quinta-feira, 17 de julho de 2025

MPB: Querelas do Brasil

Elis Regina

- Querelas do Brasil


"O BraZil não conhece o Brasil O Brasil nunca foi ao BraZil"


Elis Regina no especial Elis Regina Carvalho Costa na TV Globo, em outubro de 1980.





O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil
Tapir, jabuti
Liana, alamanda, ali, alaúde
Piau, ururau, aki, ataúde
Piá carioca, porecramecrã
Jobim akarore, jobim açu
Uô, uô, uô
Pereê, camará, tororó, olerê
Piriri, ratatá, karatê, olará

Pereê camará tororó olerê
Piriri ratatá karatê olará

O Brazil não merece o Brasil
O Brazil tá matando o Brasil
Jereba, saci, caandrades, cunhãs, ariranha, aranha
Sertões, guimarães, bachianas, águas
Imarionaíma, ariraribóia
Na aura das mãos de jobim-açu
Uô, uô, uô

Jerê, sarará, cururu, olerê
Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará

Jerê, sarará, cururu, olerê
Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará

Do Brasil, s.o.s ao Brasil
Do Brasil, s.o.s ao Brasil
Do Brasil, s.o.s ao Brasil
Tinhorão, urutu, sucuri

Ujobim, sabiá, bem-te-vi
Cabuçu, cordovil, cachambi
Madureira, Olaria e Bangu
Cascadura, água santa acari, olerê
Ipanema e Nova Iguaçu, olará

Do Brasil, s.o.s ao Brasil
Do Brasil, s.o.s ao Brasil

Compositores: Aldir Blanc Mendes / Mauricio Tapajos Gomes

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Querelas do Brasil

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (Prefácio)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

Prefácio

     Poucas vezes o começo de um período histórico pôde ser datado com tanta precisão, e raramente os observadores contemporâneos tiveram tanta possibilidade de presenciar o seu fim definitivo, como no caso da era imperialista. Porque foi só a partir de 1884 que o imperialismo — surgido do colonialismo e gerado pela incompatibilidade do sistema de Estados nacionais com o desenvolvimento econômico e industrial do último terço do século XIX — iniciou a sua política de expansão por amor à expansão, e esse novo tipo de política expansionista diferia tanto das conquistas de característica nacional, antes levadas adiante por meio de guerras fronteiriças, quanto diferia a política imperialista da verdadeira formação de impérios, ao estilo de Roma.
     Por outro lado, o seu fim parecia inevitável depois que a "liquidação do Império de Sua Majestade", a que Churchill não quis "presidir", se tornou fato consumado em consequência da declaração de independência da índia. O fato de os ingleses haverem liquidado voluntariamente o seu domínio colonial ainda constitui um dos mais momentosos acontecimentos da história do século XX; depois disso, nenhuma outra nação europeia poderia continuar a reter as suas possessões de ultramar. Portugal constituía a única exceção, e a estranha capacidade portuguesa de continuar uma luta, da qual todas as outras potências coloniais europeias já haviam desistido, pode ter resultado do seu atraso nacional mais do que da ditadura salazarista. Pois não foi apenas mera fraqueza ou cansaço provocados por duas guerras sangrentas numa só geração, mas também os escrúpulos morais e as apreensões políticas dos Estados nacionais plenamente desenvolvidos, que desaconselharam tanto a introdução de medidas extremas como "massacres administrativos" (A. Carthill) para derrotar a rebelião pacífica da índia, quanto a continuação do "governo sobre raças inferiores" (lorde Cromer), cada vez mais temido pelo efeito de bumerangue que poderia exercer sobre o país colonizador. Quando finalmente a França, graças à até então incólume autoridade de De Gaulle, ousou desfazer-se da Argélia, à qual antes considerava parte tão integrante do seu território quanto o Département de Ia Seine,* o mundo em sua evolução política havia atingido um ponto de onde era impossível voltar.
     Aparentemente, era dos mais válidos o caminho percorrido com tanta esperança. Mas, diante da "guerra fria" entre a União Soviética e os Estados Unidos que se seguiu à "guerra quente" contra a Alemanha nazista, é preciso considerar as últimas décadas como o período em que as duas nações mais poderosas da terra trataram de ocupar posições hegemônicas mais ou menos nas mesmas regiões em que as nações europeias haviam imperado antes. Da mesma forma, somos tentados a ver a política de détente entre a Rússia e os Estados Unidos como a consequência do surgimento de uma terceira potência mundial, a China, e não como resultado natural da destotalitarização da Rússia após a morte de Stálin. E, se os eventos futuros derem razão a estas interpretações provisórias, isso significará, em termos históricos, que estaremos de volta ao mesmo ponto em que estávamos antes, isto é, na era imperialista e naquele desastroso caminho que levou o mundo à Primeira Guerra Mundial.
     Já se disse muitas vezes que ps ingleses adquiriram o seu império num momento de descuido, em consequência de tendências automáticas, cedendo ao que parecia factível e ao que era tentador, e não como resultado de uma política deliberada. Se isso é verdade, então o caminho que leva ao inferno pode muito bem ser construído pela ausência de intenções, em lugar das proverbiais boas intenções. E os fatos objetivos que convidam ao retorno à política imperialista são realmente tão graves hoje que somos inclinados a crer que a afirmação é, pelo menos, verdadeira pela metade, apesar das boas intenções de ambos os lados — a "acomodação" norte-americana com o inviável status quo da corrupção e da incompetência, e a arenga pseudo-revolucionária da Rússia quanto a guerras de libertação nacional. O processo de criar nações em áreas atrasadas, onde a ausência de todos os pré-requisitos para a independência nacional é tão marcante quanto é óbvio o chauvisnismo violento e estéril, leva a enormes vácuos de poder, pelos quais a competição entre as superpotências cresce em proporção tanto maior quanto, uma vez desenvolvidas as armas nucleares, parece estar definitivamente afastada a confrontação direta dos meios de violência que proporcionam um recurso para "resolver" todos os conflitos. Não apenas cada conflito entre as pequenas nações subdesenvolvidas nessas vastas áreas — seja uma guerra civil no Vietnã, seja um conflito nacional no Oriente Médio — atrai imediatamente a intervenção, potencial ou real, das superpotências, mas esses mesmos conflitos, ou pelo menos o momento em que são deflagrados, parecem estar sendo manipulados ou provocados diretamente por interesses e manobras que nada têm a ver com as lutas e interesses em jogo na própria região. Nada caracteriza melhor a política de poder da era imperialista do que a transformação de objetivos de interesse nacional, localizados, limitados e, portanto, previsíveis, em busca ilimitada de poder, que ameaça devastar e varrer o mundo inteiro sem qualquer finalidade definida, sem alvo nacional e territorialmente delimitado e, portanto, sem nenhuma direção previsível. Essa volta à antiga prática surge também no nível ideológico, pois a famosa teoria de dominó, segundo a qual a política externa norte-americana se julga obrigada a fazer a guerra em determinado país em prol da integridade de outros que nem ao menos são seus vizinhos, evidentemente não passa de nova versão do "Grande Jogo", cujas regras permitiam, e até mesmo exigiam, que nações inteiras fossem vistas como simples degraus para a conquista das riquezas e para o domínio de um terceiro país que, por sua vez, se tornava mero degrau no infindável processo de expansão e de acúmulo de poder. Foi a respeito dessa reação em cadeia, inerente à política imperialista de poder e tão bem representada no nível humano pela figura do agente secreto, que Kipling disse (em Kim): "Só quando todos estiverem mortos o Grande Jogo acabará: não antes". O único motivo pelo qual essa profecia não se realizou foi o freio constitucional dos Estados-nações, ao passo que hoje, se a nossa esperança de que não venha a realizar-se no futuro baseia-se em parte também na contenção constitucional da república norte americana, ela decorre, simultaneamente, da auto coibição imposta pelo desenvolvimento tecnológico da era nuclear.
     Não pretendemos negar que o ressurgimento da política e dos métodos imperialistas ocorre em condições e circunstâncias completamente diferentes. A iniciativa da expansão ultramarina transferiu-se na direção do oeste, da Inglaterra e da Europa ocidental para a América, e a iniciativa da expansão continental, em cerrada continuidade geográfica, já não parte da Europa central e oriental, mas se localiza exclusivamente na Rússia. Foi a política imperialista, mais que qualquer outro fator, que provocou o declínio da Europa, e parecem ter-se realizado as previsões dos estadistas e historiadores de que os dois gigantes localizados nos flancos leste e oeste das nações europeias emergiriam finalmente como herdeiros do poder europeu. Hoje ninguém mais procura justificar a expansão com afirmações que a veem como "a carga do homem branco" ou como a decorrência da "consciência tribal ampliada" que pretendia unir os povos de origem étnica semelhante; em vez disso, fala-se de "compromissos" com nações aliadas ou de responsabilidade do poder ou de solidariedade com os movimentos revolucionários "de libertação nacional". A própria palavra "expansão" desapareceu do vocabulário político, que agora emprega termos como "extensão" ou "união", o que diz quase a mesma coisa. Mais importantes politicamente, os investimentos privados em terras distantes, que originalmente constituíam a motivação básica do imperialismo, estão hoje superados pela ajuda externa, econômica e militar, fornecida diretamente aos governos pelos governos. (Apenas em 1966, o governo americano despendeu 4,6 bilhões de dólares em ajuda econômica e créditos para o exterior, mais 1,3 bilhão por ano em ajuda militar na década de 1956-65, enquanto o fluxo de capital privado foi de 3,69 bilhões de dólares em 1965 e de 3,91 bilhões em 1966. [1]) Isso significa que a era do chamado imperialismo do dólar, que foi a versão especificamente norte-americana, e politicamente menos perigosa, do imperialismo anterior à Segunda Guerra Mundial, terminou definitivamente. Os investimentos privados — "as atividades de quase mil companhias norte-americanas que operam numa centena de países estrangeiros, concentradas nos setores mais modernos, mais estratégicos e de mais rápido crescimento da economia estrangeira" — criam muitos problemas políticos, mesmo que não sejam protegidos pelo poder da nação que os origina,[2] mas o auxílio externo, mesmo que seja fornecido por motivos puramente humanitários, é político por natureza, uma vez que desconhece a motivação do lucro. Bilhões de dólares têm sido gastos em desertos políticos e econômicos onde a corrupção e a incompetência fizeram-nos desaparecer antes que se pudesse dar início a algo produtivo, e esse dinheiro não é o capital "supérfluo", que não podia ser investido produtiva e lucrativamente no país de origem, mas o estranho produto da mera abundância que os países ricos podem dar-se ao luxo de perder. Em outras palavras, a motivação do lucro, cuja importância para a política imperialista foi frequentemente exagerada, mesmo no passado, agora desapareceu, e somente os países muito ricos e muito poderosos podem suportar as enormes perdas que o imperialismo acarreta.
     Provavelmente é muito cedo, e foge a estas considerações, analisar e definir com certa confiança essas tendências recentes. O que parece incomodamente claro, desde já, é a força de certos processos, aparentemente incontroláveis, que tendem a destruir todas as esperanças de evolução constitucional nos novos países e a solapar as instituições republicanas dos países mais velhos. Os exemplos são numerosos demais para permitirem uma enumeração mesmo sucinta, mas a intromissão do "governo invisível" de serviços secretos nos assuntos domésticos, nos setores culturais, educacionais e econômicos da vida, é um sinal por demais ominoso para passar desapercebido. Não há por que duvidar da declaração de Allan W. Dulles de que o serviço de espionagem dos Estados Unidos desde 1947 vem desfrutando de "uma posição mais influente em nosso governo do que a espionagem desfruta em qualquer outro governo do mundo",[3] nem há motivo para acreditar que essa influência tenha diminuído desde que ele fez essa declaração, em 1958. O perigo mortal do "governo invisível" para as instituições do "governo visível" já foi apontado muitas vezes; o que talvez seja menos conhecido é a íntima ligação que tradicionalmente existiu entre a política imperialista e o domínio por meio do "governo invisível" e dos agentes secretos. É um erro pensar que a criação de uma rede de serviços secretos nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial tenha sido a resposta a uma ameaça direta à sua sobrevivência nacional pela rede de espionagem da Rússia soviética; a guerra havia guindado os Estados Unidos à posição de maior potência mundial, e esse poder mundial, e não a existência nacional, é que era desafiado pelo poder revolucionário do comunismo dirigido por Moscou.[4]
     Quaisquer que tenham sido as causas da ascensão dos Estados Unidos à posição de potência mundial, certamente não foi a adoção deliberada de uma política estrangeira que a visasse, nem qualquer pretensão de domínio global. E o mesmo provavelmente se aplica aos passos recentes e ainda inseguros que esta nação tem dado na direção da política de poder imperialista, para a qual a sua forma de governo é menos adequada que a de qualquer outro país. O enorme abismo entre os países ocidentais e o resto do mundo, não só — e nem principalmente — em riqueza, mas em educação, know-how técnico e competência geral, constitui o grave problema das relações internacionais desde o começo da implantação da genuína política de coexistência. E esse abismo, longe de diminuir nas últimas décadas sob a pressão dos sistemas de comunicação em rápido desenvolvimento e o consequente encolhimento das distâncias da terra, tem constantemente aumentado e está agora assumindo proporções verdadeiramente alarmantes. "O crescimento populacional nos países menos desenvolvidos foi duas vezes maior que o dos países mais avançados";[5] e, embora esse fator os obrigue a se voltarem para os que dispõem de alimentos excedentes e de conhecimentos técnicos e políticos, ele inutiliza toda a ajuda.
     Obviamente, quanto maior a população de um país, menos ajuda será recebida per capita, e a verdade é que, após duas décadas de maciços programas de ajuda, todos aqueles países que não tinham a capacidade de se ajudarem a si mesmos — como fez o Japão — estão hoje mais pobres e mais distantes da estabilidade econômica ou política do que nunca. Isso aumenta assustadoramente as possibilidades do imperialismo pela simples razão de que os números, em si, nunca tiveram tão pouca importância; o domínio do branco na África do Sul, onde a minoria tirânica é superada em números numa proporção de um para dez nativos, provavelmente nunca foi tão seguro como hoje. E é essa situação objetiva que transforma toda ajuda externa em instrumento de domínio e coloca todos os países que necessitam desse auxílio para sua sobrevivência física em posição cada vez mais difícil, diante da alternativa entre a aceitação de alguma forma de "governo de raças superiores" e a probabilidade de afundar rapidamente na ruína da anarquia.
     Este livro trata apenas do imperialismo colonial estritamente europeu, que terminou com a liquidação do domínio britânico na índia. Conta a história da desintegração do Estado nacional, que continha quase todos os ingredientes necessários para gerar o subsequente surgimento dos movimentos e governos totalitários. Antes da era imperialista não existia o fenômeno de política mundial, e sem ele a pretensão totalitária de governo global não teria sentido. Durante esse período, contudo, o sistema de Estados nacionais revelou-se incapaz de elaborar novas normas para o tratamento dos assuntos estrangeiros que se haviam tornado assuntos globais e de impor a sua pax romana ao resto do mundo. Sua estreiteza ideológica e miopia política conduziram ao desastre do totalitarismo, cujos horrores sem precedentes anularam a gravidade dos eventos ominosos e a mentalidade ainda mais ominosa do período precedente. Assim, os estudiosos do período totalitário têm-se concentrado quase exclusivamente na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin, esquecendo os seus predecessores menos nocivos, enquanto o domínio imperialista, a não ser para fins de insulto, parece semi esquecido, o que é deplorável, principalmente porque é mais do que óbvia a sua relevância para todos os acontecimentos contemporâneos. Assim, a controvérsia sobre a guerra não declarada dos Estados Unidos contra o Vietnã tem sido conduzida, de ambos os lados, em termos de comparações com exemplos tomados aos anos 30, época em que o domínio totalitário era, realmente, o único perigo claro e presente — demasiado presente —; mas as ameaças e palavras têm semelhança muito mais agourenta com os atos e justificações verbais que precederam a eclosão da Primeira Grande Guerra, quando uma centelha em região periférica e de interesse secundário para todos os interessados serviu de estopim a uma conflagração de dimensões mundiais.
     Acentuar a infeliz relevância desse período semi esquecido para os eventos contemporâneos não significa, naturalmente, nem que a sorte esteja lançada e que estejamos entrando em novo período de política imperialista, nem que o imperialismo deva sempre terminar no desastre do totalitarismo. Por mais que possamos aprender com o passado, isso não nos torna capazes de conhecer o futuro.
 
