domingo, 28 de dezembro de 2025

Edith Piaf

A Pequena Pardal

Non, je ne regrette rien

Não, nada de nada... 
Não, eu não lamento nada, 
Nem o bem que me fez, 
Nem a dor, tudo isso me é indiferente!

Não, nada de nada...
Não, eu não lamento nada,
Está pago, varrido, esquecido
Eu me lixo para o passado!

Com minhas recordações
Eu acendi o fogo
Minhas aflições, meus prazeres
Eu não preciso mais deles

Varridos meus amores
Com seus tremores,
Varridos para sempre
Eu recomeço do zero!

Não, nada de nada...
Não, eu não lamento nada,
Nem o bem que me fez,
Nem a dor, tudo isso me é indiferente!

Não, nada de nada...
Não, eu não lamento nada.
Porque minha vida, minhas alegrias, hoje, começam com você!





Uma história que nos deu um hino de amor



Piaf, Um Hino ao Amor 
(Trailer)



Os últimos dias de um ícone: 
Edith Piaf




Édith Piaf 
- Hymne à L'amour



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Gente do Mundo
Paco de LucíaEdith Piaf

sábado, 27 de dezembro de 2025

Espumas Flutuantes - HEBREIA

Castro Alves

À memória de Meu Pai, 
de Minha Mãe 
e de Meu Irmão 
O. D. C. 

HEBREIA 
 Flos campi et lilium convalium
 Cântico dos Cânticos

     Pomba d’esp’rança sobre um mar d’escolhos! 
 Lírio do vale oriental, brilhante! 
 Estrela vésper do pastor errante! 
 Ramo de murta a rescender cheirosa!...

Tu és, ó filha de Israel formosa... 
 Tu és, ó linda, sedutora Hebréia... 
 Pálida rosa da infeliz Judéia 
 Sem ter o orvalho, que do céu deriva! 

Por que descoras, quando a tarde esquiva 
 Mira-se triste sobre o azul das vagas? 
 Serão saudades das infindas plagas, 
 Onde a oliveira no Jordão se inclina? 

Sonhas acaso, quando o sol declina, 
 A terra santa do oriente imenso? 
 E as caravanas no deserto extenso? 
 E os pegureiros da palmeira à sombra?!...

Sim, fora belo na relvosa alfombra, 
 Junto da fonte, onde Raquel gemera, 
 Viver contigo qual Jacó vivera 
 Guiando escravo teu feliz rebanho...  

Depois nas águas de cheiroso banho 
 — Como Susana a estremecer de frio — 
 Fitar-te, ó flor do Babilônio rio, 
 Fitar-te a medo no salgueiro oculto... 

Vem pois!... Contigo no deserto inculto 
 Fugindo às iras de Saul embora, 
 Davi eu fora, — se Micol tu foras, 
 Vibrando na harpa do profeta o canto... 

Não vês?... Do seio me goteja o pranto 
 Qual da torrente do Cedrón deserto!... 
 Como lutara o patriarca incerto 
 Lutei, meu anjo, mas caí vencido. 

Eu sou o Lótus para o chão pendido. 
 Vem ser o orvalho oriental, brilhante!... 
 Ai! guia o passo ao viajor perdido, 
 Estrela vésper do pastor errante!...
Bahia, 1866


QUEM DÁ AOS POBRES, EMPRESTA A DEUS
Ao Gabinete Português de Leitura, por ocasião de oferecer o produto de um
benefício às famílias dos soldados mortos na guerra

Eu, que a pobreza de meus pobres cantos 
 Dei aos heróis — aos miseráveis grandes —, 
 Eu, que sou cego, — mas só peço luzes... 
 Que sou pequeno, — mas só fito os Andes... 
 Canto nest’hora, como o bardo antigo 
 Das priscas eras, que bem longe vão, 
 O grande NADA dos heróis, que dormem 
 Do vasto pampa no funéreo chão...

Duas grandezas neste instante cruzam-se! 
 Duas realezas hoje aqui se abraçam!... 
 Uma — é um livro laureado em luzes... 
 Outra — uma espada, onde os lauréis se enlaçam. 
 Nem cora o livro de ombrear co'o sabre... 
 Nem cora o sabre de chamá-lo irmão... 
 Quando em loureiros se biparte o gládio 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

E foram grandes teus heróis, ó pátria, 
 — Mulher fecunda, que não cria escravos —,  
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos: 
 “Parti — soldados, mas voltai-me — bravos!” 
 E qual Moema desgrenhada, altiva, 
 Eis tua prole, que se arroja então, 
 De um mar de glórias apartando as vagas 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

E esses Leandros do Helesponto novo 
 Se resvalaram — foi no chão da história... 
 Se tropeçaram — foi na eternidade... 
 Se naufragaram — foi no mar da glória... 
 E hoje o que resta dos heróis gigantes?... 
 Aqui — os filhos que vos pedem pão... 
 Além — a ossada, que branqueia a lua, 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

Ai! quantas vezes a criança loura 
 Seu pai procura pequenina e nua, 
 E vai, brincando co'o vetusto sabre, 
 Sentar-se à espera no portal da rua... 
 Mísera mãe, sobre teu peito aquece 
 Esta avezinha, que não tem mais pão!...
Seu pai descansa — fulminado cedro — 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

Mas, já que as águias lá no Sul tombaram 
 E os filhos d’águias o Poder esquece... 
 É grande, é nobre, é gigantesco, é santo!... 
 Lançai — a esmola, e colhereis — a prece!... 
 Oh! dai a esmola... que, do infante lindo 
 Por entre os dedos da pequena mão, 
 Ela transborda... e vai cair nas tumbas 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

Há duas coisas neste mundo santas: 
 — O rir do infante, — o descansar do morto... 
 O berço — é a barca, que encalhou na vida, 
 A cova — é a barca do sidéreo porto... 
 E vós dissestes para o berço — Avante! — 
 Enquanto os nautas, que ao Eterno vão, 
 Os ossos deixam, qual na praia as âncoras, 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

É santo o laço, em qu’hoje aqui se estreitam 
 De heroicos troncos — os rebentos novos —! 
 É que são gêmeos dos heróis os filhos 
 Inda que filhos de diversos povos! 
 Sim! me parece que n’est'hora augusta 
 Os mortos saltam da feral mansão...  
E um “bravo!” altivo de além-mar partindo 
 Rola do pampa no funéreo chão!...

São Salvador, 31 de outubro de 1867 

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Prólogo / Hebreia
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Antônio Frederico de Castro Alves - foi um poeta, dramaturgo e advogado brasileiro, considerado o principal representante da terceira geração do romantismo no Brasil. Ficou conhecido por seus poemas abolicionistas, que renderam-lhe a alcunha de "poeta dos escravos".
Nascimento: 14 de março de 1847, Castro Alves, Bahia - Falecimento: 6 de julho de 1871, Salvador, Bahia. 
Influenciado por: Gonçalves Dias, Lord Byron, Victor Hugo, 
Formação: Faculdade de Direito do Recife | FDR, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) 
Pais: Clélia Brasília da Silva Castro, Antônio José Alves
Irmãos: Adelaide Alves, Cassiano José Alves
O “poeta dos escravos” foi um poeta sensível aos graves problemas sociais do seu tempo. Expressou sua indignação contra as tiranias e denunciou a opressão do povo.
A poesia abolicionista é sua melhor realização nessa linha, denunciando energicamente a crueldade da escravidão e clamando pela liberdade. Seu poema abolicionista mais famoso é “O Navio Negreiro”.

Paco de Lucía

Violão flamenco

Sevilla

o maior violonista flamenco de todos os tempos!


Paco de Lucía se apresentando ao vivo no concerto da Expo '92 em Sevilha, Espanha.






Descubra "O Legado Oculto de Paco de Lucía", uma história fascinante sobre o gênio que revolucionou o flamenco, mas deixou profundas questões em aberto. O que seus filhos herdam quando o sobrenome é imortal, mas o pai estava ausente? Junte-se a nós nesta jornada que revela os amores, sacrifícios e complexas batalhas judiciais que moldaram a vida dos cinco herdeiros do maior guitarrista de flamenco de todos os tempos. De um amor proibido que desafiou a aristocracia espanhola a um triunfo em uma batalha pelos direitos autorais, esta é uma história de família, arte e a árdua responsabilidade de proteger um legado cultural incomparável. Não perca esta comovente crônica que mudará sua perspectiva sobre o mito de Paco de Lucía e seu impacto duradouro!





Paco De Lucía - Tico Tico no fubá



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Gente do Mundo
Paco de Lucía / Edith Piaf


Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X - Segunda Parte(a)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção X

DOS MILAGRES[1*]
SEGUNDA PARTE
 
.

