domingo, 30 de abril de 2023

Ambiente romântico de cafeteria - jazz instrumental relaxante

Ambiente relaxante de café


Belos e aconchegantes aromas
de cafés 
 o mundo
 do jazz 
melodias suaves
entre 
e tome uma doce xícara de café  
relaxe 
                na literatura
 paz
leia-se
com arte
a vida como ela quer  

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (9.2) - O pacto

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(9.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío




O pacto, entretanto, não fez com que Fernanda se incorporasse à família. Em vão Úrsula insistiu para que ela tirasse a gola de lã com que se levantava quando tinha feito amor e que provocava os cochichos dos vizinhos. Não conseguiu convencê-la a se utilizar do banheiro, ou do vaso noturno, e a vender o seu peniquinho de ouro ao Coronel Aureliano Buendía para que o transformasse em peixinhos. Amaranta se sentiu tão incomodada com a sua dicção viciosa e com o seu hábito de usar um eufemismo para designar cada coisa, que diante dela sempre falava na língua do p.

Espetapá — dizia — épé daspas quepê têmpêm nopojopô dapa própopriapá merperdapá.

Um dia, irritada com a brincadeira, Fernanda quis saber o que é que Amaranta estava dizendo e ela não usou de eufemismos para lhe responder.

— Estou dizendo — disse — que você é das que confundem o cu com as têmporas.

A partir daquele dia não tornaram a se falar. Quando as circunstâncias obrigavam, mandavam-se recados ou se diziam as coisas indiretamente. Apesar da visível hostilidade da família, Fernanda não renunciou à vontade de impor os hábitos de seus antepassados. Acabou com o costume de comer na cozinha e quando cada um tinha fome, e impôs a obrigação de o fazer em horas certas, na mesa grande da saia de jantar arrumada com toalhas de linho e com os candelabros e a baixela de prata. A solenidade de um ato que Úrsula sempre tinha considerado como o mais simples da vida cotidiana criou um ambiente de formalidade contra o qual se rebelou primeiro que ninguém o calado José Arcadio Segundo. Mas o costume se impôs, assim como o de rezar o rosário antes do jantar, e chamou tanto a atenção dos vizinhos que muito em breve correu o boato de que os Buendía não se sentavam à mesa como os outros mortais, mas que tinham transformado o ato de comer numa missa solene. Até as superstições de Úrsula, surgidas mais por inspiração momentânea que da tradição, entraram em conflito com as que Fernanda herdara dos pais e que estavam perfeitamente definidas e catalogadas para cada ocasião. Enquanto Úrsula desfrutou do pleno domínio das suas faculdades, subsistiram alguns dos antigos hábitos e a vida da família conservou uma certa influência das suas intuições, mas quando perdeu a vista e o peso dos anos a desterrou para um canto, o círculo de rigidez iniciado por Fernanda desde o momento em que chegara terminou por se fechar completamente, e ninguém mais além dela determinou o destino da família. O negócio de doces e animaizinhos de caramelo, que Santa Sofía de la Piedad mantinha por vontade de Úrsula, era considerado por Fernanda como uma atividade indigna, e não tardou em liquidá-lo. As portas da casa, abertas de par em par desde o amanhecer até a hora de dormir, foram fechadas durante a sesta, com o pretexto de que o sol esquentava os quartos, e finalmente se fecharam para sempre. O ramo de babosa e o pão que estavam pendurados no marco desde os tempos da fundação foram substituídos por um nicho do Coração de Jesus. O Coronel Aureliano Buendía chegou a perceber aquelas mudanças e previu as suas consequências. “Estamos virando gente fina”, protestava. 

“Neste ritmo, vamos acabar lutando outra vez contra o regime conservador, mas agora para colocar um rei no lugar.” Fernanda, com muito tato, procurou não ir de encontro a ele. Incomodava-a no íntimo o seu espírito independente, a sua resistência a toda forma de rigidez social. Exasperavam-na as suas canecas de café às cinco da manhã, a desordem da sua oficina, a sua manta esfiapada e o seu costume de se sentar na porta da rua ao entardecer. Teve que permitir, porém, essa peça solta do mecanismo familiar, porque tinha a certeza de que o velho coronel era um animal apaziguado pelos anos e pela desilusão, que num assomo de rebeldia senil poderia arrancar os cimentos da casa. Quando o marido decidiu pôr no primeiro filho o nome do bisavô, ela não se atreveu a fazer oposição, porque só tinha chegado há um ano. Mas quando nasceu a primeira filha, expressou sem reservas a sua determinação de que se chamasse Renata, como a sua mãe. Úrsula tinha resolvido se chamaria Remedios. Ao fim de uma tensa controvérsia qual Aureliano Segundo atuou como mediador divertido batizaram-na com o nome de Renata Remedios, mas Fernanda continuou chamando a menina de Renata puramente quanto que a família do marido e todo o povo continuou a chamá-la de Meme, apelido de Remedios.

No princípio, Fernanda não falava da sua família, com o tempo começou a idealizar o pai. Falava dele na como de um ser excepcional que havia renunciado a toda espécie de vaidade e que se estava transformando em santo. Aureliano Segundo, espantado com o endeusamento repentino do sogro, não resistia à tentação de fazer pequenas zombarias pelas costas da esposa. O resto da família seguiu o exemplo. A própria Úrsula, que era extremamente zelosa da monja familiar e que sofria em segredo com os atritos domésticos, permitiu-se dizer certa vez que o pequeno tataraneto tinha assegurado o seu futuro pontifical, porque era “neto de santo e filho de rainha com criador de gados”. Apesar daquela sorridente conspiração, as crianças se acostumaram a pensar no avô como num ser lendário, que lhes transcrevia versos piedosos nas cartas e lhes mandava em cada Natal caixote de presentes que mal passava na porta da rua para entrar. Eram, realmente, os últimos restos do patrimônio senhorial. Com eles se construiu, no quarto das crianças, um altar com santos de tamanho natural, cujos olhos de vidro lhes imprimiam uma inquietante aparência de vida e cujas roupas de fazenda, artisticamente bordadas, eram melhores que as usadas em qualquer circunstância por qualquer habitante de Macondo. Pouco a pouco, o esplendor funerário da antiga e gelada mansão se foi trasladando para a luminosa casa dos Buendía. “Já nos mandaram todo o cemitério familiar”, comentou Aureliano Segundo em certa ocasião. “Agora só estão faltando os salgueiros e as lousas sepulcrais.” Embora nos caixotes nunca tivesse chegado nada que servisse para as crianças brincarem, estas passavam o ano inteiro esperando dezembro, porque afinal os antiquados e sempre imprevisíveis presentes constituíam uma novidade na casa. No décimo Natal, quando o pequeno José Arcadio já se preparava para viajar para o seminário, chegou com maior antecedência do que nos anos anteriores o enorme caixote do avô, muito bem pregado e impermeabilizado com breu e endereçado com o habitual letreiro de caracteres góticos à mui ilustre senhora dona Fernanda del Carpio de Buendía. Enquanto ela lia a carta no quarto, as crianças se apressaram em abrir a caixa. Ajudados como de costume por Aureliano Segundo, rasparam os lacres de breu, despregaram a tampa, tiraram a serragem protetora e encontraram dentro uma comprida arca de chumbo fechada com parafusos de cobre. Aureliano Segundo tirou os oito parafusos diante da impaciência das crianças e mal teve tempo de soltar um grito e afastá-las para o lado quando levantou a tampa de chumbo e viu D. Fernando vestido de preto e com um crucifixo no peito, com a pele arrebentada em bolhas fedorentas e se cozinhando a fogo lento num espumoso e borbulhante caldo de pérolas vivas. Pouco depois do nascimento da menina, anunciou-se o inesperado jubileu do Coronel Aureliano Buendía, ordenado pelo Governo para celebrar um novo aniversário do Tratado de Neerlândia. Foi uma determinação tão incongruente com a política oficial que o coronel se pronunciou violentamente contra ela e recusou a homenagem. 

“É a primeira vez que ouço a palavra jubileu”, dizia. “Mas seja o que for que ela signifique, não pode deixar de ser zombaria.” A estreita oficina de ourivesaria se encheu de emissários. Voltaram, muito mais velhos e muito mais solenes, os advogados de terno escuro que em outra época esvoaçavam como corvos em torno do coronel. Quando este os viu aparecer, já que em outros tempos chegavam para atrapalhar a guerra, não pôde suportar o cinismo dos seus panegíricos. Ordenou-lhes que o deixassem em paz, insistiu no fato de ele não ser um prócer da nação como eles diziam, e sim um artesão sem recordações, cujo único sonho era morrer de cansaço no esquecimento e na miséria dos seus peixinhos de ouro. O que mais o indignou foi a notícia de que o próprio Presidente da República pensava em assistir aos atos de Macondo para lhe oferecer a Ordem do Mérito. O Coronel Aureliano Buendía mandou-lhe dizer, palavra por palavra, que esperava com verdadeira ansiedade aquela tardia mas merecida ocasião de lhe dar um tiro, não para cobrar as arbitrariedades e anacronismos do seu regime, mas por faltar com o respeito a um velho que não fazia mal a ninguém. Foi tal a veemência com que pronunciou a ameaça que o Presidente da República cancelou a viagem na última hora e mandou a condecoração por um representante pessoal. O Coronel Gerineldo Márquez, assediado por pressões de toda espécie, abandonou o seu leito de paralítico para persuadir o seu antigo companheiro de armas. Quando este viu aparecer a cadeira de balanço carregada por quatro homens e viu sentado nela, entre grandes almofadas, o amigo que partilhara das suas vitórias e infortúnios desde a juventude, não duvidou por um só instante de que fazia aquele esforço para lhe expressar a sua solidariedade. Mas quando soube do verdadeiro propósito daquela visita, fez com que o retirassem da oficina. “Tarde demais eu me convenço, disse a ele, de que teria feito um grande favor a você se tivesse deixado que o fuzilassem.”