Hannah Arendt, Julho de 1967.

Parte II Imperialismo (Prefácio)
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* Denominação administrativa, oficial, do município de Paris. (N. E.)
[1] Esses números são retirados de Leo Model, "The politics of private foreign investment", e Kenneth M. Kauffman e Helena Stalson, "U. S. assistance to less developed countries, 1956-65", respectivamente, ambos em Foreign Affairs, julho de 1967.
[2] O artigo de L. Model citado acima (p. 641) fornece uma análise muito valiosa e pertinente desses problemas.
[3]  Foi o que disse Allan Dulles num discurso na Universidade Yale em 1957, segundo David Wise e Thomas B. Ioss, The invisibile government, Nova York, 1946, p. 2.
[4] Dizia Allan Dulles que o governo tinha de combater "fogo com fogo" e, com a desconcertante franqueza que distinguia o ex-chefe da CIA dos seus colegas de outros países, passava a explicar o que isso queria dizer. Pelo visto, a CIA tinha de seguir o modelo do Serviço de Segurança do Estado Soviético, que é "mais que uma organização de polícia secreta, mais que uma organização de espionagem e contra-espionagem. É um instrumento para a subversão, manipulação e violência, para a intervenção secreta nos assuntos de outros países". (O grifo é do autor.) Ver Allan W. Dulles, Thecraftofintelligence, Nova York, 1963, p. 155.
[5] Ver o artigo de Orville L. Freeman, "Malthus, Marx and the North American bread-basket", em Foreign Affairs, julho de 1967.

