo lembrou que seria melhor irem lá para fora; e todos, menos o Bruno, dispuseram-se a deixar a sala, enquanto o velho Libório! pedia a Alexandre um cigarro para despejar no cachimbo.
Servido, o filante desapareceu logo, correndo ao faro de outros jantares. Rita, Augusta e Albino ficaram lavando a louça e arrumando a casa.
Lá fora o coro dos italianos se prolongava numa cadência monótona e arrastada, em que havia muito peso de embriaguez. Junto à porta de várias casas faziam-se grupos de pessoas assentadas em cadeiras ou no chão; mas a roda da Rita Baiana era a maior, porque fora engrossada pelos convivas da das Dores. O fumo dos cachimbos e dos charutos elevava-se de toda a parte. Decrescera o ruído geral; fazia-se a digestão; já ninguém discutia e todos conversavam.
Acendeu-se o lampião do pátio. Iluminaram-se diversas janelas das casinhas.
Agora, no sobrado do Miranda é que era o maior barulho. Saia de lá uma terrível gritaria de hipes e hurras, virgulada pelo desarrolhar de garrafas de champanha.

- Como eles atacam!... observou Alexandre, já de novo sem farda.

- E, no entanto, reprovam que a gente coma o que é seu com um pouco mais de alegria! comentou a Rita. Uma súcia!

Falou-se então largamente a respeito da família do Miranda, principalmente de Dona Estela e do Henrique. A Leocádia afiançou que, numa ocasião, espiando por cima do muro, trepada num montão de garrafas vazias que havia no pátio do cortiço, vira a sirigaita com a cara agarrada à do estudante, aos beijos e aos abraços, que era obra; e assim que os dois deram fé que ela os espreitava, deitaram a fugir que nem cães apedrejados.
A Augusta Carne Mole benzeu-se, com uma invocação à Virgem Santíssima, e o companheiro do amigo da das Dores, que insistia no seu namoro com a Nenen, mostrou-se muito admirado com a noticia, “supunha Dona Estela um modelo de seriedade”.

- Qual! negou Alexandre. Isso por ai é tudo uma pouca-vergonha, que faz descrer um homem de si mesmo! Eu também já vi de uma feita bem boas coisas pela sombra dela na parede; mas não era com o estudante, era com um sujeito que lá ia às vezes, um barbado, careca e comido de bexigas. E a pequena vai pelo mesmo conseguinte...

Esta novidade produziu grande surpresa no grupo inteiro. Quiseram os pormenores e o Alexandre não se fez de rogado: o namoro da Zulmira era com um rapazola magro, de lunetas, bigode louro, bem vestido, que lhe rondava a casa à noite e às vezes de madrugada. Parecia estudante!

- O que eles têm feito? inquiriu a das Dores.

- Por enquanto a coisa não passa de namorico da janela para a rua. Conversam sempre naquela última do lado de lá de fora. Já os tenho apreciado quando estou de serviço. Ele fala muito em casamento e a pequena o quer; mas, pelo jeito, o velho é que lhe corta as asas.

- Ele não tem entrada na casa?

- Não! Pois isso é que eu acho feio...! Se ele quer casar com a menina, devia entender-se com a família e não estar agora daqui debaixo a fazer-lhe fosquinhas!

- Sim! intrometeu-se o Firmo; mas não vê que aquele mesmo, o Miranda, vai dar a filha a um estudante! Guarda-a para um dos seus... Quem sabe até se o bruto não tem já de olho por ai algum cafezista pé-de-boi!... Eu sei o que é essa gente!

- Por isso é que se vê tanta porcaria por esse mundo de Cristo! disse a Augusta. Filha minha só se casará com quem ela bem quiser; que isto de casamentos empurrados à força acabam sempre desgraçando tanto a mulher como o homem! Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz, porque casei por meu gosto!

- Ora! Mais vale um gosto que quatro vinténs!

Nisto começou a gemer à porta do 35 uma guitarra; era de Jerônimo. Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara àquela tarde toda a república do cortiço, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca:

“Minha vida tem desgostos,
Que só eu sei compreender...
Quando me lembro da terra
Parece que vou morrer..."