De modo que o jubileu se realizou sem a presença de nenhum dos membros da família. Foi por acaso que coincidiu com a semana do carnaval, mas ninguém conseguiu tirar da cabeça do Coronel Aureliano Buendía a ideia obstinada de que também aquela coincidência tinha sido prevista pelo governo para reforçar a crueldade da zombaria. Da oficina solitária ouviu as músicas marciais, as salvas de artilharia, os sinos de Te Deum e algumas frases dos discursos pronunciados defronte da casa quando batizaram a rua com o seu nome. Seus olhos se umedeceram de indignação, de raivosa impotência, e pela primeira vez desde a derrota doeu-lhe não possuir mais os arroubos da juventude para promover uma guerra sangrenta que apagasse até o último vestígio do regime conservador. Ainda não se haviam extinguido os ecos da homenagem quando Úrsula bateu na porta da oficina. 

— Não aborreçam — ele disse. — Estou ocupado. 

— Abra — Úrsula insistiu com voz cotidiana. — Isto não tem nada que ver com a festa.

Então o Coronel Aureliano Buendía tirou a tranca e viu na porta dezessete homens dos mais variados aspectos, de todos os tipos e cores, mas todos com um ar solitário que teria bastado para identificá-los em qualquer lugar da terra. Eram os seus filhos. Sem combinar nada, sem se conhecerem, tinham chegado dos mais distantes lugares do litoral, cativados pelo barulho do jubileu. Todos usavam com orgulho o nome de Aureliano e o sobrenome da mãe. Durante os três dias que permaneceram na casa, para a satisfação de Úrsula e o escândalo de Fernanda, ocasionaram transtornos incríveis. Amaranta procurou entre antigos papéis a caderneta de contas onde Úrsula anotara os nomes e as datas de nascimento e batismo de todos, e acrescentou no espaço correspondente a cada um o domicílio atual. Aquela lista teria permitido fazer uma recapitulação de vinte anos de guerra. Poder-se-iam reconstituir com ela os itinerários noturnos do coronel, desde a madrugada em que saiu de Macondo à frente de vinte e um homens para uma rebelião quimérica até que regressou pela última vez embrulhado na manta dura de sangue. Aureliano Segundo não perdeu a ocasião de festejar os primos com uma estrondosa farra de champanha e acordeão que se interpretou como um atrasado ajuste de contas com o carnaval malogrado pelo jubileu. Reduziram a cacos metade da louça, quebraram as roseiras perseguindo um touro para o mantear, mataram galinhas a tiros, obrigaram Amaranta a dançar as valsas tristes de Pietro Crespi, conseguiram fazer Remedios, a bela, vestir calças de homem para subir no pau-de-sebo e soltaram na sala de jantar um leitão lambuzado de gordura que nauseou Fernanda, mas ninguém lamentou a sua indisposição porque a casa estremeceu com um terremoto de boa saúde. O Coronel Aureliano Buendía, que a princípio os recebeu com desconfiança, e até pôs em dúvida a filiação de alguns, divertiu-se com as suas loucuras e antes que fossem embora presenteou cada um com um peixinho de ouro. Até o esquivo José Arcadio Segundo lhes ofereceu uma tarde de rinha, que esteve quase por terminar em tragédia, porque vários dos Aurelianos eram tão experimentados em transações de galos que descobriram no primeiro golpe de vista as trapaças do Padre Antonio Isabel. Aureliano Segundo, que viu as ilimitadas perspectivas de farra que oferecia aquela animada parentela, decidiu que todos ficariam para trabalhar com ele. O único que aceitou foi Aureliano Triste, um mulato grande, com os ímpetos e o espírito explorador do avô, que já havia tentado a sorte em meio mundo e para quem tanto fazia ficar em qualquer parte. Os outros, embora ainda fossem solteiros, consideravam resolvido o seu destino. Eram todos artesãos hábeis, homens de suas casas, gente de paz. Na quarta-feira de cinzas, antes que voltassem a se dispersar pelo litoral, Amaranta conseguiu que vestissem roupas de domingo e a acompanhassem à igreja. Mais divertidos que piedosos, deixaram-se conduzir até o altar onde o Padre Antonio Isabel lhes pôs na testa a cruz de cinza. De volta a casa, quando o menor quis limpar a testa, descobriu que a mancha era indelével e que também o eram as de seus irmãos. Experimentaram com água e sabão, com terra e bucha, e por último com pedra-pomes e água sanitária, e não conseguiram apagar a cruz. Em compensação, Amaranta e os outros que foram à missa tiraram-na sem dificuldade. “Assim vão melhor”, despediu-os Úrsula. “De agora em diante ninguém poderá confundi-los.” Foram a galope, precedidos pela banda de música e soltando foguetes, e deixaram no povo a impressão de que a estirpe dos Buendía tinha sementes para muitos séculos. Aureliano Triste, com a sua cruz de cinza na testa, instalou nos arrabaldes do povoado a fábrica de gelo com que sonhara José Arcadio Buendía nos seus delírios de inventor.

Meses depois da sua chegada, quando já era conhecido e apreciado, Aureliano Triste andava procurando uma casa para mandar vir sua mãe e uma irmã solteira (que não era filha do coronel) e se interessou por um casarão decrépito que parecia abandonado numa esquina da praça. Perguntou de quem era. Alguém lhe disse que era uma casa sem dono, onde em outros tempos vivera uma viúva solitária que se alimentava de terra e cal das paredes e que nos seus últimos anos só fora vista duas vezes na rua, com um chapéu de minúsculas flores artificiais e uns sapatos cor de prata antiga, quando atravessava a praça até a agência do correio para enviar cartas para o Bispo. Disseram-lhe que a sua única companhia fora uma criada desalmada que matava cães e gatos e quanto animal penetrava na casa, e jogava os cadáveres no meio da rua para aborrecer o povo com a fedentina da putrefação. Tanto tempo passou desde que o sol mumificara a carcaça vazia do último animal que todo mundo dava por certo que a dona da casa e a criada haviam morrido muito antes de que terminassem as guerras e que se a casa ainda estava de pé era porque não tinham tido nos últimos anos um inverno rigoroso ou um vento demolidor. As dobradiças partidas pela ferrugem, as portas mal sustentadas pelo acúmulo de teias de aranha, as janelas soldadas pela umidade e o chão arrebentado pelo mato e pelas flores silvestres, em cujas gretas se aninhavam os lagartos e toda espécie de insetos, pareciam confirmar a versão de que ali não estivera um ser humano pelo menos há meio século. Ao impulsivo Aureliano Triste não eram necessárias tantas provas para agir. Forçou com o ombro a porta principal e a carcomida armação de madeira caiu sem estrépito, num calado cataclismo de pó e terra de ninhos de cupim. Aureliano Triste permaneceu no umbral, esperando que se desvanecesse a névoa, e então viu no centro da sala a esquálida mulher ainda vestida com roupas do século anterior, com umas poucas fibras amarelas no crânio pelado e com uns olhos grandes, ainda belos, nos quais se haviam apagado as últimas estrelas da esperança, e a pele do rosto gretada pela aridez da solidão. Comovido pela visão do outro mundo, Aureliano Triste mal percebeu que a mulher estava apontando para ele uma antiquada pistola militar. 

— Perdão — murmurou.

Ela permaneceu imóvel no centro da sala entulhada de trastes, examinando palmo a palmo o gigante de ombros quadrados com uma tatuagem de cinza na testa e através da neblina da poeira viu-o na neblina de outros tempos, com uma espingarda de dois canos trançada nas costas e uma fieira de coelhos na mão. 

— Pelo amor de Deus — exclamou em voz baixa — não é justo que agora me venham com esta lembrança!

— Quero alugar a casa — disse Aureliano Triste.

A mulher então levantou a pistola, apontando com pulso firme a cruz de cinza e armou o gatilho com uma determinação inapelável.

— Vá embora — ordenou. 

Naquela noite, durante o jantar, Aureliano Triste contou o episódio à família e Úrsula chorou de consternação. “Santo Deus”, exclamou apertando a cabeça entre as mãos. “Ainda está viva!” O tempo, as guerras, as incontáveis desgraças cotidianas tinham feito com que se esquecesse de Rebeca. A única que não tinha perdido por um só instante a consciência de que estava viva, apodrecendo na sua sopa de larvas, era a implacável e envelhecida Amaranta. Pensava nela ao amanhecer, quando o gelo do coração a acordava na cama solitária, e pensava nela quando ensaboava os seios murchos e o ventre macilento, e quando vestia as brancas anáguas e camisetas de cambraia da velhice, e quando trocava na mão a venda negra da terrível expiação. Sempre, a toda hora, adormecida e acordada, nos momentos mais sublimes e nos mais abjetos, Amaranta pensava em Rebeca, porque a sua solidão havia selecionado as lembranças e incinerado as entorpecentes montanhas de lixo nostálgico que a vida acumulara no seu coração e havia purificado, magnificado e eternizado as outras, as mais amargas. Por ela é que Remedios, a bela, sabia da existência de Rebeca. Cada vez que passavam pela casa decrépita, contava-lhe um incidente ingrato, uma fábula de opróbrio, tentando desta forma fazer com que o seu extenuante rancor fosse partilhado pela sobrinha e, por conseguinte, prolongado além da morte, mas não conseguiu realizar os seus propósitos porque Remedios era imune a todo tipo de sentimentos apaixonados e mais ainda aos alheios. Úrsula, em compensação, que sofrera um processo contrário ao de Amaranta, evocou Rebeca com uma memória limpa de impurezas, pois a imagem da pobre criatura que trouxeram à sua casa com o saco dos ossos dos seus pais prevaleceu sobre a ofensa que a fez indigna de continuar vinculada ao tronco familiar. Aureliano Segundo resolveu que era preciso trazê-la para casa e protegê-la, mas o seu bom propósito foi frustrado pela inquebrantável intransigência de Rebeca, que tinha necessitado de muitos anos de sofrimento e miséria para conquistar os privilégios da solidão e não estava disposta a renunciar a eles em troca de uma velhice perturbada pelos falsos encantos da misericórdia. Em fevereiro, quando voltaram os dezesseis filhos do Coronel Aureliano Buendía, ainda marcados com a cruz de cinza, Aureliano Triste lhes falou de Rebeca no barulho da farra e em meio dia restauraram a aparência da casa, trocaram portas e janelas, pintaram a fachada de cores alegres, reforçaram as paredes e espalharam cimento novo no chão, mas não obtiveram autorização para continuar as reformas no interior. Rebeca nem sequer apareceu na porta. Deixou que terminassem a aturdida restauração e logo fez um cálculo dos custos e mandou para eles por Argénida, a velha criada que continuava a lhe fazer companhia, um punhado de moedas tiradas de circulação desde a última guerra, e que Rebeca acreditava que continuassem válidas. Foi então que se percebeu a que ponto inconcebível chegara a sua desvinculação com o mundo e se compreendeu que seria impossível resgatá-la da sua obstinada clausura enquanto lhe restasse um sopro de vida. 

