quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Émile Zola - Germinal: Primeira Parte - (IV.b) um carro vazio para subir

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Primeira Parte

IV
 
continuando...

      Logo que havia um carro vazio para subir, o recebedor dava sinal, a operadora empurrava o seu, cheio, e era o peso deste que fazia subir o outro, quando o guarda-freio acionava a chave. Embaixo, na galeria do fundo, formavam-se os comboios que os cavalos puxavam até o poço.

 — Olá, malditos burros! — gritou Catherine no plano inclinado, todo revestido de madeira, com uma extensão de cem metros e que ressoava como um megafone gigantesco.

     Os dois rapazes deviam estar descansando, nenhum deles respondeu. Em todos os andares o transporte parou. Uma voz esganiçada de menina proclamou:

— Um deles está em cima da filha do Mouque, com certeza. Gargalhadas enormes retumbaram pela mina; as operadores de todo o veio se dobraram de riso, apertando a barriga.
— Quem foi? — perguntou Etienne a Catherine.

     Esta lhe disse que era a Lydie, uma garotinha muito sabida e que empurrava seu carro tão vigorosamente como uma mulher, apesar dos seus braços de boneca. Quanto à filha de Mouque, era bem capaz de estar com os dois rapazes juntos.
     Mas a voz do recebedor veio lá de baixo, gritando que podiam soltar o carro; decerto surgira um contramestre. O transporte recomeçou nos nove andares; só se ouviam agora os chamados dos dois operários do plano inclinado e o bufar das operadoras chegando ao plano, esbaforidas como jumentas carregadas demais. Havia um sopro de bestialidade por toda a mina, um desejo súbito de macho, quando um mineiro encontrava uma dessas moças de quatro, o traseiro ao ar, as ancas arrebentando as calças de homem.
     E, depois de cada viagem, Etienne voltava a encontrar no fundo do veio a mesma sufocação, a cadência surda e quebrada das picaretas, os grandes suspiros dolorosos dos britadores ferozes na sua labuta. Os quatro tinham-se posto em pelo, enterrados na hulha, cobertos de lodo negro até os cabelos. Num certo momento foi preciso ajudar Maheu, que estertorava, e levantar as pranchas para fazer o carvão escorregar até a via. Zacharie e Levaque enfureciam-se contra o veio, que, diziam eles, estava resistindo às picaretas, o que tornaria as condições de sua empreitada desastrosas. Chaval deitava-se por uns instantes de costas, para poder assim descompor Etienne, cuja presença decididamente o exasperava.

 — Este molenga tem menos força que uma moça! Desse jeito nunca vais encher o teu vagonete... Hem? É para poupar teus braços? Juro que não te pago os dez soldos se um deles não for aceito...

     O rapaz evitava responder; ainda se considerava muito feliz por ter encontrado esse trabalho de forçado, e aceitava o brutal sentido de hierarquia do operário e do mestre-de-obras. Mas não podia mais, tinha os pés em sangue, os membros torcidos por cãibras atrozes, o tronco apertado por um cinto de ferro. Felizmente eram dez horas, o grupo resolveu almoçar.
      Maheu tinha relógio, mas nem olhou para ele. No fundo desta noite sem astros, nunca se enganava, fosse a cinco minutos. Todos vestiram novamente a camisa e a jaqueta e desceram do veio; em seguida, acocoraram-se, puseram os cotovelos nas ilhargas, as nádegas sobre os calcanhares, nessa postura tão comum aos mineiros e que adotam até mesmo fora da mina, sem sentirem necessidade de uma pedra ou de uma trave para sentar. E cada um, tendo desenrolado seu sanduíche, começou a morder gravemente a grossa fatia, falando muito pouco sobre o trabalho da manhã. Catherine, que ficara em pé, acabou indo juntar-se a Etienne, que se espichara mais adiante, atravessado nos trilhos, as costas contra as madeiras; havia ali um lugar que estava quase seco.

 — Não vais comer? — perguntou ela de boca cheia, sanduíche na mão.

     Em seguida lembrou que encontrara esse rapaz vagando na noite, talvez sem vintém ou um pedaço de pão...

— Vamos repartir?

     E, como ele não aceitasse, jurando que não tinha fome, mas com a voz trêmula de desejo, ela continuou alegremente:

— Ah! estás com nojo... Eu só mordi deste lado, vou te dar do outro, está bem?

     Enquanto falava, foi partindo o pão em dois. O rapaz, ao pegar sua metade, teve de se conter para não a devorar de uma só vez, e descansou os braços sobre as coxas para que ela não notasse como remiam. Com seu ar tranquilo, de bom colega, Catherine deitara-se ao lado dele, barriga para baixo, o queixo em uma das mãos, enquanto com a outra comia sem pressa. Entre eles, as duas lâmpadas os iluminavam.
     A moça olhou-o um momento em silêncio; devia estar achando bonito aquele rosto de feições finas e de bigode preto. Docemente, ela sorriu de prazer.

— Então és mecânico e te despediram da estrada de ferro... Por quê? 
— Esbofeteei o chefe...

     Ela ficou estupefata, confusa nas suas ideias hereditárias de subordinação e de obediência passiva.

— A verdade é que tinha bebido — continuou ele —, e quando bebo fico louco, sou capaz de me comer e comer os outros. E isso; basta beber dois goles para sentir a necessidade de destroçar um homem... Depois fico doente por dois dias... 
— Não devias beber — disse ela muito séria. 
— Não precisa ter medo, me conheço muito bem. Balançou a cabeça: tinha um ódio de morte da aguardente, o ódio de último filho de uma raça de bêbados, que sofria na carne o resultado de toda essa ascendência empapada em álcool e desequilibrada graças a ele, e isso a tal ponto que uma simples gota transformava-se num veneno agindo no seu corpo. 
— É mais por causa de minha mãe que estou aborrecido de ter sido posto na rua — continuou ele depois de engolir um bocado. — Ela não é feliz e de vez em quando eu lhe mandava uma moeda de cem soldos.
— E onde é que mora a tua mãe? 
— Em Paris, na rua de la Goutte d'Or. É lavadeira.

     Houve um silêncio. Quando ele pensava nessas coisas, seus olhos negros enfraqueciam-se e vacilavam, era uma angústia rápida resultante da lesão da qual ele temia o pior, apesar de sua saudável juventude. Por um instante ficou com os olhos perdidos nas trevas da mina. Àquela profundidade, sob o peso esmagador da terra, começou a relembrar sua infância, a mãe ainda bonita e corajosa, abandonada pelo pai, que depois voltou, apesar de ela já estar casada com outro, ela vivendo entre os dois homens que a destruíam, chafurdando com eles nas sarjetas, no vinho, na imundície. Sim, era lá mesmo, lembrava-se até da rua, de pormenores: a roupa suja no meio da loja, as bebedeiras que empestavam a casa, as bofetadas de quebrar os queixos...

— Agora — continuou ele lentamente — não será com trinta soldos que eu poderei ajudá-la. Com certeza vai morrer de tanta miséria...

      Encolheu os ombros num gesto desesperado e mordeu novamente o pão.

— Queres beber? — perguntou Catherine abrindo o cantil. — E café, não faz mal. A gente chega a se engasgar engolindo dessa maneira...

     Ele não quis aceitar; já não comera metade do seu pão? Mas ela insistiu cheia de boa vontade, dizendo:

— Muito bem! Bebo antes, já que és tão cortês, só que agora tens de aceitar, senão fica feio.

     Catherine estendeu-lhe o cantil: estava de joelhos, muito próxima dele, iluminada pelas duas lâmpadas. Como podia tê-la achado feia? Agora que ela estava negra, o rosto empoado de carvão fino, parecia-lhe de um encanto singular. Naquela fisionomia escura, os dentes, na boca grande demais, eram uma explosão de brancura, os olhos pareciam maiores, brilhavam com um reflexo esverdeado, iguais a olhos de gata. Uma mecha de cabelo ruivo que escapara da coifa fazia-lhe cócegas no ouvido, obrigando-a a rir. Já nem parecia tão criança, bem que podia ter catorze anos...