     No raciocínio precedente supusemos que o testemunho sobre o qual se baseia o milagre pode talvez equivaler a uma prova completa e que a falsidade deste testemunho seria um verdadeiro prodígio. Mas é fácil mostrar que temos sido muito generosos em nossa concessão e que jamais houve um evento miraculoso estabelecido[1] sobre uma evidência tão completa.
     Porque, em primeiro lugar, não se pode encontrar em toda a história nenhum milagre testificado por número suficiente de homens de tão indubitável bom senso, educação e instrução que nos assegurassem contra todo logro de sua parte; de tão indubitável integridade que os pusesse fora de qualquer suspeita de querer enganar os outros; de tal crédito e de tal reputação aos olhos dos homens que perderiam muito se fossem descobertos em alguma falsidade; e, ao mesmo tempo, testificando fatos realizados de um modo tão público e numa parte do mundo tão famosa que seria inevitável a descoberta da falsidade; todas essas circunstâncias são necessárias para fornecer-nos completa segurança no testemunho humano.  
     Em segundo lugar, podemos observar na natureza humana um princípio que, se examinado com rigor, diminuirá extremamente a segurança que poderíamos ter acerca de algum gênero de prodígio, devido ao testemunho humano. O princípio que geralmente nos orienta em nossos raciocínios estipula que os objetos dos quais não temos nenhuma experiência se assemelham àqueles de que temos experiência; que o que temos visto e é o mais usual é sempre o mais provável; e que, se houver oposição de argumentos, devemos dar preferência aos que se fundam sobre maior número de experiências passadas. Porquanto, procedendo segundo esta regra, rejeitamos rapidamente um fato raro e inacreditável em escala ordinária; ao avançar mais, contudo, o espírito nem sempre respeita a mesma regra; admitindo apressadamente, ao contrário, algo que se afirma completamente absurdo e miraculoso, em virtude da mesma circunstância que deveria destruir toda a sua autoridade. A paixão da surpresa e da admiração resultantes dos milagres, é uma emoção agradável que produz uma tendência sensível para que acreditemos nos eventos dos quais derivam. Isto vai tão longe que mesmo aqueles que não podem usufruir imediatamente deste prazer, nem podem acreditar nos eventos miraculosos que lhes comunicam, sentem indubitavelmente prazer em participar de uma satisfação de segunda mão ou por ricochete, e sentem orgulho e deleite a seguir em excitar a admiração dos outros.
     Com que avidez se recebem os relatos miraculosos dos viajantes, suas descrições de monstros marinhos e terrestres, suas narrações de aventuras maravilhosas, de homens e costumes estranhos? Entretanto, se o espírito religioso se liga ao amor do maravilhoso, acaba se todo o bom senso, e o testemunho humano, nestas circunstâncias, perde todas as suas pretensões de autoridade. O beato pode ser um entusiasta e imagina que vê coisas que são irreais; pode estar ciente de que sua narrativa é falsa e assim mesmo persiste nela com as melhores intenções do mundo, a fim de promover uma causa tão sagrada. Ou mesmo, se esta ilusão não ocorre, a vaidade excitada por uma tentação tão forte atua nele mais poderosamente do que nos outros homens em outras circunstâncias; ademais, o interesse pessoal age com igual força. Seus ouvintes podem não ter, e geralmente não têm, argumentos suficientes para debater seu testemunho; renunciam por princípio a todo senso crítico em relação aos assuntos misteriosos e sublimes; ou, se tivessem grande desejo em empregá-lo, a paixão e uma imaginação ardentes perturbariam a regularidade de suas operações. Sua credulidade aumenta sua imprudência e sua imprudência subjuga sua credulidade.
     A eloquência, no seu mais alto grau, sobrepuja a razão e a reflexão; mas como ela se dirige inteiramente à fantasia ou aos afetos, cativa os ouvintes condescendentes e subjuga seu entendimento. Felizmente, é raro que alcance esta culminância. Mas o que um Cícero ou um Demóstenes raramente podiam realizar sobre um auditório romano ou ateniense, qualquer capuchinho, qualquer predicador itinerante ou sedentário pode desempenhar em maior grau sobre a maioria dos homens, atingindo semelhantes paixões grosseiras e vulgares.
     Os numerosos exemplos de milagres forjados, de profecias e de eventos sobrenaturais que, em todas as épocas, têm sido revelados por testemunhas que se opõem ou que se retratam a si mesmos por seu absurdo, são provas suficientes da forte tendência humana para o extraordinário e o maravilhoso e deveriam razoavelmente engendrar suspeitas contra todos os relatos deste gênero. Pois esta é nossa maneira natural de pensar, inclusive em relação aos eventos mais comuns e mais críveis. Não há, por exemplo, gênero de relato que surja tão facilmente e se propague tão depressa, especialmente no campo e nas aldeias de província, como aqueles que se referem aos casamentos; de tal modo que, se duas pessoas jovens de igual condição social são vistas um par de vezes juntas, toda a vizinhança pensa imediatamente em uni-las. O prazer de contar uma novidade tão interessante, de propagá-la e de ser o primeiro a informá-la, invade a inteligência. E isto é tão conhecido que nenhuma pessoa de bom senso presta atenção a tais relatos, até que os veja confirmados por alguma maior evidência. A maioria dos homens não é levada, devido às paixões e outras causas mais fortes, a crer e a transmitir, com a máxima veemência e segurança, todos os milagres religiosos?[2]
     Em terceiro lugar, o fato de que os relatos sobrenaturais proliferam principalmente entre as nações ignorantes e bárbaras constitui forte suspeita contra eles; e se um povo civilizado tem admitido alguns destes relatos, decorre do fato de tê-los recebido de ancestrais ignorantes e bárbaros, que os transmitiram com a sanção e a autoridade invioláveis que sempre acompanham as opiniões recebidas. Quando examinamos as primeiras histórias de todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo, onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios, presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais que se misturam a eles. Mas, como o seu número diminui a cada página, à medida que nos aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada de misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.
     É estranho, tende a dizer um leitor judicioso, depois de ler atentamente estes historiadores maravilhosos, que tais eventos prodigiosos não ocorram jamais em nossos dias! Mas creio eu que não há nada de estranho que os homens mintam em todas as épocas. Deveis, certamente, ter encontrado muitos exemplos desta debilidade. Haveis, vós mesmos, ouvido muitos destes relatos maravilhosos que, desprezados por todas as pessoas sábias e sensatas, têm sido finalmente abandonados até pelo homem comum. Podeis estar seguros de que estas famosas mentiras, que se têm difundido e florescido até alcançarem uma altura tão monstruosa, tiveram origens análogas; mas, como foram semeadas num solo mais propício, cresceram até se tomarem prodígios quase tão grandes como os que aqueles narram.
     Teve aguda sagacidade o falso profeta[3] Alexandre — atualmente esquecido, embora outrora fosse tão famoso — de estrear suas imposturas na Paflagôma, onde, como nos diz Luciano, o povo era extremamente ignorante e simplório e propenso para absorver mesmo a mais grosseira impostura. Pois as pessoas que habitam regiões distantes e sem possibilidade de se informarem melhor, são também induzidas por esta fraqueza a crer que o assunto é o menos digno de investigação. Recebem assim as histórias acrescidas de cem pormenores. Enquanto os tolos propagam rapidamente a impostura, os sábios e os doutos contentam-se geralmente em mofar-se de seu absurdo, sem se informarem dos fatos particulares, que permitiriam refutá-las claramente. E, assim, o impostor acima mencionado estava capacitado para proceder, começando por seus ignorantes paflagônios e atraindo sectários até mesmo entre os filósofos gregos e os homens da mais eminente e distinta posição em Roma; além disso, conseguiu atrair a atenção do sábio imperador Marco Aurélio, a ponto de fazer-lhe confiar no êxito de uma expedição militar sobre suas profecias enganadoras.
     São tão grandes as vantagens de lançar uma impostura entre um povo ignorante que, mesmo quando a fraude é muito grosseira para se impor à generalidade dos homens — embora raramente isto ocorra —, tem mais possibilidade de triunfar em países longínquos do que se seu primeiro teatro tivesse sido numa cidade renomada por suas artes e conhecimentos. Os mais ignorantes e os mais bárbaros destes bárbaros levam o relato para o estrangeiro. Nenhum de seus compatriotas tem extensas vinculações no exterior, reputação ou autoridade suficiente para desmentir e destruir o logro. A inclinação dos homens para o maravilhoso tem plena oportunidade de revelar-se. E, assim, uma história completamente desacreditada no lugar onde nasceu passará por certa a mil milhas de distância. Mas, se Alexandre tivesse fixado residência em Atenas, os filósofos deste célebre centro de saber teriam imediatamente difundido, por todo o Império Romano, sua opinião sobre o assunto; e sua opinião, apoiada por tamanha autoridade demonstrada com todas as forças da razão e da eloquência, teria aberto por completo os olhos dos homens. E verdade que Luciano, ao passar por acaso por Paflagônia, teve oportunidade de realizar estes bons ofícios. Porém, por mais que se deseje, nem sempre ocorre que todo Alexandre se encontre com um Luciano disposto a revelar e desmascarar suas imposturas.[4]
     Como quarta razão[5] diminuindo a autoridade dos prodígios, posso acrescentar que não há testemunho favorável a nenhum prodígio, mesmo em relação àqueles que não foram expressamente desmascarados, que não seja contradito por um número infinito de testemunhas, de modo que não apenas o milagre destrói o crédito do testemunho, mas o testemunho destrói-se a si mesmo. Para tornar isto mais compreensível, consideremos que em questões religiosas tudo o que é diferente é contraditório, e que é impossível que as religiões da antiga Roma, da Turquia, do Sião e da China estejam todas estabelecidas em base sólida. Portanto, todo milagre que se pretende que tenha ocorrido em quaisquer dessas religiões — e todas estão repletas de milagres — tem como finalidade direta estabelecer o sistema particular ao qual ele se refere, de modo que tem a mesma força para destruir, embora indiretamente, qualquer outro sistema. Destruindo um sistema, destrói-se igualmente o crédito naqueles milagres sobre os quais estava fundado o sistema, de modo que todos os prodígios de diferentes religiões devem considerar-se como fatos contraditórios, e as evidências destes prodígios, quer fracas quer fortes, como opostas umas às outras. De acordo com este método de raciocínio, quando cremos em algum milagre de Maomé ou de seus sucessores, temos como garantia o testemunho de alguns árabes bárbaros. E, por outro lado, devemos considerar a autoridade de Tito Lívio, de Plutarco, de Tácito e, numa palavra, o testemunho de todos os autores gregos, chineses e católicos romanos que relataram algum específico milagre de sua religião, e devemos considerar seu testemunho, digo eu, do mesmo modo como se houvessem mencionado o milagre maometano, e que o houvessem contradito em termos claros, com a mesma certeza conferida aos milagres que rela tam. Este argumento pode parecer demasiado sutil e refinado, mas em realidade não difere do modo de raciocinar de um juiz que supõe que o crédito de duas testemunhas, acusando de um crime a uma outra pessoa, é destruído pelo depoimento contrário de duas testemunhas que afirmam haver visto esta mesma pessoa a duzentas léguas de distância no momento exato em que o crime, diz-se, foi cometido.
     Um dos milagres, o mais bem testificado em toda a história profana, é aquele que Tácito conta de Vespasiano, que curou a um cego em Alexandria por meio de sua saliva e a um coxo apenas tocando-lhe com o seu pé. Estes homens, obedecendo a uma ordem do deus Serapis, recorreram ao imperador para essas curas milagrosas. A descrição deste evento pode ser lida neste grande historiador,[6] onde cada pormenor parece valorizar o testemunho, e poderia ser desenvolvida à vontade, com toda a força de argumento e eloquência, se alguém se preocupasse atualmente em reforçar a evidência desta superstição desacreditada e idolátrica. A gravidade, a solidez, a idade e a probabilidade de tão grande imperador, que, durante o transcurso de sua vida, conversou familiarmente com seus amigos e cortesãos e não afetou jamais estes ares extraordinários de divindade que assumiam Alexandre e Demétrio. O historiador era escritor da época, célebre por sua franqueza e veracidade e, além disso, dotado talvez do maior e do mais penetrante gênio de toda a Antiguidade, e tão isento de qualquer tendência para a credulidade, sendo, ao contrário, acusado de ateísmo e profanidade; as personagens a cuja autoridade se referia o milagre eram de caráter indiscutível para o julgamento e a veracidade, como muito bem o podemos presumir; havia testemunhas oculares do fato, confirmando seu testemunho mesmo depois que a família dos Flávios foi despojada do império e não podia mais recompensar uma mentira. Utrum que, qui interfuere, nunc quo que memorant, postquam nulium mendacio pretium.[7] E se acrescentarmos o aspecto público dos fatos, como relata a história, parecerá que não se pode supor evidência mais poderosa a favor de uma falsidade tão grosseira e tão palpável.
     Há também uma história memorável, contada pelo cardeal de Retz, merecedora de nossa consideração. Quando este político intrigante se refugiou na Espanha para escapar à perseguição de seus inimigos, passando por Saragoça, capital de Aragão, mostraram-lhe na catedral um homem que durante sete anos havia servido de porteiro e que era bem conhecido na cidade por todos os devotos da igreja local. Ele foi visto, por muito tempo, desprovido de uma de suas pernas; contudo, havia recuperado este membro pela fricção de óleo santo sobre o coto; e o cardeal nos assegura que o viu com as duas pernas. Este milagre foi confirmado por todos os cânones da Igreja; todos os habitantes da cidade foram chamados para confirmar o fato; e o cardeal verificou que todos criam, com ardente devoção, inteiramente no milagre. Aqui também o narrador foi contemporâneo do suposto prodígio; era de caráter incrédulo, libertino e também possuidor de grande talento; o milagre era de natureza tão singular que dificilmente poderia admitir contrafação, e as testemunhas muito numerosas, e quase todas espectadoras do fato ao qual deram o seu testemunho. E o que aumenta poderosamente a força dos testemunhos e pode duplicar nossa surpresa nesta conjuntura diz respeito ao fato de que o próprio cardeal, narrando o evento, parece não aferir-lhe nenhum crédito e, por conseguinte, não se pode suspeitar de sua participação nesta fraude sagrada. Considerava justamente que não era necessário, para rejeitar um fato desta natureza, refutar o testemunho com exatidão e revelar sua falsidade através de todas as circunstâncias de velhacaria e credulidade que o produziram. Sabia que, se isto era em geral completamente impossível, por mais perto que se estivesse no tempo e no espaço, era extremamente difícil para quem estivesse imediatamente presente, devido ao fanatismo, à ignorância, à astúcia e à patifaria dos homens. Portanto, concluía, como bom raciocinador, que semelhante testificação levava sua falsidade em sua própria face, e que um milagre apoiado pelo testemunho dos homens era mais propriamente objeto de escárnio que de argumentação.