Na segunda visita que os filhos do Coronel Aureliano Buendía fizeram a Macondo, outro deles, Aureliano Centeno, ficou trabalhando com Aureliano Triste. Era um dos primeiros que tinham vindo à casa para o batismo, e Úrsula e Amaranta se lembravam muito bem dele, porque tinha espedaçado em poucas horas quantos objetos quebráveis haviam passado pelas suas mãos. O tempo tinha moderado o seu primitivo impulso de crescimento e era um homem de estatura mediana marcado com cicatrizes de varíola, mas o seu assombroso poder de destruição manual continuava intacto. Tantos pratos quebrou, inclusive sem tocá-los, que Fernanda optou por comprar para ele um serviço de folha-de-flandres antes que liquidasse com as últimas peças da sua louça cara, e mesmo os resistentes pratos metálicos em pouco tempo já estavam sem brilho e desbeiçados. Compensando, porém, aquele poder irremediável, exasperante inclusive para ele mesmo, possuía uma cordialidade que despertava a confiança imediata e uma estupenda capacidade de trabalho. Em pouco tempo incrementou de tal modo a produção de gelo que estourou o mercado local e Aureliano Triste teve que pensar na possibilidade de estender o negócio para as outras povoações do pantanal. Foi então que imaginou o passo decisivo não só para a modernização da sua indústria, como também para vincular a população ao resto do mundo. 

— E preciso trazer a estrada de ferro — disse. 

Era a primeira vez que se ouvia a expressão em Macondo. Diante do desenho que Aureliano Triste traçou na mesa, e que era um descendente direto dos esquemas com que José Arcadio Buendía ilustrou o projeto da guerra solar, Úrsula confirmou a sua impressão de que o tempo estava dando voltas num círculo vicioso. Mas ao contrário do avô, Aureliano Triste não perdia o sono nem o apetite, nem atormentava ninguém com crises de mau humor, mas concebia os projetos mais desatinados como possibilidades imediatas, elaborava cálculos racionais sobre custo e prazo e os levava a cabo sem intervalos de exasperação. Aureliano Segundo, que se tinha alguma coisa do bisavô e não tinha do Coronel Aureliano Buendía era uma absoluta impermeabilidade para o desengano, soltou o dinheiro para trazer a estrada de ferro com a mesma leviandade com que o soltara para a absurda companhia de navegação do irmão. Aureliano Triste consultou o calendário e partiu na quarta-feira seguinte para estar de volta quando passassem as chuvas. Não se teve mais notícias dele. Aureliano Centeno, transbordado pelas abundâncias da fábrica, já tinha começado a experimentar a elaboração do gelo com base em sucos de frutas no lugar da água, e sem o saber, sem programar, imaginou os fundamentos essenciais da invenção dos sorvetes, pensando desta forma diversificar a produção de uma empresa que supunha sua, porque o irmão não dava sinais de regresso depois de passarem as chuvas e transcorrer um verão inteiro sem notícias. No início do outro inverno, entretanto, uma mulher que lavava roupa no rio na hora de mais calor atravessou a rua principal fazendo alarido, num alarmante estado de comoção.

— Vem aí — conseguiu explicar — um negócio horrível como uma cozinha arrastando uma aldeia.

Nesse momento a população foi sacudida por um apito de ressonâncias pavorosas e uma descomunal respiração ofegante. Nas semanas anteriores viram-se grupos de trabalhadores que colocavam dormentes e trilhos, mas ninguém prestou atenção porque pensaram que era um novo artifício dos ciganos, que voltavam com a sua secular e desprestigiada teimosia de apitos e chocalhos apregoando as excelências de sabe Deus que miserável panaceia dos xaroposos gênios hierosolimitanos. Mas quando se recuperaram do espanto dos assovios e bufos, todos os habitantes correram para a rua e viram Aureliano Triste acenando, com a mão, da locomotiva, e viram assombrados o trem enfeitado de flores que, já da primeira vez, chegava com oito meses de atraso. O inocente trem amarelo que tantas incertezas e evidencias, e tantos deleites e desventuras, e tantas mudanças, calamidades e saudades haveria de trazer para Macondo.

continua página 141...

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Leia também:


Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.1) - A nova casa...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.1) - ... puberdade antes de superar os hábitos infantis
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.1) - ... O CORONEL AURELIANO BUENDÍA
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (5.1) - ... Em maio terminou a guerra
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (9.2) - O pacto 

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 3 (3b)

 Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

CENA 3


Continuando...

Sobe o volume da orquestra; as duas se encaram e, súbito, se atracam.


BARRABÁS (Entra tentando separá-las)
Pára! Solta! Ah, essas unhas! (Puxa Teresinha) Fora daqui, moça!

LÚCIA
Dá umas porradas nela, dá!

BARRABÁS
Aqui tu não manda nada, viu? Fora!

TERESINHA
Me larga!

BARRABÁS
Aqui o galo sou eu! Fora!

TERESINHA
Eu sou uma senhora de respeito, caralho! Me solta!

BARRABÁS (Arrasta Teresinha pra fora)
E se voltar, fica! Fora!

LÜCIA
Me desculpe, amor, eu perdi a cabeça. Essa história de casamento me deixou confusa. . .

MAX
Casamento, tem graça. . . Você acha que eu ia deixar esse filho da mãe escorraçar esposa minha desse jeito? Sabe, Lúcia, eu te amo e sou fiel.

LÚCIA
Você pode até me achar cruel, mas eu preferia te ver morto a te ver nos braços de outra.

MAX
E eu prefiro morrer nos teus braços a viver nos braços de outra.

LÚCIA
Que lindo! Repete, vá!

MAX
Prefiro morrer nos teus braços a viver nos braços de outra.

LÚCIA
Tu é poeta pra caramba, hein?

MAX 
Mas eu quero te dever mais do que já devo. Quero te dever a própria vida. Me solta, Lúcia, me solta!

LÚCIA
Não sei. . .

MAX
Você sabe que podem me liquidar a qualquer momento! Cadê teu pai?

LÚCIA
Tava no quarto dele tomando uns rabo-de-galo. A esta altura do porre, já deve estar dormindo...

MAX
Então vá lá e me traga as chaves. Depois você distrai o Barrabás como só você sabe. E nessa eu caio fora.

LÚCIA
Não, Max! Eu quero ir contigo!

MAX
Não dá, Lúcia. O Barrabás vai perceber. . . Já reparou como ele não tira os olhos de ti? Mas assim que a coisa serenar, venho correndo te buscar. A gente se casa nas burocracias todas e eu te levo pra Hollywood.

LÚCIA
Eu te adoro, te quero e te venero.

MAX
Rápido, rápido. Eu também te adoro, quero e venero. Ah, Lúcia, quando apanhar as chaves, aproveita e pega uns dois contos do teu pai, que eu vou precisar pro táxi. Rápido, vai! 

Black-out; breve interlúdio da orquestra, lembrando o tema de "O Meu Amor”.


continua pág 110 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2c)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3c)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 3 (3b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 4 (4a)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.


sábado, 29 de abril de 2023

Memórias - 09 ¡vaya hombre, no me dejes!

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Um

baitasar

Memórias

09 – ¡vaya hombre, no me dejes!


ficou assim, parada e montada no silêncio, até que jogou os seus cabelos longos para trás, passou a mão pelo rosto e juntou todos os fios negros num rabo, deu três voltas em si mesmo e prendeu as pontas no cabelo enrolado, la sonrisa del hombre escapava satisfeito, ojos que se miran y manos que vuelan, ela estava faceira, os caminhos estranhos deste mundo lhe haviam entregado este hombre de cabelos finos e que ficava tão também de sombrero, um acaso ou um destino, ¿cómo saberlo?, pouco lhe importava

não havia como entender tantos mistérios, por ora, lhe bastava subir em sua montaria de pelo eriçado e galopar entre el maíz dorado, os braços abertos, dedos tocando de leve aquelas hastes erguidas de covas rasas arriba en la Montaña, el viento caliente quemando su cara enrojecida, suas águas lhe descendo como nunca antes aconteceu, levou as mãos ao fogo e as devolveu aos olhos

manchadas, Hombre, estoy sangrando, Dói?, No... me bejas de alegría, Agora, temos a nos unir um ao outro... tua primeira vez, ¿No te causa enfado?, Estou a sentir tuas águas, pouco importa a cor se não te incomoda, No me molesta, Fiquemos assim para sempre, Nada es para siempre, hombre. Acostúmbrate a dejarme porque yo te dejo a ti.

