Cem Anos de Solidão
Gabriel Garcia Márquez(9.2)para jomí garcía ascot
O pacto, entretanto, não fez com que Fernanda se incorporasse à
família. Em vão Úrsula insistiu para que ela tirasse a gola de lã com que se
levantava quando tinha feito amor e que provocava os cochichos dos
vizinhos. Não conseguiu convencê-la a se utilizar do banheiro, ou do vaso
noturno, e a vender o seu peniquinho de ouro ao Coronel Aureliano Buendía
para que o transformasse em peixinhos. Amaranta se sentiu tão incomodada
com a sua dicção viciosa e com o seu hábito de usar um eufemismo para
designar cada coisa, que diante dela sempre falava na língua do p.
—
Espetapá — dizia —
épé daspas quepê têmpêm nopojopô dapa
própopriapá merperdapá.
Um dia, irritada com a brincadeira, Fernanda quis saber o que é que
Amaranta estava dizendo e ela não usou de eufemismos para lhe responder.
— Estou dizendo — disse — que você é das que confundem o cu com
as têmporas.
A partir daquele dia não tornaram a se falar. Quando as
circunstâncias obrigavam, mandavam-se recados ou se diziam as coisas
indiretamente. Apesar da visível hostilidade da família, Fernanda não
renunciou à vontade de impor os hábitos de seus antepassados. Acabou com
o costume de comer na cozinha e quando cada um tinha fome, e impôs a
obrigação de o fazer em horas certas, na mesa grande da saia de jantar
arrumada com toalhas de linho e com os candelabros e a baixela de prata. A
solenidade de um ato que Úrsula sempre tinha considerado como o mais
simples da vida cotidiana criou um ambiente de formalidade contra o qual
se rebelou primeiro que ninguém o calado José Arcadio Segundo. Mas o
costume se impôs, assim como o de rezar o rosário antes do jantar, e chamou
tanto a atenção dos vizinhos que muito em breve correu o boato de que os
Buendía não se sentavam à mesa como os outros mortais, mas que tinham
transformado o ato de comer numa missa solene. Até as superstições de
Úrsula, surgidas mais por inspiração momentânea que da tradição, entraram
em conflito com as que Fernanda herdara dos pais e que estavam
perfeitamente definidas e catalogadas para cada ocasião. Enquanto Úrsula
desfrutou do pleno domínio das suas faculdades, subsistiram alguns dos
antigos hábitos e a vida da família conservou uma certa influência das suas
intuições, mas quando perdeu a vista e o peso dos anos a desterrou para um
canto, o círculo de rigidez iniciado por Fernanda desde o momento em que
chegara terminou por se fechar completamente, e ninguém mais além dela
determinou o destino da família. O negócio de doces e animaizinhos de
caramelo, que Santa Sofía de la Piedad mantinha por vontade de Úrsula, era
considerado por Fernanda como uma atividade indigna, e não tardou em
liquidá-lo. As portas da casa, abertas de par em par desde o amanhecer até a
hora de dormir, foram fechadas durante a sesta, com o pretexto de que o sol
esquentava os quartos, e finalmente se fecharam para sempre. O ramo de
babosa e o pão que estavam pendurados no marco desde os tempos da
fundação foram substituídos por um nicho do Coração de Jesus. O Coronel
Aureliano Buendía chegou a perceber aquelas mudanças e previu as suas
consequências. “Estamos virando gente fina”, protestava.
“Neste ritmo, vamos acabar lutando outra vez contra o regime
conservador, mas agora para colocar um rei no lugar.” Fernanda, com muito
tato, procurou não ir de encontro a ele. Incomodava-a no íntimo o seu
espírito independente, a sua resistência a toda forma de rigidez social.
Exasperavam-na as suas canecas de café às cinco da manhã, a desordem da
sua oficina, a sua manta esfiapada e o seu costume de se sentar na porta da
rua ao entardecer. Teve que permitir, porém, essa peça solta do mecanismo
familiar, porque tinha a certeza de que o velho coronel era um animal
apaziguado pelos anos e pela desilusão, que num assomo de rebeldia senil
poderia arrancar os cimentos da casa. Quando o marido decidiu pôr no
primeiro filho o nome do bisavô, ela não se atreveu a fazer oposição, porque
só tinha chegado há um ano. Mas quando nasceu a primeira filha, expressou
sem reservas a sua determinação de que se chamasse Renata, como a sua
mãe. Úrsula tinha resolvido se chamaria Remedios. Ao fim de uma tensa
controvérsia qual Aureliano Segundo atuou como mediador divertido
batizaram-na com o nome de Renata Remedios, mas Fernanda continuou
chamando a menina de Renata puramente quanto que a família do marido
e todo o povo continuou a chamá-la de Meme, apelido de Remedios.