E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim, a monótona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada o vasto arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá de cima, do sobrado do Miranda.

“Terra minha, que te adoro,
Quando é que eu te torno a ver?
Leva-me deste desterro;
Basta já de padecer.”

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo. 
E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata de volúpia. 
E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas dos de além-mar. Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída rainha dos mares velhos. 
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.

- Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o.

- Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!

Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas. 
Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro. 
E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua cama de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher. 
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando. 
Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre. 
O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante. 
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados. 
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lugarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. 
Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade. 
E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade, a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher. 
Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram. 
O circulo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor, o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda pusera-se à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo. 
Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa. 
E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura. 
Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detrás da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios das árvores que sonhavam. 
Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração. 
E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé.


Continua página 39...
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Leia também:

O Cortiço - VII E notando que ele continuava mais sôfrego
O Cortiço - VIII No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.

Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.

Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.

A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.

Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.

Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

O Sol é para todos: 1ª Parte (9a)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

9

— Retire o que disse, garoto!

Essa ordem, dada por mim a Cecil Jacobs, marcou o início de uma fase difícil para Jem e para mim. Eu estava de punhos cerrados, pronta para dar um soco. Atticus tinha prometido que me daria uma surra se ficasse sabendo que eu tinha me metido em briga outra vez. Eu estava muito velha e muito grande para essas criancices e quanto antes aprendesse a me controlar, melhor seria para todos. Esqueci logo essa recomendação. 
Cecil Jacobs me fez esquecer. No dia anterior, ele tinha dito no pátio da escola que o pai de Scout Finch defendia pretos. Neguei, mas contei para Jem. 

— O que ele quis dizer com isso? — perguntei.

— Nada. Pergunte a Atticus, ele vai explicar — respondeu Jem.

— Você defende pretos, Atticus? — perguntei a ele naquela tarde. 

— Claro que sim. Não diga preto, Scout. É grosseiro. 

— Todo mundo na escola fala assim. 

— A partir de agora, todo mundo menos você. 

— Se não quer que eu fale assim, por que me manda para a escola?

Meu pai me dirigiu um olhar doce, divertido. Apesar do nosso acordo, eu continuava em campanha para não ir à escola de uma forma ou de outra desde o primeiro dia; o início das aulas me causou indisposições, tonteiras e leves problemas gástricos. Cheguei a dar uma moeda pelo privilégio de esfregar a minha cabeça na do filho da cozinheira da srta. Rachel, que estava com uma tremenda micose no couro cabeludo. Foi inútil, não peguei.
Mas eu estava preocupada com outra coisa:

— Todo advogado defende os, hum, negros, Atticus? 

— Claro que sim, Scout.

— Então por que Cecil disse que você defende pretos? Ele falou como se fosse ilegal. 

Atticus suspirou. 

— Estou só defendendo um negro… ele se chama Tom Robinson. Ele mora naquele pequeno assentamento atrás do lixão da cidade. Frequenta a igreja de Calpúrnia, que conhece bem a família dele. Cal diz que eles são boa gente. Scout, há coisas que você não tem idade para entender, mas estão comentando pela cidade que eu não devia defender esse homem. É um caso muito peculiar… Só vai a julgamento no verão. John Taylor foi muito atencioso em nos conceder um adiamento…

— Se você não devia defender esse homem, por que está fazendo isso?

— Por vários motivos — respondeu Atticus. — O principal é: se eu não fizesse isso, não poderia andar de cabeça erguida na cidade, não poderia representar o condado na Câmara, nem poderia exigir que você e Jem fizessem alguma coisa. 

— Quer dizer que se você não defendesse esse homem, Jem e eu não teríamos mais que obedecê-lo?

— Mais ou menos isso. 

— Por quê?

— Porque eu não poderia exigir isso. Scout, por causa da natureza da função que exerce, todo advogado assume pelo menos um caso que o afeta pessoalmente. Tenho a impressão de que esse é o meu. Você provavelmente vai ouvir coisas horríveis sobre isso na escola, então me faça um favor: levante a cabeça e abaixe os punhos. Não importa o que digam, não deixe que eles a façam perder o controle. Tente lutar com as ideias, para variar… mesmo que seja difícil. 