Blanca acomodou de vez na montaria de ese hombre, as curvas e retas desenhando caminhos imaginários de fogacho e afobação, ela afundava toda arreganhada, ese hombre todo perdido en su interior

uma intimidade que nunca tive em minha vida

¡Dios mio, no tengo como pagarle!, O que foi, Blanca?, Gemidos, mi hombre. Solamente lamentos.

jamais senti assim meu corpo, despojado de todos os líquidos que voltavam e voltavam e voltavam a se derramar, todos sus pedacitos que este hombre tocó atiçavam vertigens insuportáveis de esa mujer querer mais, queria escapar, tremia e pedia que parasse, gemia e suplicava que continuasse, queria o que não podia mais, ¡Vaya hombre, no me dejes!

Eu te espero! Eu te espero!

a montaria empinava e continuava galopando aquela estrada avermelhada, Blanca aparecia e desaparecia na estrada, seus cabelos longo e negros revoloteando, una mujer montada em galopes pelos vientos de la Montaña com seus vestidos obscenos de sangue e gozo, Gostas assim?

homens tolos e suas perguntas tolas

dizia que sim sem abrir os lábios, suas carnes ardiam como aquele fogo de ventos e pântanos, ele sabia que sim, mas precisava escutar, tolo, bem fundo e mais lento, em tudo ele queria estar vigilante, tolo, empenhar-se até seu encantamento, e assim, preenchida de pernas abertas na montaria, la mujer sintió las manos atrevidas de su hombre, apertando as carnes macias das suas pernas, afastando e aproximando, subindo e caindo

de súbito, empinou-se toda, abriu os braços, levou as mãos aos cabelos, abraçou a si mesma e estremeceu pela seiva do caule, deixou-se cair deitada sobre o peito desacomodado de ese hombre sin aliento

ahogados

ficaram assim, escorrendo-se, desfiando-se... desaparecendo 

desacordando, famintos de sono, esquecidos de ter os pés

abrazados


___________________

Leia também:

Memórias - 01 a lua cheia
Memórias - 02 a servidão natural
Memórias - 03 um negócio inesgotável
Memórias - 04 la sina de papá
Memórias - 09 ¡vaya hombre, no me dejes!

Ballet Nacional de España - Eva Yerbabuena

Día Internacional de la Danza 2023

29 abril 2023


ensaiar
tentar 
repetir 
           com os pés
as mãos brincando
esvoaçando o colorido da doidice
os corpos
                a música
                              o sapateado
as emoções
                               saltitando






Día Internacional de la Danza 2023. Eva Yerbabuena

Por ocasião da celebração do Dia Internacional da Dança, o BNE deseja compartilhar com vocês o workshop ministrado por Eva Yerbabuena aos membros do Ballet Nacional da Espanha. Hoje é um dia muito especial para todos nós que nos dedicamos à dança e por isso temos que celebrá-lo. Esperamos que você goste!

Elenco del Ballet Nacional de España:

Director Rubén Olmo

Asistente de Dirección Miguel Ángel Corbacho; Bailarines Principales Invitados Esther Jurado; Primeros

Bailarines José Manuel Benítez, Sergio García; Solistas Estela Alonso, Miriam Mendoza, Irene Tena, Cristian García, Albert Hernández, Matías López; Cuerpo de Baile Ana Agraz, Cristina Aguilera, Ana Almagro, Sara Arévalo, Pilar Arteseros, Marina Bravo, Irene Correa, Patricia Fernández, Yu-Hsien Hsueh, María Martín, Laura Vargas, Noelia Ruiz, Sou Jung Youn, Diego Aguilar, Juan Berlanga, Axel Galán, Álvaro Gordillo, Antonio Jiménez, Adrián Maqueda, Álvaro Marbán, Víctor Martín, Alfredo Mérida, Javier Polonio, Manuel del Río, Pedro Ramírez, Sergio Valverde. Becado Joan Fenollar.

Cantaora Saray Muñoz; Cantaor Gabriel de la Tomasa;

Guitarristas Enrique Bermúdez, Jonathan Bermúdez, Diego Losada, Víctor Márquez;

Percusionista Iván Fernández, Roberto Vozmediano

Músicas:
Inicio créditos y final del taller: La Locura de Cinco mujeres cinco de Paco Jarana y Enrique el Extremeño.
Músicas y cantes durante el taller: Soleá, Soleá de Alcalá, y Charamusco. Ultimo cante, Malagueña de Manuel Torres, letras populares.

Público asistentes: Alumnos del Centro de Tecnologías del Espectáculo.

Vídeo y realización: KBN NEXT MEDIA


Ballet Nacional de España - Martinete

Martinete 

Ballet Nacional de España

los cuerpos
                la música
                              lo zapateado
as emoções
                               a loucura saltitando
Ao ver sapatear
                            o assombroso delírio
me veem
       repetidamente
                           olhos de recordação
e o verbo
                                dessa paixão:
volverse loco 
           con los pies
castañuelas en manos
esvoaçando o colorido imprudente
das emoções
                               ensayando
                            as roupas absurdas da memória
voltam los ojos negros
me veem 
       repetidamente
                            na recordação os cabelos finos
en un pasado
                                ojos de pasión:
ensaiar
tentar 
repetir 
           com os pés
as mãos brincando
esvoaçando o colorido da doidice
os corpos
                a música
                              o sapateado
as emoções
                               saltitando
Ao ver dançar
                            a loucura
me vem
       repetidamente
                            a recordação
do verbo
                                dessa paixão:
loucurar 
           con los pies
 con las manos







Em 1986 José Antonio criou Romeras e Martinete como parte da obra Flamenca. Hoje o BNE trás as imagens daquela Martinete interpretada em 2009, na Gala de encerramento do 30º Aniversário do Balé Nacional de Espanha realizada no Teatro de la Zarzuela.

Coreografía: José Antonio
Música: Popular
Iluminación: Federico Gerlache
Vestuario: Pedro Moreno

Interpretación musical:
Sebastián Cruz, Momi de Cádiz y Primitivo Daza

Elenco:
Lola Greco, Carlos Rodríguez, José Manuel Benítez, Isaac Tovar, Eduardo Martínez y Ángel Lara.

Vídeo: Madrid, 17 de septiembre de 2009, Teatro de la Zarzuela.
Estreno absoluto por el Ballet Nacional de España el 18 de marzo de 1986, Teatro Monumental, Madrid.



ENTREVISTA EVA YERBABUENA Y RUBÉN OLMO.

Día Internacional de la DANZA 2023


O BNE compartilha nesta publicação a conversa entre Rubén Olmo e Eva Yerbabuena por ocasião da celebração do Dia Internacional da Dança 2023.






sexta-feira, 28 de abril de 2023

Ulisses - Parte 1 (2a): Você, Cochrane, que cidade fez apelo a ele?

Ulisses

James Joyce

Parte 1

2


Você, Cochrane, que cidade fez apelo a ele?

– Tarento, senhor. 
– Muito bem. E então? 
– Houve uma batalha, senhor. 
– Muito bem. Onde?

O olhar vazio do menino perguntou à janela vazia. 
Fabulado pelas filhas da Memória. E no entanto era de uma certa forma como se a memória não o tivesse inventado. Uma frase, então, de impaciência, um golpe das asas de intemperança de Blake. Eu ouço a destruição de todo o espaço, vidro estilhaçado e alvenaria ruída e o tempo uma lívida chama final. O que restou para nós então?

– Eu esqueci o lugar, senhor. 279 a.C. 
– Asculo – disse Stephen, olhando para o nome e a data no livro sebento. 
– Sim, senhor. E ele disse: Uma outra vitória como essa e nós estamos liquidados

Daquela frase o mundo se lembrara. Uma vaga tranquilidade mental embotada. De uma colina acima de uma planície semeada de cadáveres um general falava aos seus oficiais apoiado em sua lança. Qualquer general a quaisquer oficiais. Eles prestam ouvido. 

– Você, Armstrong – disse Stephen. – Qual foi o fim de Pirro? 
– Fim de Pirro, senhor? 
– Eu sei, senhor. Pergunte a mim, senhor – disse Comyn. 
– Espere. Você, Armstrong. Você sabe alguma coisa sobre Pirro?

Um saco de rolinhos doces de figo estava confortavelmente instalado na sacola de Armstrong. De vez em quando ele os enroscava nas palmas das mãos e os engolia suavemente. Migalhas aderiram à polpa de seus lábios. O hálito adocicado de um menino. Gente rica, orgulhosa porque seu filho estava na marinha. Vico Road, Dalkey.

– Pirro, senhor? Pirro, um píer.

Todos riram. Uma risada alta maliciosa sem alegria. Armstrong olhou para os seus colegas à volta, regozijo tolo em esboço. Dentro de alguns instantes eles vão rir mais alto, conscientes da minha falta de comando e das mensalidades que seus papais pagam. 

– Diga-me agora – disse Stephen, cutucando o ombro do menino com o livro –, o que é um píer? 
– Um píer, senhor – disse Armstrong. – Uma coisa lá na água. Uma espécie de ponte. O píer Kingstown, senhor. 

Alguns riram novamente: sem alegria mas com sentido. Dois no banco de trás sussurraram. Sim. Eles sabiam: não tinham nunca aprendido nem tinham nunca sido inocentes. Todos. Com inveja ele observou seus rostos: Edith, Ethel, Gerty, Lily. Semelhantes a eles: seus hálitos, também, adocicados por chá e geleia, seus braceletes rindo com riso abafado na luta. 

– Píer Kingstown – disse Stephen. – É isso, uma ponte desapontada. 

As palavras perturbaram os olhares deles. 

– Como, senhor? – disse Comyn. – Uma ponte fica através de um rio. 