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X(1)
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X(2a)
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Notas:
[1*] Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de 1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração. De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação, cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]
[1] Nas edições K a L lê-se: “em qualquer história”.
[2] As edições de K e N apresentam este parágrafo como nota.
[3] Nas edições de k a N lê-se astucioso impostor.
[4] Sem dúvida, pode-se objetar aqui que procedo temerariamente e formo minhas opiniões a propósito de Alexandre apenas pelo relato do assunto feito por Luciano, seu declarado inimigo. Certamente, seria desejável que tivessem sido conservados alguns dos relatos publicados por seus discípulos e cúmplices. A opinião e o contraste que existem sobre o caráter e a conduta de um mesmo homem, quando descritos por um amigo ou inimigo, são tão grandes, mesmo na vida cotidiana e muito mais ainda nestas questões religiosas, como entre dois homens de fama mundial, por exemplo, Alexandre e São Paulo. Veja-se uma carta a Gilbert West, Esq., acerca da “Conversão e apostolado de São Paulo” (Hume).
[5] Parece-nos que os argumentos de Hume contra a viabilidade dos milagres mostraram: 1) que é entre as nações ignorantes e bárbaras que a ocorrência de milagres é mais comum e abundante, 2) que as paixões da surpresa e da admiração são tendências universais da natureza humana e quando ligadas ao sentimento religioso impelem os homens a uma conduta descontrolada, 3) que cada milagre tem a finalidade específica de estabelecer um sistema religioso e, como em religião tudo o que é diferente é contraditório, os milagres de uma religião são evidências contra os milagres das outras, e 4) que o milagre importa naviolentação do curso normal da natureza e, como apenas a experiência confere autoridade ao testemunho humano e segurança acerca das leis da natureza, nenhum testemunho humano se nivela a uma prova, ou atinge o grau de provável. [N. do T.]
[6] Na edição L Hume anota: Hist., livro 4, cap. 8. Na edição N ele anota: Hist., livro 5, cap. 8. Em verdade, a passagem ocorre em Histórias, livro IV, cap. 81. Suetônio apresenta quase o mesmo relato na Vida de Ve pasiano (Hume).
[7] “Aqueles que estavam presentes continuam a mencionar os dois episódios, quando já deixou de ser compensatório propagar uma mentira.” [Trad. por Anoar Aiex].

Crônica: Equívocos

Luis Fernando Veríssimo


     Uma família de classe média alta. Pai, mulher, um filho de sete anos. É a noite do dia em que o filho fez sete anos. A mãe recolhe os detritos da festa.

     O pai ajuda o filho a guardar os presentes que ganhou dos amigos. Nota que o filho está quieto e sério, mas pensa: "É o cansaço." Afinal ele passou o dia correndo de um lado para o outro, comendo cachorro-quente e sorvete, brincando com os convidados por dentro e por fora da casa. Tem que estar cansado.

- Quanto presente, hein, filho? 
- É. 
- E esta espada. Mas que beleza. Esta eu não tinha visto. 
- Pai... 
- E como pesa! Parece uma espada de verdade. É de metal mesmo. Quem foi que deu? 
- Era sobre isso que eu queria falar com você.

     O pai estranha a seriedade do filho. Nunca o viu assim. Nunca viu nenhum garoto de sete anos sério assim. Solene assim. Coisa estranha... O filho tira a espada da mão do pai. Diz:

- Pai, eu sou Thunder Boy. 
- Thunder Boy? 
- Garoto Trovão. 
- Muito bem, meu filho. Agora vamos pra cama. 
- Espere. Esta espada. Estava escrito. Eu a receberia quando fizesse sete anos.

     O pai se controla para não rir. Pelo menos a leitura de história em quadrinhos está ajudando a gramática do guri. "Eu a receberia..." O guri continua.

- Hoje ela veio. É um sinal. Devo assumir meu destino. A espada passa a um novo Thunder Boy a cada geração. Tem sido assim desde que ela caiu do céu, no vale sagrado de Bem Tael, há sete mil anos, e foi empunhada por Ramil, o primeiro Garoto Trovão.

     O pai está impressionado. Não reconhece a voz do filho. E a gravidade do seu olhar. Está decidido. Vai cortar as histórias em quadrinhos por uns tempos.

- Certo, filho. Mas agora vamos... 
- Vou ter que sair de casa. Quero que você explique à mamãe. Vai ser duro para ela. Conto com você para apoiá-la. Diga que estava escrito. Era o meu destino. 
- Nós nunca mais vamos ver você? - pergunta o pai, resolvendo entrar no jogo do filho enquanto o encaminha, sutilmente, para a cama. 
- Claro que sim. A espada do Thunder Boy está a serviço do bem e da justiça. Enquanto vocês forem pessoas boas e justas poderão contar com a minha ajuda. 
- Ainda bem - diz o pai.

     E não diz mais nada. Porque vê o filho dirigir-se para a janela do seu quarto, e erguer a espada como uma cruz, e gritar para os céus "Ramil!". E ouve um trovão que faz estremecer a casa. E vê a espada iluminar-se e ficar azul. E o seu filho também.

