Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Primeira Parte
IV
continuando...
Logo que havia um carro vazio para subir, o recebedor dava sinal, a operadora empurrava o seu, cheio, e era o peso deste que fazia subir o outro, quando o guarda-freio acionava a chave. Embaixo, na galeria do fundo, formavam-se os comboios que os cavalos puxavam até o poço.
— Olá, malditos burros! — gritou Catherine no plano inclinado,
todo revestido de madeira, com uma extensão de cem metros e que ressoava
como um megafone gigantesco.
Os dois rapazes deviam estar descansando, nenhum deles
respondeu. Em todos os andares o transporte parou. Uma voz esganiçada de
menina proclamou:
— Um deles está em cima da filha do Mouque, com certeza.
Gargalhadas enormes retumbaram pela mina; as operadores de todo o veio
se dobraram de riso, apertando a barriga.
— Quem foi? — perguntou Etienne a Catherine.
Esta lhe disse que era a Lydie, uma garotinha muito sabida e que
empurrava seu carro tão vigorosamente como uma mulher, apesar dos seus
braços de boneca. Quanto à filha de Mouque, era bem capaz de estar com
os dois rapazes juntos.
Mas a voz do recebedor veio lá de baixo, gritando que podiam
soltar o carro; decerto surgira um contramestre. O transporte recomeçou nos
nove andares; só se ouviam agora os chamados dos dois operários do plano
inclinado e o bufar das operadoras chegando ao plano, esbaforidas como
jumentas carregadas demais. Havia um sopro de bestialidade por toda a
mina, um desejo súbito de macho, quando um mineiro encontrava uma
dessas moças de quatro, o traseiro ao ar, as ancas arrebentando as calças de
homem.
E, depois de cada viagem, Etienne voltava a encontrar no fundo do
veio a mesma sufocação, a cadência surda e quebrada das picaretas, os
grandes suspiros dolorosos dos britadores ferozes na sua labuta. Os quatro
tinham-se posto em pelo, enterrados na hulha, cobertos de lodo negro até os
cabelos. Num certo momento foi preciso ajudar Maheu, que estertorava, e
levantar as pranchas para fazer o carvão escorregar até a via. Zacharie e
Levaque enfureciam-se contra o veio, que, diziam eles, estava resistindo às
picaretas, o que tornaria as condições de sua empreitada desastrosas. Chaval
deitava-se por uns instantes de costas, para poder assim descompor Etienne,
cuja presença decididamente o exasperava.
— Este molenga tem menos força que uma moça! Desse jeito nunca
vais encher o teu vagonete... Hem? É para poupar teus braços? Juro que não
te pago os dez soldos se um deles não for aceito...
O rapaz evitava responder; ainda se considerava muito feliz por ter
encontrado esse trabalho de forçado, e aceitava o brutal sentido de
hierarquia do operário e do mestre-de-obras. Mas não podia mais, tinha os
pés em sangue, os membros torcidos por cãibras atrozes, o tronco apertado
por um cinto de ferro. Felizmente eram dez horas, o grupo resolveu
almoçar.
Maheu tinha relógio, mas nem olhou para ele. No fundo desta noite
sem astros, nunca se enganava, fosse a cinco minutos. Todos vestiram
novamente a camisa e a jaqueta e desceram do veio; em seguida,
acocoraram-se, puseram os cotovelos nas ilhargas, as nádegas sobre os
calcanhares, nessa postura tão comum aos mineiros e que adotam até
mesmo fora da mina, sem sentirem necessidade de uma pedra ou de uma
trave para sentar. E cada um, tendo desenrolado seu sanduíche, começou a
morder gravemente a grossa fatia, falando muito pouco sobre o trabalho da
manhã. Catherine, que ficara em pé, acabou indo juntar-se a Etienne, que se
espichara mais adiante, atravessado nos trilhos, as costas contra as
madeiras; havia ali um lugar que estava quase seco.
— Não vais comer? — perguntou ela de boca cheia, sanduíche na
mão.
Em seguida lembrou que encontrara esse rapaz vagando na noite,
talvez sem vintém ou um pedaço de pão...
— Vamos repartir?
E, como ele não aceitasse, jurando que não tinha fome, mas com a
voz trêmula de desejo, ela continuou alegremente:
— Ah! estás com nojo... Eu só mordi deste lado, vou te dar do
outro, está bem?
Enquanto falava, foi partindo o pão em dois. O rapaz, ao pegar sua
metade, teve de se conter para não a devorar de uma só vez, e descansou os
braços sobre as coxas para que ela não notasse como remiam. Com seu ar
tranquilo, de bom colega, Catherine deitara-se ao lado dele, barriga para
baixo, o queixo em uma das mãos, enquanto com a outra comia sem pressa.
Entre eles, as duas lâmpadas os iluminavam.
A moça olhou-o um momento em silêncio; devia estar achando
bonito aquele rosto de feições finas e de bigode preto. Docemente, ela
sorriu de prazer.
— Então és mecânico e te despediram da estrada de ferro... Por
quê?
— Esbofeteei o chefe...