— Já que queres... — disse ele, bebendo e devolvendo-lhe o cantil.

     Ela bebeu outro gole e forçou-o a beber outro: para repartir, disse. E aquele gargalo minúsculo passando de uma boca a outra lhes proporcionou uma sensação agradável. De repente ele se perguntou se não devia tomá-la em seus braços e beijá-la na boca. A moça tinha lábios grossos de um rosa pálido que o carvão ressaltava, o que fazia aumentar o seu desejo. No entanto não ousou, intimidado diante dela; em Lille só conhecera mulheres da mais baixa espécie, não saberia como agir com uma operária que ainda vivia com a família.

— Deves ter catorze anos, não? — perguntou ele após ter mordido o pão.  

     Ela respondeu espantada, quase zangada:

— O quê? Catorze? Tenho quinze anos! A verdade é que não sou muito desenvolvida; as moças aqui não crescem muito depressa.

     Ele continuou a interrogá-la e ela respondeu a tudo, sem impudência ou acanhamento. De resto, ela não ignorava nada sobre o homem ou a mulher, ainda que ele a sentisse virgem de corpo, e virgem criança, com a maturidade do seu sexo retardada devido ao ar impuro e ao cansaço em que vivia. Quando ele voltou a falar na filha de Mouque, tentando embaraçá-la, ela contou histórias espantosas num tom tranquilo e alegre: — Ah! essa vivia fazendo das dela!. — E quando ele quis saber se não tinha namorado, ela respondeu gracejando que não queria contrariar a mãe, mas seguramente isso aconteceria um dia. Seus ombros estavam curvados, ela tinha um leve tremor de frio resultante da roupa molhada de suor, a fisionomia resignada e doce, pronta a suportar as coisas e os homens.

 — Namorado é fácil encontrar quando todo mundo vive junto, não é verdade? 
— Claro. 
— E depois isso não faz mal a ninguém; é só não dizer nada ao padre... 
— O padre pouco me importa! O Homem Negro, esse sim, é perigoso... 
— Que Homem Negro? 
— O velho mineiro que volta à mina para torcer o pescoço das moças que se portam mal...

     Etienne fixou-a, receando que ela estivesse zombando dele.

— Então tu crês nessas bobagens? É porque não sabes nada... — Sei, sim, sei ler e escrever... Isso é muito útil para nós; no tempo do papai e da mamãe não se estudava.

     Decididamente, ela era encantadora. Assim que acabasse de comer, tomá-la-ia em seus braços e beijaria aqueles lábios grossos e róseos. Era a resolução de um tímido, um pensamento de violência que chegava a estrangular-lhe a voz. Essas roupas de rapaz, essa jaqueta e essas calças sobre a carne de moça o excitavam e incomodavam ao mesmo tempo. Tendo acabado de comer o último naco de pão, bebeu no cantil e entregou-o, para que ela o esvaziasse. O momento de voltar ao trabalho havia chegado, deu uma olhadela inquieta para os mineiros no fundo; nesse momento uma sombra obstruiu a galeria.
     Havia um instante que Chaval, em pé, observava-os de longe. Avançou, não sem primeiro estar certo de que Maheu não podia vê-lo, e, como Catherine tivesse permanecido sentada no chão, agarrou-a pelos ombros, deitou sua cabeça e esmagou sua boca com um beijo brutal, e tudo isso tranquilamente, fingindo não se preocupar com a presença de Etienne. Havia nesse beijo uma tomada de posse, uma espécie de decisão ciumenta.
     A moça, no entanto, revoltou-se:

— Deixa-me, ouviste?

     Mas ele continuava a segurar-lhe a cabeça e olhava-a no fundo dos olhos. Seu bigode e sua barbicha ruivos flamejavam no rosto negro de nariz enorme, em forma de bico de águia. Por fim, largou-a e foi-se sem dizer palavra.
     Um arrepio gelara o corpo de Etienne. Fora estúpido por ter esperado, e agora, claro, não a beijaria, ela poderia pensar que ele estava querendo imitar o outro. Na sua vaidade ferida, sentia-se verdadeiramente desesperado.

— Por que mentiste? — perguntou ele em voz baixa. — Esse é o teu namorado. 
— Não, não, juro! — exclamou ela. — Não há nada entre nós. Às vezes ele gosta de fazer brincadeiras. Ademais, ele nem é daqui, veio há seis meses de Pas-de-Calais.

      Era hora de voltar ao trabalho, ambos se levantaram. Vendo-o tão frio, ela ficou triste. Sem dúvida achava-o mais bonito que o outro, talvez mesmo o preferisse. Queria inventar uma amabilidade, alguma coisa para consolá-lo; e como o rapaz, admirado, examinava sua lâmpada, que tinha uma chama azul envolta num grande círculo pálido, ela tentou ao menos distraí-lo:

 — Vem comigo, vou mostrar-te uma coisa — murmurou, num tom amistoso.

      Levou-o para o fundo do veio e apontou para uma frincha na hulha; escapava dela um leve murmúrio, um ruidozinho igual a pipilo de pássaro.

— Põe a mão... sentes o vento? É o grisu.

     Ele teve uma surpresa: então era só isso o gás terrível que fazia ir tudo pelos ares? Ela riu e explicou que naquele dia devia haver muito para que as chamas das lâmpadas estivessem tão azuis.

— Quando é que vocês vão parar de tagarelar, seus vagabundos? — gritou a voz brutal de Maheu.

     Catherine e Etienne voltaram correndo ao trabalho de encher seus carros e de empurrá-los para o plano inclinado, as espinhas dorsais retesadas, raspando no teto acidentado da galeria. A partir do segundo carreto, o suor os inundava e os ossos voltavam a estalar.
      No veio, o trabalho dos britadores tinha recomeçado. Muitas vezes eles apressavam o almoço para não perderem o calor do corpo; e seus sanduíches, comidos numa voracidade muda e naquela profundidade, transformavam-se em chumbo no estômago. Deitados de lado, golpeavam mais forte, com a ideia fixa de completar um número elevado de vagonetes. Tudo desaparecia nessa fúria de ganho tão duramente disputado, nem mesmo sentiam mais a água que escorria e lhes inchava os membros, as cãibras resultantes das posições forçadas, as trevas sufocantes onde eles descoravam como plantas encerradas em adegas. E, à medida que o dia avançava, o ar ficava cada vez mais envenenado, aquecia-se com a fumaça das lâmpadas, com a Pestilência dos hálitos, com a asfixia do grisu, que pousava nos olhos como teias de aranha e somente o vento da noite varreria. Mas eles, no fundo dos seus buracos de toupeira, suportando o peso da terra, sem ar nos peitos escaldantes, continuavam a cavar.

continua na página 45...
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Primeira Parte - (IV.b) um carro vazio para subir
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - Paris estudado na sua mais tênue parcela / II - Alguns dos seus sinais particulares

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Primeiro — Paris estudado na sua mais tênue parcela