     O pai encontra a mulher na sala. Ela diz:

- Viu só? Trovoada. Vá entender este tempo. 
- Quem foi que deu a espada pra ele? 
- Não foi você? Pensei que tivesse sido você. 
- Tenho uma coisa pra te contar. 
- O que é? 
- Senta, primeiro.

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Luis Fernando Veríssimo (1936 - 2025) foi um escritor gaúcho reconhecido por suas famosas crônicas. Normalmente se utilizando do humor (algumas nem tão bem humoradas, mas sempre nos provocando...), seus textos curtos trazem histórias que versam sobre o cotidiano e as relações humanas.

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sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2b} A Organização Totalitária)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

O Movimento Totalitário
     2 - A Organização Totalitária
          continuando...
     Se a importância das formações paramilitares para os movimentos totalitários não reside no seu duvidoso valor militar, também não reside inteiramente na sua falsa imitação do Exército regular. Como formações de elite, são mais nitidamente separadas do mundo externo do que qualquer outro grupo. Os nazistas cedo compreenderam a íntima relação entre a militância total e a separação total da normalidade; as tropas de assalto nunca eram enviadas a serviço para as suas comunidades de origem e os oficiais ativos da SA, no estágio anterior ao poder, e os da SS, já sob o regime nazista, eram tão móveis e tão frequentemente substituídos que simplesmente não podiam habituar-se ou deitar raízes em nenhuma parte do mundo comum.[80] Eram organizados segundo o modelo das gangues de criminosos e usados para o assassinato organizado.[81] Esses assassinatos eram perpetrados publicamente e oficialmente confessados pela alta hierarquia nazista, de modo que essa franca cumplicidade quase impossibilitava aos membros deixarem o movimento, mesmo sob o governo não-totalitário e mesmo que não fossem ameaçados, como realmente o eram, por seus antigos camaradas. A esse respeito, a função das formações de elite é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda: enquanto as últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança, as primeiras, disseminando a cumplicidade, fazem com que cada membro do partido sinta que abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei, e que será responsabilizado por todos os crimes da elite.[82] Consegue-se isto ainda no estágio anterior ao poder, quando a liderança sistematicamente assume responsabilidade por todos os crimes e não deixa dúvida de que foram cometidos para o bem final do movimento.
     A criação de condições artificiais de guerra civil, através das quais os nazistas exerceram chantagem até subir ao poder, não pretende apenas provocar desordens. Para o movimento, a violência organizada é o mais eficaz dos muros protetores que cercam o seu mundo fictício, cuja "realidade" é comprovada quando um membro receia mais abandonar o movimento do que as consequências da sua cumplicidade em atos ilegais, e se sente mais seguro como membro do que como oponente. Esse sentimento de segurança, resultante da violência organizada com a qual as formações de elite protegem os membros do partido contra o mundo exterior, é tão importante para a integridade do mundo fictício da organização quanto o medo do seu terrorismo.
     No centro, do movimento, como o motor que o aciona, senta-se o Líder. Separa-o da formação de elite um círculo interno de iniciados que o envolvem numa aura de impenetrável mistério correspondente à sua "preponderância inatingível".[83] Sua posição dentro desse círculo íntimo depende da habilidade com que arma intrigas entre os membros e efetua constantes mudanças de pessoal. Deve a liderança mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do partido pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocrático organizacionais. Difere do antigo tipo de ditador por não precisar vencer por meio da simples violência. Hitler não necessitou nem da SA nem da SS para assegurar a sua posição como líder do movimento nazista; pelo contrário, Rõhm, o chefe da SA, que podia contar com a lealdade da SA em relação à sua pessoa, era um dos inimigos de Hitler dentro do partido. Stálin venceu Trótski, que não somente tinha muito maior poder de atração sobre as massas, mas que, ainda como chefe do Exército Vermelho, detinha em suas mãos o maior potencial de poder da Rússia soviética na época.[84] E não era Stálin, mas Trótski, o maior talento organizacional, o burocrata mais capaz da Revolução Russa.[85] Por outro lado, tanto Hitler como Stálin eram mestres em detalhes e, nos estágios iniciais de suas carreiras, dedicaram-se quase exclusivamente a questões de pessoal, de modo que, alguns anos depois, quase todo homem importante no partido devia a eles a sua posição.[86]
     Tais capacidades pessoais, no entanto, embora sejam um pré-requisito absoluto para os primeiros estágios da carreira, e mesmo mais tarde estejam longe de serem insignificantes, já não são decisivas a partir do momento em que o movimento totalitário se consolida, em que se estabelece o princípio de que "o desejo do Führer é a lei do Partido", e toda a hierarquia partidária está eficazmente treinada para o único fim de transmitir rapidamente o desejo do Líder a todos os escalões. A essa altura, o Líder torna-se insubstituível, porque toda a complicada estrutura do movimento perderia a sua raison d'être sem as suas ordens. Agora, a despeito das eternas cabalas do círculo íntimo e das infindáveis mudanças de pessoal, com as tremendas acumulações de ódio, amargura e ressentimento pessoal que acarretam, a posição do Líder pode repousar em segurança contra as caóticas revoluções palacianas — não devido aos seus dons superiores, a respeito dos quais os homens dos círculos íntimos geralmente não têm ilusões, mas graças à sincera e sensata convicção desses homens de que, sem ele, todo o movimento iria imediatamente por água abaixo.
     A suprema tarefa do Líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada do movimento — agir como a defesa mágica do movimento contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta através da qual o movimento se liga a esse mundo. O Líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua qualidade oficial. Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio de liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo ' Líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente. Essa completa identificação do Líder com todo sub líder nomeado por ele e esse monopólio de responsabilidade centralizado por tudo o que foi, está sendo ou virá a ser feito são também os limites mais visíveis da grande diferença entre o líder totalitário e o ditador ou déspota comum. Um tirano jamais se identificaria com os seus subordinados, e muito menos com cada um dos seus atos;[87] poderia usá-los como bodes expiatórios, deixando, com prazer, que fossem criticados para colocar-se a salvo da ira do povo, mas sempre manteria uma distância absoluta de todos os seus subordinados e súditos. O Líder, ao contrário, não pode tolerar críticas aos seus subordinados, uma vez que todos agem em seu nome; se deseja corrigir os próprios erros, tem que liquidar aqueles que os cometerem por ele; se deseja inculpar a outros por esses erros, tem de matá-los. Pois, nessa estrutura organizacional, o erro só pode ser uma fraude: o Líder estava sendo representado por um impostor.[88]
     Essa responsabilidade total por tudo o que o movimento faz e essa identificação total com cada um dos funcionários têm a consequência muito prática de que ninguém se vê numa situação em que tem de se responsabilizar por suas ações ou explicar os motivos que levaram a elas. Uma vez que o Líder monopoliza o direito e a possibilidade de explicação, ele é, para o mundo exterior, à única pessoa que sabe o que está fazendo, isto é, o único representante do movimento com quem ainda é possível conversar em termos não-totalitários e que,-em caso de censura ou de oposição, não dirá: não me pergunte, pergunte ao Líder. Estando no centro do movimento, o Líder pode agir como se estivesse acima dele. Ê, portanto, perfeitamente compreensível (embora perfeitamente fútil) que pessoas de fora depositem, muitas vezes, suas esperanças numa conversa pessoal com o próprio Líder, quando têm de tratar com movimentos ou governos totalitários. O verdadeiro mistério do Líder totalitário reside na organização que lhe permite assumir a responsabilidade total por todos os crimes cometidos pelas formações de elite e, ao mesmo tempo, adotar a honesta e inocente respeitabilidade do mais ingênuo simpatizante.[89]
     Os movimentos totalitários têm sido chamados de "sociedades secretas. montadas à luz do dia".[90]