— Atticus, nós vamos ganhar? 

— Não, querida. 

— Então, por que…

— Ainda que tenhamos perdido antes mesmo de começar, não significa que não devamos tentar — ponderou Atticus.

— Você está parecendo o primo Ike Finch — eu disse. 

O primo Ike Finch era o único veterano confederado do condado vivo. Usava uma barba como a do general Hood, da qual muito se orgulhava. Pelo menos uma vez por ano, Atticus, Jem e eu íamos visitá-lo e eu tinha de dar um beijo nele. Era horrível. Jem e eu tínhamos de ouvir respeitosamente enquanto Atticus e o primo Ike relembravam a guerra. “Só sei, Atticus”, dizia o primo Ike, “que o Acordo do Missouri foi a nossa derrota, mas, se tivesse que passar por aquilo outra vez, eu faria tudo igualzinho, e garanto que dessa vez nós acabaríamos com eles... Mas em 1864, quando Stonewall Jackson apareceu, desculpem, crianças… A essa altura, o Velho Olhos Azuis já estava no céu, que sua mente abençoada repouse na paz de Deus…” 

— Venha cá, Scout — chamou Atticus. 

Subi no colo e me aninhei sob o queixo dele. Ele me abraçou e disse:

— Agora é diferente, não estamos lutando contra os ianques, mas contra os nossos amigos. Mas lembre-se que, por piores que as coisas fiquem, eles continuam sendo nossos amigos e esta continua sendo a nossa casa. 

Ciente de tudo isso, encarei Cecil Jacobs no pátio da escola na manhã seguinte e perguntei:

— Vai retirar o que disse, garoto? 

— Quero ver você me obrigar! — ele berrou. — Meus pais disseram que o seu pai é uma vergonha e que aquele preto merece ser enforcado na caixa d’água!

Ameacei meter a mão nele, mas me lembrei do que Atticus tinha dito, baixei os punhos e saí andando com a frase “Scout é uma medrosa!” buzinando nos meus ouvidos. Era a primeira vez que eu abandonava uma briga.
De alguma forma, se eu brigasse com Cecil, Atticus ficaria decepcionado. Era tão raro ele pedir alguma coisa para Jem e para mim que valia a pena ser chamada de medrosa por ele. Fiquei cheia de sentimentos nobres por ter lembrado das palavras de Atticus e continuei nobre por três semanas. Então chegou o Natal e aconteceu o desastre.


continua página 059...
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Leia também:

O Sol é para todos: 1ª Parte (9a)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

Massa e Poder - A Massa (O Ritmo)

Elias Canetti


O RITMO

Em sua origem, o ritmo é o ritmo dos pés. Todo homem caminha, e como caminha sobre duas pernas, pisando o chão com seus dois pés alternadamente; como, ademais, somente avança se segue pisando à frente, nasce daí — quer ele queira ou não — um ruído ritmado. Seus dois pés jamais pisam com intensidade exatamente igual. A diferença entre eles pode ser maior ou menor, de acordo com a disposição pessoal ou o humor. Mas pode-se caminhar mais rápida ou vagarosamente; pode-se correr, parar subitamente ou saltar.

O homem sempre se pôs a escutar os passos de outros homens e, por certo, atentava mais para estes últimos do que para os seus próprios. Também os animais tinham seu modo bem conhecido de andar. Muitos de seus ritmos eram mais ricos e audíveis do que os dos homens. Os ungulados fugiam em bandos, feito regimentos compostos unicamente de tambores. O conhecimento dos animais de que estava rodeado, daqueles que o ameaçavam e aos quais dava caça constitui o mais antigo saber do homem. Ele aprendeu a conhecê-los pelo ritmo de seu movimento. A escrita mais antiga que aprendeu a ler foi a dos rastros — uma espécie de notação rítmica que sempre existiu. Tal notação estampava-se por si só no chão macio, e o homem que a lia associava a ela o ruído que lhe dera origem.