No princípio, Fernanda não falava da sua família, com o tempo
começou a idealizar o pai. Falava dele na como de um ser excepcional que
havia renunciado a toda espécie de vaidade e que se estava transformando
em santo. Aureliano Segundo, espantado com o endeusamento repentino do
sogro, não resistia à tentação de fazer pequenas zombarias pelas costas da
esposa. O resto da família seguiu o exemplo. A própria Úrsula, que era
extremamente zelosa da monja familiar e que sofria em segredo com os
atritos domésticos, permitiu-se dizer certa vez que o pequeno tataraneto
tinha assegurado o seu futuro pontifical, porque era “neto de santo e filho
de rainha com criador de gados”. Apesar daquela sorridente conspiração, as
crianças se acostumaram a pensar no avô como num ser lendário, que lhes
transcrevia versos piedosos nas cartas e lhes mandava em cada Natal caixote
de presentes que mal passava na porta da rua para entrar. Eram, realmente,
os últimos restos do patrimônio senhorial. Com eles se construiu, no quarto
das crianças, um altar com santos de tamanho natural, cujos olhos de vidro
lhes imprimiam uma inquietante aparência de vida e cujas roupas de
fazenda, artisticamente bordadas, eram melhores que as usadas em qualquer
circunstância por qualquer habitante de Macondo. Pouco a pouco, o
esplendor funerário da antiga e gelada mansão se foi trasladando para a
luminosa casa dos Buendía. “Já nos mandaram todo o cemitério familiar”,
comentou Aureliano Segundo em certa ocasião. “Agora só estão faltando os
salgueiros e as lousas sepulcrais.” Embora nos caixotes nunca tivesse chegado
nada que servisse para as crianças brincarem, estas passavam o ano inteiro
esperando dezembro, porque afinal os antiquados e sempre imprevisíveis
presentes constituíam uma novidade na casa. No décimo Natal, quando o
pequeno José Arcadio já se preparava para viajar para o seminário, chegou
com maior antecedência do que nos anos anteriores o enorme caixote do
avô, muito bem pregado e impermeabilizado com breu e endereçado com o
habitual letreiro de caracteres góticos à mui ilustre senhora dona Fernanda
del Carpio de Buendía. Enquanto ela lia a carta no quarto, as crianças se
apressaram em abrir a caixa. Ajudados como de costume por Aureliano
Segundo, rasparam os lacres de breu, despregaram a tampa, tiraram a
serragem protetora e encontraram dentro uma comprida arca de chumbo
fechada com parafusos de cobre. Aureliano Segundo tirou os oito parafusos
diante da impaciência das crianças e mal teve tempo de soltar um grito e
afastá-las para o lado quando levantou a tampa de chumbo e viu D.
Fernando vestido de preto e com um crucifixo no peito, com a pele
arrebentada em bolhas fedorentas e se cozinhando a fogo lento num
espumoso e borbulhante caldo de pérolas vivas. Pouco depois do nascimento
da menina, anunciou-se o inesperado jubileu do Coronel Aureliano Buendía,
ordenado pelo Governo para celebrar um novo aniversário do Tratado de
Neerlândia. Foi uma determinação tão incongruente com a política oficial
que o coronel se pronunciou violentamente contra ela e recusou a
homenagem.