     Realmente, embora pouco se saiba quanto à estrutura sociológica e à história mais recente das sociedades secretas, a estrutura dos movimentos, sem precedentes quando comparada com partidos e facções, lembra-nos em primeiro lugar certas características dessas sociedades.[91] As sociedades secretas formam também hierarquias de acordo com o grau de "iniciação", regulam a vida dos seus membros segundo um pressuposto secreto e fictício que faz com que cada coisa pareça ser outra coisa diferente; adotam uma estratégia de mentiras coerentes para iludir as massas de fora, não iniciadas; exigem obediência irrestrita dos seus membros, que são mantidos coesos pela fidelidade a um líder frequentemente desconhecido e sempre misterioso, rodeado, ou supostamente rodeado, por um pequeno círculo de iniciados; e estes, por sua vez, são rodeados por semi iniciados que constituem uma espécie de "amortecedor" contra o mundo profano e hostil.[92] Os movimentos totalitários têm ainda em comum com as sociedades secretas a divisão dicotômica do mundo entre "irmãos jurados de sangue" e uma massa indistinta e inarticulada de inimigos jurados.[93] Essa distinção, baseada na absoluta hostilidade contra o mundo que os rodeia, é muito diferente da tendência dos partidos comuns de dividir o povo entre os que pertencem e os que não pertencem à organização. Os partidos e as sociedades abertas, geralmente, só consideram inimigos aqueles que se lhes opõem expressamente, enquanto o princípio das sociedades secretas sempre foi que "aquele que não estiver expressamente incluído, está excluído".[94] Esse princípio esotérico parece inteiramente inadequado a organizações de massa; contudo, os nazistas ofereciam aos seus membros pelo menos o equivalente psicológico do ritual de iniciação das sociedades secretas quando, em lugar de simplesmente excluírem os judeus da organização, exigiam prova de ascendência não judaiçar dos seus membros, estabelecendo um complicado mecanismo para esclarecer a obscura origem genética de 80 milhões de alemães. O resultado foi uma comédia, e uma comédia cara, quando 80 milhões de alemães saíram à cata de avós judeus; mas aqueles que passavam a prova sentiam pertencer a um grupo de incluídos que se destacava contra uma multidão imaginária de inelegíveis. O mesmo princípio é aplicado no movimento bolchevista, através de repetidos expurgos no partido que inspiram em todos os que sobram uma reafirmação da sua inclusão. Talvez a mais clara semelhança entre as sociedades secretas e os movimentos totalitários esteja na importância do ritual. As marchas na praça Vermelha em Moscou são, nesse ponto, tão típicas quanto as pomposas formalidades do nazismo do tempo de Nurembergue. No centro do ritual nazista estava a chamada "bandeira de sangue", e no centro do ritual bolchevista está o corpo mumificado de Lênin, ambos impregnando a cerimônia com um forte elemento de idolatria. Essa idolatria não prova a existência de tendências pseudo religiosas ou heréticas que muitos querem ver nos movimentos totalitários. Os "ídolos" são simples truques organizacionais, muito praticados nas sociedades secretas, que também forçavam os seus membros a guardar segredo por medo e respeito a símbolos assustadores. As pessoas unem-se mais firmemente através da experiência partilhada de um ritual secreto do que pela simples admissão ao conhecimento do segredo. O fato de que o segredo dos movimentos totalitários é exibido em plena luz do dia não muda necessariamente a natureza da experiência.[95]
     Naturalmente, essas semelhanças não são acidentais; não podem ser explicadas simplesmente pelo fato de que tanto Hitler como Stálin haviam sido membros de sociedades secretas antes de se tornarem líderes totalitários — Hitler no serviço secreto do Reichswehr e Stálin na conspiração do partido bolchevista. São, até certo ponto, resultado natural da ficção conspiratória do totalitarismo, cujas organizações são supostamente criadas para combater as sociedades secretas — a sociedade secreta dos judeus ou a sociedade dos conspiradores trotskistas. O que é notável nas organizações totalitárias é que saibam adotar expedientes organizacionais das sociedades secretas sem jamais manter em segredo seu próprio objetivo. Que os nazistas queriam conquistar o mundo, deportar todos os que fossem "racialmente estrangeiros" e exterminar todos os que tivessem "herança biológica inferior", que os bolchevistas lutam pela revolução mundial — nada disso jamais foi segredo; pelo contrário, esses objetivos sempre fizeram parte da sua propaganda. Em outras palavras, os movimentos totalitários imitam todos os acessórios das sociedades secretas, mas esvaziam-nas do único elemento que poderia justificar os seus métodos: a necessidade de manter segredo.
     Nisso, como em tantos outros aspectos, o nazismo e o bolchevismo chegaram ao mesmo resultado organizacional a partir de origens históricas muito diferentes. Os nazistas começaram com a ficção de uma conspiração e imitaram, mais ou menos conscientemente, o modelo da sociedade secreta dos sábios do Sião, enquanto os bolchevistas vieram de um partido revolucionário, cujo objetivo era a ditadura de um só partido, atravessaram a fase em que o partido ficava "inteiramente acima e separado de tudo", até o instante em que o Politburo do partido ficou "inteiramente acima e separado de tudo";[96] finalmente, Stálin impôs a essa estrutura partidária as rígidas normas totalitárias do seu setor conspirativo, e somente então descobriu a necessidade de uma ficção central para manter na organização de massa a férrea disciplina de uma organização secreta. A evolução nazista pode ser mais lógica, mais coerente consigo mesma, mas a história do partido bolchevista é um exemplo melhor da natureza essencialmente fictícia do totalitarismo, precisamente porque as fictícias conspirações globais, contra as quais e de acordo com as quais a conspiração bolchevista supostamente se organizou, não foram ideologicamente fixadas. Mudaram — dos trotskistas para as trezentas famílias, depois para os vários "imperialismos" e, mais recentemente, para o "cosmopolitismo sem raízes" — e foram ajustadas à realidade política segundo as necessidades do momento; mas nunca e em nenhuma das mais diversas circunstâncias pôde o bolchevismo passar sem algum tipo de ficção.
     Os meios pelos quais Stálin transformou a ditadura unipartidária russa em regime totalitário e os partidos comunistas revolucionários de todo o mundo em movimentos totalitários foram a liquidação das facções divergentes, a abolição da democracia interna do partido e a transformação dos partidos comunistas nacionais em ramificações do Comintern dirigidas a partir de Moscou. As sociedades secretas em geral, e o aparelho conspirativo dos partidos revolucionários em particular, sempre foram caracterizados pela ausência de facções, pela supressão de opiniões dissidentes e pela absoluta centralização do comando. Todas essas medidas têm a óbvia finalidade utilitária de proteger os membros contra a perseguição e a sociedade contra a traição; a obediência total exigida de cada membro e o poder absoluto nas mãos do chefe foram apenas subprodutos inevitáveis de necessidades práticas. O problema, porém, é que os conspiradores têm uma tendência, compreensível aliás, de julgar como mais eficazes na política os métodos das sociedades conspirativas e de supor que, se esses métodos puderem ser aplicados abertamente com o apoio dos instrumentos de violência de toda uma nação, as possibilidades de acúmulo de poder tornam-se infinitas.[97] O setor conspirativo de um partido revolucionário pode, enquanto o próprio partido ainda está intacto, ser equiparado ao Exército dentro de uma estrutura política intacta; embora as suas próprias regras de conduta sejam radicalmente diferentes das regras do corpo civil, o Exército serve ao corpo político e permanece sujeito e controlado por ele. Da mesma forma que o perigo de uma ditadura militar surge quando o Exército já não quer servir mas dominar o corpo político, também o perigo do totalitarismo surge quando o setor conspirativo do partido revolucionário se emancipa do controle do partido e aspira à liderança. Foi isso o que aconteceu aos partidos comunistas sob o regime de Stálin. Os métodos de Stálin sempre foram típicos de um homem proveniente do setor conspirativo do partido: a devoção ao detalhe, a ênfase quanto ao lado pessoal da política, a crueldade no uso e na liquidação de companheiros e amigos. Quem mais o apoiou na luta pela sucessão após a morte de Lenin foi a polícia secreta[98] que, na época, já era uma das mais importantes e poderosas seções do partido.[99]  Nada mais natural que as simpatias da Cheka [a polícia secreta da URSS] pendessem a favor do representante da seção conspirativa, do homem que já a encarava como uma espécie de sociedade secreta e que, portanto, provavelmente lhe preservaria e até acrescentaria os privilégios.
     A tomada dos partidos comunistas pelos setores conspirativos foi, porém, apenas o primeiro passo da sua transformação em movimento totalitário. Não bastava que a polícia secreta da Rússia e os seus agentes nos partidos comunistas do exterior desempenhassem no movimento o mesmo papel das formações de elite criadas pelos nazistas sob forma de tropas paramilitares. Os próprios partidos tinham de ser transformados, para que o domínio da polícia secreta permanecesse seguro. A liquidação das facções e da democracia interna do partido foi, consequentemente, acompanhada na Rússia pela admissão, como membros, de grandes massas politicamente deseducadas e "neutras", manobra que foi rapidamente seguida pelos partidos comunistas no estrangeiro depois que a Frente Popular a adotou na França.
     O totalitarismo nazista começou com uma organização de massa que foi apenas gradualmente dominada pelas formações de elite, enquanto os bolchevistas começaram com formações de elite e organizaram as massas de acordo com elas. Em ambos os casos ò resultado foi idêntico. Além disso, os nazistas, em virtude da tradição e preconceitos militaristas, moldaram inicialmente suas formações de elite segundo o padrão do Exército, enquanto os bolchevistas desde o início outorgaram à polícia secreta o direito de exercer o poder supremo. Contudo, bastaram poucos anos para que também essa diferença desaparecesse: o chefe da SS tornou-se chefe da polícia secreta, e as formações da SS foram gradualmente incorporadas ao antigo pessoal da Gestapo ao qual iriam substituir, embora esse pessoal já fosse constituído de nazistas dignos de confiança.[100]
     
Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2b} A Organização Totalitária)
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[80] As unidades da Caveira da SS eram submetidas às seguintes regras: 1. Nenhuma unidade é convocada para serviço em seu distrito natal. 2. Toda unidade é transferida após três semanas de serviço. 3. Os membros nunca devem ser enviados às ruas sozinhos, nem devem jamais exibir em público sua insígnia da Caveira. Ver "Secret speech by Himmler to the German Army General Staff 1938" (o discurso foi proferido em 1937) em- Nazi conspiracy, IV, 616. Publicado também pelo American Committee for Anti-Nazi Literature.
[81] Heinrich Himmler, "Die Schutzstaffel ais antibolschewistische Kampforganisation" [A SS como organização de luta antibolchevista], em Aus dem Schwarzen Korps, n? 3, 1936, disse publicamente: "Sei que existem pessoas na Alemanha que sentem náuseas quando veem este dólmã negro. Compreendemos isto, e não esperamos que muita gente goste de nós".
[82] Em seus discursos para a SS, Himmler sempre acentuava os crimes cometidos, mencionando a sua gravidade. Diria, por exemplo, acerca da liquidação dos judeus: "Desejo também falar-vos de um assunto muito grave. Entre nós, ele pode ser mencionado francamente, mas nunca o mencionaremos em público". Sobre a liquidação dos intelectuais poloneses: "(...) deveis ser informados disto, e também esquecê-lo imediatamente (...)" (Nazi conspiracy, IV, 558 e 553, respectivamente). Goebbels, op. cit., p. 266, observa no mesmo tom: "No tocante à questão judaica, especialmente, tomamos uma posição da qual não é possível recuar. (...) A experiência nos ensina que um movimento e um povo que queimou as suas pontes luta com determinação muito maior que aqueles que ainda podem recuar".
[83] Souvarine, op. cit., p. 648. A maneira como os movimentos totalitários mantiveram absolutamente secreta a vida privada dos seus líderes (Hitler e Stálin) contrasta com a importância que as democracias veem na divulgação da vida privada de presidentes, reis, primeiros-ministros etc. Os métodos totalitários não permitem uma identificação baseada na convicção de que mesmo o mais importante dos homens é apenas um ser humano.
     Souvarine, op. cit., cita os rótulos mais frequentemente usados para descrever Stálin: "Stálin, o misterioso morador do Kremlin"; "Stálin, personalidade impenetrável"; "Stálin, a Esfinge Comunista"; "Stálin, o Enigma"; o "mistério insolúvel" etc.
[84] "Se [Trótski] houvesse preferido montar um coup d'état militar, teria possivelmente derrotado os triúnviros. Mas deixou o cargo sem fazer a menor tentativa de chamar em sua defesa o exército que havia criado e comandado durante sete anos" (Isaac Deutscher, op. cit., p. 297).
[85] O Comissariado da Guerra, sob Trótski, "era uma instituição [tão] modelar" que Trótski era procurado sempre que havia desordem nos outros ministérios. Souvarine, op. cit., p. 288. 
[86] As circunstâncias da morte de Stálin parecem contradizer a infalibilidade desses métodos. É muito possível que Stálin, o qual, antes de morrer, sem dúvida planejava outro expurgo geral, tenha sido morto por alguns elementos do seu séquito devido ao fato de que ninguém mais se sentia seguro — mas isto nunca pôde ser provado. O fato é que os sucessores de Stálin — seus acólitos, sem dúvida, mas, talvez, dentro dos critérios acima, seus assassinos — desfizeram-se depois do único homem que, entre eles, detinha o poder suficiente para eliminá-los. [Trata-se de Beria, o todo-poderoso chefe da polícia secreta da URSS. (N. E.)].
[87] Hitler telegrafou pessoalmente aos assassinos da SA assumindo a responsabilidade pelo assassinato de Potempa, embora provavelmente nada tivesse a ver com ele. O que importava, no caso, era estabelecer um princípio de identificação ou, nas palavras dos nazistas, "a lealdade mútua do Líder e do povo" na qual "se baseava o Reich" (Hans Frank, op. cit.).
[88] "Uma das principais características de Stálin (...) é jogar sistematicamente os seus crimes e malfeitorias, bem como os seus erros políticos (...) nos ombros daqueles que ele planeja desacreditar e arruinar" (Souvarine, op. cit., p. 655). É óbvio que um líder totalitário pode escolher livremente quem ele deseja que assuma a culpa dos seus erros, uma vez que todos os atos conhecidos pelos sublíderes são inspirados por ele, de modo que qualquer pessoa pode ser forçada a assumir o papel de impostor.
[89]  Já ficou provado, por meio de numerosos documentos, que era o próprio Hitler — e não Himmler, nem Bormann, nem Goebbels — quem sempre tomava a iniciativa das medidas realmente "radicais"; que essas medidas eram sempre mais radicais que aquelas propostas por seus seguidores imediatos; que até mesmo Himmler ficou horrorizado quando recebeu a incumbência da "solução final" da questão judaica. E tampouco merece alguma fé a lenda de que Stálin era mais moderado que as facções esquerdistas do partido bolchevista. É importante lembrar que os líderes totalitários procuram invariavelmente parecer mais moderados para o mundo exterior, e que o seu principal papel — que é o de impelir para frente o movimento a qualquer preço, e de acelerá-lo, e não retardá-lo — é sempre cuidadosamente oculto. Ver, por exemplo, o memorando do almirante Erich Raeder, "My relationship to Adolf Hitler and to the Party", em Nazi conspiracy, VIII, 707 ss: "Quando surgiram informações e boatos acerca de medidas radicais do Partido e da Gestapo, era possível chegar-se à conclusão, pela conduta do Führer, de que essas medidas não haviam sido ordenadas pelo próprio Führer. (...) Em anos subsequentes, cheguei gradualmente à conclusão de que o próprio Führer sempre se inclinava pela solução mais radical, sem deixar que ninguém o percebesse". Na luta intrapartidária que precedeu a subida ao poder absoluto, Stálin sempre teve o cuidado de assumir a pose do "homem do meio-termo" (ver Deutscher, op. cit., pp. 295 ss); embora certamente não fosse nenhum "homem afeito a acomodações", nunca abandonou inteiramente esse papel. Quando, por exemplo, um jornalista estrangeiro lhe indagou, em 1936, acerca dos objetivos de revolução mundial do movimento comunista, ele respondeu: "Nunca tivemos tais planos e intenções. (...) Trata-se de um mal-entendido. (...) Um mal-entendido cômico, ou, antes, tragicômico" (Deutscher, op. cit., p. 422).
[90] Ver Alexandre Koyré, "The political function of the modern lie", em Contemporary Jewish Record, junho de 1945.
     Hitler, op. cit., livro II, capitulo ix, discute longamente os prós e contras das sociedades secretas como modelos para os movimentos totalitários. Na verdade, as considerações que ele faz levam-no à conclusão de Koyré de que é preciso adotar os princípios das sociedades secretas sem o seu sigilo e instalá-las "à plena luz do dia". No estágio anterior à tomada do poder, os nazistas nada mantinham em segredo. Foi somente durante a guerra, quando o regime nazista se tornou inteiramente totalitarizado e a liderança do partido se viu cercada por todos os lados pela hierarquia militar, da qual dependia para a condução da guerra, que as formações de elite receberam instruções perfeitamente claras para manterem absolutamente secreto tudo o que dissesse respeito à "solução final", isto é, o extermínio em massa dos judeus. Foi também por essa época que Hitler passou a agir como chefe de um bando de conspiradores, mas não sem anunciar e divulgar pessoalmente esse fato com bastante clareza. No decorrer de uma reunião com o Estado-Maior, em maio de 1939, Hitler estabeleceu as seguintes normas, que parecem haver sido copiadas de uma cartilha de sociedades secretas: "1. Nenhuma informação será dada a quem não precisa saber. 2. Ninguém deve saber mais do que precisa. 3. Ninguém deve saber antes do tempo necessário" (citadas por Heinz Holldack, Was wirklich geschah [O que realmente aconteceu], 1949, p. 378).
[91] A análise que fazemos a seguir acompanha de perto "Sociology of secrecy and of secret societies", de Georg Simmel, em The American Journal of Sociology, vol. XI, n? 4, janeiro de 1906, que constitui o capítulo v de sua Soziologie, Leipzig, 1908, da qual alguns trechos foram traduzidos por Kurt Wolff, sob o título The sociology of Georg Simmel, 1950.
[92]  "Exatamente pelo fato de que os graus inferiores da sociedade constituem uma transição mediatória para o verdadeiro centro do segredo, permitem a compreensão gradual da esfera de repulsa em torno do mesmo, o que proporciona uma proteção mais segura do que adviria da aspereza de uma posição radical, fosse de fora ou de dentro" (ibid., p. 489).
[93] As expressões "irmãos jurados", "camaradas jurados", "comunidade jurada" etc. são repetidas ad nauseam em toda a literatura nazista, em parte devido à atração que tinham para o romantismo juvenil muito comum no movimento da juventude alemã. Foi principalmente Himmler quem usou essas expressões com um sentido mais definido, introduzindo-as na "senha central" da SS ("Unimo-nos assim e marchamos para um futuro distante segundo as leis imutáveis, como uma classe nacional-socialista de homens nórdicos e comunidade jurada das suas tribos [Sippen]." Ver D'Alquen, op. cit.) e lhes deu o expressivo significado de "absoluta hostilidade" contra todos os outros (ver Simmel, op. cit., p. 489): "Assim, quando a massa da humanidade de 1 a 1,5 bilhão [sic!] se unir contra nós, o povo alemão (...)". Ver o discurso de Himmler na reunião dos generais da SS em Posen (atual Poznan, Polônia), a 4 de outubro de 1943, Nazi conspiracy, IV, 558.
[94]  Simmel, op. cit., p. 490. Esse princípio, como tantos outros, foi adotado pelos nazistas após cuidadoso estudo das implicações dos "Protocolos dos sábios do Sião". Hitler dizia já em 1922: "'[Os homens da Direita] ainda não compreenderam que não é necessário ser inimigo dos judeus para que um dia(...) acabem na forca. (...) Basta (...) não ser judeu: com isso se vai parar na forca" (Hitler's speeches, p. 12). Na época, ninguém podia imaginar que esse tipo de propaganda realmente significava que, um dia, não seria necessário ser um inimigo dos nazistas para ser levado à forca; bastaria ser um judeu ou, finalmente, membro de algum outro povo, para ser declarado "racialmente inapto" à vida por alguma Comissão de Saúde. Himmler acreditava e pregava que toda a SS se baseava no princípio de que "devemos ser honestos, decentes, leais e amigos com os membros do nosso próprio sangue, e com ninguém mais" (op. cit., loc. cit.). 
[95] Simmel, op. cit., pp. 480-1.
[96] Souvarine, op. cit., p. 319, adota uma expressão de Bukharín.
[97] Souvarine, op. cit., p. 113, menciona que Stálin "sempre se impressionava com aqueles que eram bem-sucedidos 'nos negócios'. Via a política como um 'negócio' que exigia destreza".
[98] Nas lutas intrapartidárias dos anos 20, "os colaboradores da GPU eram, quase sem exceção, fanáticos seguidores de Stálin. Os serviços da GPU naquela época eram os baluartes da secção stalinista" (Ciliga, op. cit., p. 48). Souvarine, op. cit., p. 289, relata que, mesmo antes, Stálin havia "continuado a ação policial que havia iniciado durante a Guerra Civil" e havia sido representante do Politburo na GPU.
[99]  Imediatamente após a guerra civil na Rússia, o Pravda afirmava que "a fórmula 'Todo o poder aos Sovietes' havia sido substituída por 'Todo o poder à Cheka'. (...) O fim das hostilidades armadas reduziu o controle militar (...) mas deixou uma Cheka ramificada, que se aperfeiçoava através da simplificação operacional" (Souvarine, op. cit., p. 251).
[100] A Gestapo [Geheime Staatspolizei: Polícia Secreta do Estado] foi instituída por Gõring em 1933: Himmlerfoi nomeado chefe da Gestapo em 1934 e passou imediatamente a substituir o seu pessoal por homens da SS; no fim da guerra, 75% dos agentes da Gestapo eram homens da SS. Deve-se considerar também que as unidades da SS eram particularmente qualificadas para esse tipo de trabalho, uma vez que Himmler as havia organizado, mesmo na fase anterior ao poder, para tarefas de espionagem entre membros do partido (Heiden, op. cit., p. 308). Quanto à história da Gestapo, ver Giles, op. cit., e também Nazi conspiracy, vol. II, capítulo xii.