Muitas dessas pegadas apareciam em grandes quantidades, bem juntas umas das outras. Mesmo a partir da contemplação serena de tais rastros, os homens, que originalmente viviam em bandos, puderam perceber a disparidade entre o seu pequeno número e o número gigantesco de algumas manadas. Estavam famintos e sempre atrás da caça; quanto mais caça, melhor para eles. Mas queriam também, eles próprios, ser mais. O senso do homem para sua própria multiplicação sempre foi forte. Não se há de entender por isso apenas aquilo a que, valendo-se de uma expressão insuficiente, chamam a ânsia de reprodução. Os homens querem ser mais agora, no lugar e momento específicos em que se encontram. O grande número de animais pertencentes a uma manada à qual davam caça e seu próprio número — que desejavam grande — misturaram-se em seu sentimento de um modo particular. A isso deram eles expressão num determinado estado de excitação conjunta ao qual chamo de massa rítmica ou palpitante.

Para atingi-lo, valeram-se, antes de mais nada, do ritmo de seus pés. Onde muitos caminham, outros caminham com eles. Os passos que, em rápida repetição, se juntam a outros passos simulam um número maior de homens. Não saem do lugar; na dança, persistem na mesma posição. O som de seus passos não se perde; eles se repetem e permanecem por muito tempo igualmente vívidos e soando alto. Substituem pela intensidade o que lhes falta em número. Se pisam com maior força, soam como se fossem mais. Exercem sobre todos os que estão próximos uma força de atração que não cede enquanto não param de dançar. Qualquer ser vivente que possa ouvi-los juntar-se-á a eles, e com eles permanecerá reunido. O natural seria que cada vez mais pessoas se juntassem aos que dançam. Contudo, como logo não resta mais ninguém, têm eles de simular o crescimento por si próprios, a partir de seu número reduzido. Movem-se como se fossem em número cada vez maior. Sua excitação cresce, intensificando até o delírio.

Mas de que maneira substituem aquilo que não podem ter em termos de crescimento numérico? O importante aí é que cada um faça a mesma coisa que os outros. Todos batem os pés, e o fazem de maneira idêntica. Todos agitam os braços e mexem a cabeça. A equivalência dos participantes ramifica-se na equivalência de seus membros. Tudo quanto se move num homem adquire vida própria — cada perna, cada braço vive como que por si só. Os membros todos fazem-se um. Estão bastante próximos entre si, e frequentemente repousam uns sobre os outros. À sua equivalência acresce-se, assim, sua densidade: densidade e igualdade tornam-se uma única e mesma coisa. Por fim, tem-se uma única criatura a dançar, munida de cinquenta cabeças, cem pernas e cem braços, os quais agem todos exatamente da mesma maneira, ou movidos por um mesmo propósito. No auge de sua excitação, esses homens sentem-se realmente como um só ser, e apenas o esgotamento físico os derruba.

Graças justamente ao ritmo que nelas impera, todas as massas palpitantes têm algo de parecido. O relato que, a seguir, pretende ilustrar uma tal dança data do primeiro terço do século XIX e trata da haka dos maoris da Nova Zelândia, originalmente uma dança de guerra.

Os maoris posicionavam-se numa linha prolongada, com quatro homens de profundidade. A dança, chamada haka, enchia de medo e pavor todo aquele que a presenciava pela primeira vez. Toda a sua sociedade — homens e mulheres, homens livres e escravos — misturava-se, sem levar em conta a posição hierárquica que cada um ocupava na comunidade. Os homens apresentavam-se totalmente nus, à exceção de uma cartucheira que traziam pendurada ao corpo. Todos encontravam-se armados de espingardas ou baionetas, as quais haviam atado às pontas das lanças ou a pedaços de pau. As jovens, inclusive as mulheres do chefe, participavam da dança com o busto despido.

O compasso do canto que acompanhava a dança era mantido com grande rigor. A mobilidade era espantosa. De repente, saltavam verticalmente do chão para o ar, todos exatamente ao mesmo tempo, como se uma única vontade animasse a totalidade dos dançarinos. No mesmo instante, brandiam suas armas e faziam caretas, e, graças aos cabelos longos que mulheres e homens costumam ostentar entre eles, assemelhavam-se a um exército de górgonas. Ao cair, batiam sonoramente no chão com ambos os pés ao mesmo tempo. Esse salto para o ar, eles o repetiam com frequência e velocidade cada vez maior.