“É a primeira vez que ouço a palavra jubileu”, dizia. “Mas seja o que
for que ela signifique, não pode deixar de ser zombaria.” A estreita oficina de
ourivesaria se encheu de emissários. Voltaram, muito mais velhos e muito
mais solenes, os advogados de terno escuro que em outra época esvoaçavam
como corvos em torno do coronel. Quando este os viu aparecer, já que em
outros tempos chegavam para atrapalhar a guerra, não pôde suportar o
cinismo dos seus panegíricos. Ordenou-lhes que o deixassem em paz, insistiu
no fato de ele não ser um prócer da nação como eles diziam, e sim um
artesão sem recordações, cujo único sonho era morrer de cansaço no
esquecimento e na miséria dos seus peixinhos de ouro. O que mais o
indignou foi a notícia de que o próprio Presidente da República pensava em
assistir aos atos de Macondo para lhe oferecer a Ordem do Mérito. O Coronel
Aureliano Buendía mandou-lhe dizer, palavra por palavra, que esperava com
verdadeira ansiedade aquela tardia mas merecida ocasião de lhe dar um tiro,
não para cobrar as arbitrariedades e anacronismos do seu regime, mas por
faltar com o respeito a um velho que não fazia mal a ninguém. Foi tal a
veemência com que pronunciou a ameaça que o Presidente da República
cancelou a viagem na última hora e mandou a condecoração por um
representante pessoal. O Coronel Gerineldo Márquez, assediado por pressões
de toda espécie, abandonou o seu leito de paralítico para persuadir o seu
antigo companheiro de armas. Quando este viu aparecer a cadeira de
balanço carregada por quatro homens e viu sentado nela, entre grandes
almofadas, o amigo que partilhara das suas vitórias e infortúnios desde a
juventude, não duvidou por um só instante de que fazia aquele esforço para
lhe expressar a sua solidariedade. Mas quando soube do verdadeiro propósito
daquela visita, fez com que o retirassem da oficina. “Tarde demais eu me
convenço, disse a ele, de que teria feito um grande favor a você se tivesse
deixado que o fuzilassem.”
De modo que o jubileu se realizou sem a presença de nenhum dos
membros da família. Foi por acaso que coincidiu com a semana do carnaval,
mas ninguém conseguiu tirar da cabeça do Coronel Aureliano Buendía a
ideia obstinada de que também aquela coincidência tinha sido prevista pelo
governo para reforçar a crueldade da zombaria. Da oficina solitária ouviu as
músicas marciais, as salvas de artilharia, os sinos de Te Deum e algumas
frases dos discursos pronunciados defronte da casa quando batizaram a rua
com o seu nome. Seus olhos se umedeceram de indignação, de raivosa
impotência, e pela primeira vez desde a derrota doeu-lhe não possuir mais
os arroubos da juventude para promover uma guerra sangrenta que
apagasse até o último vestígio do regime conservador. Ainda não se haviam
extinguido os ecos da homenagem quando Úrsula bateu na porta da oficina.
— Não aborreçam — ele disse. — Estou ocupado.
— Abra — Úrsula insistiu com voz cotidiana. — Isto não tem nada que
ver com a festa.
Então o Coronel Aureliano Buendía tirou a tranca e viu na porta
dezessete homens dos mais variados aspectos, de todos os tipos e cores, mas
todos com um ar solitário que teria bastado para identificá-los em qualquer
lugar da terra. Eram os seus filhos. Sem combinar nada, sem se conhecerem,
tinham chegado dos mais distantes lugares do litoral, cativados pelo barulho
do jubileu. Todos usavam com orgulho o nome de Aureliano e o sobrenome
da mãe. Durante os três dias que permaneceram na casa, para a satisfação
de Úrsula e o escândalo de Fernanda, ocasionaram transtornos incríveis.