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap II - Tranquilizado pela minha explicação com Albertine)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Segundo

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin. 
 

continuando...

     Tranquilizado pela minha explicação com Albertine, recomecei a viver mais junto de minha mãe. Ela gostava de me falar docemente do tempo em que minha avó era mais jovem. Temendo que eu me censurasse pelas tristezas com que poderia ter ensombrado o fim daquela vida, ela voltava de bom grado aos anos em que meus primeiros estudos haviam causado a minha avó alegrias que até então me foram sempre ocultadas. Falávamos de novo sobre Combray. Minha mãe me disse que lá pelo menos eu lia e que em Balbec deveria fazer o mesmo, caso não escrevesse. Respondi que, justamente para me rodear das lembranças de Combray e dos belos pratos pintados, gostaria de reler As Mil e Uma Noites. Como outrora, em Combray, quando ela me dava livros de aniversário, foi às escondidas, para me fazer uma surpresa, que minha mãe mandou buscar, ao mesmo tempo, As Mil e Uma Noites, de Galland, e As Mil Noites e Uma Noite, de Mardrus. Mas depois de haver lançado um olhar sobre as duas traduções, minha mãe bem gostaria que eu me limitasse à de Galland, conquanto temesse influenciar-me devido ao seu respeito pela liberdade intelectual, ao receio de intervir desastradamente na vida de meu pensamento, e ao sentimento de que, sendo mulher, julgava faltar-lhe, por um lado, a necessária competência literária, e, por outro, achava que não devia julgar as leituras de um rapaz de acordo com aquilo que a chocava. Lendo certos contos, revoltara-se com a imoralidade do assunto e a crueza da expressão. Mas sobretudo, conservando preciosamente como relíquias não apenas o broche, a sombrinha, a capa e o volume da Sra. de Sévigné, mas também os hábitos de pensamento e linguagem de sua mãe, procurando em qualquer ocasião a opinião que esta teria dado, minha mãe não podia duvidar da condenação que minha avó teria pronunciado contra o livro de Mardrus. Lembrava-se que em Combray, enquanto que, antes de partir para os lados de Méséglise, eu lia Augustin Thierry, minha avó, contente pelas minhas leituras e meus passeios, indignava-se entretanto ao ver aquele, cujo nome permanecia ligado a este hemistíquio: "Reina, após, Meroveu" chamado Merowig; recusar-se Carolíngios em vez de Carlovíngios, aos quais permanecia fiel. Enfim eu lhe contara o que minha avó tinha pensado dos nomes gregos que segundo Leconte de Lisle, dava aos deuses de Homero, chegando até a um dever religioso a adoção da ortografia grega para as coisas mais simples, achando que nisso consistia o talento literário. Tendo, por exemplo, que dizer numa carta que o vinho bebido em sua casa era um verdadeiro néctar, ele escrevia "um verdadeiro nektar", com k, o que lhe permitia troça de Lamartine. Ora, se uma Odisseia, de onde estivessem ausentes os nomes de Ulisses e de Minerva, já não era para a minha avó a Odisseia, que diria então se visse já deformado na capa o título de suas Mil e Uma Noites, não mais encontrando, transcritos exatamente como ela o tempo todo se habituara a dizê-los, os nomes imortalmente familiares de Sherazade, de Dinazarda, e onde, eles próprios desbalizados, se é que se pode aplicar o vocábulo à histórias muçulmanas, o encantador Califa e os poderosos Gênios; os mal se reconheciam, sendo denominados, um o "Khalifat", os outros "Gennis"? No entanto, minha mãe entregou-me as duas obras, e eu lhe disse que as leria nos dias em que estivesse cansado demais para passear. Aliás, tais dias não eram muito freqüentes. Como antigamente, íamos merendar "em grupo", Albertine, suas amigas e eu, no rochedo ou na granja Marie-Antoinette. Havia ocasiões, porém, em que Albertine me dava este grande prazer. Dizia-me: 

- Hoje eu quero estar um pouco sozinha com você, será mais agradável que fiquemos os dois juntos. -

     Então dizia que tinha coisas a fazer, de que aliás não precisava prestar contas, e para que as outras, se fossem sem nós passear e merendar, não pudessem nos encontrar, íamos sozinhos, como dois amantes, à Bagatelle ou à Croix d'Heulan, ao passo que o grupo, que jamais teria tido a ideia de nos procurar por lá, aonde nunca ia, permanecia indefinidamente em Marie-Antoinette, na esperança de ver-nos chegar.
     Lembro-me dos dias quentes de então, em que da testa dos empregados da granja, que trabalhavam ao sol, caía uma gota de suor, vertical, regular, intermitente, como a gota d'água de um reservatório, e se alternava com a queda do fruto maduro que se desprendia da árvore nos cercados vizinhos; continuam sendo, ainda hoje, junto com esse mistério de uma mulher oculta, a parte mais consistente de todo amor que se me apresente. Uma mulher de quem me falam e na qual não pensaria um só instante, eis que modifico todos os encontros da semana para conhecê-la, se se trata de uma semana em que faz um tempo daqueles, se devo vê-la nalguma granja isolada. Por mais que saiba que esse tipo de tempo e de encontro não são dela, são todavia a isca bem conhecida a mim, a que me deixo prender e que basta para me agarrar. Sei que essa mulher, num tempo frio, numa cidade, poderia tê-la desejado, mas sem a companhia de um sentimento romanesco, sem me apaixonar; o amor nem por isso é menos forte, uma vez que me encadeou graças às circunstâncias; apenas é mais melancólico, como na vida se tornam os nossos sentimentos pelas pessoas, à medida que mais percebemos a parte cada vez menor que elas representam para os mesmos, e que o amor novo, que desejaríamos fosse tão durável, abreviado como nossa própria vida, será o último.
     Havia ainda poucas pessoas da sociedade em Balbec, poucas moças. Às vezes eu via uma ou outra, parada na praia, sem atrativo, e que no entanto muitas coincidências pareciam atestar ser a mesma de quem eu me desesperava por não poder me aproximar no momento em que ela saía com as amigas do carrossel ou da aula de ginástica. Se era a mesma (e eu evitava falar nisso a Albertine), a moça que eu julgara inebriante não existia. Mas eu não conseguia ter certeza, pois o rosto dessas moças não ocupava na praia uma dimensão, não oferecia uma forma permanente, contraído, dilatado, transformado como era pela minha própria expectativa, pela inquietação do meu desejo, ou por um bem-estar que se basta a si mesmo, pelos vestidos diferentes que trajam, pela rapidez de seu passo ou pela sua imobilidade. Todavia, bem de perto, duas ou três me pareciam adoráveis. Cada vez que via uma destas, tinha vontade de levá-las para a avenida dos Tamaris, ou para as dunas, ou, melhor ainda, para os rochedos. Mas ainda que no desejo, em comparação com a indiferença, já entre aquela audácia que é um verdadeiro começo unilateral de realização, mesmo assim, entre o meu desejo e a ação, que seria o meu pedido para beijá-la, havia todo o "branco" indefinido da hesitação e da timidez. Então eu entrava na confeitaria, bebia, um após outro, sete a oito cálices de vinho do porto. Em seguida, em vez do intervalo impossível de preencher entre o meu desejo e a ação, o efeito do álcool traçava uma linha que os reunia a ambos. Não havia mais lugar para o temor ou a hesitação. Parecia-me que a moça ia voar para mim. Eu ia até ela, e por si sós iam saindo de meus lábios estas palavras: 

- Gostaria de passear com você. Não quer que a leve aos rochedos? Lá ninguém nos incomoda, lá atrás do bosquezinho que abriga do vento a casa desmontável, atualmente desabitada... -