Seus traços contorciam-se de todas as maneiras possíveis aos músculos de um rosto humano; cada nova careta era, de imediato, adotada por todos os participantes. Se um deles contraía o rosto tão fortemente como se o fizesse com uma tarraxa, os demais prontamente o imitavam. Giravam os olhos de um lado para o outro; às vezes, somente o branco dos olhos ficava visível; era como se, no instante seguinte, eles fossem saltar da órbita. A boca, abriam-na de uma orelha a outra. Ao mesmo tempo, todos esticavam as línguas inteiras para fora, de um modo que nenhum europeu seria capaz de imitar; o exercício prolongado e precoce os havia capacitado para tanto. Seus rostos ofereciam uma visão pavorosa; era um alívio desviar deles o olhar.

Cada membro de seus corpos agia separadamente — os dedos das mãos e dos pés, os olhos, as línguas, assim como braços e pernas. Estalavam a palma da mão ora sobre o lado esquerdo do peito ora sobre a coxa. O barulho de seu canto era de entorpecer os ouvidos, com mais de 350 pessoas tomando parte na dança. Pode-se imaginar o efeito que tal dança provocava em tempos de guerra; o quanto ela elevava a coragem e o quanto intensificava ao máximo a aversão entre as duas partes.

O girar dos olhos e o estirar das línguas são sinais do enfrentamento e do desafio. Contudo, embora a guerra seja, de um modo geral, assunto dos homens — e, aliás, dos homens livres —, todos se entregam à excitação da haka. A massa, nesse caso, não reconhece diferenças de sexo, idade ou posição: todos agem como iguais. O que, todavia, distingue essa dança de outras de propósito semelhante é uma ramificação particularmente extrema da igualdade. É como se cada corpo fosse desmembrado em todas as suas partes — não apenas em braços e pernas, como frequentemente ocorre, mas também em dedos das mãos e dos pés, em línguas e olhos, de modo que as línguas todas se juntam e fazem, a um só tempo, exatamente o mesmo. Ora são todos os dedos dos pés, ora todos os olhos a igualar-se numa única e mesma empreitada. Os homens, em cada minúscula parte de seu corpo, são tomados por essa igualdade, a qual é sempre exibida numa ação que se intensifica de maneira violenta. A visão de 350 pessoas saltando juntas para o alto, esticando suas línguas e girando seus olhos todas ao mesmo tempo só pode causar uma impressão inexpugnável de unidade. A densidade é não apenas uma densidade de pessoas, mas também de cada um de seus membros em particular. Poder-se-ia pensar que os dedos e as línguas, ainda que não fizessem parte dos homens, reunir-se-iam e combateriam por si sós. O ritmo da haka faz valer cada uma dessas igualdades isoladamente. Juntas, e em sua intensificação, elas são insuperáveis.

E isso porque tudo se passa tendo por premissa que será visto: o inimigo observa. A intensidade da ameaça conjunta é que faz a haka. Mas, uma vez principiada a dança, ela se faz mais do que isso. Exercitada desde a infância, a haka possui muitas formas diferentes e é exibida em todas as ocasiões possíveis. Muitos viajantes já receberam as boas-vindas por intermédio dela. A uma tal ocasião devemos o relato citado acima. Quando uma tropa amistosa reúne-se com outra, ambas saúdam-se por intermédio de uma haka, e a seriedade de tal saudação é tanta que um espectador inocente temerá a todo instante o eclodir da batalha. Nas solenidades fúnebres em honra de um grande chefe, seguindo-se às fases da mais violenta lamentação e automutilação — conforme manda o costume entre os maoris —, e após uma refeição solene e bastante farta, subitamente todos se levantam de um salto, tomam de suas espingardas e põem-se em formação para a haka.