Ela ficou estupefata, confusa nas suas ideias hereditárias de
subordinação e de obediência passiva.
— A verdade é que tinha bebido — continuou ele —, e quando
bebo fico louco, sou capaz de me comer e comer os outros. E isso; basta
beber dois goles para sentir a necessidade de destroçar um homem... Depois
fico doente por dois dias...
— Não devias beber — disse ela muito séria.
— Não precisa ter medo, me conheço muito bem. Balançou a
cabeça: tinha um ódio de morte da aguardente, o ódio de último filho de
uma raça de bêbados, que sofria na carne o resultado de toda essa
ascendência empapada em álcool e desequilibrada graças a ele, e isso a tal
ponto que uma simples gota transformava-se num veneno agindo no seu
corpo.
— É mais por causa de minha mãe que estou aborrecido de ter sido
posto na rua — continuou ele depois de engolir um bocado. — Ela não é
feliz e de vez em quando eu lhe mandava uma moeda de cem soldos.
— E onde é que mora a tua mãe?
— Em Paris, na rua de la Goutte d'Or. É lavadeira.
Houve um silêncio. Quando ele pensava nessas coisas, seus olhos
negros enfraqueciam-se e vacilavam, era uma angústia rápida resultante da
lesão da qual ele temia o pior, apesar de sua saudável juventude. Por um
instante ficou com os olhos perdidos nas trevas da mina. Àquela
profundidade, sob o peso esmagador da terra, começou a relembrar sua
infância, a mãe ainda bonita e corajosa, abandonada pelo pai, que depois
voltou, apesar de ela já estar casada com outro, ela vivendo entre os dois
homens que a destruíam, chafurdando com eles nas sarjetas, no vinho, na
imundície. Sim, era lá mesmo, lembrava-se até da rua, de pormenores: a
roupa suja no meio da loja, as bebedeiras que empestavam a casa, as
bofetadas de quebrar os queixos...
— Agora — continuou ele lentamente — não será com trinta soldos
que eu poderei ajudá-la. Com certeza vai morrer de tanta miséria...
Encolheu os ombros num gesto desesperado e mordeu novamente o
pão.
— Queres beber? — perguntou Catherine abrindo o cantil. — E
café, não faz mal. A gente chega a se engasgar engolindo dessa maneira...
Ele não quis aceitar; já não comera metade do seu pão? Mas ela
insistiu cheia de boa vontade, dizendo:
— Muito bem! Bebo antes, já que és tão cortês, só que agora tens
de aceitar, senão fica feio.
Catherine estendeu-lhe o cantil: estava de joelhos, muito próxima
dele, iluminada pelas duas lâmpadas. Como podia tê-la achado feia? Agora
que ela estava negra, o rosto empoado de carvão fino, parecia-lhe de um
encanto singular. Naquela fisionomia escura, os dentes, na boca grande
demais, eram uma explosão de brancura, os olhos pareciam maiores,
brilhavam com um reflexo esverdeado, iguais a olhos de gata. Uma mecha
de cabelo ruivo que escapara da coifa fazia-lhe cócegas no ouvido,
obrigando-a a rir. Já nem parecia tão criança, bem que podia ter catorze
anos...
— Já que queres... — disse ele, bebendo e devolvendo-lhe o cantil.
Ela bebeu outro gole e forçou-o a beber outro: para repartir, disse. E
aquele gargalo minúsculo passando de uma boca a outra lhes proporcionou
uma sensação agradável. De repente ele se perguntou se não devia tomá-la
em seus braços e beijá-la na boca. A moça tinha lábios grossos de um rosa
pálido que o carvão ressaltava, o que fazia aumentar o seu desejo. No
entanto não ousou, intimidado diante dela; em Lille só conhecera mulheres
da mais baixa espécie, não saberia como agir com uma operária que ainda
vivia com a família.
— Deves ter catorze anos, não? — perguntou ele após ter mordido
o pão.
Ela respondeu espantada, quase zangada:
— O quê? Catorze? Tenho quinze anos! A verdade é que não sou
muito desenvolvida; as moças aqui não crescem muito depressa.
Ele continuou a interrogá-la e ela respondeu a tudo, sem
impudência ou acanhamento. De resto, ela não ignorava nada sobre o
homem ou a mulher, ainda que ele a sentisse virgem de corpo, e virgem
criança, com a maturidade do seu sexo retardada devido ao ar impuro e ao
cansaço em que vivia. Quando ele voltou a falar na filha de Mouque,
tentando embaraçá-la, ela contou histórias espantosas num tom tranquilo e
alegre: — Ah! essa vivia fazendo das dela!. — E quando ele quis saber se
não tinha namorado, ela respondeu gracejando que não queria contrariar a
mãe, mas seguramente isso aconteceria um dia. Seus ombros estavam
curvados, ela tinha um leve tremor de frio resultante da roupa molhada de
suor, a fisionomia resignada e doce, pronta a suportar as coisas e os
homens.
— Namorado é fácil encontrar quando todo mundo vive junto, não
é verdade?
— Claro.