Para o livrinho de contos populares de Haines. Ninguém aqui para ouvir. Hoje à noite habilmente em meio a conversas e bebidas desenfreadas, penetrar na malha reluzente de sua mente. O que então? Um bufão na corte de seu mestre, tratado com indulgência e menosprezado, conquistando um elogio clemente do mestre. Por que eles haviam escolhido toda essa parte? Não exclusivamente por uma carícia suave. Para eles também a história era um conto como outro qualquer ouvido demais, sua nação uma casa de penhores.
Não tivesse Pirro caído pela mão de uma bruxa em Argos ou não tivesse Júlio César sido morto a punhaladas. Eles não podem ser descartados do pensamento. O tempo os marcou a ferro em brasa e agrilhoados eles estão alojados no lugar das possibilidades infinitas que eles jogaram fora. Mas podem essas ter sido possíveis visto que elas nunca se deram? Ou foi possível apenas essa que aconteceu? Teça, tecelão do vento.

– Conte-nos uma história, senhor. 
– Ó, por favor, senhor. Uma história de assombração. 
– Onde vocês começam nisso? – perguntou Stephen, abrindo um outro livro. 
Não chorem mais – disse Comyn. 
– Continue então, Talbot. 
– E a história, senhor? 
– Depois – disse Stephen. – Continue, Talbot.

Um menino escuro abriu um livro e o apoiou rapidamente sob a proteção de sua sacola. Ele recitou o verso aos trancos com olhares esporádicos para o texto: 

– Não chorem mais, tristes pastores, não chorem mais 
Pois Lycidas, que chorais, não está morto, 
Embora submerso no fundo das águas mortais... 

Deve ser um movimento então, uma realidade do possível como possível. A frase de Aristóteles se formou dentro dos versos ininteligíveis e eles flutuaram para dentro do silêncio estudioso da biblioteca de Santa Genoveva onde ele lera, noite após noite, protegido contra o pecado de Paris. Ao seu lado um franzino siamês examinava um manual de estratégia. À minha volta, cérebros alimentados e se alimentando: sob lâmpadas elétricas fosforescentes, empalados, com antenas a bater ligeiramente: e na escuridão de minha mente uma preguiça do submundo, relutante, desprovida de claridade, a mover suas pregas escamosas de dragão. O pensamento é o pensamento do pensamento. Claridade tranqüila. A alma é de certa maneira tudo que existe: a alma é a forma das formas. Tranqüilidade, súbita, vasta, candente: forma das formas. 

Talbot repetiu:

– Pelo amado poder Dele que andou sobre as ondas, 
Pelo amado poder... 
– Vire a página – disse Stephen serenamente. – Eu não vejo nada. 
– O que, senhor? – perguntou simplesmente Talbot se inclinando para a frente.

Sua mão virou a página. Ele se reclinou para trás e prosseguiu novamente, tendo acabado de se lembrar. Dele que andou sobre as ondas. Aqui também acima desses corações covardes repousa sua sombra e no coração e nos lábios escarnecedores e nos meus. Repousa nos rostos ansiosos dos que lhe ofereceram uma moeda do tributo. A César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Um olhar prolongado partindo de olhos escuros, uma frase enigmática para ser tecida cada vez mais no tear da igreja. Para sempre. 

Adivinhe, adivinhe, adivinho! 
Ganhei grãos pra semear do paizinho. 

Talbot deixou seu livro fechado deslizar para dentro da sacola.

– Eu ouvi todos? – perguntou Stephen. 
– Sim, senhor. Hóquei às dez, senhor. 
– Metade do dia, senhor. Quinta-feira. 
– Quem pode responder uma charada? – perguntou Stephen.

Eles recolheram seus livros, os lápis estalando, as páginas farfalhando. Empurrando uns aos outros eles passaram as tiras de couro e afivelaram suas sacolas, todos tagarelando alegremente:

– Uma charada, senhor? Pergunte a mim, senhor. 
– Ó, pergunte a mim, senhor. 
– Uma bem difícil, senhor. 
– É esta a charada – disse Stephen.
O galo cacarejou, 
O céu azulou; 
Sinos de bronze 
Soaram onze. 
A hora da pobre alma Ir pro céu chegou. 
O que é isso? 
– O quê, senhor? 
– De novo, senhor. Nós não ouvimos.

Os olhos deles cresciam enquanto os versos eram repetidos. Depois de um silêncio Cochrane disse:

– O que é, senhor? Nós desistimos.

Com a garganta comichando, Stephen respondeu: 

– A raposa enterrando sua avó debaixo de um azevinho. 

Ele se levantou e soltou uma risada estridente e nervosa à qual os gritos deles ecoaram consternação. 
Um taco bateu na porta e uma voz no corredor chamou: 

– Hóquei!

Eles se separaram, andando de lado por entre os bancos, saltando por cima deles. Em pouco tempo eles tinham partido e do quarto de despejo veio o estrépito dos tacos e o clamor de suas botas e línguas. 
Sargent que fora o único que se deixara ficar avançou lentamente, mostrando um caderno de notas aberto. Seu cabelo embaraçado e seu pescoço fino testemunhavam despreparo e irresolução e através de seus óculos embaciados olhos se erguiam em apelação. Na sua face, apática e exangue, havia uma mancha de tinta em forma de tâmara recente e úmida como o leito de um caracol. 
Ele estendeu seu caderno. A palavra Somas estava escrita no cabeçalho. Abaixo havia algarismos inclinados e embaixo de tudo uma assinatura tortuosa com voltas cegas e um borrão. Cyril Sargent: seu nome e carimbo.

– O Sr. Deasy me disse para escrever tudo de novo e lhe mostrar, senhor. 

Stephen tocou as bordas do livro. Inutilidade. 

– Você compreende agora como fazer isso? – perguntou ele. 
– Do número onze ao quinze – respondeu Sargent. – O Sr. Deasy disse que eu devia copiá-los do quadro, senhor. 
– Você consegue os resolver, você mesmo? – perguntou Stephen. 
– Não, senhor

Feio e inútil: pescoço fino e cabelo embaraçado e uma mancha de tinta, um leito de caracol. No entanto alguém o amara, o carregara em seus braços e em seu coração. Não fosse por ela a raça do mundo o teria esmagado sob seus pés, um caracol sem ossos despedaçado. Ela tinha amado seu sangue aguado fraco drenado do dela própria. Era isso então real? A única coisa verdadeira na vida? O corpo prostrado de sua mãe o ardente Columbano em seu zelo sagrado passou por cima. Ela não existia mais: o esqueleto trêmulo de um galho no fogo, um odor de pau-rosa e cinzas molhadas. Ela o salvara de ser esmagado sob pés e partira, mal tendo existido. Uma pobre alma tendo partido para o céu: e numa charneca sob estrelas cintilantes uma raposa, com o cheiro desagradável de rapina no seu pêlo vermelho, com olhos claros impiedosos cavava a terra, escutava, esburacava a terra, escutava, cavava e cavava. 
Sentando ao seu lado Stephen solucionou o problema. Ele prova por meio da álgebra que o fantasma de Shakespeare é o avô de Hamlet. Sargent olhou de esguelha através de seus óculos inclinados. Tacos de hóquei retiniam no quarto de despejo: a batida oca de uma bola e os gritos vindos do campo. 
Através da página os símbolos se moviam numa solene dança mouresca, na pantomima de suas letras, usando bonés exóticos de quadrados e cubos. Dê as mãos, atravesse, incline-se diante do parceiro: assim: diabinhos da imaginação dos mouros. Partiram também do mundo, Averróis e Moisés Maimônides, homens escuros em semblante e ação, refletindo em seus espelhos zombeteiros a alma obscura do mundo, uma escuridão brilhando na claridade que a claridade não pôde compreender.

– Você compreende agora? Você consegue fazer o segundo trabalho sozinho? 
– Consigo, senhor.

Em longos traços de pena vacilantes Sargent copiou os dados. Esperando sempre por uma palavra de ajuda sua mão moveu fielmente os símbolos variáveis, uma ligeira coloração de vergonha estremecendo por trás de sua pele fosca. Amor matris: genitivo subjetivo e objetivo. Com seu sangue fraco e leite azedo ela o alimentara e o escondera assim como os cueiros dele da vista dos outros. 
Como ele eu era, esses ombros inclinados, esta desgraciosidade. Minha infância se curva ao meu lado. Longe demais para eu pousar uma vez minha mão ali ou sequer levemente. A minha está longe e a dele é secreta como nossos olhos. Segredos, silenciosos, empedernidos se sentam nos palácios escuros de nossos dois corações: segredos exaustos de sua tirania: tiranos, desejando ser destronados. 
A soma foi feita.

– É muito simples – disse Stephen ao se levantar. 
– É sim, senhor. Obrigado – respondeu Sargent.

Ele secou a página com uma folha fina de mata-borrão e levou seu caderno de notas de volta para a sua carteira.

– É melhor você pegar o seu taco e ir se juntar aos outros – disse Stephen enquanto seguia a figura desgraciosa do menino que se dirigia para a porta. 
– Sim, senhor. 

No corredor era ouvido o seu nome, chamado do campo de jogo.

– Sargent! 
– Corra – disse Stephen. – O Sr. Deasy o está chamando.

Ele parou no pórtico e observou o retardatário se apressar em direção ao campo de luta onde vozes agressivas discutiam. Eles estavam divididos em times e o Sr. Deasy veio embora pisando em pedacinhos de grama com seus pés em polainas. Quando alcançou o prédio do colégio vozes novamente em disputa o chamaram. Ele virou para eles seu bigode branco irritado.

– O que é agora? – gritou continuamente sem parar para ouvir. 
– Cochrane e Halliday estão do mesmo lado, senhor – disse Stephen. 
– Espere por favor por um momento no meu escritório – disse o Sr. Deasy – até que eu restabeleça a ordem aqui.

E enquanto caminhava atarantadamente de volta pelo campo sua voz de velho gritava severamente: 

– O que é que há? O que é agora? 