Nessa dança, na qual todos podem tomar parte, a tribo percebe-se a si própria na condição de massa. Valem-se dela sempre que sentem a necessidade de fazer-se massa e apresentar-se aos outros como tal. Na perfeição rítmica que atingiu, a haka cumpre com segurança o seu propósito. Graças a ela, a unidade dos maoris jamais foi seriamente ameaçada a partir do interior da tribo.


continua página 48...
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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (O Ritmo)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.


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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg

Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim

Título original Masse und Macht


"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Ballet Nacional de España - 40 Aniversario Ballet Nacional de España

Romance (Galicia)



cantar
dançar 
tocar 
           com os pés
as mãos brincando
esvoaçando o colorido do folclore
os corpos
                a música
                  o baile
a morena
                              o sapateado
          as emoções
o romance
                               saltitando






#BNEHistory 
O folclore espanhol, rico e variado, não é apenas o coração da nossa música clássica e da nossa dança, mas também uma expressão artística de primeira quando cuidada. E no Romance Juanjo Linares, um dos maiores guardiões do folclore espanhol nas últimas décadas; e Paco Azorín, o maior expoente da dança do jota, vestiu este ramo da nossa dança. O Ballet Nacional de Espanha, na celebração do seu 40º aniversário, volta a apresentar a Galiza, um poderoso duo acompanhado pelo grupo de dança, no qual se estiliza a dança desta região do noroeste.

Coreografía: Juanjo Linares
Música: Eliseo Parra
Escenografía: Manuel Mora
Figurines: Juanjo Linares modificados por Nicolas Vaudelet para la producción Sorolla
Iluminación: Carlos Guerrero, Rafael Yunta
Realización de vestuario: Peris
Realización de decorados: Enrique López
Calzado: Gallardo

Elenco:
Pareja principal: María Fernández, Carlos Sánchez
Antonio Jiménez, Alfredo Mérida, Pilar Arteseros, Patricia Fernández, Sara Arévalo, Estela Alonso, Alba Expósito, Irene Tena, María Martín, Vanesa Vento, Carla Prado, Alba Dusmet, Marina Bravo, Antonio Jiménez, Álvaro Marbán, Alfredo Mérida, Juan Pedro Delgado, Adrián Maqueda, Pedro Ramírez, Albert Hernández, Victor Martín, Daniel Ramos, Axel Galán

Músicos:
Dirección musical: Manuel Coves
Orquesta: Orquesta de la Comunidad de Madrid (ORCAM)
Artista invitado: Eliseo Parra, voz, arpa de boca y pandero
Yolanda Criado, Paloma González e Isabel Martín, voces
Xavi Lozano, gaita

Vídeo: Madrid, 8 de diciembre de 2018, Grabación: María Salgado.

Estreno absoluto por el Ballet Nacional de España el 18 de septiembre de 1996, Teatro de la Zarzuela, Madrid.


Tiago Marques - Violão

II. Valseana - Sérgio Assad em Ré


Recital de Violão Solo por Tiago Marques
(um canoense da Mathias Velho)

Violão: Agustín Enriquez
Local: Casa da Música
Data: 08/05/2022'






Enrique & Agustin Enriquez Guitars





Guitarra clássica artesanal. 
Fabricação na oficina de uma família de fabricantes de guitarras




Entre os habitantes de Casasimarro (Cuenca) o ofício de guitarrista é praticado desde 1755. A família de Vicente Carrillo Casas é uma das protagonistas desta arte. Depois de oito gerações de guitarrmakers, Vicente continuava em 2005 com a tradição e o comércio familiar da guitarra artesanal.

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Sérgio Assad (Mococa, 26 de dezembro 1952) é um arranjador, compositor e violonista clássico brasileiro.

Sua família é de origem libanesa. Segundo Filho do casal Angelina e Jorge Assad. Com Odair, seu irmão mais jovem, deu vida ao Duo Assad, chamado pela crítica de "um dos principais duos de violão clássico do mundo", e tocam peças de Marlos Nobre, e também clássicos como Rameau, Scarlatti, Johann Sebastian Bach, François Couperin entre outros.






"BREVIDADE Nº3: FELIZ" 
(Sérgio Assad)





Oi pessoal! Nessa quinta feira, 29/06, vai rolar um show inédito do Tiago! É um espetáculo novo de música de concerto brasileira para violão e violoncelo com arranjos inéditos do Tiago Marques e Samara Moraes, o Porto Madeira Duo! 