II - Alguns dos seus sinais particulares
     
     O gaiato de Paris é um anão gerado por uma gigante.
     Não exageremos, contudo; este querubim da enxurrada tem algumas vezes camisa, mas neste caso não tem mais de uma; possui algumas vezes sapatos, mas sem solas; tem por vezes uma habitação que esma, porque nela encontra sua mãe; mas prefere a rua, porque acha nela a liberdade. Tem seus brinquedos e malícias, que lhe são próprios, mas cujo fundo é o ódio aos burgueses; tem metamorfoses que lhe são peculiares; estar morto chama-se comer taráxacos pela raiz; há ocupações que lhe são privativas, como ir buscar carruagens, baixar os estribos das carruagens, estabelecer alpendres de um a outro lado da rua, nas ocasiões de grossas chuvas, ao que ele chama fazer pontes das artes, apregoar os discursos pronunciados pela autoridade em favor do povo francês, e esgaravatar entre as pedras das calçadas; tem também a sua moeda particular, que se compõe de todos os bocadinhos de metal que acha na rua. Esta curiosa moeda, que toma o nome de chabicas, tem curso invariável e muito bem regulado na pequena boémia das crianças.
     Tem, enfim, a fauna particular, que observa estudiosamente por todos os cantos: as lagartas, os besoiros e o «diabo», inseto preto que ameaça com a cauda, guarnecida de dois ferrões. Tem o seu monstro fabuloso com escamas no ventre e que não é um lagarto, com pústulas no lombo e não é sapo, que habita nos fornos de cal abandonados e nos poços secos, negro, felpudo, viscoso, arrastando-se ora devagar, ora rapidamente, que não grita, mas que olha, e que é tão terrível que nunca foi visto por ninguém; a este monstro chama ele «o surdo». Procurar surdos entre as pedras é um prazer do gênero terrível. Outro prazer ainda: levantar de repente uma pedra e ver bichos de conta. Cada região de Paris é célebre pelos interessantes achados que nela se podem fazer. Nas estâncias das Ursulinas dominam as formigas, no Panteon as centopeias, nos fossos do campo de Marte as rãs.
     Quanto a frases, este pequeno tem-nas propriamente suas como Talleyrand; não é menos cínico mas é mais honrado É dotado de imprevista jovialidade; aturde inopinadamente o primeiro lojista por cujo estabelecimento passa, com uma incrível risada fingida. A sua gama desce atrevidamente da alta comédia até à farsa.
     Passa um enterro. Entre os que o acompanham vai um médico.

— Ora esta! — grita um gaiato. — Desde quando é que os médicos vão levar a obra?

      Entre a multidão está outro gaiato. De repente, um homem sério de óculos e muitos berloques no relógio volta-se para ele, bramando indignado:

— Maroto! Deitaste a mão à cintura de minha mulher!
— Eu, senhor!? Apalpe-me, veja se a encontra!

continua na página 437...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - II - Alguns dos seus sinais particulares
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (11b) - Àquela hora o corredor estava escuro

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

11.

continuando...

.     Àquela hora o corredor estava escuro. "E se ele, de repente, saísse daquele vão e investisse contra mim, na escada?” Foi a ideia que lhe relampejou no espírito quando se sentiu perto do mesmo lugar daquela vez passada. Mas não surgiu ninguém.
     Alcançou a porta da rua, saiu, admirou-se ao ver a densa multidão que se espraiava pelas ruas (como sempre, no verão, à hora do poente, acontece em Petersburgo). Virou na direção da Gorókhovaia. Devia já estar distanciado do hotel uns cinquenta passos quando, na primeira rua que ia atravessar, alguém, na multidão, sem ele esperar, lhe tocou o cotovelo e lhe sussurrou ao ouvido:

- Liév Nikoláievitch, meu irmão, preciso de ti. Segue-me.

     Era Rogójin.
     Foi uma coisa estranha, mas deve ser dita: o príncipe pôs-se logo a lhe contar efusivamente, muito além de qualquer propósito, de modo atabalhoado, que estivera a esperá-lo no hotel e que até pensara encontrá-lo no corredor.

- Eu estive lá - respondeu Rogójin. - Vem comigo!

     Esta resposta surpreendente só espantou o príncipe dois minutos depois, quando a entendeu bem. E, tendo compreendido, ficou alarmado, a olhar com toda a atenção para Rogójin, que caminhava na sua frente, à distância de um passo, abrindo passagem para ele, Míchkin, com cuidado mecânico, alheio a todo o mundo.

- Mas, se esteve no hotel, por que não foi me procurar no quarto?

     Rogójin parou, olhou-o um pouco e, como se não tivesse ouvido direito a pergunta, disse:

- Presta atenção no que te vou pedir, Liév Nikoláievitch. Segue sempre à direita, rua acima, até a minha casa; e eu atravesso e vou pelo outro lado da rua. Mas repara que um tome conta do outro.

     Dito o que, atravessou a rua, para a outra calçada, parou, a ver, de lá, se o príncipe estava andando. Vendo, porém, que não, fez-lhe um sinal com os olhos, tomou a direção de Gorókhovaia e seguiu, virando a todo momento para olhar o príncipe, e lhe fazendo sinal para o seguir. E evidentemente se certificou logo que o príncipe o tinha compreendido e o estava já seguindo, pelo outro lado da rua, na calçada paralela. O príncipe pensou que, com certeza, Rogójin queria espreitar alguma pessoa que lhe não conviria que passasse por ele ou o seguisse. E tinha atravessado para o outro lado, por precaução.

“Mas, ao menos, por que não me disse de quem está com receio?”

     Caminharam, assim, uns quinhentos passos. De repente, sem saber direito por que, Míchkin começou a tremer. Rogójin continuava a olhá-lo, de quando em quando, porém mais espaçadamente. Sentindo que não podia prosseguir, o príncipe lhe fez um sinal, chamando-o. Rogójin atravessou imediatamente a rua, enviesando-se na sua direção.

- Nastássia Filíppovna está em sua casa? 
- Está. 
- Foi você que me olhou, por detrás da cortina, esta manhã? 
- Fui. 
- Como? Era você?

     E o príncipe não soube o que perguntar a seguir e nem como acabar a sua interrogação. De mais a mais, o seu coração batia tanto que mal poderia continuar a falar. Rogójin também ficou calado e continuou a olhar para ele, como ainda agora, com uma expressão de sonho...

- Bem, então vou indo - disse, afinal, preparando-se para atravessar para o outro lado - Tu vais sozinho, pois fica melhor cada um seguir separadamente...

     Quando, por fim, dobraram a esquina para a Gorókhovaia, já próximos da casa de Rogójin, as pernas do príncipe começaram a fraquejar a ponto de lhe ser quase impossível poder prosseguir. Eram mais ou menos dez horas da noite. As janelas do lado da velha ainda estavam escancaradas, como de dia. As da parte de Rogójin permaneciam todas fechadas e, na penumbra, as cortinas ficavam mais visíveis. O príncipe aproximava-se pela calçada oposta à casa. Rogójin, sempre pela sua calçada, chegou, dobrou para as escadas e, lá do vão, lhe acenou. Míchkin atravessou e veio se juntar a ele.

 - O porteiro ignora que estou aqui. Menti-lhe, esta manhã, que ia para Pávlovsk e deixei uma palavra neste sentido também à minha mãe. - sussurrou, com um sorriso dissimulado e quase jactancioso - Vamos entrar de maneira que ninguém ouça. 

     A chave já estava na sua mão. Subindo a escada, virou-se, fez com o dedo no ar um gesto bem significativo, dando a entender ao príncipe que subisse sem nenhum ruído. Abriu sem o menor estalido a porta dos seus aposentos, fez o príncipe passar, entrou também, com muita cautela, fechou a porta, guardou a chave no bolso.

- Vem - ciciou ele.

     Desde a Litéinaia que só falava por cicios, estando, por dentro, a despeito de toda a calma aparente, em um estado de intensa agitação. Chegando à sala de visitas, a caminho do gabinete, se dirigiu para a janela e fez um gesto para Míchkin. 

- Esta manhã, quando tocaram, adivinhei logo que eras tu. Fui, na ponta dos pés, até àquela porta e te ouvi falar com a Pafnútievna. Mal o dia raiou eu dei ordem a ela para que se tu, ou qualquer pessoa mandada por ti, batesse na minha porta, não dissesse absolutamente que eu estava aqui: principalmente se fosses tu, e lhe dei o teu nome. Depois, quando te foste embora, me veio o pensamento: “E se ele fica parado a espiar lá da rua, vigiando?” Aproximei-me então desta janela. aqui. franzi um pouco a cortina.... E lá estavas tu, e me olhaste até... Foi assim. 