As vozes agressivas dos meninos gritavam de todos os lados à sua volta: suas múltiplas figuras o cercaram, a brilhante luz solar descorando o mel de seus cabelos mal pintados. 
Um ar enfumaçado e viciado pairava no escritório com o cheiro do couro marrom-claro das cadeiras. Como no primeiro dia em que ele barganhou comigo. Como era no princípio, é agora. No aparador a bandeja com as moedas Stuart, tesouro servil de um irlandereco: e sempre será. E bem confortáveis em seu estojo de colheres de pelúcia púrpura, desbotada, os doze apóstolos tendo pregado para todos os gentios: por todos os séculos. 
Um passo apressado nas pedras do pórtico e no corredor. Afastando com um sopro seu bigode escasso o Sr. Deasy parou junto à mesa.

– Em primeiro lugar, nosso acordo financeiro – disse ele.

Ele retirou do paletó uma carteira de dinheiro atada por uma tira de couro que estalou ao ser aberta. E dela tirou duas notas, uma delas feita de duas metades coladas, e as colocou cuidadosamente sobre a mesa.

– Duas – disse ele, atando e guardando sua carteira.

E agora seu cofre-forte para o ouro. A mão embaraçada de Stephen se moveu por sobre as conchas amontoadas no frio almofariz de pedra: búzios e caurins e rombos: e esta, espiralada como um turbante de emir, e esta, a vieira-de-são-tiago. Uma coleção de um velho peregrino, um tesouro morto, conchas ocas. 
Um soberano caiu, novo e brilhante, sobre a lanosidade macia da toalha de mesa.

– Três – disse o Sr. Deasy, rodando com sua caixinha de níqueis em sua mão. – Estas são coisas úteis de ter. Veja. Isto é para soberanos. Isto é para shillings. Seis pence, meiascoroas. E aqui coroas. Veja.

Ele fez saltarem dela duas coroas e dois shillings.

– Três e doze – disse ele. – Creio que você vai concordar que está certo. 
– Obrigado, senhor – disse Stephen, juntando o dinheiro com uma pressa tímida e pondo tudo no bolso de sua calça. 
– Nada de agradecimento – disse o Sr. Deasy. – Você mereceu.

O Apanhador no Campo de Centeio - 5: O jantar aos sábados

O Apanhador no Campo de Centeio

J.D. Salinger

5


O jantar aos sábados era sempre o mesmo lá no Pencey. Devia ser considerado algo de fabuloso, pois era o único dia em que serviam bife. Aposto que só faziam isso porque uma porção de pais de alunos visitavam o colégio aos domingos, e o velho Thurmer com certeza imaginava que a mãe de todo mundo ia perguntar ao filhinho querido o que é que ele tinha comido no jantar - e ele responderia: "Bife". Eram uns safados. Valia a pena ver os tais bifes: umas porcariazinhas duras, sem caldo, que a gente mal conseguia partir. Vinham sempre acompanhados de um purê de batata todo encalombado, e a sobremesa era um pudim nojentérrimo que ninguém comia, a não ser talvez os meninos do primário, por inexperiência, ou sujeitos como o Ackley, que comiam qualquer droga.
Mas até que estava bonito quando saímos do refeitório. já havia uns dez centímetros de neve no chão e continuava a nevar pra cachorro. Estava um bocado bonito, e nós todos começamos a jogar bolas de neve e fazer uma porção de maluquices. Pensando bem, era um bocado infantil, mas todo mundo estava se divertindo pra valer.
Eu não tinha namorada nem nada, por isso combinei com um amigo meu que era do time de luta-livre, o Mal Brossard, da gente tomar um ônibus para Agerstown, comer qualquer coisa por lá e talvez assistir a uma droga dum filme. Nenhum de nós dois estava com vontade de passar a noite inteira sentado em cima do rabo. Perguntei ao Mal se ele se importava que o Ackley fosse conosco, porque o chato nunca fazia nada nas noites de sábado, a não ser ficar trancado no quarto espremendo as espinhas ou coisa que o valha. Mal respondeu que não se importava, mas que também não se entusiasmava muito com a idéia. Ele não gostava muito do Ackley. De qualquer modo, cada um foi para seu quarto se arrumar e tudo, e enquanto eu calçava minhas galochas gritei na direção do quarto do Ackley, perguntando se ele queria ir ao cinema. Bem que ele podia me escutar através das cortinas do banheiro, mas não respondeu logo. Era o tipo do sujeito que odeia responder imediatamente. Afinal veio até meu quarto, atravessando as cortinas, parou na borda do chuveiro e perguntou quem ia, além de mim. Tinha sempre que saber quem ia sair com ele. Juro que se um dia ele sofresse, um naufrágio e alguém fosse socorrê-lo numa porcaria dum bote, o Ackley não saía da água antes de saber quem estava remando. Eu disse que o Mal Brossard também ia, e ele respondeu: 

- Aquele cretino... Tá bem, me espera um minuto. 

Parecia que estava nos fazendo um grande favor. Demorou umas cinco horas para se aprontar. Enquanto esperava, fui até a janela, abri uma banda e comecei a fazer uma bola de neve, sem luva nem nada. A neve estava um bocado boa pra isso, mas não joguei a bola em coisa nenhuma. Cheguei a começar a jogar, num carro que estava estacionado do outro lado da rua. Mas mudei de idéia, porque o carro estava bonito pra chuchu, todo coberto de branco. Aí fiz pontaria num hidrante, mas o hidrante também estava com um jeitão simpático, todo de branco. Afinal resolvi não jogar em lugar nenhum. Fechei a janela e fiquei andando pelo quarto, endurecendo ainda mais a bola de neve. Algum tempo depois, quando o Brossard, o Ackley e eu tomamos o ônibus, ainda estava com ela na mão. O motorista abriu uma janela e me disse para jogá-la fora. Expliquei a ele que não ia atirar a bola em ninguém, mas não houve jeito dele me acreditar. Ninguém nunca acredita na gente. 
O Brossard e o Ackley já tinham visto o filme que estava passando, por isso a única coisa que fizemos foi comer uns sanduíches, dar uma voltinha pelas ruas e tomar o ônibus de volta para o Pencey. De qualquer maneira, pouco me importava de não ver o filme. Parece que era uma comédia, com o Cary Grant e essa droga toda, e, além disso, já tinha ido uma vez ao cinema na companhia daqueles dois. Ambos costumavam rir como hienas por causa de qualquer besteira, mesmo que não tivesse a mínima graça. Não dava nem prazer sentar ao lado deles no cinema. 
Quando voltamos para o dormitório deviam ser umas quinze para as nove. O Brossard era maníaco por bridge e começou a procurar parceiros para uma partida. O chato do Ackley, pra variar, plantou-se no meu quarto. Só que, em vez de se sentar no braço da poltrona do Stradlater, deitou na minha cama, com a cara bem em cima do meu travesseiro e tudo. Começou a falar, com aquela voz monótona, ao mesmo tempo que espremia as espinhas. Dei-lhe mil indiretas, mas não consegui me livrar dele. Ficou lá falando, naquela voz monótona, sobre uma garota com quem ele dizia ter tido relações sexuais no verão passado. Já tinha me contado essa estória umas cem vezes, mas cada vez que contava era diferente. Numa hora, a coisa tinha acontecido no Buick do primo dele, na hora seguinte já era na praia. Naturalmente, era tudo mentira. Se alguma vez vi alguém virgem, esse alguém era ele. Duvido mesmo que tivesse alguma vez chegado a bolinar uma garota. Fosse como fosse, afinal tive que chegar para ele e dizer que tinha de escrever uma redação para o Stradlater e que por isso ele tinha de dar o fora porque senão eu não conseguia me concentrar. Acabou indo, mas demorou um bocado, como sempre. Depois que saiu, vesti meu pijama e meu roupão, pus o chapéu de caça na cabeça e comecei a escrever a redação. 
O problema é que não consegui imaginar uma sala ou uma casa para descrever, tal como o Stradlater tinha me dito que devia ser. De qualquer maneira, não sou lá muito chegado a esse negócio de descrever salas ou casas. Então resolvi escrever sobre a luva de beisebol do meu irmão Allie. Era um assunto um bocado descritivo, no duro. Meu irmão Allie era canhoto, e por isso tinha uma luva de beisebol para a mão esquerda. Mas o que havia de descritivo nela é que tinha uma porção de poemas escritos em todos os dedos, na cova da luva, por todo canto. Em tinta verde. Ele copiava os poemas na luva porque só assim tinha alguma coisa para ler durante o jogo, quando não havia ninguém arremessando. Ele agora está morto. Teve leucemia e morreu quando nós estávamos em Maine, no dia 18 de julho de 1946. Qualquer um teria que gostar dele. Era dois anos mais moço do que eu, mas umas cinqüenta vezes mais inteligente. Os professores dele estavam sempre escrevendo cartas para minha mãe, dizendo que era um grande prazer ter um menino como o Allie na turma. E não era simples conversa mole, era mesmo pra valer. O caso é que ele não era só o mais inteligente da família. Era também o melhor de todos, em muitos sentidos. Nunca ficava aborrecido com ninguém. Dizem que as pessoas de cabelo vermelho estão sempre se irritando com a maior facilidade, mas o Allie nunca brigava, e tinha o cabelo um bocado vermelho. Para mostrar como o cabelo dele era vermelho, eu me lembro que uma vez, nas férias de verão, quando eu tinha uns doze anos, estava jogando golfe (comecei a jogar golfe quando tinha dez anos) e, assim sem mais nem menos, tive a impressão de que se me virasse de repente veria o Allie. Olhei para trás e, batata, lá estava ele sentado na bicicleta, do outro lado da cerca - havia uma cerca que corria em volta de todo o campo - a mais de cem metros, me olhando dar a tacada. Isso mostra como o cabelo dele era vermelho. Mas ele era mesmo um menino bom. Às vezes, na mesa de jantar, lembrava de um troço qualquer e ria tanto que quase caía da cadeira. Eu só tinha uns treze anos, e meus pais resolveram que eu precisava ser psicanalisado e tudo, porque quebrei todas as janelas da garagem. Mas realmente acho que eles tinham razão. Dormi na garagem na noite em que ele morreu e quebrei a droga dos vidros todos com a mão, sei lá porquê. Tentei até arrebentar os vidros da camioneta que nós tínhamos naquele verão, mas a essa altura minha mão já estava quebrada e tudo, e não consegui. Reconheço que foi o tipo da coisa estúpida de se fazer, mas eu nem sabia direito o que estava fazendo, e vocês não conheciam o Allie. Minha mão ainda dói de vez em quando, nos dias de chuva e tudo, e nunca mais consegui fechar direito a mão - assim bem apertada - mas, fora isso, não me importo muito. De qualquer jeito, sei que não vou mesmo ser um cirurgião ou um violinista, ou droga nenhuma. 
Foi sobre isto que escrevi a redação do Stradlater - a luva de beisebol do Allie. Por acaso, a luva estava na minha mala, por isso fui apanhá-la e copiei os poemas que estavam escritos nela. Tudo que precisei fazer foi mudar o nome do Allie, para ninguém saber que era meu irmão, e não o do Stradlater. Não fiquei lá muito satisfeito com a redação, mas não conseguia pensar em nenhum outro assunto descritivo. Além disso, eu gostava mesmo de escrever sobre a luva do Allie. A coisa me tomou uma hora, porque tive de usar a máquina de escrever do Stradlater, que enguiçava de dois em dois minutos. Só não usei a minha porque estava emprestada a um sujeito que também morava na minha ala. 
Acho que deviam ser umas dez e meia quando acabei. Mas não estava cansado, por isso fui até a janela e fiquei algum tempo olhando para fora. Tinha parado de nevar, mas de vez em quando a gente escutava um carro que não conseguia pegar. Também dava para escutar o Ackley roncando, mesmo através da porcaria das cortinas do chuveiro. Ele tinha sinusite, e não podia respirar lá muito bem quando estava dormindo. Aquele sujeito tinha quase tudo que é possível alguém ter: sinusite, espinhas, dentes podres, mau hálito, unhas esculhambadas. A gente tinha de acabar sentindo um pouco de pena do filho da puta. 