— E depois isso não faz mal a ninguém; é só não dizer nada ao
padre...
— O padre pouco me importa! O Homem Negro, esse sim, é
perigoso...
— Que Homem Negro?
— O velho mineiro que volta à mina para torcer o pescoço das
moças que se portam mal...
Etienne fixou-a, receando que ela estivesse zombando dele.
— Então tu crês nessas bobagens? É porque não sabes nada... —
Sei, sim, sei ler e escrever... Isso é muito útil para nós; no tempo do papai e
da mamãe não se estudava.
Decididamente, ela era encantadora. Assim que acabasse de comer,
tomá-la-ia em seus braços e beijaria aqueles lábios grossos e róseos. Era a
resolução de um tímido, um pensamento de violência que chegava a
estrangular-lhe a voz. Essas roupas de rapaz, essa jaqueta e essas calças
sobre a carne de moça o excitavam e incomodavam ao mesmo tempo.
Tendo acabado de comer o último naco de pão, bebeu no cantil e entregou-o, para que ela o esvaziasse. O momento de voltar ao trabalho havia
chegado, deu uma olhadela inquieta para os mineiros no fundo; nesse
momento uma sombra obstruiu a galeria.
Havia um instante que Chaval, em pé, observava-os de longe.
Avançou, não sem primeiro estar certo de que Maheu não podia vê-lo, e,
como Catherine tivesse permanecido sentada no chão, agarrou-a pelos
ombros, deitou sua cabeça e esmagou sua boca com um beijo brutal, e tudo
isso tranquilamente, fingindo não se preocupar com a presença de Etienne.
Havia nesse beijo uma tomada de posse, uma espécie de decisão ciumenta.
A moça, no entanto, revoltou-se:
— Deixa-me, ouviste?
Mas ele continuava a segurar-lhe a cabeça e olhava-a no fundo dos
olhos. Seu bigode e sua barbicha ruivos flamejavam no rosto negro de nariz
enorme, em forma de bico de águia. Por fim, largou-a e foi-se sem dizer
palavra.
Um arrepio gelara o corpo de Etienne. Fora estúpido por ter
esperado, e agora, claro, não a beijaria, ela poderia pensar que ele estava
querendo imitar o outro. Na sua vaidade ferida, sentia-se verdadeiramente
desesperado.
— Por que mentiste? — perguntou ele em voz baixa. — Esse é o
teu namorado.
— Não, não, juro! — exclamou ela. — Não há nada entre nós. Às
vezes ele gosta de fazer brincadeiras. Ademais, ele nem é daqui, veio há
seis meses de Pas-de-Calais.
Era hora de voltar ao trabalho, ambos se levantaram. Vendo-o tão
frio, ela ficou triste. Sem dúvida achava-o mais bonito que o outro, talvez
mesmo o preferisse. Queria inventar uma amabilidade, alguma coisa para
consolá-lo; e como o rapaz, admirado, examinava sua lâmpada, que tinha
uma chama azul envolta num grande círculo pálido, ela tentou ao menos
distraí-lo:
— Vem comigo, vou mostrar-te uma coisa — murmurou, num tom
amistoso.
Levou-o para o fundo do veio e apontou para uma frincha na hulha;
escapava dela um leve murmúrio, um ruidozinho igual a pipilo de pássaro.
— Põe a mão... sentes o vento? É o grisu.
Ele teve uma surpresa: então era só isso o gás terrível que fazia ir
tudo pelos ares? Ela riu e explicou que naquele dia devia haver muito para
que as chamas das lâmpadas estivessem tão azuis.
— Quando é que vocês vão parar de tagarelar, seus vagabundos? —
gritou a voz brutal de Maheu.
Catherine e Etienne voltaram correndo ao trabalho de encher seus
carros e de empurrá-los para o plano inclinado, as espinhas dorsais
retesadas, raspando no teto acidentado da galeria. A partir do segundo
carreto, o suor os inundava e os ossos voltavam a estalar.
No veio, o trabalho dos britadores tinha recomeçado. Muitas vezes
eles apressavam o almoço para não perderem o calor do corpo; e seus
sanduíches, comidos numa voracidade muda e naquela profundidade,
transformavam-se em chumbo no estômago. Deitados de lado, golpeavam
mais forte, com a ideia fixa de completar um número elevado de vagonetes.
Tudo desaparecia nessa fúria de ganho tão duramente disputado, nem
mesmo sentiam mais a água que escorria e lhes inchava os membros, as
cãibras resultantes das posições forçadas, as trevas sufocantes onde eles
descoravam como plantas encerradas em adegas. E, à medida que o dia
avançava, o ar ficava cada vez mais envenenado, aquecia-se com a fumaça
das lâmpadas, com a Pestilência dos hálitos, com a asfixia do grisu, que
pousava nos olhos como teias de aranha e somente o vento da noite
varreria. Mas eles, no fundo dos seus buracos de toupeira, suportando o
peso da terra, sem ar nos peitos escaldantes, continuavam a cavar.
continua na página 45...
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Primeira Parte - (IV.b) um carro vazio para subir
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.