- Onde está Nastássia Filíppovna? - perguntou o príncipe, quase sem fôlego. 
- Ela... está... aqui... - respondeu Rogójin, baixo, demorando a falar. 
- Onde? 

     Rogójin ergueu os olhos e fitou o príncipe. 

-Vem...  

     Falava sempre ciciando, com aquele mesmo ar de sonho. Já um pouco antes, ainda agora mesmo, quando contou aquela coisa a respeito da cortina, parecia querer dizer coisa muito outra, apesar de ter simulado estar falando espontaneamente.
     Entraram no gabinete.
     Havia qualquer mudança naquela sala, depois da anterior vinda do príncipe. Uma pesada cortina verde, que devia ter servido para outro fim, pendia de viés, separando a ala da alcova de Rogójin. Estava escuro. As noites brancas, do verão de Petersburgo, já se iam alterando, e se não houvesse lua cheia teria sido difícil distinguir qualquer coisa nessas peças com janelas tapadas por cortinas. Em todo o caso podiam distinguir o rosto um do outro, embora mal. As faces de Rogójin estavam pálidas como de costume. Os seus olhos cintilantes continuavam a vigiar o príncipe, com um brilho seco

- Seria melhor acender uma luz - sugeriu Míchkin. 
- Não. Não precisa respondeu o outro - que, tocando a mão do príncipe, o fez sentar. 

     Sentou-se também, por sua vez, tendo trazido a cadeira para tão perto que quando se sentou, ficou roçando os joelhos do outro. Junto deles, um pouco para um lado, havia uma mesinha redonda. 

- Fiquemos aqui um pouco - disse, como querendo persuadir o príncipe a não se levantar.
- Bem me pareceu que devias estar lá naquele hotel, de novo - começou ele, com aquela maneira por que certas pessoas, iniciando um assunto importante, preludiam antes com ninharias que não vêm a propósito. - Mal entrei pelo corredor adentro, pensei: “E se ele estiver sentado lá dentro esperando por mim, enquanto eu estou aqui em pé, esperando por ele?” Estiveste na casa da viúva do mestre-escola? 

     Devido ao violento palpitar do seu coração, o príncipe mal pôde responder: 

- Estive. 
- Pensei nisso, também “Vão acabar falando”, pensei.., então disse comigo assim: “Vou trazê-lo aqui, esta noite, de maneira a passarmos a noite juntos... 
- Rogójín! Onde está Nastássia Filíppovna? - perguntou o príncipe, prontamente.

     E todos os seus membros começaram a tremer, quando ficou de pé. Rogójin também se levantou, e sussurrou, apontando para a cortina:

- Está ali. 
- Dormindo? - balbuciou o príncipe. 

     Rogójin tornou a olhar para ele com profunda atenção. 

- Bem, entra, tu... somente... Entra... 

     Ergueu a cortina, assim, em pé, voltado para o príncipe. 

- Entra! - disse, reforçando, com um gesto, empurrando-o mansamente para dentro da cortina. 

     Míchkin entrou. 

- Está escuro... - disse. 
- Mas se vê... - ciciou Rogójin. 
- Vejo muito mal... Aqui... é... uma cama? 
- Aproxima-te - sugeriu Rogójin, brandamente. 

     O príncipe deu o primeiro passo; depois o segundo e parou. Parou e ficou olhando. Passou um minuto. Custou muito a passar outro minuto. Permaneciam perto da cama, bem rente. Não falavam absolutamente nada. O coração do príncipe batia tão violentamente que era agora a única coisa audível na quietude mortal da alcova.
     Os seus olhos já se estavam acomodando na treva e então começou a distinguir a cama inteira. Alguém jazia nela, dormindo um sono de perfeita imobilidade, sem fazer ruído algum, por mais insignificante que fosse: nem mesmo o da respiração. E quem assim dormia estava coberto desde a cabeça até aos pés com um lençol branco sob o qual os membros vagamente se configuravam. Tudo quanto se podia ver era que um corpo humano jazia ali, estendido em todo o seu comprimento.
     Na mais completa desordem, aos pés da cama, sobre as cadeiras ao lado, e pelo chão, havia roupas jogadas. Um rico vestido de seda branca. Flores. E fitas. Em uma pequenina mesa, junto à cabeceira da cama, um diadema de diamantes que tinha sido tirado e posto ali. Do lado dos pés da cama havia um monte de sedas e cambraias amarrotadas, e sobre elas emergia de uma nesga do lençol um pé nu. Tão branco, tão imóvel que parecia de mármore. O príncipe olhava... E, olhando, sentia que a alcova cada vez se ornava mais sepulcralmente silenciosa. Nisto ouviu o zunido de uma mosca que voou sobre o leito e foi pousar no travesseiro. O príncipe recuou.

- Agora, vem comigo! - era Rogójin, que lhe tocava no braço.

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (11b) - Àquela hora o corredor estava escuro
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Massa e Poder - Malta e Religião: As Danças da Chuva dos Índios Pueblos

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      As Danças da Chuva dos Índios Pueblos

     São de multiplicação as danças que devem trazer a chuva. Elas a arrancam do solo, por assim dizer, pisoteando-o. O bater dos pés é como o cair das gotas. Se a chuva começa a cair durante a representação, os pueblos seguem dançando nela. A dança que representa a chuva transforma-se, afinal, nela própria. Um grupo de talvez quarenta pessoas movimentando-se ritmicamente metamorfoseia-se em chuva.
     A chuva é o mais importante símbolo de massa dos índios pueblos. Ela sempre foi importante, inclusive para seus antepassados, que possivelmente viviam em alguma outra parte. Contudo, desde que passaram a habitar as áridas mesetas, aumentou tanto a sua importância que a chuva determinou inteiramente a natureza de sua crença. O milho, do qual vivem, e a chuva, sem a qual o milho não cresce, compõem o cerne de todas as suas cerimônias. Os muitos expedientes mágicos de que se servem os pueblos para produzir a chuva são condensados e intensificados nessas suas danças da chuva.
      Há que se enfatizar que tais danças nada têm de selvagem, mas relacionam-se com a natureza da própria chuva. Na qualidade de nuvem, forma sob a qual ela se aproxima, a chuva constitui uma unidade. A nuvem encontra-se no alto e distante, ela é macia e branca e, ao aproximar-se, desperta ternura nos homens. Contudo, tão logo se descarrega, a nuvem desintegra-se. A chuva chega aos homens e ao solo que a absorve em gotas individuais e isoladas. A dança que, metamorfoseando-se nela, tem por função atraí-la representa também, mais do que a sua formação, a fuga e a desagregação de uma massa. Os dançarinos anseiam pela nuvem, mas esta não deve permanecer condensada no céu, e sim derramar-se. A nuvem é uma massa amistosa, e, em que medida o é, depreende-se pelo fato de ela ser equiparada aos antepassados. Os mortos retornam sob a forma de nuvens de chuva, e trazem a bênção. Se, numa tarde de verão, nuvens de chuva aparecem no céu, diz-se às crianças: “Vejam! Os avós de vocês vêm vindo”. E quem o diz não se refere aos mortos de sua própria família, mas aos antepassados de um modo geral.
      Já os sacerdotes, em seu isolamento ritual, permanecem sentados e imóveis por oito dias e, absortos em si mesmos diante de seus altares, invocam a chuva:

De onde quer que tenhais vossa morada permanente, 
Desde lá vos poreis a caminho, 
Para encher das águas cheias de vida 
Vossas nuvenzinhas compelidas pelo vento, 
Vossas delgadas tiras de nuvens. 
Mandareis para nós, para que conosco permaneça, 
Vossa linda chuva, que acaricia a terra 
Aqui em Itiwana, 
Morada de nossos pais, 
De nossas mães 
E daqueles que viveram antes de nós. 
Com vossa imensidão de água, 
Vireis todos juntos.