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - Os cemitérios aceitam o que lhes dão / VI - Entre quatro tábuas

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Oitavo — Os cemitérios aceitam o que lhes dão

VI - Entre quatro tábuas
     
     Quem estava no caixão? Era Jean Valjean, que arranjara maneira de viver dentro daquilo e que mal respirava.
     É estranho até que ponto a segurança da consciência dá a segurança de tudo mais. Toda a combinação premeditada por Jean Valjean caminhava, e caminhava bem, desde o dia antecedente. Contava ele, como Fauchelevent, com o senhor Mestienne, e por isso não duvidava do fim. Jamais se vira situação mais crítica e mais completa tranquilidade.
      As quatro tábuas do caixão produzem uma espécie de paz terrível. Parecia que a tranquilidade de Jean Valjean como que participava do repouso dos mortos. Do fundo daquele esquife tinha ele podido seguir, e seguia todas as fases do temível drama que estava representando com a morte.
     Pouco depois que Fauchelevent acabara de pregar a tábua de cima, Jean Valjean sentiu levarem-no, depois rolar. Pela diminuição dos solavancos conheceu que passavam da calçada para caminho de terra, isto é, que acabaram as ruas e principiavam os boulevards. Por um ruído surdo que ouviu adivinhou que atravessavam a ponte de Austerlitz. Quando o carro parou a primeira vez conheceu que entrava no cemitério, e da segunda paragem disse consigo: «Aí está a escavação».
     Em seguida sentiu de chofre pegarem no caixão, e, logo depois, o roçar rouco de um objeto pelas tábuas, que conheceu ser uma corda que lhe atavam em roda do caixão para o descer à cova.
     Após isto, ficou como que atordoado.
     Provavelmente eram os gatos-pingados que tinham deixado balouçar o caixão, descendo-o primeiro da cabeça que dos pés. Apenas, porém, voltou à posição horizontal e se sentiu imóvel, tornou a si.
     Em seguida sentiu certa frialdade. Tinha chegado ao fundo da cova.
      Elevou-se então por cima dele uma voz glacial e solene, e ouviu pronunciar, tão lentamente que as percebia uma por uma, algumas palavras latinas, que não entendia.

Qui domiunt in terrae pulvere, evigilabunt; alii in vitam eeternam, et alii in opprobrium, ut videant semper.
De profundis — respondeu uma voz de criança.
Requiem alternam donna ei Domine — tornou a voz grave.
Et lux perpetua luceat ei.
 
     Após isto, ouviu soar sobre a tábua que o cobria como que as pancadas leves de algumas gotas de chuva.

 «É a água benta, provavelmente», disse ele consigo, e acrescentou: «Isto está a acabar. Mais um bocado de paciência, que o padre vai-se embora, e Fauchelevent leva o Mestienne para a taberna. Irão todos embora, mas depois vem Fauchelevent sem o outro e tira-me daqui. É negócio de uma hora abonada.»

Requiescat in pace — tornou a voz grave.
Ámen — disse a voz da criança.

      Jean Valjean apurou então o ouvido e como que sentiu um rumor de passos afastando-se.

— Eles lá vão — disse consigo. — Fico eu só.

     De repente ouviu um ruído por cima da cabeça que se lhe afigurou o ribombo de um trovão. 
     Era uma pazada de terra caindo sobre o caixão. 
     Em seguida caiu outra e tapou um dos buracos por onde ele respirava. 
     Depois terceira e quarta. 
     Há coisas mais fortes do que o homem mais forte. 
     Jean Valjean desmaiou.

continua na página 421...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - VI - Entre quatro tábuas
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (9b) - Muitas coisas o príncipe ignorava

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

9.

continuando...

.     Muitas coisas o príncipe ignorava e essa era a primeira pessoa do círculo dos Epantchín a visitá-lo.
     Confirmou o boato de que Agláia estivera doente, três dias e três noites, com febre, sem dormir. Que já estava, agora, bem melhor e fora de perigo, mas em um estado muito nervoso. Que, felizmente, tinham adotado uma boa política em casa, resolvendo não fazer a menor alusão ao passado, não só diante de Agláia, mas mesmo entre si. Que os pais já estavam pensando em uma excursão ao estrangeiro, no outono, logo depois do casamento de Adelaída, tendo Agláia recebido as primeiras insinuações sobre essa viagem em silêncio. Que ele, Evguénii Pávlovitch, muito provavelmente iria também até ao estrangeiro, podendo o próprio Príncipe Chtch.. sair. uns pares de meses, com Adelaída, caso os negócios permitissem. Mas que, quanto ao general, esse teria de ficar. Que se tinham mudado todos para Kólmino, a umas vinte verstás de Petersburgo, pois possuíam lá uma espaçosa mansão. Que a Princesa Bielokónskaia não voltara para Moscou, parecendo que ainda permanecia um pouco em Pávlovsk, propositadamente. Que a saída dos Epantchín de Pávlovsk fora conseqüência de uma resolução categórica de Lizavéta Prokófievna, envergonhada com o que acontecera. Que ele, Evguénii Pávlovitch, fora dos que mais cautelosamente tinham transmitido à generala os rumores que circulavam pela cidade, tendo-lhes parecido, por isso, impróprio mudarem-se para a vila de Ieláguin.

- E, com efeito - acrescentou Evguénii Pávlovitch -, o senhor deve compreender que eles a custo poderiam enfrentar tudo isso... Principalmente sabendo do que se passa aqui em sua casa, príncipe! E ante a sua insistência, embora insistam em não o receber, de lhes ir bater todos os dias na porta.
- Sim, sim, sim! Tem razão. Mas eu queria ver Agláia - disse o príncipe, acenando com a cabeça três vezes.
- Ah! Querido príncipe - exclamou Evguénii Pávlovitch, com exaltação e tristeza-, como lhe haveriam de permitir uma coisa dessas, depois de tudo quanto aconteceu? Naturalmente, naturalmente! Foi tudo tão súbito! Compreendo que o senhor estivesse fora dos seus sentidos e não pudesse conter a pobre menina. Isso não estava em suas forças. Mas devia ter compreendido como e quanto o sentimento dela para com o senhor era intenso e sério. Pois se ela nem se dominou sabendo que havia na sua vida uma outra mulher... E o senhor pôde abandonar e despedaçar um tesouro como aquele?
- Sim, sim, sim! Tem razão. Sou muito culpado - recomeçou Míchkin, em uma terrível angústia - E o senhor sabe, só ela, só ela demonstrava essa consideração para com Nastássia Filíppovna. Só ela, mais ninguém.
- Sim, é isso que torna tudo ainda mais terrível, não haver nada de sério em tudo isso! - tentou explicar Evguénii Pávlovítch, deixando-se empolgar. - Há de me perdoar, príncipe, mas eu estive pensando muito, muitíssimo... nisso tudo. Estou a par de tudo o que aconteceu antes, de tudo quanto aconteceu há seis meses. E cheguei à conclusão de que nada disso tinha consistência. Foi só a sua cabeça, e não o seu coração, que se envolveu em uma ilusão, em uma fantasia, em uma miragem! E só o imaginoso ciúme de uma rapariga completamente inexperiente é que poderia ter tomado isso a sério!...

     A esta altura, sem retalhar muito as coisas principais. Evguénii Pávlovitch deixou que toda a sua indignação enfunasse. Raciocinando com clareza e, repetimos, com muita visão psicológica, traçou um quadro vívido das primeiras relações do príncipe com Nastássia Filíppovna. (Ele sempre tivera o dom da linguagem, mas esse momento lhe despertou uma eloquência verdadeira.)