O Apanhador no Campo de Centeio - 5: O jantar aos sábados

quinta-feira, 27 de abril de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: Estado e violência

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


6
Estado e violência


O Estado representa o interesse público, embora muitas vezes defenda apenas os interesses das elites, das classes dominantes. Os motivos de interesse realmente público são poucos e relativos, no contexto político. Entretanto, ao menos de forma nominal (e com maiores ou menores benefícios para o cidadão comum, conforme o caso), o Estado representa sempre o interesse público, o bem-estar da população. Isto se expressa na ordem jurídica. A ordem jurídica rege o comportamento do cidadão, do próprio Estado e das relações entre o Estado e o cidadão.

No estado de direito, a lei — palavra usada aqui como sinônimo de ordem jurídica — subordina povo, governantes e instituições, existindo mesmo certos princípios básicos inalteráveis. A mudança da lei só pode ser feita sob o império da própria lei, pois é a ordem jurídica que estabelece as normas para a alteração de seu próprio conteúdo.

Só há, naturalmente, uma ordem jurídica: aquela vinculada ao próprio Estado. O Estado não pode reconhecer uma ordem jurídica à parte, pois, no momento em que o fizesse, incorporaria os elementos dessa ordem, transformando-os em parte de si mesmo, pois, afinal, só o Estado detém a soberania. No âmbito do Estado, a ordem jurídica se estende a tudo e a todos, sem excluir até mesmo os cidadãos estrangeiros que estejam em seu território, ou sob sua jurisdição a qualquer outro título.

Decorre daí que o Estado detém o monopólio das normas jurídicas. A norma pode não ser obedecida, mas essa desobediência não deve ser tolerada. Do contrário, não haveria sentido na existência da norma. Do que se depreende que o Estado exerce coerção sobre tudo o que está contido na ordem jurídica. Como a coerção é uma forma de violência (inclusive física, em muitos casos), o Estado detém, consequentemente, o monopólio legítimo da violência.

Mesmo que meu vizinho cometa uma flagrante violação da ordem jurídica, eu não posso condená-lo ou encarcerá-lo. Só quem pode é o Estado. Somente o Estado, em nome do interesse público, qualquer que seja ele na ocasião, é que pode fazer a guerra, conduzir a repressão à delinquência (mesmo quando essa delinquência consiste apenas em reivindicações populares que a lei decidiu considerar ilícitas), coagir, usar a violência, enfim.

Essa violência, na maior parte dos casos, é apenas latente, não concretamente exercida, embora se possa argumentar que o indivíduo contemporâneo de tal forma se acostumou à estruturação de sua vida pela ordem jurídica que apenas não mais nota que ela o violenta a todo instante. Mesmo que o Estado seja regido pela norma universal, segundo a qual, na órbita privada, “tudo o que não é proibido é permitido”, o indivíduo está sob a permanente pressão de não cometer, até por ignorância da lei, ato que seja proibido. Na órbita dos que ele sabe que são proibidos, ele percebe que a coerção do Estado se encontra na sanção aplicável a quem viola a norma. Genericamente, a violação da norma envolve uma sanção, isto é, medidas coercitivas contra o autor da violação, que podem ir, digamos, de uma repreensão até a condenação ao suplício e à morte. Somente a ordem jurídica, o Estado, pode obrigar, enfim, alguém ou alguma organização a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.

É claro que este monopólio legítimo da violência é desafiado a todo momento, não só por indivíduos como por organizações. Em países como o Brasil, sabemos que se trata de uma situação crônica. É também óbvio que grupos ou facções que não reconhecem a legitimidade de um Estado qualquer não se veem obrigados a respeitar a lei e o consequente monopólio da violência — embora, naturalmente, as revoluções, quando triunfam, imponham sua própria ordem jurídica e restabeleçam o monopólio.

Por fim, apesar de ser da própria natureza da lei que ela se aplique igualmente a tudo e a todos, isto não acontece sempre, como também sabem perfeitamente os brasileiros. Esta situação se deve a que as contradições entre a lei e a realidade concreta (ou seja, entre o que está previsto de forma abstrata e o que acontece de fato nos processos decisórios) são muitas vezes fortes demais. Assim, como se diz no Brasil, a lei é igual para todos, mas alguns são “mais iguais” que outros, ou ainda, a justiça e a cadeia são para os pobres. Isto, porém, é outro problema.

1 Para sentir as malhas do Estado, tente elaborar uma lista do que você é obrigado a fazer todos os dias. Ou, mais complicado ainda, uma lista do que você é obrigado a não fazer todos os dias.

2 Famílias que moram num determinado lugar há gerações são de repente notificadas de que o governo vai desapropriar suas casas para ali construir um Jóquei Clube. Quando as famílias protestam, o Estado não aceita os protestos, alegando que está agindo no interesse público. Isto é justo? O Estado tem razão? Existem hipóteses que favoreçam ambos os lados?

3 Muitas ruas das grandes cidades são guardadas por seguranças particulares pagos pelos moradores. Neste caso, não se estaria subtraindo soberania do Estado, uma vez que ele deixa de ter o monopólio do uso legítimo da violência?

4 Se você bate em sua mulher ou seu marido, está havendo uma violação do monopólio da violência exercida pelo Estado? Pense bem.

5 E se você dá umas palmadas em seu filho?

6 Você já deve ter visto, em algum artigo de revista ou fonte parecida, a expressão “um Estado dentro do Estado”. Você é capaz de imaginar, ou explicar, o que se quer dizer com isso?

7 Na sua opinião, existe uma espécie de hierarquia dos interesses públicos? Por exemplo, um determinado Estado prioriza a manutenção da ordem. Portanto subordina outro interesse público — vamos dizer, o de melhores salários para a maioria da população — ao da ordem. Como reivindicar melhores salários perturba a ordem, o interesse público da manutenção da ordem não permite o atendimento de outro interesse público, o de melhores salários. Que é que você acha desta e de outras hipóteses, fáceis de imaginar?

8 Você acha que o interesse público, representado pelo Estado, pode justificar a aplicação de penas (sanções) tais como algumas até hoje praticadas — garroteamento, enforcamento, eletrocussão, amputação de membros, internamento em clínicas psiquiátricas, condenação ao silêncio, fuzilamento, esterilização, açoite e outras, de que talvez você já tenha ouvido falar? Você acha que haveria casos especiais para a aplicação de alguma ou de todas essas penas?


continua na página 041...
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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Estado e violência

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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Revisão
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Catalogação-na-fonte S
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

A Montanha Mágica - Uma palavra indevida

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo III


Uma palavra indevida


– Não – respondeu Joachim. – Nem posso ir longe. A esta hora costumo descer à aldeia e dar um passeio até Davos-Platz, quando tenho bastante tempo. A gente olha as lojas e o movimento na rua, e compra o que precisa. Antes do almoço há mais uma hora de repouso, e depois fica-se outra vez deitado até as quatro. Não se preocupe.