     O que se deseja é uma imensidão de água, mas essa imensidão, reunida em nuvens, desfaz-se em gotas. A tônica das danças da chuva recai sobre a desagregação. O que se deseja é uma massa branda ; não se trata de um animal perigoso que se tenha de abater, ou de um inimigo odioso a ser combatido. Essa massa é equiparada àquela dos antepassados, que, para os pueblos, são pacíficos e benevolentes.
     A bênção que as gotas trazem para o solo conduz, então, a uma outra massa, da qual vivem: o milho. Como em toda colheita, o milho é reunido em montes. Tem-se aí precisamente o processo inverso: as nuvens de chuva desagregam-se em gotas; o monte colhido, por sua vez, reúne todas as espigas, cada grão de milho, por assim dizer.
     Graças a esse alimento, os homens fazem-se fortes e as mulheres, férteis. A palavra crianças figura constantemente nas preces. O sacerdote fala dos vivos da tribo como se falasse de crianças, mas fala também de todos os meninos e meninas, de todos aqueles “que têm ainda a vida pela frente”. Estes constituem aquilo a que chamaríamos o futuro da tribo. Para usar uma imagem mais precisa, o sacerdote os vê como todos aqueles que têm ainda a vida pela frente.
     As massas fundamentais na vida dos pueblos são, portanto, a dos antepassados e das crianças, a da chuva e a do milho — ou, se se deseja colocá-las em algo como uma sequência causal, a dos antepassados, da chuva, do milho e das crianças.
     Dos quatro tipos de malta existentes, as de caça e de guerra quase inexistem entre os pueblos. Há ainda resquícios de caça aos coelhos, assim como há também uma sociedade de guerreiros, mas sua função é tão somente a de uma polícia — e, para a existência entre eles de uma polícia, no nosso sentido da palavra, são poucos os motivos. Entre os pueblos, a malta de lamentação foi restringida de maneira espantosa. Dá-se às mortes a menor importância possível, e, na condição de indivíduos, procura-se esquecer os mortos com a máxima rapidez. Quatro dias após a morte, o sacerdote supremo exorta os enlutados a não pensarem mais no morto: “Ele já está morto há quatro anos!”. A morte é deslocada para o passado, atenuando assim a dor. Os pueblos nada têm a dizer sobre as maltas de lamentação: eles isolam a dor.
     Resta-lhes, pois, como forma ativa e bastante desenvolvida de malta, a malta de multiplicação. Toda a ênfase da vida comunitária é transferida para ela. Poder-se-ia dizer que os pueblos vivem unicamente para essa multiplicação, e ela é empregada exclusivamente no sentido positivo. A cabeça de Jano que conhecemos de tantos outros povos — por um lado, a multiplicação da própria gente; por outro, a diminuição dos inimigos — é-lhes desconhecida. Assim, não se interessam por guerras. A chuva e o milho os abrandaram, e sua vida vincula-se inteiramente à de seus próprios antepassados e de suas crianças.

continua página 210...
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Massa e Poder - Malta e Religião: As Danças da Chuva dos Índios Pueblos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: “Operationes spirituales” (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