Amaranta procurou entre antigos papéis a caderneta de contas onde Úrsula
anotara os nomes e as datas de nascimento e batismo de todos, e
acrescentou no espaço correspondente a cada um o domicílio atual. Aquela
lista teria permitido fazer uma recapitulação de vinte anos de guerra. Poder-se-iam reconstituir com ela os itinerários noturnos do coronel, desde a
madrugada em que saiu de Macondo à frente de vinte e um homens para
uma rebelião quimérica até que regressou pela última vez embrulhado na
manta dura de sangue. Aureliano Segundo não perdeu a ocasião de festejar
os primos com uma estrondosa farra de champanha e acordeão que se
interpretou como um atrasado ajuste de contas com o carnaval malogrado
pelo jubileu. Reduziram a cacos metade da louça, quebraram as roseiras
perseguindo um touro para o mantear, mataram galinhas a tiros, obrigaram
Amaranta a dançar as valsas tristes de Pietro Crespi, conseguiram fazer
Remedios, a bela, vestir calças de homem para subir no pau-de-sebo e
soltaram na sala de jantar um leitão lambuzado de gordura que nauseou
Fernanda, mas ninguém lamentou a sua indisposição porque a casa
estremeceu com um terremoto de boa saúde. O Coronel Aureliano Buendía,
que a princípio os recebeu com desconfiança, e até pôs em dúvida a filiação
de alguns, divertiu-se com as suas loucuras e antes que fossem embora
presenteou cada um com um peixinho de ouro. Até o esquivo José Arcadio
Segundo lhes ofereceu uma tarde de rinha, que esteve quase por terminar
em tragédia, porque vários dos Aurelianos eram tão experimentados em
transações de galos que descobriram no primeiro golpe de vista as trapaças
do Padre Antonio Isabel. Aureliano Segundo, que viu as ilimitadas
perspectivas de farra que oferecia aquela animada parentela, decidiu que
todos ficariam para trabalhar com ele. O único que aceitou foi Aureliano
Triste, um mulato grande, com os ímpetos e o espírito explorador do avô, que
já havia tentado a sorte em meio mundo e para quem tanto fazia ficar em
qualquer parte. Os outros, embora ainda fossem solteiros, consideravam
resolvido o seu destino. Eram todos artesãos hábeis, homens de suas casas,
gente de paz. Na quarta-feira de cinzas, antes que voltassem a se dispersar
pelo litoral, Amaranta conseguiu que vestissem roupas de domingo e a
acompanhassem à igreja. Mais divertidos que piedosos, deixaram-se
conduzir até o altar onde o Padre Antonio Isabel lhes pôs na testa a cruz de
cinza. De volta a casa, quando o menor quis limpar a testa, descobriu que a
mancha era indelével e que também o eram as de seus irmãos.
Experimentaram com água e sabão, com terra e bucha, e por último com
pedra-pomes e água sanitária, e não conseguiram apagar a cruz. Em
compensação, Amaranta e os outros que foram à missa tiraram-na sem
dificuldade. “Assim vão melhor”, despediu-os Úrsula. “De agora em diante
ninguém poderá confundi-los.” Foram a galope, precedidos pela banda de
música e soltando foguetes, e deixaram no povo a impressão de que a estirpe
dos Buendía tinha sementes para muitos séculos. Aureliano Triste, com a sua
cruz de cinza na testa, instalou nos arrabaldes do povoado a fábrica de gelo
com que sonhara José Arcadio Buendía nos seus delírios de inventor.
Meses depois da sua chegada, quando já era conhecido e apreciado,
Aureliano Triste andava procurando uma casa para mandar vir sua mãe e
uma irmã solteira (que não era filha do coronel) e se interessou por um
casarão decrépito que parecia abandonado numa esquina da praça.
Perguntou de quem era. Alguém lhe disse que era uma casa sem dono, onde
em outros tempos vivera uma viúva solitária que se alimentava de terra e cal
das paredes e que nos seus últimos anos só fora vista duas vezes na rua, com
um chapéu de minúsculas flores artificiais e uns sapatos cor de prata antiga,
quando atravessava a praça até a agência do correio para enviar cartas para
o Bispo. Disseram-lhe que a sua única companhia fora uma criada
desalmada que matava cães e gatos e quanto animal penetrava na casa, e
jogava os cadáveres no meio da rua para aborrecer o povo com a fedentina
da putrefação. Tanto tempo passou desde que o sol mumificara a carcaça
vazia do último animal que todo mundo dava por certo que a dona da casa e
a criada haviam morrido muito antes de que terminassem as guerras e que se
a casa ainda estava de pé era porque não tinham tido nos últimos anos um
inverno rigoroso ou um vento demolidor. As dobradiças partidas pela
ferrugem, as portas mal sustentadas pelo acúmulo de teias de aranha, as
janelas soldadas pela umidade e o chão arrebentado pelo mato e pelas flores
silvestres, em cujas gretas se aninhavam os lagartos e toda espécie de insetos,
pareciam confirmar a versão de que ali não estivera um ser humano pelo
menos há meio século. Ao impulsivo Aureliano Triste não eram necessárias
tantas provas para agir. Forçou com o ombro a porta principal e a carcomida
armação de madeira caiu sem estrépito, num calado cataclismo de pó e terra
de ninhos de cupim. Aureliano Triste permaneceu no umbral, esperando
que se desvanecesse a névoa, e então viu no centro da sala a esquálida
mulher ainda vestida com roupas do século anterior, com umas poucas
fibras amarelas no crânio pelado e com uns olhos grandes, ainda belos, nos
quais se haviam apagado as últimas estrelas da esperança, e a pele do rosto
gretada pela aridez da solidão. Comovido pela visão do outro mundo,
Aureliano Triste mal percebeu que a mulher estava apontando para ele uma
antiquada pistola militar.