Pra quem não conhece muito da música brasileira de concerto é uma oportunidade bem bacana pra começar a ver essa faceta da música do Brasil.  Além de ajudar dois músicos (e uma produtora hehe) jovens! 

O que? Espetáculo Casa de Villa 
Quando? Quinta feira 29/06
Horário? 20h 
Local? Centro Cultural Santa Casa 
Ingressos: 20,00 (meia) e 40,00 (inteira) pelo sympla (link abaixo) 


https://www.sympla.com.br/evento/porto-madero-duo-apresenta-casa-de-villa/2030665

Memórias do Cárcere - Viagens 11

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 


11


UM dia capitão Lobo entrou carrancudo e falou-me: 

.– O senhor ontem cometeu uma falta muito grave. Uma falta grave, capitão, respondi aturdido. Não entendo. 

– Muito grave. Na sua chegada eu lhe disse que usasse o banheiro dos oficiais. O senhor ontem tomou banho no banheiro dos sargentos. 


Era verdade, mas achei graça na repreensão e sosseguei: – Ora, capitão! Foi essa a falta grave? Julguei que se tratasse de coisa séria, assustei-me. 

O oficial acolheu minha resposta com indignação muda, repetiu depois o que havia dito, enérgico. Tentei justificar-me – Encontrei um banheiro ocupado e entrei noutro.

– O senhor não podia fazer isso. 

Esforcei-me por manifestar que, no meu parecer, culpa seria utilizar um banheiro de categoria superior ao permitido a mim, um banheiro de generais, por exemplo; contentando me com um de sargentos, não praticava nenhum ato censurável. Mas o meu parecer nada valia: responsabilizavam-me por uma infração, desenvolviam-na, e era inútil querer defender-me. Quanto mais me desculpava mais o capitão se arreliava evidentemente a minha resistência ofendia as normas Em certo ponto, finda a paciência, bradou: 

– Se o senhor fosse militar, seria punido e compreenderia o que fez. 

.– É possível.

– Dificuldade meter qualquer coisa na cabeça desses paisanos, rosnou. 

.Em seguida propôs: 

.– Se não está satisfeito aqui, posso arranjar-lhe transferência para uma prisão de sargentos. 

– Obrigado, não se incomode. 

Surpreendente nesse diálogo foi que de modo nenhum me susceptibilizei. Em geral me envergonhava por objeções vagas, qualquer dito que revelasse a mais leve censura me tocava melindres bestas. Talvez isso fosse consequência de brutalidades e castigos suportados na infância: encabulava sem motivo e andava a procurar intenções ocultas em gestos e palavras. O certo é que em tempo de adulto não me lembrava de ter ouvido semelhante linguagem. Pois o que ela me produziu foi um desejo enorme de rir. Achava-me em situação realmente singular, advertido como uma criança, e isto não me vexava, talvez por julgar aquilo estapafúrdio, talvez por estimar a franqueza nua. Se me falassem lá fora de tal maneira, provavelmente me zangaria, mas não sentiria o acanhamento que avermelha o rosto e esmorece o coração. De fato o que mais nos choca não é a sinceridade, às vezes impertinente: é a arranhadela feita com mão de gato, a perfídia embrulhada num sorriso, a faca de dois gumes, alfinetes espalhados numa conversa. Agra não podia molestar-me.