“Operationes spirituales” 
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     Leo Naphta era natural de um lugarejo situado nas proximidades da fronteira entre a Galícia e a Volínia. Seu pai, do qual falava com respeito – sentindo evidentemente que já se distanciara bastante do mundo da sua origem para poder julgá-lo com benevolência – seu pai fora schochet, açougueiro ritual. Esse ofício era diferente – e quanto! – daquele que exercia o açougueiro cristão, um mero artífice e comerciante. O pai de Leo não era nem uma nem outra coisa. Era uma autoridade de caráter religioso. Examinado pelo rabino quanto à sua habilidade piedosa, autorizado por ele a abater, em conformidade com os preceitos do Talmude, o gado que a lei de Moisés considerava apto para esse fim, Elia Naphta, cujos olhos cheios de espiritualidade plácida haviam brilhado, segundo a descrição do filho, com um esplendor estelar, revelara ele próprio, em todo o seu ser, o cunho sacerdotal, uma solenidade que relembrava que a função de degolar animais coubera nos tempos antigos aos sacerdotes. Às vezes, Leo, ou Leib, como o chamavam na infância, tinha ocasião de ver o pai desempenhar-se das suas tarefas rituais, o que fazia no pátio, ajudado por um oficial enorme, um rapagão daquele tipo atlético que se encontra entre os judeus. Ao lado desse gigante, o frágil Elia, com a barba loura aparada em forma oval, parecia ainda mais delgado e mais franzino. E contra o animal atado e amordaçado, mas, não aturdido, o pai brandia a grande faca de schochet, abrindo-lhe um profundo talho à altura da vértebra cervical, enquanto o ajudante apanhava, em tigelas que se enchiam rapidamente, o sangue fumegante que brotava do corpo. O menino contemplava esse espetáculo com aquele olhar de criança, que muito além das aparências visíveis penetra até a sua essência, e que o filho de Elia, o dos olhos estelares, deve ter possuído em grau incomum. Sabia Leo que os açougueiros cristãos tinham a obrigação de atordoar os animais com um golpe de maceta ou de machado, antes de matá-los, e que essa prescrição lhes era imposta a fim de evitar ao gado um tratamento torturante e impiedoso. Seu pai, por sua vez, embora muito mais delicado e muito mais sábio do que aqueles lorpas, e ainda dotado de olhos estelares como nenhum deles, procedia conforme a lei, dando o golpe mortal à rês não aturdida e deixando-a derramar o seu sangue até cair exausta. O menino Leib percebia instintivamente que o método desses grosseiros goim era inspirado por uma bondade fácil e profana, e que dessa forma não se prestava ao ato sagrado a mesma honra que ele gozava em virtude do rigorismo solene do rito paterno. O conceito da devoção ligava se, no seu íntimo, ao da crueldade, assim como na sua imaginação o aspecto e o cheiro do sangue a jorrar acompanhavam a ideia do sagrado e do espiritual. Pois compreendia perfeitamente que o pai não se devotara ao seu ofício sanguinário pelo mesmo gosto brutal que talvez determinasse a escolha de robustos rapazes cristãos e do seu próprio ajudante; motivos espirituais haviam-no influenciado, apesar do seu físico frágil, e em harmonia com os seus olhos estelares.
     Com efeito, Elia Naphta era um sonhador e um pensador; não se limitava a estudar a Tora, mas também interpretava a Escritura, cujas máximas discutia com o rabino, altercando com ele não raras vezes. Na região, e não somente entre os seus correligionários, era considerado homem extraordinário, que sabia mais do que os outros, em parte devido à sua piedade, em parte também graças a conhecimentos suspeitos, talvez, e em todo caso contrários, à ordem natural das coisas. Havia nele um quê de irregularidade sectária, algo de um confidente de Deus, de um Baal Chem ou Zaddik, quer dizer, um taumaturgo, tanto mais que realmente curara certa feita uma mulher de uma erupção maligna, e em outra ocasião, um garoto de convulsões, e tudo isso por meio de sangue e de versículos. Mas foi precisamente esse nimbo de uma piedade um tanto ousada, no qual o cheiro de sangue da sua profissão desempenhava o seu papel, que se tornou a causa da sua perdição. Em consequência de um motim e de uma irrupção ,da fúria popular, provocada pela morte não esclarecida de duas crianças cristãs, Elia foi trucidado de forma horrorosa: encontraram-no crucificado, fixo com cravos à porta da sua casa incendiada. Sua esposa, tísica e acamada, abandonou em seguida o país, com os filhos, o menino Leib e seus quatro irmãozinhos, todos se lamentando e gemendo, de braços erguidos ao céu.
     Graças à previdência de Elia, a família não estava inteiramente desprovida de recursos. Encontraram asilo numa cidadezinha do Vorarlberg. Ali a Srª. Naphta se empregou numa fiação de algodão, onde trabalhou enquanto as suas forças lhe permitiram, e os filhos mais velhos frequentaram a escola primária. Mas se a sabedoria ministrada por esse estabelecimento bastava ao talento e às necessidades dos irmãos de Leo, absolutamente não se dava o mesmo com ele. Herdara da mãe o germe da doença pulmonar, e do pai, além da compleição delgada, um discernimento fora do comum, dons intelectuais que desde cedo andavam unidos com instintos altivos, com a ambição do sublime, com a nostalgia angustiosa de formas de vida mais aristocráticas, e lhe infundiam o desejo apaixonado de elevar-se acima da esfera da sua origem. Fora da escola, o adolescente de catorze ou quinze anos formava o seu espírito de modo impaciente e descontrolado, por meio de livros que soube arranjar e com os quais nutria a inteligência. Pensava coisas e manifestava ideias que induziam a mãe a encolher a cabeça entre os ombros e a levantar ao céu as magras mãos espalmadas. Pela sua índole e pelas suas respostas chamou durante o ensino religioso a atenção do rabino distrital, homem pio e erudito, que o escolheu para aluno particular e lhe satisfez a predileção formal com aulas de hebraico e de línguas clássicas, e a ânsia de lógica com ensinamentos matemáticos. Mas a solicitude do homem foi muito mal recompensada. Evidenciou-se cada vez mais nitidamente que ele acolhera uma serpente em seu seio. Repetiram-se as contendas que outrora houvera entre Elia Naphta e seu rabino; não se puseram de acordo; entre o professor e o discípulo surgiram divergências religiosas e filosóficas que se agravavam de forma crescente, e o honrado teólogo muito teve que sofrer em virtude da insubmissão intelectual do jovem Naphta, da sua tendência crítica e cética, do seu espírito de contradição e da sua dialética afiada. Acrescia a isso o fato de que a sutileza e a rebeldia intelectual de Leo acabavam de assumir um caráter revolucionário. O contato com o filho de um deputado socialista do Reichsrat e com o próprio representante popular haviam orientado para a política o espírito do adolescente e imprimido o rumo da crítica social à sua paixão pela lógica. Leo ousou manifestar ideias que fizeram eriçar-se os cabelos do bom talmudista, orgulhoso da sua própria lealdade, e que finalmente desmancharam a amizade entre o professor e o aluno. Numa palavra, as coisas chegaram ao ponto de Naphta ser amaldiçoado pelo seu mestre e definitivamente expulso do seu gabinete de estudos. Isso sucedeu justamente na época em que sua mãe, Rakel Naphta, estava agonizante.
     Também por esse tempo, imediatamente após o transpasse da mãe, Leo travou conhecimento com o Padre Unterpertinger. O jovem de dezesseis anos estava sentado, solitário, num banco do parque de Margaretenkopf, numa colina situada a oeste da cidadezinha, à beira do Ill, donde se descortinava uma vista ampla e alegre sobre o vale do Reno. Achava-se ali, absorto em sombrios e amargos pensamentos quanto ao seu destino e futuro, quando um professor do Instituto Jesuítico Stella Matutina, ao passear pelo parque, sentou-se a seu lado, pôs o chapéu no banco, cruzou as pernas sob a sotaina de padre secular, e após ter lido algumas páginas do seu breviário, entabulou uma conversa que se tornou muito animada e estava fadada a decidir a sorte de Leo. O jesuíta, homem experiente, de trato afável, pedagogo apaixonado, bom psicólogo e hábil pescador de almas, aguçou o ouvido, desde as primeiras frases, articuladas com sarcástica clareza, que o mísero judeuzinho proferia em resposta às suas perguntas. Sentiu nelas o sopro de uma espiritualidade aguda e atormentada, e penetrando mais a fundo, topou com uma sabedoria e uma elegância maliciosa do pensamento que o exterior maltrapilho do rapaz apenas tornava mais surpreendentes. Falaram de Marx, cujo Capital Leo Naphta estudara numa edição popular, e daí passaram para Hegel, do qual ou sobre o qual o jovem também lera o suficiente para formular algumas observações incisivas. Fosse por uma inclinação geral para o paradoxo, fosse devido à intenção de agradar, chamou Hegel de “pensador católico”; quando o padre, sorrindo, lhe perguntou em que se fundava essa opinião, uma vez que Hegel, na sua qualidade de filósofo oficial da Prússia, devia ser considerado lógica e essencialmente como protestante, replicou o jovem que as próprias palavras “filósofo oficial” confirmavam que, no sentido religioso, embora naturalmente não no sentido eclesiástico-dogmático, a sua afirmação da catolicidade de Hegel estava certa. Pois – Naphta gostava muitíssimo dessa conjunção que na sua boca adquiria um caráter triunfal e inexorável e fazia-lhe os olhos relampejar atrás dos óculos, cada vez que tinha oportunidade de inseri-las nas suas deduções – pois o conceito da política se achava psicologicamente ligado ao do catolicismo; formavam eles uma categoria que abrangia tudo quanto era objetivo, operante, ativo, realizador, e produzia efeitos exteriores. A essa categoria opunha-se a esfera pietista, protestante, que tinha a sua origem na mística. No jesuitismo – acrescentou —, tornava-se evidente a natureza política e pedagógica do catolicismo. Essa ordem sempre considerara seu domínio a estadística e a educação. E citou Goethe, que, embora arraigado do pietismo e indiscutivelmente protestante, tinha um forte cunho católico, em virtude do seu objetivismo e da sua doutrina de ação, chegando a defender a confissão auricular e mostrando-se quase jesuíta como educador.
     Não importa que Naphta tivesse dito essas coisas, por acreditar nelas, ou por achá-las espirituosas, ou finalmente na intenção de comprazer ao seu interlocutor, como faz um homem pobre que deve lisonjear e calcula com precisão o que lhe pode ser útil ou prejudicial. Fosse como fosse, o padre preocupou-se menos com o valor verdadeiro dessas palavras do que com a inteligência geral que elas documentavam. A conversa foi continuada, e dentro em pouco o jesuíta conhecia a situação particular de Leo. A entrevista terminou com um convite de Unterpertinger para que Naphta o visitasse no instituto.
     Destarte aconteceu que Naphta pôs os pés no solo do Stella Matutina, cujo nível científica e socialmente elevado desde muito o atraía. E mais do que isso: graças ao rumo que as coisas acabavam de tomar, obteve um novo mestre e protetor, mais disposto do que o anterior a lhe apreciar e estimular a índole; um mentor cuja bondade, fria por natureza, baseava-se no conhecimento do mundo, e em cujo circulo de vida o jovem anelava penetrar. Semelhante a muitos judeus talentosos, Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e aristocrático; era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida soberba, distinta, exclusiva e ordenada. A primeira manifestação que lhe inspirara a presença de um teólogo católico fora, embora se apresentasse sob a forma de pura análise comparativa, uma declaração de amor à Igreja Romana, que se lhe afigurava como uma potência nobre e espiritual, quer dizer antimaterial, contrária à realidade hostil do mundo, e portanto revolucionária. Essa homenagem era sincera e tinha raízes no fundo do seu ser: como ele próprio explicava, o judaísmo, graças à sua orientação terrena e objetiva, graças ao seu caráter socialista e à sua espiritualidade política, achava-se muito mais próximo da esfera católica, era infinitamente mais congênere dela, do que o protestantismo na sua mania de ensimesmar-se e na sua subjetividade mística. Assim, a conversão de um judeu à religião católica representava, do ponto de vista da Igreja, um processo muito mais fácil do que a de um protestante.
     Separado do pastor da sua comunidade religiosa de origem, órfão, desamparado, e ainda ansioso por respirar um ar mais puro, por gozar o estilo de vida que lhe cabia devido ao seu talento, Naphta, que desde havia algum tempo atingira a idade legal que o capacitava para escolher a sua religião, estava tão impaciente por consumar o ato da conversão, que o seu “descobridor” podia dispensar o menor esforço no sentido de conquistar essa alma, ou melhor, esse cérebro extraordinário, para o mundo da sua confissão. Já antes de receber o sacramento do batismo, Naphta encontrara, através da influência do padre, asilo provisório no Stella Matutina, que lhe garantia o seu alimento material e intelectual. Domiciliou-se ali, abandonando, com a maior equanimidade e com a insensibilidade de um aristocrata do espírito, os seus irmãos mais moços à caridade pública e àquele destino que eles mereciam em virtude dos seus dons medíocres.