- Desde o primeiro minuto, tudo começou com falsidade. E o que nasce com a mentira, com a mentira morre; isto é uma lei da natureza. Não concordo e até me indigno quando alguém o chama de idiota. O senhor é inteligente demais para merecer essa classificação. Mas o senhor é tão estranho que não se assemelha a nós outros, vamos, concorde comigo. E então me veio à cabeça que o que está no fundo de tudo que aconteceu é a sua inata falta de experiência (marque bem esta palavra “inata”, príncipe!), a sua extraordinária ingenuidade, a sua fenomenal carência de noções de proporção (o que, alias, o senhor mesmo várias vezes reconheceu) e, finalmente, a enorme massa de convicções que, sendo, como no senhor são, intelectuais, o senhor cuidou que fossem inatas e intuitivas. Deve admitir, príncipe, que desde o começo houve em suas relações para com Nastássia Filíppovna um elemento convencional democrático (uso esta expressão por brevidade), uma fascinação, por assim dizer, pelo caso “mulher” (para expressar-me outra vez com brevidade). Sei todas as minúcias da cena escandalosa que se passou em casa de Nastássia Filíppovna quando Rogójin trouxe o dinheiro. Se prefere, posso analisar tudo, contando pelos meus dedos, ou lhe mostrando em um espelho, para o senhor assim se certificar de que realmente sei como tudo isso foi, como acabou, e no que acabou. Na juventude, lá da Suíça, anelava pela Rússia, e pensava no seu país natal como em uma terra da promissão. Lá leu uma porção de livros sobre a Rússia, excelentes livros, decerto, porém perniciosos para o senhor. Depois veio para cá, sequioso de bem fazer e, se bem me exprimo, de meter mãos à obra. Exatamente no primeiro dia da sua chegada, a triste e lancinante história de uma mulher aviltada lhe chega aos ouvidos. O senhor, um cavalheiro virginal, a escutar a história de uma dama! Naquele mesmo dia viu essa mulher e ficou maravilhado ante tão fantástica e demoníaca beleza! (Concordo que ela seja bonita, naturalmente!) Junte a isso os seus nervos e a sua epilepsia, junte a isso o degelo de Petersburgo, que estraçalha os nervos. Junte tudo isso em um só dia, em uma cidade desconhecida e quase fantasmagórica. Um só dia com tantas peripécias e encontros, um só dia com tão inesperados conhecimentos, Hora sobre hora, da mais surpreendente realidade, o encontro com as três beldades Epantchin. E Agláia entre elas. Depois, a sua fadiga, o torvelinho na sua cabeça e, ainda por cima, a sala de Nastássia Filíppovna, o diapasão dessa sala! E... que poderia o senhor esperar? Diga-me, vamos, que pensa de tudo isso?
- Sim, sim! Sim, sim! - o príncipe abaixou a cabeça e começou a mudar de cor - Tem razão. Foi o que aconteceu, realmente. E, sabe o senhor, mal dormi, ou melhor, não dormi absolutamente naquele trem, nem naquela noite nem na anterior. Estava pavorosamente exausto. 
- Pois decerto! E é o que estou procurando demonstrar - acudiu Evguénii Pávlovitch. - Intoxicado, por assim dizer, pelo entusiasmo, logo se lhe deparou o ensejo de proclamar, publicamente, a generosa ideia de que o senhor, um príncipe por nascimento, e um homem de vida ilibada, não considerava desonrada uma mulher arremessada à vergonha não por culpa própria e sim por um repugnante aristocrata libertino. Deus do Céu, naturalmente que se entende isso! Mas esse não é o ponto, meu caro príncipe. O ponto é saber se houve realidade, se houve sinceridade em suas emoções; se o que houve foi sentimento natural ou entusiasmo intelectual. Que pensa disto? A mulher, no templo, realmente foi perdoada - uma mulher justamente como esta. Mas não lhe foi dito que agira bem e que todo o respeito lhe era devido. Não é mesmo? Não lhe disse o senso comum, três meses depois. Qual o verdadeiro estado da questão? Não desejo criticá-la, mas poderiam todas as aventuras dessa mulher justificar o seu intolerável e diabólico orgulho e o seu insolente egoísmo rapace? Perdoe-me, príncipe, se me deixei arrastar por tudo isso, mas...
- Sim, talvez tudo seja assim. Talvez tenha razão...- tornou a concordar o príncipe. - Ela é muito suscetível... O senhor está certo, mas... 
 - Que é merecedora de compaixão? É o que quer dizer, meu magnânimo amigo? Mas como pôde, atrapalhando-se com a compaixão, servir o prazer de uma mulher para envergonhar outra? E esta, uma pura e suave moça que o senhor consentiu que uns olhos altivos e rancorosos humilhassem! Ao que o vai levar a compaixão, ainda? A um exagero que ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. Como pôde o senhor, amando uma jovem, humilhá-la perante a rival, e, por causa da rival, deixando-a assim, depois do senhor mesmo lhe haver feito uma proposta de casamento honorabilíssima? Não lhe fez o senhor esse pedido, essa proposta? Sim, o senhor o fez, e diante dos pais e das irmãs. Chama-se ainda, depois disso, um homem de bem? Permita que lhe pergunte, príncipe? E... o senhor não iludiu essa adorável criatura quando lhe disse que a amava?
- Sim! Sim! Tem razão! De fato eu me sinto culpado! repetiu o príncipe, tomado de inenarrável angústia. 
- Mas acha que isso é o bastante? - insistiu Evguénii Pávlovitch, indignado. - Acha que basta gritar: “Ah, mereço todas as censuras!”? Sim, é digno de censura, mas persiste! E onde estava o seu coração, então, o seu coração de cristão? Ora, não viu o rosto de Agláia, naquele momento? Bem, e estava ela sofrendo menos do que a outra, do que essa outra mulher que se interpôs entre ela e o senhor? Como foi que viu isso e permitiu? Como pôde permitir?
- Mas.., eu não permiti! balbuciou o desgraçado príncipe.
- Não permitiu? 
- Sim, não permiti coisa nenhuma! Até agora não compreendo como tudo aquilo se passou. Eu... eu ia a correr atrás de Agláia Ivánovna, mas justamente naquele instante Nastássia Filíppovna caiu desacordada. Desde então não me deixaram mais ver Agláia Ivánovna.  
- Deixe disso! O ataque não importava! De qualquer forma o senhor devia ter corrido atrás de Agláia! Mesmo que a outra desmaiasse!
- Sim, sim! Devia ter feito isso, sim! Ela podia, porém, ter morrido; o senhor não sabe. Ela poderia até se matar, o senhor não a conhece... Depois, que é que tinha? Eu contava depois tudo a Agláia e então... Evguénii Pávlovitch... Mas vejo que o senhor não sabe nada. Diga-me, por que não me hão de deixar ver Agláia Ívánovna? Eu já teria explicado tudo a ela. Para que se puseram as duas a falar de coisas erradas?... Foi por isso que aconteceu tudo aquilo. Ao senhor é difícil explicar. Mas a Agláia eu posso. Ah! A pobrezinha! A pobrezinha! E o senhor a me recordar ainda o rostinho dela quando se foi embora. Então eu poderia esquecer?... Vamos lá! Temos de ir! - pulou subitamente e puxou Evguénii Pavlovitch.
- Ir aonde?
- Ver Agláia Ivánovna, vamos imediatamente! 
- Mas não está mais aqui em Pávlovsk, estou lhe dizendo. E ir, para quê? 
- Ela compreenderá, ela compreenderá! - bradou o príncipe, implorando, com as mãos juntas. - Ela compreenderá que não se trata do que aconteceu, mas de alguma coisa mais! Alguma coisa bem diferente!
- Que quer dizer com mais essa coisa “diferente”? Só se é para dizer que se vai casar com a outra! Pois o senhor persiste, não é? O senhor vai ou não vai se casar? 
- Vou sim. Vou sim!
- Então, como é que “há uma outra coisa diferente”?
- Não é isso, não é isso. O eu me ir casar não quer dizer nada, absolutamente nada.
- Como não quer dizer nada? Não tem importância? Ora, a mim me parece que não se trata de uma coisa à-toa, acho eu! Vai se casar com uma mulher que ama, para a tornar feliz. E Agláia Ivánovna vê e sabe disso. E como é que ainda acha que não tem importância? 
- Fazê-la feliz? Oh! Não! Apenas vou me casar com ela. É ela quem quer. E que tem que eu case com ela?... Eu... Oh!... Nada disso tem importância! Assim ela não morre. Casar-se com Rogójin é que seria uma loucura! Compreendo agora tudo quanto não compreendi antes. E, veja o senhor, quando elas estavam lá, uma em face da outra, não pude suportar o rosto de Nastássia Filíppovna... O senhor não sabe, Evguénii Pávlovitch - o príncipe abaixou a voz, misteriosamente -, eu nunca disse isto a ninguém, nem mesmo a Agláia, mas eu não posso suportar o rosto de Nastássia Filíppovna. O senhor tinha razão quando ainda há pouco falava daquela noite em casa de Nastássia Filíppovna: mas deixou de dizer uma coisa que ignora. Já naquela manhã, quando olhei o retrato dela, não pude suportar aquele rosto!... Veja por exemplo os olhos de Vera; não são uma coisa muito diferente? Eu... eu tenho medo do rosto dela! - acrescentou com extraordinária expressão de terror. 
- Tem medo?
- Sim. Ela é louca - ciciou ele, empalidecendo.
- Tem certeza? - perguntou Evguénii Pávlovitch, com extremo interesse.
- Tenho sim. Agora, tenho. Certifiquei-me, destes últimos dias para cá. 
- Mas que é que está fazendo, então, príncipe? - o pavor também se estava comunicando a Evguénii Pávlovitch. - Então vai se casar com ela por causa de uma espécie de medo? Mas não se compreende! Sem mesmo a amar, talvez?
- Oh! Não. Eu a amo com todo o meu coração. Ora... ela é uma criança! Agora ela não passa de uma criança. Completamente! Uma criança! Oh! O senhor não entende essas coisas.
- E ao mesmo tempo declara que ama Agláia Ivánovna? 
- Oh! Sim, sim! 
- Mas como? Então ama a ambas? 
- Oh! Sim, sim! 
- Palavra de honra, príncipe, pense no que está dizendo!
- Sem Agláia, eu sou... Preciso absolutamente ver Agláia! Eu... eu vou morrer qualquer dia destes, durante o sono! Ainda a noite passada tive a sensação de estar morrendo... Oh! Se Agláia soubesse, se ela ao menos pudesse vir a saber tudo, mas absolutamente tudo, entende? Pois em um caso destes se precisa vir a saber de tudo, isso é que importa! Por que é que nós nunca chegamos a saber tudo relativamente a uma outra pessoa, principalmente quando se censura essa pessoa? Não sei mais o que estou dizendo. Estou zonzo. O senhor me assombrou... Será que ela ainda tem a mesma expressão no rosto, como na hora em que fugiu? Provavelmente é minha a culpa toda. Não sei bem como, mas a culpa é minha. Há em tudo isso qualquer coisa que eu não lhe posso explicar, Evguénii Pávlovitch. Não posso achar as palavras, mas... Agláia... Agláia compreenderia. Eu sempre acreditei que ela compreenderia. 
- Não compreenderia não, príncipe. Agláia o amou como mulher, como ser humano e não como espírito abstrato. Quer saber de uma coisa mais do que provável, príncipe? O senhor nunca amou nenhuma delas!
- Sei lá! Talvez.., talvez seja isso. O senhor tem razão em muita coisa, Evguénii Pávlovitch. O senhor é muito inteligente! Ah! A minha cabeça está começando a doer, outra vez. Pelo amor de Deus, vamos à casa dela! Pelo amor de Deus!
- Mas já lhe disse que não está em Pávlovsk. Foi para Kólmino. 
- Então vamos a Kólmino, imediatamente.
- Isso é impossível - declarou Evguénii Pávlovitch, peremptoriamente, levantando-se.
- Ouça. escreverei a ela. O senhor leva a carta. 
- Não, príncipe. não! Poupe-me essa incumbência. Não posso.