— Perdão — murmurou.
Ela permaneceu imóvel no centro da sala entulhada de trastes,
examinando palmo a palmo o gigante de ombros quadrados com uma
tatuagem de cinza na testa e através da neblina da poeira viu-o na neblina
de outros tempos, com uma espingarda de dois canos trançada nas costas e
uma fieira de coelhos na mão.
— Pelo amor de Deus — exclamou em voz baixa — não é justo que
agora me venham com esta lembrança!
— Quero alugar a casa — disse Aureliano Triste.
A mulher então levantou a pistola, apontando com pulso firme a cruz
de cinza e armou o gatilho com uma determinação inapelável.
— Vá embora — ordenou.
Naquela noite, durante o jantar, Aureliano Triste contou o episódio à
família e Úrsula chorou de consternação. “Santo Deus”, exclamou apertando
a cabeça entre as mãos. “Ainda está viva!” O tempo, as guerras, as
incontáveis desgraças cotidianas tinham feito com que se esquecesse de
Rebeca. A única que não tinha perdido por um só instante a consciência de
que estava viva, apodrecendo na sua sopa de larvas, era a implacável e
envelhecida Amaranta. Pensava nela ao amanhecer, quando o gelo do
coração a acordava na cama solitária, e pensava nela quando ensaboava os
seios murchos e o ventre macilento, e quando vestia as brancas anáguas e
camisetas de cambraia da velhice, e quando trocava na mão a venda negra
da terrível expiação. Sempre, a toda hora, adormecida e acordada, nos
momentos mais sublimes e nos mais abjetos, Amaranta pensava em Rebeca,
porque a sua solidão havia selecionado as lembranças e incinerado as
entorpecentes montanhas de lixo nostálgico que a vida acumulara no seu
coração e havia purificado, magnificado e eternizado as outras, as mais
amargas. Por ela é que Remedios, a bela, sabia da existência de Rebeca. Cada
vez que passavam pela casa decrépita, contava-lhe um incidente ingrato,
uma fábula de opróbrio, tentando desta forma fazer com que o seu
extenuante rancor fosse partilhado pela sobrinha e, por conseguinte,
prolongado além da morte, mas não conseguiu realizar os seus propósitos
porque Remedios era imune a todo tipo de sentimentos apaixonados e mais
ainda aos alheios. Úrsula, em compensação, que sofrera um processo
contrário ao de Amaranta, evocou Rebeca com uma memória limpa de
impurezas, pois a imagem da pobre criatura que trouxeram à sua casa com o
saco dos ossos dos seus pais prevaleceu sobre a ofensa que a fez indigna de
continuar vinculada ao tronco familiar. Aureliano Segundo resolveu que era
preciso trazê-la para casa e protegê-la, mas o seu bom propósito foi frustrado
pela inquebrantável intransigência de Rebeca, que tinha necessitado de
muitos anos de sofrimento e miséria para conquistar os privilégios da solidão
e não estava disposta a renunciar a eles em troca de uma velhice perturbada
pelos falsos encantos da misericórdia. Em fevereiro, quando voltaram os
dezesseis filhos do Coronel Aureliano Buendía, ainda marcados com a cruz
de cinza, Aureliano Triste lhes falou de Rebeca no barulho da farra e em
meio dia restauraram a aparência da casa, trocaram portas e janelas,
pintaram a fachada de cores alegres, reforçaram as paredes e espalharam
cimento novo no chão, mas não obtiveram autorização para continuar as
reformas no interior. Rebeca nem sequer apareceu na porta. Deixou que
terminassem a aturdida restauração e logo fez um cálculo dos custos e
mandou para eles por Argénida, a velha criada que continuava a lhe fazer
companhia, um punhado de moedas tiradas de circulação desde a última
guerra, e que Rebeca acreditava que continuassem válidas. Foi então que se
percebeu a que ponto inconcebível chegara a sua desvinculação com o
mundo e se compreendeu que seria impossível resgatá-la da sua obstinada
clausura enquanto lhe restasse um sopro de vida.