     As terras do educandário eram tão extensas quanto os seus edifícios, que podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral. A disciplina, a elegância, a alegria discreta, a espiritualidade, a cultura esmerada, a precisão do variadíssimo programa diário – tudo isso afagava os instintos mais profundos de Leo. O moço transbordava de felicidade. Ministravam-lhe excelentes manjares num vasto refeitório, onde o silêncio era de regra, assim como nos corredores do estabelecimento, em cujo centro um jovem prefeito, sentado numa cátedra elevada, lia em voz alta para os alunos que tomavam a refeição. O zelo que Naphta desenvolvia nos estudos era ardente, e apesar da sua debilidade física fazia toda espécie de esforços para não se deixar superar, à tarde, nos jogos desportivos. A devoção com que todas as manhãs assistia à primeira missa e participava do ofício dominical devia causar prazer aos padres pedagogos. Seu comportamento e suas maneiras satisfaziam-nos da mesma forma. Nos dias de festa, pela tarde, depois de comer doces e beber vinho, ia passear, trajando o uniforme cinzento e verde, com o colarinho engomado, boné e barras nas calças.
     Sentia-se deslumbrado de gratidão diante das considerações com que eram tratados a sua origem, o seu cristianismo recente e a sua situação particular em geral. Ninguém parecia saber que ele se beneficiava de uma bolsa. O regulamento da casa desviava a atenção dos companheiros do fato de ele não ter nem família nem pátria. Quanto à remessa de víveres ou guloseimas existia uma proibição geral. Encomendas que chegavam apesar disso eram repartidas entre todos, e também Leo recebia a sua parte. O cosmopolitismo da instituição impedia que a sua origem racial aparecesse de modo evidente. Existiam ali jovens provenientes de terras longínquas, sul americanos de raça lusa, cujo aspecto era mais “judeu” do que o de Leo, e dessa forma o conceito deixou de subir à tona. O príncipe etíope que entrara ao mesmo tempo que Naphta era até um negro típico, com cabelos lanosos, e contudo sumamente distinto.
     Na classe de retórica, Leo manifestou o desejo de estudar teologia, para que pudesse um dia pertencer à ordem, se é que fosse julgado digno. Isso teve por consequência que a sua bolsa foi transferida do segundo internato, onde o regime era mais modesto, para o primeiro. Agora era servido à mesa por criados, e seu cubículo no dormitório achava-se situado entre o de um nobre silesiano, o Conde von Harbuval e Chamaré, e o do Marquês di Rangoni-Santacroce, de Modena. Passou brilhantemente pelos exames e, fiel aos seus propósitos, abandonou o educandário e mudou-se para o noviciado na vizinha aldeia de Tisis, onde passou a levar a vida de humildade obediente, de subordinação muda e de adaptação religiosa, vida que lhe proporcionava prazeres espirituais no sentido das concepções fanáticas de épocas distantes.
     Nesse meio tempo, a sua saúde sofreu um abalo, menos por causa do rigor da vida de noviço, que não carecia de oportunidades para fortalecer o corpo, do que em virtude de processos que se desenvolviam no seu íntimo. A sutileza e a sagacidade dos processos pedagógicos de que ele era objeto iam ao encontro dos seus talentos particulares, e ao mesmo tempo provocavam-nos. Durante as operações espirituais às quais consagrava os seus dias e ainda parte das suas noites, no curso de todos esses exames de consciência, contemplações, ponderações e introspecções, enredava-se ele, devido a uma paixão maliciosa pela contenda, em milhares de dificuldades, contradições e dúvidas. Leo era o desespero, e também a grande esperança, do diretor dos seus exercícios, a quem cossava dia a dia com sua fúria dialética e sua falta de ingenuidade... “Ad haec quid tu?”, perguntava, com as lentes dos óculos cintilando. E o padre, posto contra a parede, não tinha outro recurso senão recomendar-lhe a prece, para que conseguisse a tranquilidade do coração, ut in aliquem gradum quietis in anima perveniat. Mas, essa “tranquilidade” consistia, quando obtida, num completo embotamento da vida individual e na redução fatal a um mero instrumento, era a paz de um cemitério do espírito, cujos sinistros sinais exteriores Naphta podia muito bem estudar entre os seus companheiros em mais de uma fisionomia de olhar parado, e que ele mesmo nunca lograria alcançar por outro caminho que não o da ruína corporal.
     Fala em favor do nível intelectual dos seus superiores que essas reservas e objeções não diminuíam a estima que Naphta gozava junto deles. O próprio padre provincial chamou-o pelo fim dos dois anos de noviciado, conversou com ele e autorizou-lhe a admissão na ordem. O jovem escolástico, que recebera quatro ordenações inferiores – as do porteiro, do acólito, do leitor e do exorcista – e também fizera os votos “simples”, ficou assim pertencendo definitivamente à Companhia. Partiu para o colégio de Falkenburgh, na Holanda, a fim de se dedicar aos estudos de teologia.
    Tinha então vinte anos, e nos três anos seguintes, sob a influência de um clima prejudicial e de excessivos esforços intelectuais, o mal hereditário realizou tamanhos progressos, que sua permanência no colégio só teria sido possível com perigo de vida. Uma hemoptise que sofreu alarmou os seus superiores, e depois de ele se achar durante semanas inteiras entre a vida e a morte, enviaram o jovem precariamente restabelecido ao lugar donde viera. No mesmo estabelecimento onde fora educado, encontrou Leo uma colocação como prefeito, vigilante dos alunos e professor de humanidades e filosofia. Esse interlúdio fazia parte do regulamento, só que normalmente depois de poucos anos de serviço se voltava ao colégio, para prosseguir e concluir os sete anos de estudos teológicos. Isso não foi dado ao Irmão Naphta. Ele continuava enfermo. O médico e os superiores julgaram que o serviço nesse lugar, com o seu ar saudável, a companhia dos alunos, e as ocupações agrícolas eram o que lhe convinha por enquanto. Naphta recebeu a primeira ordenação superior e obteve assim o direito de cantar a Epístola na missa solene dos domingos – direito que ele não exercia, em primeiro lugar porque lhe faltava por completo o talento musical, e em segundo, por causa da doença, que lhe tornava a voz esganiçada e fazia-a pouco apta para cantar. Não progrediu além do subdiaconato. Não alcançou o diaconato, tampouco a ordenação sacerdotal. Como a hemoptise se repetisse e a febre não desse mostras de ceder, teve que submeter-se, à custa da ordem, a um tratamento prolongado. Instalara-se em Davos, onde se encontrava fazia mais de cinco anos. Mal se podia falar de um tratamento, senão de uma condição fixa da sua existência, que exigia atmosfera rarefeita, e que alguma atividade como professor de latim no ginásio dos enfermos tornava menos penosa...
    Essas coisas, além de outros pormenores, chegavam ao conhecimento de Hans Castorp pela boca do próprio Naphta, quando o visitava na sua cela forrada de seda, ora sozinho, ora acompanhado dos seus comensais Ferge e Wehsal, que apresentara ao seu anfitrião, ou quando o encontrava num passeio e regressava junto com ele até a “aldeia”. Ia conhecendo esses detalhes ao acaso, em fragmentos ou sob a forma de narrativas coesas, e não somente os achava extraordinariamente interessantes, mas também incitava Ferge e Wehsal a considerá-los sob o mesmo prisma, o que de fato acontecia. Verdade é que o primeiro nunca deixava de acrescentar a restrição de não entender de coisas sublimes (uma vez que unicamente a experiência do choque pleural o elevara acima das mais humildes entre as contingências humanas). Wehsal, porem, regozijava-se visivelmente com a carreira afortunada de um homem outrora opresso pelo destino, essa carreira que agora, como para abater qualquer soberba, se via interrompida e parecia encalhar no mal físico que eles tinham em comum.
     Hans Castorp, por sua vez, lamentava essa estagnação e recordava com orgulho e desassossego o honrado Joachim, que num esforço heroico rasgara a rede resistente da retórica de Radamanto e desertara para a sua bandeira, a cuja haste – segundo imaginava o jovem – devia estar agarrado, erguendo três dedos da mão direita para prestar o juramento de fidelidade. Também Naphta tinha uma bandeira à qual jurara, e sob cuja proteção se encontrava, como ele mesmo dizia, ao informar Hans Castorp acerca da organização da ordem; mas, manifestamente, em vista de todas as suas reservas e combinações, era-lhe menos fiel do que Joachim à sua. O civil Hans Castorp, amigo da paz, sempre que escutava o antigo ou futuro jesuíta, sentia, contudo, consolidada a sua opinião de que cada um dos dois devia olhar com simpatia a profissão do outro e perceber o parentesco estreito que existia entre ela e a própria. Eram castas militares, tanto uma como a outra, e isso sob muitos aspectos, o do ascetismo e o da hierarquia, o da obediência e o do pundonor espanhol. Este último desempenhava um papel importantíssimo na ordem de Naphta, que tinha a sua origem na Espanha, e cuja regra de exercícios espirituais, espécie de precursora do regulamento que Frederico da Prússia deu à infantaria, era, na sua forma original, redigida em espanhol. Por isso ocorria frequentemente a Naphta empregar termos espanhóis nas suas narrativas e explicações. Falava então das dos banderas em torno das quais os exércitos se agrupavam para a grande batalha, o do Inferno e o da Igreja, um na região de Jerusalém, chefiado por Cristo, o capitán general de todos os justos, e o outro na planície da Babilônia, onde Lúcifer exercia o cargo de caudillo ou chefe de bando...
     Não era o Instituto Stella Matutina uma verdadeira escola de cadetes, cujos alunos, distribuídos em “divisões”, iam sendo orientados no sentido honroso de uma bienséance militar e clerical, que representava, por assim dizer, uma combinação de “colarinho engomado” e “golilha espanhola”? As ideias da honra e da distinção, que na classe de Joachim desempenhavam tão brilhante papel, com quanta nitidez – assim pensava Hans Castorp – não apareciam naquela que Naphta desgraçadamente tivera de abandonar devido à doença! A crer nele, a ordem compunha se exclusivamente de oficiais ambiciosos, cujo único pensamento era distinguir-se no serviço. (Insignes esse, dizia-se em latim.) Segundo a doutrina e o regulamento do fundador e primeiro geral, o espanhol Loyola, tais homens prestavam serviços maiores, serviços mais grandiosos do que todos aqueles que agiam guiados pela mera razão. Realizavam a sua obra ex superrogatione, indo além do seu dever; não se limitavam a resistir à rebelião da carne (rebellioni carnis), o que não passava, em suma, daquilo que faz todo homem dotado de mediano bom senso, mas também combatiam as tendências para a sensualidade, o egoísmo e o amor às coisas mundanas, até em assuntos que geralmente eram considerados lícitos. Pois agir em detrimento do inimigo (agere contra), quer dizer, atacar, era mais honroso e mais importante do que apenas defender-se (resistere). “Debilitar e desbaratar o inimigo”, rezava o regulamento de campanha, e mais uma vez o seu autor, o espanhol Loyola, estava plenamente de acordo com o capitán general de Joachim, o prussiano Frederico e sua máxima estratégica: “Atacar, atacar! Não dar tréguas ao inimigo! Attaquez donc toujours!”
     Mas o que os mundos de Naphta e de Joachim tinham em comum, antes de mais nada, era a relação com o sangue e o axioma de que não se devia impedir a mão de derramá-lo; nisso, sobretudo, concordavam estritamente, como mundos, como ordens e como classes, e a um amigo da paz parecia notável o que Naphta contava de tipos de monges-guerreiros da Idade Média, que, ascetas até o esgotamento e no entanto ávidos de poder espiritual, não haviam poupado sangue no seu esforço de estabelecer a Cidade de Deus e o reino do sobrenatural; falava dos belicosos templários que julgavam mais meritório morrer na luta contra os infiéis do que na cama, e para os quais matar ou ser morto por amor a Jesus não era crime, senão glória suprema. Ainda bem que Settembrini não estava presente quando Naphta expôs essas ideias! Caso contrário, não teria deixado de fazer o papel de tocador de realejo desmancha-prazeres e de fazer soar a flauta pastoril da paz, não obstante o seu próprio projeto de guerra santa, nacional, civilizadora, contra Viena, que ele absolutamente não rejeitava, ao passo que o sarcasmo e a mordacidade de Naphta castigavam de preferência essa paixão e esse fraco do seu adversário. Cada vez que o italiano se inflamava por esse gênero de sentimentos, o outro lhe opunha um cosmopolitismo cristão, chamando todos os países, e ao mesmo tempo nenhum, de sua pátria e repetindo em voz cortante a frase de um geral da sua ordem, de nome Nickel, segundo o qual o patriotismo era “uma peste e a morte certa do amor cristão”.
     Lógico que era em nome do ascetismo que Naphta tratava de peste o amor à pátria – pois, quanta coisa não encerrava esse termo, aos seus olhos, quanta coisa não contrariava, segundo a sua opinião, a ascética e o reino de Deus! Isso não somente se aplicava ao afeto à família e ao lar, mas também ao apego à saúde e à vida. Era precisamente por eles que Naphta censurava o humanista, quando este encomiava a paz e a felicidade; num tom rixoso, acusava-o de amor carnalis, de amor ao conforto do corpo, commodorum corporis, e declarava à queima-roupa que conceder a menor importância à vida e à saúde demonstrava a impiedade de pequenos burgueses.