Desceram em pleno sol pela rampa da estrada. Atravessaram o curso d'água e as trilhas estreitas, tendo diante de si os vultos das montanhas que ladeavam o vale à direita: a Kleine Schiahorn, as Grüne Türme e o Dorfberg, conforme Joachim foi explicando. Lá, mais adiante, a certa altura, via-se o cemitério de Davos-Dorf, cercado de um muro; também para ele apontou Joachim com a bengala. E chegaram à estrada principal, que, um pouco acima do fundo do vale, se estendia ao longo da vertente composta de terraços.
Não se podia falar, propriamente, de aldeia, da qual apenas sobrava o nome “Dorf”. Devorara-a a estação climatológica, ao prolongar-se mais e mais em direção à entrada do vale, de modo que a parte do conjunto que se chamava “Dorf” se confundia, insensivelmente, e sem solução de continuidade, com a outra, chamada “Davos-Platz”. Hotéis e pensões, todos eles abundantemente providos de avarandados cobertos, sacadas e alpendres de repouso, achavam-se dispersos por ambos os lados bem como casinhas particulares nas quais se alugavam cômodos; de vez em quando viam-se casas em construção; havia também alguns terrenos baldios, onde a estrada permitia ver os prados abertos do vale...
Hans Castorp, tomado pelo desejo de se proporcionar o costumeiro e querido estímulo, acendera novamente o charuto. Provavelmente foi graças à cerveja que acabava de beber que redescobriu, com indizível satisfação, alguns vestígios do almejado aroma, se bem que este aparecesse apenas em raros momentos e sem grande intensidade. Custou-lhe um certo esforço nervoso alcançar uma idéia daquele antigo prazer, e o repugnante sabor de couro continuava predominando. Incapaz de conformar-se, lutou algum tempo pela obtenção do gozo que ora se lhe esquivava, ora assomava a muita distância, como que zombando dele. Finalmente, fatigado e aborrecido, jogou fora o charuto. Apesar do seu atordoamento, sentiu que a cortesia o obrigava a entabular uma conversa. Para esse fim, procurou lembrar-se das coisas interessantes que, havia pouco, tencionara dizer acerca do tempo. Mas constatou que se esquecera por completo de todo esse “vasto complexo”, a ponto de não abrigar na sua cabeça o mínimo pensamento a esse respeito. Em compensação, meteu-se a falar de assuntos referentes ao corpo, e isso de maneira bastante esquisita.

– Quando é que você vai tirar novamente a temperatura? – perguntou. – Depois da refeição? Assim está bem. A essa hora acha-se o organismo em pleno funcionamento; aí deve aparecer a verdade. Mas diga, você não acha que o Behrens brincou comigo, quando sugeriu que eu também tomasse a temperatura? Settembrini riu-se gargalhadas, quando ouviu a história. E realmente seria absurdo. Além disso, nem termômetro tenho.

– Ora – disse Joachim. – Isso é o de menos. Basta comprar um. Aqui se encontram termômetros em toda parte. Qualquer loja tem.

– Para quê? Não senhor o repouso, vá lá; mas tomar a temperatura, isso seria exigir muito de um visitante. É uma ocupação e que deixo para vocês. Se eu ao menos soubesse – continuou Hans Castorp, pondo as mãos sobre o coração, como um jovem apaixonado – que tenho a toda hora estas palpitações! Elas me inquietam, e já faz tempo que estou refletindo sobre isso. Olhe, a gente sofre de palpitações quando se acha em vésperas de uma alegria extraordinária, ou quando está com medo; em poucas palavras, quando experimenta uma emoção, não é? Mas, sentir que o coração bate gratuitamente, sem motivo nem sentido, por assim dizer por conta própria – acho isso misterioso, compreende? É como se o corpo seguisse o seu próprio caminho e se tivesse desligado da alma. De certo modo é semelhante a um cadáver que também, na realidade, não está completamente morto... Isto não existe... Mas ainda leva uma vida bastante ativa e independente: os cabelos e as unhas continuam crescendo, e como me explicaram, reina nele, sob todos os aspectos, físicos e químicos, a mais franca animação.

– Que maneira de falar é essa? – disse Joachim num tom de ponderada censura. – Franca animação! – Talvez quisesse, dessa forma, vingar-se um pouco da observação que o primo fizera, de manhã, sobre a banda do regimento.

– Mas é mesmo! Reina a mais franca animação. Por que é que você se escandaliza? – perguntou Hans Castorp. – De resto, mencionei isso apenas de passagem. Eu queria somente dizer que é uma coisa sinistra e penosa ver o corpo levar uma existência própria, independente da alma, e dar-se ares de importância, como no caso dessas palpitações sem motivo. E a gente se esforça por encontrar um sentido nessa coisa; procura-se a emoção indispensável, um sentimento de alegria ou de medo, que as justifique de certo modo – pelo menos eu faço isso, pois só posso falar de mim.

– Sim senhor – disse Joachim, suspirando. – É mais ou menos a mesma coisa que estar com febre. Nesse caso também reina no corpo “a mais franca animação”, para empregar a sua expressão. Então acontece facilmente que, sem querer, a gente ande à cata de uma emoção, como você diz, para que essa animação receba um sentido mais ou menos plausível... Mas estamos falando de coisas tão desagradáveis! – acrescentou em voz trêmula, e cortou a conversa. Hans Castorp limitou-se a dar de ombros, da mesma forma como vira Joachim fazer na véspera.

Durante algum tempo caminharam em silêncio. Depois Joachim perguntou:

– E que tal acha você acha as pessoas aqui em cima? Quero dizer, os nossos companheiros de mesa.

Hans Castorp assumiu um ar indiferente, pensativo.

- Meu Deus! – disse. – Não me parecem grande coisa. Tenho a impressão de que em outras mesas há pessoas mais interessantes, pode ser que me engane. A Srª. Stöhr deveria lavar os cabelos, estão muito ensebados. E aquela Mazurca, ou como se chama?, parece-me um pouco fútil. A toda hora bota o lenço na boca, de tanto rir.

Joachim achou graça nessa deformação do nome.

– Mazurca? É boa! – exclamou. – Ela se chama Marusja, sabe? É o mesmo que Maria. Pois é – acrescentou – ela é mesmo estouvada, e contudo teria motivos de sobra para ficar mais quieta. Está bastante doente.

– Ninguém pensaria isso – disse Hans Castorp. – Tem uma aparência tão sadia! Uma doença do peito é a última coisa que eu atribuiria. – Tentou trocar com o primo um olhar atrevido, mas verificou que o rosto de Joachim, apesar de tostado pelo sol, mostrava uma cor terrosa, como a adquire a pele queimada, quando o sangue retira, e que sua boca se crispara de um modo particularmente doloroso, adotando uma expressão que despertou no jovem Hans Castorp um vago pavor e fez com que ele, mudando imediatamente de assunto, fosse informar-se sobre outras pessoas, na intenção de esquecer o mais depressa possível Marusja e a expressão de Joachim, o que, aliás, conseguiu sem dificuldade.

A inglesa do chá de roseira-brava chamava-se Miss Robinson. A costureira não era costureira, mas uma professora do Liceu Estadual Königsberg, e por isso se expressava com tanta correção. Seu nome era Engelhart. Quanto à velhota jovial, nem o próprio Joachim sabia como se chamava, apesar de viver há muito tempo ali em cima. Em todo caso era a tia-avó da comedora de iogurte, com a qual morava constantemente no sanatório. Mas quem estava mais doente, dentre todos os que comiam à mesa, era o Dr. Blumenkohl, Leo Blumenkohl, de Odessa, aquele moço bigodudo de cara fechada. Já havia anos que se achava internado...
Estavam passando por uma verdadeira rua de cidade, a rua principal de um centro internacional, como logo se via. Vinham-lhes ao encontro veranistas que flanavam por ali, jovens na maioria, os homens em traje esporte e sem chapéu, as senhoras também sem chapéu e com saias brancas. Ouvia-se falar russo e inglês. À direita e à esquerda havia lojas com elegantes vitrines, e Hans Castorp, cuja curiosidade travava uma luta violenta com a ardente fadiga, obrigou os olhos a verem, detendo-se durante muito tempo diante da loja de um camiseiro, para constatar que a vitrine estava mesmo “à altura”.
Depois surgiu uma rotunda, com uma galeria coberta, onde uma orquestra dava um concerto. Era o cassino. Em algumas quadras de tênis jogavam-se partidas. Jovens escanhoados, de pernas compridas, trajando calças de flanela cuidadosamente passadas, exibiam os antebraços desnudos e os sapatos com solas de borracha. À sua frente jogavam mocinhas tostadas, vestidas de branco, que em plena corrida se estiravam alto no ar iluminado pelo sol, a fim de rebaterem, no vôlei, a bola alvacenta. Um como que um pó de farinha pairava sobre as quadras bem cuidadas. Os primos sentaram-se num banco vazio, para olhar e criticar o jogo.

– Você não joga aqui? – perguntou Hans Castorp.

– Não me deixam – respondeu Joachim. – Nós temos de ficar deitados, sempre deitados... Settembrini costuma dizer que vivemos uma vida horizontal, que somos uns horizontais. É uma das suas piadas sarcásticas... Aquela gente que ali joga não está doente, ou então joga apesar da proibição. De resto, eles não jogam muito seriamente; é mais para mostrar os trajes... E quanto às proibições, existem por aqui outras coisas proibidas que se jogam, como o pôquer, sabe? e neste ou naquele hotel, também os petits chevaux. Entre nós, isto se pune com expulsão, porque o jogo de azar é considerado a infração mais prejudicial. Contudo, há quem saia ainda depois da revista noturna, para entrar na jogatina. O príncipe que deu o título ao Behrens também costumava escapulir de noite.

Hans Castorp mal o ouvia. Andava com a boca entreaberta; embora não estivesse resfriado, tinha dificuldade em respirar pelo nariz. Seu coração martelava num ritmo contrário à música, o que lhe causava impressão vagamente penosa. Tomado dessa sensação de desordem e contrariedade, estava a ponto de cochilar, quando Joachim o avisou de que eram horas de voltar.
Percorreram o caminho em silêncio. Hans Castorp até chegou a tropeçar diversas vezes na estrada plana, e, ao dar-se conta disso, esboçou um sorriso melancólico, sacudindo a cabeça. O porteiro coxo conduziu-os no elevador até o seu pavimento. Separaram-se em frente do número 34, com um breve “Até logo”. Hans Castorp rumou, através do quarto e saiu para a sacada, onde, sem mais nem menos, se deixou cair na espreguiçadeira. Nem sequer mudou de posição, mergulhou numa pesada modorra, que as rápidas pulsações do coração animavam desagradavelmente.


continua pág 049...

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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Uma palavra indevida
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.