Na segunda visita que os filhos do Coronel Aureliano Buendía fizeram
a Macondo, outro deles, Aureliano Centeno, ficou trabalhando com
Aureliano Triste. Era um dos primeiros que tinham vindo à casa para o
batismo, e Úrsula e Amaranta se lembravam muito bem dele, porque tinha
espedaçado em poucas horas quantos objetos quebráveis haviam passado
pelas suas mãos. O tempo tinha moderado o seu primitivo impulso de
crescimento e era um homem de estatura mediana marcado com cicatrizes
de varíola, mas o seu assombroso poder de destruição manual continuava
intacto. Tantos pratos quebrou, inclusive sem tocá-los, que Fernanda optou
por comprar para ele um serviço de folha-de-flandres antes que liquidasse
com as últimas peças da sua louça cara, e mesmo os resistentes pratos
metálicos em pouco tempo já estavam sem brilho e desbeiçados.
Compensando, porém, aquele poder irremediável, exasperante inclusive
para ele mesmo, possuía uma cordialidade que despertava a confiança
imediata e uma estupenda capacidade de trabalho. Em pouco tempo
incrementou de tal modo a produção de gelo que estourou o mercado local e
Aureliano Triste teve que pensar na possibilidade de estender o negócio para
as outras povoações do pantanal. Foi então que imaginou o passo decisivo
não só para a modernização da sua indústria, como também para vincular a
população ao resto do mundo.
— E preciso trazer a estrada de ferro — disse.
Era a primeira vez que se ouvia a expressão em Macondo. Diante do
desenho que Aureliano Triste traçou na mesa, e que era um descendente
direto dos esquemas com que José Arcadio Buendía ilustrou o projeto da
guerra solar, Úrsula confirmou a sua impressão de que o tempo estava dando
voltas num círculo vicioso. Mas ao contrário do avô, Aureliano Triste não
perdia o sono nem o apetite, nem atormentava ninguém com crises de mau
humor, mas concebia os projetos mais desatinados como possibilidades
imediatas, elaborava cálculos racionais sobre custo e prazo e os levava a cabo
sem intervalos de exasperação. Aureliano Segundo, que se tinha alguma
coisa do bisavô e não tinha do Coronel Aureliano Buendía era uma absoluta
impermeabilidade para o desengano, soltou o dinheiro para trazer a estrada
de ferro com a mesma leviandade com que o soltara para a absurda
companhia de navegação do irmão. Aureliano Triste consultou o calendário
e partiu na quarta-feira seguinte para estar de volta quando passassem as
chuvas. Não se teve mais notícias dele. Aureliano Centeno, transbordado
pelas abundâncias da fábrica, já tinha começado a experimentar a
elaboração do gelo com base em sucos de frutas no lugar da água, e sem o
saber, sem programar, imaginou os fundamentos essenciais da invenção dos
sorvetes, pensando desta forma diversificar a produção de uma empresa que
supunha sua, porque o irmão não dava sinais de regresso depois de passarem
as chuvas e transcorrer um verão inteiro sem notícias. No início do outro
inverno, entretanto, uma mulher que lavava roupa no rio na hora de mais
calor atravessou a rua principal fazendo alarido, num alarmante estado de
comoção.
— Vem aí — conseguiu explicar — um negócio horrível como uma
cozinha arrastando uma aldeia.
Nesse momento a população foi sacudida por um apito de
ressonâncias pavorosas e uma descomunal respiração ofegante. Nas semanas
anteriores viram-se grupos de trabalhadores que colocavam dormentes e
trilhos, mas ninguém prestou atenção porque pensaram que era um novo
artifício dos ciganos, que voltavam com a sua secular e desprestigiada
teimosia de apitos e chocalhos apregoando as excelências de sabe Deus que
miserável panaceia dos xaroposos gênios hierosolimitanos. Mas quando se
recuperaram do espanto dos assovios e bufos, todos os habitantes correram
para a rua e viram Aureliano Triste acenando, com a mão, da locomotiva, e
viram assombrados o trem enfeitado de flores que, já da primeira vez,
chegava com oito meses de atraso. O inocente trem amarelo que tantas
incertezas e evidencias, e tantos deleites e desventuras, e tantas mudanças,
calamidades e saudades haveria de trazer para Macondo.
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