     Despediram-se.
     Evguénii Pávlovitch saiu com profundas impressões, concluindo de tudo isso que o príncipe não estava em seu juízo perfeito. 

 “Que quereria ele significar com aquele rosto que quanto mais temia mais amava? E quem sabe se realmente não viria a morrer sem ver Agláia, de modo a ela nunca vir a saber quanto ele a amava? Ah!... Pode-se amar duas pessoas ao mesmo tempo? Bem misterioso que isso é... Pobre idiota! Doravante, que será dele?” 

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (9b) - Muitas coisas o príncipe ignorava
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Massa e Poder - A Malta: As Maltas nas Lendas dos Antepassados dos Arandas

Elias Canetti

A MALTA

      As Maltas nas Lendas dos Antepassados dos Arandas

     Como é que a malta se delineia, segundo o pensamento dos aborígines australianos? Um quadro claro disso dão-nos duas lendas dos arandas sobre seus antepassados. A primeira delas trata de Ungutnika, um famoso canguru de seu passado mítico. Sobre suas experiências com os cães selvagens conta-se o seguinte:

  Ele ainda não era propriamente adulto, mas um animalzinho pequeno, quando partiu em peregrinação. Tendo viajado cerca de três milhas, alcançou uma planície descampada, avistando ali uma malta de cães selvagens. Jaziam todos juntos da mãe, que era bem grande. Ele, então, ficou por ali, observando os cães selvagens, até que estes notaram a presença dele e começaram a correr em seu encalço. Ele fugiu aos saltos, o mais rápido que podia, mas os cães o apanharam numa outra planície. Rasgaram-lhe o ventre, comeram lhe primeiro o fígado, tiraram-lhe a pele, jogaram-na para o lado e puseram-se a arrancar-lhe toda a carne dos ossos. Assim que terminaram, deitaram-se novamente.
  Ungutnika, porém, não fora totalmente destruído, pois restavam lhe ainda a pele e os ossos. Diante dos olhos dos cães, a pele foi até os ossos e recobriu-os. Ungutnika pôs-se novamente de pé e fugiu. Os cães o perseguiram, apanhando-o dessa vez perto de Ulima, uma colina. Ulima signi ca “fígado”, e a colina tem esse nome porque os cães, então, não comeram, mas jogaram fora o fígado, que se transformou na colina escura que caracteriza o lugar. O que se passara antes tornou a acontecer, e Ungutnika, que se recompusera mais uma vez, correu até Pulpunja — palavra que designa um ruído peculiar produzido por morcegos pequenos. Nesse lugar, Ungutnika virou-se e produziu tal ruído, para zombar dos cães, que, mais uma vez, apanharam-no e o abriram de imediato. Mas, para grande espanto de seus perseguidores, ele novamente se recompôs. Correu, então, até Undiara, tendo os cães atrás de si. Ali, ao alcançar um ponto bem próximo de um poço, eles o apanharam e comeram-no inteiro. Cortaram fora o rabo e o enterraram no local onde, em forma de uma pedra, ele se encontra até hoje. A pedra chama-se Churinga-Rabo-de-Canguru; nas cerimônias de multiplicação, ela é desenterrada, exibida a todos e cuidadosamente polida.

      Por quatro vezes, o canguru é caçado pela malta de cães selvagens. É morto, rasgado e devorado. As três primeiras vezes em que isso acontece, deixam intocada a pele e os ossos. Enquanto ambos permanecem intactos, o canguru é capaz de reerguer-se, e seu corpo volta a crescer; de novo, os cães dão-lhe caça. Um único e mesmo animal é comido, portanto, quatro vezes. E a carne que se comeu reaparece de súbito. De um canguru fazem-se quatro, e, no entanto, trata-se sempre do mesmo animal.
     Também a caçada é sempre a mesma; mudam somente os locais em que ela se dá, e os locais dos acontecimentos fabulosos ficam marcados para sempre na paisagem. O morto não cede: torna a viver e zomba da malta, que não para de se assombrar. Mas tampouco ela cede: tem de matar sua presa, mesmo tendo-a já incorporado. Impossível seria expressar com maior clareza e simplicidade a determinação da malta e o caráter repetitivo de sua ação.
     A multiplicação é obtida aí através de uma espécie de ressurreição. O animal não é adulto, não tendo ainda produzido filhotes. Em compensação, quadruplica-se a si mesmo. Multiplicação e reprodução absolutamente não são, como se vê, coisas idênticas. A partir da pele e dos ossos, ele se recompõe ante os olhos de seus perseguidores, e os incita à caça.
     O rabo, que é enterrado, segue existindo sob a forma de uma pedra: ela é o monumento e a testemunha do milagre. A força das quatro ressurreições encontra-se nela agora, e, se tratada corretamente — como acontece nas cerimônias —, ela auxilia continuamente na multiplicação.
      A segunda lenda principia com um único homem caçando um canguru grande e muito forte. Tendo-o visto, ele quer matá-lo e comê-lo. Segue-o, então, por grandes distâncias — trata-se de uma caçada demorada —, e ambos acampam em vários lugares, a uma determinada distância um do outro. Por toda parte onde o animal se detém, ele deixa vestígios na paisagem. Numa certa localidade, ele ouve um ruído e põe se de pé sobre as patas traseiras. Uma pedra de oito metros de altura ergue-se ainda hoje no local, representando-o naquela posição. Posteriormente, atrás de água, cava um buraco na terra, e também esse poço segue existindo.
     Afinal, porém, terrivelmente esgotado, o animal se deita. O caçador topa com um certo número de homens, pertencentes a um subgrupo de seu totem. Os homens lhe perguntam: “Você tem lanças grandes?”. “Não”, responde ele, “só pequenas. Vocês têm lanças grandes?” E os primeiros respondem: “Não. Só pequenas”. O caçador, então, lhes diz: “Ponham as lanças no chão”. Ao que os homens replicam: “Está bem, mas ponha as tuas também no chão”. As lanças são jogadas no chão e todos partem unidos para cima do animal. O caçador permanece apenas com um escudo e sua churinga — sua pedra sagrada — nas mãos.

  O canguru era muito forte e rechaçou os homens. Todos lançaram se então sobre o animal, e o caçador, que ficou por baixo do amontoado de gente, morreu pisoteado. Também o canguru parecia estar morto. Os homens enterraram o caçador com seu escudo e churinga, e levaram o animal consigo para Undiara. Na realidade, o canguru não estava morto, mas morreu logo em seguida, sendo depositado numa caverna. Os homens não o comeram. No lugar da caverna onde seu corpo jazia surgiu, então, um patamar de pedra, no qual, após a morte do animal, seu espírito penetrou. Pouco depois, também os homens morreram, e seus espíritos penetraram no charco logo ao lado. Reza a tradição que, tempos depois, grandes hordas de cangurus vieram até a caverna e penetraram na terra; também os seus espíritos adentraram a pedra.

     A caçada individual transforma-se aí na caçada de toda uma malta. Os homens lançam-se desarmados sobre o animal. Querem enterrá-lo sob um amontoado de gente. O peso dos caçadores reunidos deve sufocá-lo. O canguru, porém, é muito forte e revida com golpes para todos os lados, dificultando a empreitada dos homens. No calor da luta, o próprio caçador acaba debaixo do amontoado de gente, e, em vez do canguru, é ele quem morre pisoteado. Os homens enterram-no, então, com seu escudo e churinga sagrada.
     Essa história de uma malta de caça que, no encalço de um animal em particular, em vez de matá-lo mata por engano um nobre caçador encontra-se difundida por todo o mundo. Ela termina com o lamento pelo caçador: a malta de caça transforma-se em malta de lamentação. Essa transformação constitui o cerne de muitas religiões importantes e amplamente disseminadas. Também aqui, na lenda dos arandas, fala-se no sepultamento da vítima. Escudo e churinga são enterrados com ela, e a menção da churinga, tida por sagrada, confere ao acontecimento seu toque solene.
     Quanto ao animal, que só morre depois, ele é enterrado em outro lugar. Sua caverna torna-se um centro para os cangurus. No curso de tempos que se seguiram, uma grande quantidade deles vem até a mesma pedra e nela penetra. Undiara, que é como se chama o lugar, torna-se um local sagrado no qual os membros do totem-canguru celebram suas cerimônias. Estas se prestam à multiplicação desse animal, e, enquanto desenrolarem-se corretamente, haverá cangurus em número suficiente na redondeza.
     É notável a maneira pela qual se alinham nessa lenda dois acontecimentos religiosos cruciais e inteiramente distintos. O primeiro deles contém, como foi dito, a transformação de uma malta de caça em malta de lamentação; e o segundo, que se passa na caverna, apresenta a transformação da malta de caça em malta de multiplicação. Para os australianos, esse segundo acontecimento reveste-se de uma importância muito maior: ele está verdadeiramente no centro de seu culto.
     Que ambos ocorram um ao lado do outro é algo que corrobora uma tese central desta investigação. Cada uma das quatro formas básicas da malta está presente desde o princípio e por toda parte onde haja seres humanos. Assim sendo, todas as transformações de uma malta em outra são igualmente, e sempre, possíveis. De acordo com a ênfase que se dá a uma ou outra transformação constituem-se diferentes formas religiosas básicas. Distingo como os dois grupos principais as religiões de lamentação e as de multiplicação. Contudo, existem também — como se verá — religiões de caça e de guerra.
      Um vestígio de procedimentos bélicos encontra-se presente até mesmo na lenda mencionada acima. A conversa sobre as lanças, mantida pelo caçador com o grupo de homens que encontra, diz respeito a possibilidades bélicas. Se, ao mesmo tempo, todos jogam no chão as lanças que possuem, eles estão renunciando a um combate. É somente depois disso que, unidos, lançam-se sobre o canguru.
     Deparamos aí com o segundo ponto que me parece notável nessa lenda: o amontoado de homens que se projeta sobre o canguru; uma massa coesa de corpos humanos deve sufocá-lo. Entre os australianos, são frequentes as referências a semelhantes amontoados de corpos humanos. Eles figuram constantemente em suas cerimônias. Num determinado momento da cerimônia de circuncisão dos jovens, o candidato se deita no chão e um certo número de homens deita-se sobre ele, de modo que o jovem tem de suportar-lhes o peso total. Em algumas tribos, um amontoado de pessoas lança-se sobre o moribundo, comprimindo-o por todos os lados. Essa situação, que já conhecemos, é particularmente interessante: ela representa uma passagem dos vivos para o amontoado dos moribundos e dos mortos, passagem esta da qual se fala com frequência neste livro. Alguns casos australianos de densos amontoados serão tratados no próximo capítulo. Para o momento, basta notar que o denso amontoado dos vivos, reunido intencional e violentamente, não é menos importante do que o dos mortos. Se este último nos parece mais familiar, tal se vincula ao fato de, no curso da história, ele ter assumido proporções gigantescas. É natural que frequentemente nos pareça juntarem-se os homens em maior quantidade apenas quando mortos. O amontoado dos vivos, porém, é igualmente bem conhecido: não é outra coisa o que se encontra no cerne da massa.