Finda a surpresa, contida a explosão de riso motivada pela extravagância aparente, aceitei a reprimenda, considerei que devia existir uma razão para ela. Haveria bazófia nisso, vaidade por me alojarem perto da gente de cima? Creio que não: tinha ido misturar-me involuntariamente aos outros, arriscando-me a degradar-me. Essa degradação era convencional. De nenhum modo me supunha diminuído na companhia de sargentos. Numa prisão deles, a alguns passos de distância, agasalhavam-se um médico e um advogado – e seria tolice imaginar-me com mais direitos que esses_ homens. Ofereciam-me na verdade uma cela confortável, mas isto era casual e, para ser franco, nunca desejei conforto: suponho até que ele nos prejudica. Possivelmente eu devia essa vantagem, esse acidente, à influência de alguém desejoso de beneficiar-me: capitão Lobo, neste caso: o despropósito dele era uma indicação. E também era presumível que, deixando-me na superfície algum tempo, quisessem dar-me um súbito mergulho nas profundidades, submeter-me a variações dolorosas. Mais tarde esta segunda hipótese pareceu confirmar-se, embora eu hesite em afirmar que na modificação operada tenha havido um desígnio. Provavelmente não houve: a nossa presunção é que nos leva a enxergar nos casos intuitos referentes a nós. Numa perseguição generalizada, éramos insignificâncias, miudezas supressas do organismo social, e podíamos ser arrastados para cima e para baixo, sem que isto representasse inconveniência. Informações vagas e distantes, aleivosias, o rancor de um inimigo, deturpações de fatos de repente nos causariam choques e mudanças. Dependíamos disso. E também dependíamos do humor dos nossos carcereiros. Aquele que me falava, irritado, era um homem justo:

– O senhor não podia fazer isso. Dificuldade meter qualquer coisa na cabeça desses paisanos. 

Evidentemente eu me comportara mal: introduzira-me num lugar reservado a outros indivíduos, comprometera a ordem. Inútil argumentar que me reduzia por gosto: aquilo não me pertencia. E estava acabado – era como se eu tivesse agarrado o quepe ou o cinturão de um sargento. Com certeza foram essas considerações que me induziram a suportar resignado a objurgatória. Realmente ela viria de qualquer modo: a minha resignação tinha pouco valor, mas evitou-me constrangimento, idéias de revolta, ingratidão. Um homem justo.

– Se o senhor fosse militar, seria punido e compreenderia o que fez.  

Esta frase, porém, se referia à justiça da tarimba, que prende um sujeito para convencê-lo.

Garantiria eu que, fora daí, capitão Lobo era um homem justo? Não garantiria. Tanto quanto posso julgar, a justiça dele se assemelhava à de Benon Maia Gomes, à do bacharel José da Rocha, deputado e usineiro. Sem investigação, o primeiro desses cavalheiros me reprovara os intentos desordeiros; o segundo se afastara resmungando o fastio: –“Comunista!” Desconhecendo-me o interior, capitão Lobo dissera: –“Não concordo com as suas ideias, mas respeito-as.” E mandara buscar em casa, para nós, roupa de cama e toalhas. Porque se capacitava ele de que eu merecia tanta condescendência? Juízo precipitado, como o do agrônomo e o do bacharel, embora as atitudes se dessemelhassem. Se eu fosse um elemento pernicioso, haveria grande erro naquela generosidade Na semana anterior ali se ignorava completamente a minha existência. Quem dizia que eu não me dedicava então a perigosos exercícios conspirativos? Nem eu próprio dizia isso: guardava silêncio, evitava defender-me de acusações imprecisas. Fora do regulamento, pois capitão Lobo se desviava da justiça. E era isso talvez que me prendia a ele. me fazia baixar a cabeça, sem me considerar humilhado, ouvindo-lhe os propósitos rabugentos. Desejo de ir além das aparências, tentar descobrir nas pessoas qualquer coisa imperceptível aos sentidos comuns. Compreensão de que as diferenças não constituem razão para nos afastarmos, nos odiarmos. Certeza de que não estamos certos, aptidão para enxergarmos pedaços de verdades nos absurdos mais claros. Necessidade de compreender, e se isto é impossível, a pura aceitação do pensamento alheio.   

– Não concordo com as suas ideias, mas respeito-as. Irreflexão discordar do que não foi expresso? Em todo o caso tolerância, uma admirável tolerância imprudente que, sem exame, tudo chega a admitir. Era o que me levava a admirar capitão Lobo. Isso e a suspeita de me achar diante de uma criatura singular. Observava-lhe a máscara expressiva, esforçava-me também por ultrapassá-la, divisar lá no íntimo embriões de atos generosos. 

continua página 50....
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Leia também:

Memórias do Cárcere - Viagens 11
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.