continua pág 292...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
“Operationes spirituales”(a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Cinema Cult: Amarcord

Amarcord (1973) 

FEDERICO FELLINI

"Através dos olhos de Titta, um garoto impressionável, o diretor dá uma olhada na vida familiar, religião, educação e política dos anos 30, quando o fascismo era a ordem dominante. Entre os personagens estão o pai e a mãe de Titta, que estão constantemente batalhando para viver, além de um padre que escuta confissões só para dar asas à sua imaginação anticonvencional."

Amarcord é a contração de me a m'arcord, que no dialeto da Romanha significa: recordo-me.

 
Comédia/Drama




Estrelando: 
Alvaro Vitali | Beppo
Antonino Faà di Bruno | Count of  Lovigna
Aristide Caporale | Giudizio
Armando Brancia | Aurelio Biondi 
Bruno Scagnetti | Ovo
Bruno Zanin | Tita 
Ciccio Ingrassia | Teo
Ferdinando Villella | Fighetta
Ferruccio Brembilla | Fascist
Gennaro Ombra | Biscein
Gianfilippo Carcano | Don Balosa
Giuseppe Ianigro | Titta's Grandfather
Josiane Tanzilli | Volpina
Luigi Rossi | 
Magali Noël | Gradisca
Marcella Di Folco | Prince
Maria Antonietta Beluzzi | Tobacconist
Nando Orfei | Lallo
Nella Gambini | Aldina Cordini
Pupella Maggio | Miranda Biondi
Stefano Proietti | Oliva

Direção: 
Amarcord