continua página 187...
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Leia também:

Massa e Poder - A Malta: As Maltas nas Lendas dos Antepassados dos Arandas
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Cinema: Trem Noturno para Lisboa

Trem Noturno para Lisboa 

(2013) 

· Dublado Português


"O professor suíço Raimund Gregorius abandona suas palestras e sua vida abotoada para embarcar em uma aventura emocionante que o levará numa viagem ao fundo de seu coração."





"Tudo começa numa manhã chuvosa. Raimund Gregorius, um professor de literatura clássica, caminha em direção ao seu trabalho em Berna, Suíça, quando se depara com uma jovem angustiada que se encontra no alto da ponte e ele evita que ela se precipite nas águas do rio."


Direção: Bille August

Elenco: 
Jeremy Irons - Raimund
Mélanie Laurent - Estefânia
Lena Olin - Estefânia
Jack Huston - Amadeu
August Diehl - Jorge
Bruno Ganz - Jorge
Tom Courtenay - João
Marco d'Almeida - João
Beatriz Batarda - Adriana
Charlotte Rampling - Adriana
Martina Gedeck - Mariana
Christopher Lee - Bartolomeu
Dominique Devenport - Natalie
Adriano Luz - Mendes
Sarah Spale - Catarina Mendes

Gênero: Mistério, Romance, Thriller
Título original: Night Train To Lisbon


O LivroNachtzug nach Lissabon (Comboio Noturno para Lisboa, em Portugal; Trem Noturno para Lisboa, no Brasil) é um romance filosófico de Pascal Mercier (pseudónimo de Peter Bieri) publicado em 2004. Narra a viagem em busca de si mesmo que Raimund Gregorius, um professor suíço de literatura clássica, faz para Lisboa depois de ler o instigante livro Um Ourives das Palavras, de Amadeo de Ameida Prado, médico português que viveu durante o período ditatorial do Estado Novo de António de Oliveira Salazar. Prado é um pensador cuja mente ativa se torna evidente numa série de reflexões coligidas e lidas por Gregorius.

Data da primeira publicação: 2004
Autor: Peter Bieri
Gêneros: Romance, Romance psicológico
Idioma original: Alemão
Adaptações: Trem Noturno para Lisboa (2013)


"Se só podemos vier uma parte do que está dentro de nós... o que acontece com o resto?"

Trem Noturno para Lisboa
A Guerra do Fogo

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal 
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continuando...


     Foi essa a sutil exposição de Naphta. Fez-se silêncio no pequeno grupo. Os jovens olhavam o Sr. Settembrini, como se fosse ele quem devesse reagir dessa ou daquela forma. 

– É pasmoso – disse o italiano. – Francamente, confesso que estou emocionado. Eu não teria esperado por essa. Roma locuta. E como falou! Diante dos nossos olhos executou um salto mortal hierático, e a contradição que porventura houvesse nesse adjetivo foi “ab-rogada temporariamente”. Sim, senhor! Repito: é pasmoso! O senhor admite a possibilidade de objeções, meu caro professor? Falo de objeções feitas exclusivamente sobre o fundamento da lógica. O senhor acaba de esforçar-se por nos fazer compreender um individualismo cristão, baseado na dualidade de Deus e do mundo e por demonstrar a sua primazia sobre toda mobilidade determinada pela política. Poucos minutos depois levou o socialismo até a ditadura e o terror. Como consegue o senhor reconciliar essas duas coisas? 
– As contradições – replicou Naphta – podem reconciliar-se. Somente o meio-termo, e a mediocridade são irreconciliáveis. Como já me permiti observar, o seu individualismo é deficiente, é apenas um compromisso. Corrige a sua ética paga por meio de um pouco de cristianismo, um pouco de direito do indivíduo e um pouco de pretensa liberdade. Isso é tudo. Um individualismo, porém, que parte da importância cósmica, da importância astrológica da alma individual, um individualismo não social, mas religioso, que concebe a humanidade não como o antagonismo entre o eu e a sociedade, mas como o conflito entre o eu e Deus, entre a carne e o espírito – tal individualismo genuíno se harmoniza muito bem com a comunidade mais intensamente coercitiva... 
– É anônimo e coletivo – disse Hans Castorp.

     Settembrini mirou-o com os olhos arregalados. 

– Cale-se, engenheiro! – ordenou com uma severidade que se devia atribuir ao seu nervosismo e à tensão do seu espírito. – Instrua-se, mas deixe de externar suas opiniões!... Recebi uma resposta – prosseguiu, voltando-se novamente para Naphta. – Ela pouco me consola, mas, ao menos, é uma resposta. Encaremos todas as consequências que provêm dela... Com a indústria, o comunismo cristão rejeita a técnica, a máquina, o progresso. Com aquilo que o senhor qualificou de camada de comerciantes, com o dinheiro e os negócios lucrativos, que a Antiguidade colocava muito acima da agricultura e do artesanato, reprova a liberdade. É evidente, salta aos olhos que dessa forma – tal como aconteceu na Idade Média – todas as relações particulares e públicas ficam presas ao solo. E o mesmo se dá – custa-me dizê-lo – com a personalidade. Se o solo é o único que alimenta, é também o único que pode outorgar a liberdade. Artífices e camponeses, por mais alto que seja o conceito de que gozam, se não possuem terras, são servos de quem as possuí. Com efeito, até uma fase muito adiantada da Idade Média, as grandes massas, inclusive nas cidades, compunham se de servos. No curso da nossa palestra, o senhor mencionou de vez em quando a dignidade humana. Não obstante, defende uma moral econômica à qual são inerentes a servidão e o aviltamento da personalidade do homem. 
– Sobre a dignidade e o aviltamento – disse Naphta – pode-se discutir. Por enquanto, eu ficaria muito satisfeito se essa associação o fizesse ver na liberdade menos um belo gesto do que um problema. O senhor observa que a moral econômica cristã, com toda a sua beleza e mentalidade humana, cria servos. Eu oponho a isso que a causa da liberdade ou das cidades, como se poderia dizer de uma forma mais concreta —, que essa causa, por elevada e ética que seja, acha-se historicamente ligada à mais desumana degeneração da moral econômica, a todas as atrocidades do espírito moderno de comerciantes e especuladores, à dominação diabólica do dinheiro e dos negócios. 
– Faço questão de que o senhor não se esquive por meio de antinomias e de ambiguidades, mas professe clara e inequivocamente ser partidário da mais negra das reações. 
– O primeiro passo em direção à verdadeira liberdade e humanidade seria abandonar esse medo covarde da ideia de reação. 
– Agora basta! – disse o Sr. Settembrini numa voz levemente trêmula, enquanto afastava de si a xícara e o prato, que já estavam vazios. Levantou-se do sofá forrado de seda. – Por hoje chega, é suficiente para um só dia, segundo me parece. Professor, obrigado pelo saboroso lanche e pela conversa sumamente espirituosa. Os deveres do regime reclamam os meus amigos do Berghof, e eu gostaria, antes de irem, de mostrar-lhes o meu cubículo lá em cima. Vamos, cavalheiros! Addio, padre!

     Desta vez até chamou Naphta de “padre”. Hans Castorp, com as sobrancelhas franzidas, tomou nota do apelido. Os primos deixaram que Settembrini organizasse a partida, dispondo deles e nem sequer perguntando se Naphta queria ou não unir-se a eles. Os jovens despediram-se também, agradecendo, e foram convidados a voltar em breve. Acompanharam o italiano, Hans Castorp levando emprestada a obra De misria humanae conditionis, um volume cartonado, em precário estado de conservação. Lukacek, com a sua barba, melancólica, continuava sentado à mesa, trabalhando no vestido com mangas, destinado àquela velha, quando passaram pela sua porta, para ganhar a íngreme escada que conduzia à água-furtada. No fundo não se tratava de mais um andar, senão simplesmente do vão do sótão, com o madeiramento despido abaixo das telhas e com a atmosfera estival de um depósito, cheirando a madeira quente. Mas o sótão abrigava dois compartimentos que o capitalista republicano habitava. Serviam de gabinete de estudo e de dormitório ao colaborador beletrista da Sociologia dos males. Mostrou-se alegremente aos jovens amigos. Qualificou a habitação de isolada e íntima, a fim de lhes sugerir os epítetos adequados de que poderiam servir-se para elogiá-la, o que de fato fizeram unanimemente. Era encantadora – acharam ambos —, tão isolada e tão íntima, exatamente como dissera o Sr. Settembrini. Lançaram um olhar ao pequeno dormitório, onde, à frente do estreito leito, se estendia um pequeno tapete de retalhos, e depois voltaram ao gabinete de trabalho, mobiliado de modo não menos despojado, mas que mostrava, ao mesmo tempo, uma ordem um tanto espalhafatosa e até fria. Cadeiras toscas e antiquadas em número de quatro, com assentos de palha, achavam-se colocadas simetricamente dos lados das portas, e também o sofá estava encostado à parede, de modo que o centro da peça pertencia somente a uma solitária mesa redonda, coberta com uma toalha verde, na qual se via, para fins de adorno ou de refresco, uma sóbria garrafa de água com um copo enfiado sobre o gargalo. Livros encadernados e brochuras encontravam-se apoiados obliquamente uns nos outros sobre uma pequena estante, e junto à janelinha erguia-se sobre pernas altas uma papeleira leve, diante da qual havia um pedacinho de feltro espesso, de tamanho apenas suficiente para que se pudesse ficar de pé em cima dele. Durante um momento, Hans Castorp, a título de experiência, pôs-se no lugar onde o Sr. Settembrini costumava trabalhar, estudando, para fins enciclopédicos, as belas-letras sob o ponto de vista do sofrimento humano. Fincando os cotovelos na tábua inclinada, o jovem declarou que ali se podia viver de um modo isolado e íntimo. Nessa mesma posição – opinou – devia o pai de Lodovico, com seu nariz fino e comprido, ter ficado diante da sua escrivaninha, em Pádua. E Hans Castorp inteirou-se de que realmente essa era a papeleira do saudoso sábio; também as cadeiras de palhinha, a mesa e a própria garrafa de água haviam pertencido a ele. E mais ainda: as cadeiras provinham do avô, o carbonário; haviam feito parte da mobília do seu escritório em Milão. Isso era impressionante. A fisionomia das cadeiras tomava aos olhos dos jovens ares de insubmissão política. Joachim levantou-se daquela em que se instalara inocentemente, com as pernas cruzadas, e olhou-a desconfiado, sem voltar a sentar-se. Hans Castorp, porém, de pé diante da papeleira de Settembrini-pai, pensava no filho que agora trabalhava nela, associando a política do avô e o humanismo do genitor, com o fim de criar obras beletrísticas. Pouco depois saíram todos os três. O escritor ofereceu-se a acompanhar os primos pelo caminho de regresso.
     Caminharam um bom pedaço sem falar, mas o seu silêncio estava relacionado com Naphta, e Hans Castorp não tinha pressa. Estava certo de que o Sr. Settembrini não deixaria de mencionar o vizinho, e que só os acompanhara na intenção de fazê-lo. Não se enganou. Depois de um suspiro dado para tomar impulso, o italiano começou dizendo:

– Senhores, eu desejaria adverti-los.

     Como Settembrini fizesse uma pausa, Hans Castorp indagou com fingida surpresa: – Contra o quê? – Poderia ter perguntado: “Contra quem?” Mas preferiu a forma impessoal, para documentar a extensão da sua inocência, ainda que o próprio Joachim soubesse muito bem de que se tratava. 

– Contra a personalidade que acabamos de visitar – respondeu Settembrini – e que eu tive de apresentar-lhes contra a minha vontade. Os senhores sabem que isso aconteceu por mero acaso e não houve jeito de evitá-lo. Mas a responsabilidade me cabe e pesa sobre mim penosamente. É minha obrigação expor à juventude, da qual os senhores fazem parte, os perigos espirituais que acarreta o contato com esse homem. Devo pedir-lhes que mantenham em limites seguros as relações com ele. Sua forma é lógica, mas sua natureza é confusão.

     Hans Castorp replicou que, realmente, não se sentia à vontade com Naphta. Suas palavras deixavam-no às vezes com uma sensação esquisita. Podia-se pensar em alguns momentos que ele pretendia afirmar seriamente que o Sol girava em torno da Terra. Mas, como poderiam eles, os primos, ter imaginado que fosse inconveniente travar relações sociais com um amigo do Sr. Settembrini? Não acabava ele próprio de dizer que haviam conhecido Naphta por seu intermédio? Tinham-no encontrado em sua companhia; o homem passeava com ele, que tomava o chá na sua casa, assim sem cerimônia, e tudo isso demonstrava, afinal... 

– Sem dúvida, meu caro engenheiro, sem dúvida! – a voz do Sr. Settembrini soava suave, resignada, e contudo levemente trêmula. – São objeções que se impõem, e por isso o senhor tem razão de fazê-las. Muito bem, estou disposto a defender-me. Vivo sob o mesmo teto com esse senhor. Frequentes encontros são inevitáveis. Uma palavra traz a outra. A gente trava conhecimento. O Sr. Naphta é homem inteligente, o que é coisa rara. Tem um temperamento discursivo, assim como eu. Que me condene quem quiser, mas aproveito a oportunidade de cruzar as lanças da ideia com um adversário de qualidade até certo ponto igual. Não tenho mais ninguém, nem perto nem longe... Numa palavra, não nego que o visito e que ele me visita. Também passeamos juntos. E discutimos. Discutimos encarniçadamente, quase todos os dias. Mas confesso que a oposição e a hostilidade da sua maneira de pensar representa para mim precisamente um atrativo a mais para me encontrar com ele. Tenho necessidade do atrito. As convicções não vivem, a não ser que tenham ocasião de lutar, e eu, por minha parte, tenho sólidas convicções. Mas como poderiam os senhores afirmar o mesmo das suas próprias pessoas? O senhor, tenente, ou o senhor, engenheiro? Não estão armados para se defender contra miragens intelectuais. Correm o perigo de que essas sutilezas meio fanáticas, meio maliciosas, lhes prejudiquem o espírito e a alma.

     Hans Castorp admitiu tudo isso. Seu primo e ele próprio eram, provavelmente, naturezas um tanto expostas. A velha história dos filhos enfermiços da vida; claro! Mas a ela podia-se opor Petrarca com a sua divisa, que o Sr. Settembrini conhecia. Em todo caso era digno de ser ouvido o que Naphta explanava. Que não fossem injustos: aquilo que ele dissera sobre o tempo comunista, por cujo transcurso ninguém deveria receber um prêmio, era mesmo notável. E também eram muito interessantes as suas ideias sobre a pedagogia, coisas que ele, Hans Castorp, nunca teria chegado a saber sem Naphta...
     Settembrini cerrou os lábios, e Hans Castorp apressou-se a acrescentar que, naturalmente, ele se abstinha de tomar partido e de formar uma opinião. Simplesmente achara dignos de serem ouvidos os argumentos de Naphta sobre os desejos da juventude. – Explique-me o senhor uma coisa – continuou. – Esse Sr. Naphta (digo “esse senhor” para indicar que não simpatizo com ele irrestritamente; pelo contrário, observo com relação a ele uma rigorosa reserva mental...)

– E o senhor faz muito bem! – exclamou Settembrini, cheio de gratidão. 
– ...ele acaba de dizer horrores contra o dinheiro, a alma do Estado, segundo se expressava, e contra a propriedade particular, que tachava de roubo; numa palavra, atacou a riqueza capitalista, da qual, se não me engano, afirmou que era o combustível das chamas do inferno. Parece-me que se serviu dessa expressão. Em altos brados elogiou a condenação medieval do anatocismo. E apesar de tudo isso ele próprio faz... O senhor me desculpe, mas ele deve... É uma verdadeira surpresa quando se entra na casa dele. Toda aquela seda... 
– Pois é – sorriu Settembrini. – A tendência dos seus gostos é característica. 
– ...e os belos móveis antigos – prosseguiu Hans Castorp nas suas reminiscências —, a Pietà do século XIV... o lustre veneziano... o criadinho de libré... e bolo de chocolate em abundância... É preciso que ele pessoalmente... 
– O Sr. Naphta, pela sua pessoa – explicou Settembrini —, é tão pouco capitalista quanto eu. 
– Mas... – perguntou Hans Castorp. – As suas palavras escondem um “mas”, Sr. Settembrini. 
– Bem, essa gente não deixa nenhum dos seus na miséria. 
– Quem é “essa gente”? 
– Aqueles padres. 
– Padres? Que padres? 
– Ora, engenheiro, eu falo dos jesuítas. 

     Fez-se um momento de silêncio. Os primos mostraram sinais da mais viva consternação. Hans Castorp exclamou: 

– Não é possível!... Cruzes! O homem é um jesuíta? 
– O senhor adivinhou – respondeu o Sr. Settembrini cerimoniosamente. 
– Não, nunca na vida teria eu... Como poderia pensar? É por isso que o senhor o chamou de “padre”. 
– Foi um pequeno excesso de cortesia – tornou Settembrini. – O Sr. Naphta não é padre. Se por enquanto ainda não atingiu esse grau, a culpa é da enfermidade. Mas ele passou pelo noviciado e fez os primeiros votos. A doença forçou-o a interromper os estudos teológicos. Depois, teve ainda alguns anos de serviço como prefeito num instituto da ordem, isto é, como preceptor ou mentor de jovens alunos. Isso vinha ao encontro das suas inclinações pedagógicas. E aqui pode continuar a satisfazê-las, ensinando latim no Fredericianum. Vive em Davos faz cinco anos. Não se pode dizer ao certo quando será capaz de partir, se é que um dia o será. Mas Naphta pertence à ordem, e mesmo que os laços que o ligam a ela fossem mais frouxos, nunca lhe faltaria nada. Eu já expliquei aos senhores que ele, pessoalmente, é pobre, quer dizer, não possui bens. Claro, é a regra! A ordem, por sua vez, dispõe de imensas riquezas e cuida dos seus, como os senhores podem ver. 
– Barba...ridade! – murmurou Hans Castorp. – E eu nem sabia ou pensava que uma coisa dessas pudesse existir realmente! Um jesuíta! Sim, senhor!... Mas diga-me mais uma coisa: se ele está bem provido e amparado por aquela gente, por que cargas d'água vive então... Absolutamente não quero criticar a sua habitação, Sr. Settembrini O senhor está muito bem instalado na casa de Lukacek, de um modo agradavelmente isolado e sobretudo tão íntimo... Mas sou de opinião que esse Naphta, uma vez que anda tão cheio da nota, para usar esse termo vulgar... Por que não aluga uma moradia mais vistosa, com uma entrada elegante e peças grandes, numa casa distinta? Há mesmo qualquer coisa de misterioso e aventureiro nesse jeito de morar num quartinho desses, com todas aquelas sedas...

     Settembrini deu de ombros.     

– Devem ser razões de tato e de gosto que determinaram a escolha – disse então. – Acho que sua consciência anticapitalista se sente melhor quando ele habita o quarto de homem pobre e compensa isso pela maneira como o habita. Talvez haja também questões de discrição metidas nisso. Não se deve ostentar a todo mundo que se é abastecido pelo Diabo. Adota-se uma fachada pouco impressionante, atrás da qual se dá livre curso ao gosto sacerdotal pela seda... 
– É esquisito! – disse Hans Castorp. – É completamente novo e emocionante para mim, como confesso com toda a franqueza. Não, de fato estamos muito gratos, Sr. Settembrini, porque nos apresentou esse homem. Creia-me que frequentemente voltaremos a visitá-lo. Isso ficou combinado. Relações assim ampliam o horizonte de maneira inesperada e permitem olhar para um mundo cuja existência a gente absolutamente ignorava. Um autêntico jesuíta! Quando digo “autêntico” estou dando margem àquilo que me preocupa, e que não posso deixar de observar. Eu pergunto: é ele realmente um jesuíta como os outros? Sei muito bem que o senhor pensa que não pode haver norma, quando se trata de pessoas que o Diabo abastece. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa, que se pode resumir na pergunta: “É ele autêntico como jesuíta?” É isso que me interessa. Naphta acaba de dizer uma porção de coisas – o senhor sabe a que me refiro – sobre o comunismo moderno e o zelo piedoso do proletariado, que não deve impedir as suas mãos de derramarem sangue. Numa palavra, ele disse coisas que não quero comentar; comparado com esse homem, o seu avô, com sua lança do cidadão, era um cordeirinho inocente; não me leve a mal essa expressão! E ele pode fazer isso? Tem a aprovação dos seus superiores? É compatível com a doutrina romana, uma vez que dizem que a ordem intriga o mundo inteiro em prol dela? Não é tudo isso – como se diz? – herético, anormal, incorreto? Essas ideias me ocorrem a respeito de Naphta, e eu gostaria muito de saber o que o senhor pensa.

     Settembrini sorriu. 

– É muito simples. O Sr. Naphta é, realmente e antes de mais nada, um jesuíta genuíno e completo. Mas em segundo lugar é um homem de espírito – do contrário eu não procuraria a companhia dele – e como tal empenha-se em encontrar novas combinações, adaptações e associações, ainda em busca de variações modernas. Os senhores me viram surpreendido diante das suas teorias. Comigo, ele nunca se revelara até esse ponto. Servi-me do estímulo que a presença dos senhores evidentemente exercia sobre ele para provocá-lo, a fim de que dissesse, em certo sentido, a última palavra. E essa palavra foi bastante excêntrica e bastante monstruosa...
– Sim... E por que não chegou a ser padre? Acho que ele tem a idade necessária. 
– Eu já lhe disse que a doença o impediu, temporariamente... 
– Hum... Mas, se Naphta é em primeiro lugar um jesuíta, e em segundo, um homem de espírito que anda em busca de combinações, não acredita o senhor que esse outro elemento, o acessório, provém da enfermidade? 
– Que quer dizer com isso? 
– Olhe, Sr. Settembrini, parece-me o seguinte: ele tem uma mancha úmida que o impede de ser padre. Mas aquelas suas combinações também o teriam impedido, e sob esse aspecto pode se dizer que as combinações e a mancha úmida pertencem à mesma categoria. Ele é, à sua maneira, uma espécie de filho enfermiço da vida, um joli jésuite com uma petite tache humide

     Haviam chegado ao sanatório. No terraço em frente ao edifício detiveram-se ainda um instante, antes de se separarem. Formaram um pequeno grupo, enquanto outros pensionistas, que andavam ociosos nas proximidades do portão, observavam a sua palestra. O Sr. Settembrini disse:

– Mais uma vez, meus jovens amigos, advirto-os. Não posso proibir-lhes a continuação das relações uma vez estabelecidas, desde que se sintam impelidos pela curiosidade. Mas criem em torno do coração e do cérebro uma couraça de desconfiança. Nunca deixem de opor uma resistência crítica. Eu definirei esse homem numa única palavra: é um voluptuoso.

     Os primos fizeram uma careta. A seguir perguntou Hans Castorp: 

– Um quê? Ora veja! Mas ele pertence a uma ordem. Pelo que sei, existem ali alguns votos que devem ser feitos, e além disso Naphta é tão minguado e tão débil... 
– O senhor fala muito ingenuamente, engenheiro – retrucou o Sr. Settembrini. – Aquilo nada tem que ver com a debilidade, e quanto aos votos há certas reservas. Porém, eu falei num sentido mais lato e mais espiritual, na esperança de encontrar alguma compreensão da sua parte. Lembra-se ainda do dia em que o visitei no seu quarto – já faz muito, muitíssimo tempo –, o senhor passava pelo período de acamamento obrigatório, logo depois da sua admissão como paciente... 
– Como não! O senhor entrou na hora do crepúsculo e acendeu a luz. Recordo-me como se fosse hoje... 
– Bem, naquele dia o curso da palestra, como graças a Deus acontece frequentemente, levou-nos a certos assuntos elevados. Creio que falamos até da vida e da morte, da natureza digna da morte, contanto que seja uma condição e um complemento da vida, e do caráter de bicho papão que ela assume quando o espírito comete o pavoroso erro de isolá-la como princípio. Senhores – prosseguiu o Sr. Settembrini, aproximando-se muito dos dois jovens e estendendo lhes o polegar e o dedo médio da mão esquerda à maneira de uma forquilha, como para apanhar lhes a atenção, enquanto erguia o indicador da direita em sinal de admoestação... –, gravem na sua memória que o espírito é soberano, que sua vontade é livre, que determina o mundo moral. Porém, se dualisticamente isola a morte, esta se converte, real e virtualmente, graças à vontade do espírito, numa potência própria, oposta à vida, num princípio antagônico, na grande sedução; e seu império é o da voluptuosidade. Os senhores perguntam: “Por que da voluptuosidade?” E eu respondo: porque a morte dissolve e redime, porque traz a redenção, mas não a redenção do mal, e sim a redenção pelo mal. Dissolve a ética e a moralidade, redime da disciplina e da moderação, liberta para a volúpia. Se os advirto contra o homem que os senhores, malgrado meu, conheceram por meu intermédio, se os exorto a que blindem os corações com a tríplice couraça da crítica, no contato e nas discussões com ele, é porque todos os seus pensamentos têm caráter voluptuoso, pois estão colocados sob a proteção da morte, que é uma potência sumamente licenciosa, como eu já lhe disse, engenheiro, naquela ocasião – lembro-me bem da expressão que usei; sempre guardo na memória as expressões precisas e incisivas que tive oportunidade de formular –, é uma potência dirigida contra a civilização, o progresso, o trabalho e a vida. E o mais nobre dever do educador é pôr as almas dos jovens ao abrigo das suas emanações mefíticas.  

     Seria impossível falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer. Hans Castorp e Joachim Ziemssen agradeceram-lhe todos os conselhos, despediram-se e subiram até o portal do Berghof, ao passo que o Sr. Settembrini regressava à sua papeleira de humanista, um andar acima da cela forrada de seda do Sr. Naphta.
     A visita dos primos à casa de Naphta, que acabamos de descrever, foi a primeira que lhe fizeram. Seguiram-se a ela duas ou três outras, uma até na ausência do Sr. Settembrini, e todas elas forneciam ao jovem Hans Castorp material para as suas reflexões, quando se deixava estar no seu retiro florido de azul e “reinava”, enquanto pairava ante seus olhos interiores aquela forma sublime que se chama Homo Dei.

continua pág 268...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.