     Todas as dificuldades da vida estavam aplainadas, já não havia obstáculos para o enlaçamento de nossos corpos. Pelo menos, não para mim. Pois para ela, que não havia bebido, eles não tinham sido volatilizados. Se o tivesse feito, o universo perderia alguma realidade a seus olhos, e mesmo assim, o sonho longamente acariciado que então lhe pareceria de súbito realizável talvez absolutamente não fosse o de cair nos meus braços.
     Não só as moças eram pouco numerosas, mas, naquela estação; ainda não era "a estação", ficavam por pouco tempo. Lembro-me de uma tez rubra de olhos verdes, duas faces coradas, e cujo rosado duplo se assemelhava aos grãos alados de certas árvores. Não sei que brisa a trouxera a Balbec e que outra a levara embora. Foi de modo brusco que durante vários dias senti um desgosto que me atrevi a confessar à Albertine, quando compreendi que ela se fora para sempre.
     É preciso dizer que muitas delas eram moças que eu ou absolutamente não conhecia, ou deixara de ver há muitos anos. Frequentemente, antes de me encontrar com elas, eu lhes escrevia. Se a sua resposta fazia crer num possível amor, que alegria! No começo de uma amizade, uma mulher, e até mesmo se esta amizade não se deve realizar em seguida, não é possível separar-se dessas primeiras cartas recebidas. Desejaria tê-las o tempo todo conosco, como lindas flores recebidas, ainda bem frescas, e que não cessamos de contemplar senão para respirá-las de mais perto. A frase que sabemos de cor é agradável de reler e, naquelas menos literalmente apreendidas, desejamos verificar o grau de ternura de uma expressão. Escreveu ela: "Votre chere lettre"? Pequena decepção na doçura que respiramos e que deve ser atribuída a uma leitura muito rápida; à escrita ilegível da correspondente; ela não escreveu: "et votre chere leHres, mas: "en voyant cette lettre". Mas o restante é tão carinhoso. Oh! Quanta flores iguais chegam amanhã! Depois, isto apenas não é bastante; é preciso confrontar, às palavras escritas, os olhares, a voz. Marcamos encontro, e sem que ela talvez tenha mudado ali onde julgávamos, pela descrição feita; ou pela recordação pessoal, encontrar a fada Viviane, achamos o Gato de Botas. Mesmo assim, marcamos encontro para o dia seguinte, pois apesar de tudo é ela e o que desejávamos era ela. Ora, esses desejos por uma mulher com quem se sonhou não tornam absolutamente necessária a beleza de um determinado traço. Tais desejos são apenas o desejo de uma criatura; vagos como o perfume, assim como o estoraque era o desejo de Protiera, o açafrão o desejo etéreo, as substâncias aromáticas o desejo de Hera, a mirra o perfume das nuvens, o maná o desejo de Nicéia, o incenso perfume do mar. Mas estes perfumes cantados pelos hinos órficos são bem menos numerosos do que as divindades a quem adoram. A mirra é o perfume das nuvens; mas também de Protógonos, de Netuno, de Nereu, de Leteo; o incenso é o perfume do mar, mas também da bela Dicéia, de Têmis, de Circe, das nove musas, de Éos, de Mnemósina, do Dia, de Dikaiosuné. Quanto ao estoraque, o maná e as substâncias aromáticas, seria um não acabar de dizer as divindades que os inspiram, de tão numerosas que são. Anfíetes possui todos os perfumes, exceto o incenso; e Gaia rejeita apenas as favas e as substâncias aromáticas. Assim, eram desse tipo os desejos que eu tinha dessas moças. Menos numerosos do que elas, mudavam-se em decepções e tristezas bem semelhantes umas às outras. Eu jamais quis a mirra. Reservei-a para Jupien e para a princesa de Guermantes, pois ela é o desejo de Protógonos, "o de dois sexos, tendo o mugido do touro, de inumeráveis orgias, memorável, inenarrável, descendo, cheio de júbilo, para os sacrifícios dos orgiofantas".
     Mas em breve a estação atingiu o auge; todos os dias era uma chegada nova e, para a frequência de súbito crescente de meus passeios, que substituía a leitura agradável das Mil e Uma Noites, havia uma causa desprovida de prazer e que os envenenava a todos. A praia estava agora povoada de moças; e, como a ideia que me havia sugerido Cottard, embora não me despertasse novas suspeitas, tornara-me frágil e sensível a esse respeito, e cauteloso para não deixá-las formarem-se em mim; quando uma jovem chegava a Balbec eu me sentia pouco à vontade, propunha a Albertine as excursões mais afastadas, para que ela não pudesse travar conhecimento e, até, se fosse possível, nem sequer visse a recém-chegada. Naturalmente, temia ainda mais aquelas cujos maus costumes eram bem conhecidos, ou de quem se sabia a má reputação; tentava persuadir a minha amiga de que essa má reputação não se baseava em nada, era caluniosa, talvez por um medo inconfesso, ainda inconsciente, de que ela procurasse unir-se à depravada, ou que lamentasse não poder procurá-la por minha causa, ou que julgasse, pelo número de exemplos, que um vício tão disseminado não seria condenável. Negando-o em cada culpada, eu chegava a pretender nada menos que o lesbianismo não existia. Albertine adotava a minha incredulidade quanto ao vício desta ou daquela: 

- Não, creio que é só atitude; ela quer se mostrar. -

     Mas então eu quase lamentava ter repugnado pela inocência, pois desagradava-me que Albertine, tão severa antigamente, pudesse achar que essa "atitude" fosse algo de muito lisonjeiro, vantajoso, para que uma mulher isenta desses gostos procurasse fingi-los. Gostaria que mulher nenhuma chegasse mais a Balbec; tremia ao pensar que, como era reais ou menos a época em que a Sra. Putbus devia chegar à casa dos Verdurin, sua camareira, cujas preferências Saint-Loup não me ocultara, poderia vir excursionar até a praia e, se fosse num dia em que eu não estivesse junto de Albertine, tentar corrompê-la. Chegava a indagar de mim mesmo, já que Cottard não me ocultara que os Verdurin me apreciavam muito, e, embora não querendo parecer que corriam atrás de mim, como ele dizia, fariam tudo para que eu fosse à casa deles, senão poderia, mentir ante a promessa de levar-lhes em Paris todos os Guermantes do mundo, obter da Sra. Verdurin que, sob qualquer pretexto, ela avisasse a Sra. Putbus que lhe seria impossível conservar em sua casa a camareira e a mandasse de volta o mais rápido possível.
     Apesar desses pensamentos e como era sobretudo a presença Andrée que me inquietava, a tranqüilidade que me haviam trazido as palavras de Albertine durava ainda um pouco. Aliás, eu sabia que em breve teria menos necessidade dela, pois Andrée deveria partir com Gisele e Rosemonde, quase no momento em que todo mundo chegava, não tendo que ficar junto de Albertine mais que algumas semanas. Durante estas, aliás, Albertine pareceu combinar tudo o que fazia, tudo o que dizia, com vistas à destruir minhas suspeitas, se ainda me ficava alguma, ou impedi-las de renascerem. Arranjava-se para nunca ficar sozinha com Andrée e insistia quando voltávamos, para que eu a acompanhasse até a sua porta; e que fosse buscá-la quando devíamos sair. Entretanto, de seu lado, Andrée procedia de igual maneira, parecia evitar ver Albertine. E esse aparente conluio entre elas não era o único sinal de que Albertine deveria ter posto sua amiga ao corrente de nossa conversação, pedindo-lhe que tivesse a gentileza de acalmar minhas suspeitas absurdas.
     Por essa época, ocorreu no Grande Hotel de Balbec um escândalo que não foi próprio para mudar a inclinação dos meus tormentos. A relação que Bloch mantinha há algum tempo, com uma antiga atriz, relações secretas que em breve não lhes bastaram mais. O serem vistas parecia-lhes acrescentar alguma perversidade a seu prazer; desejavam que os olhares de todos se banhassem em seus perigosos embates. Isto começou com carícias, que afinal podiam ser atribuídas à intimidade de amigas, no salão de jogo; em torno da mesa de bacará. Depois, atreveram-se a mais. E por fim, uma tarde, num canto nem mesmo escuro do grande salão de dança, sobre um canapé, não se constrangeram mais do que se estivessem em sua casa. Dois oficiais, que estavam não longe dali com suas esposas, foram queixar-se ao gerente. Por um momento, julgou-se que o seu protesto teria alguma eficácia. Mas tinham contra si o fato de que, tendo vindo por uma noite de Netteholme, onde moravam, a Balbec, não podiam ser úteis em nada ao gerente. Ao passo que, mesmo sem que ela soubesse, e ainda que o gerente lhe fizesse alguma observação, pairava sobre a Srta. Bloch a proteção do Sr. Nissim Bernard. Convém dizer por quê. O Sr. Nissim Bernard praticava no mais alto grau as virtudes da família. Todos os anos alugava em Balbec uma vivenda magnífica para o seu sobrinho, e nenhum convite poderia impedi-lo de voltar para jantar em sua casa, que na verdade era a deles. Mas nunca almoçava em casa. Todos os dias estava ao meio-dia no Grande Hotel. É que ele sustentava, como outros, a um figurante de ópera, um "empregado", bem semelhante a esses grooms de que falamos, e que nos fazia pensar nos jovens israelitas de Esther e de Athalie. A falar a verdade, os quarenta anos que separavam o Sr. Nissim Bernard do jovem empregado deveriam preservar este de um contato pouco amável. Porém, como diz Racine com tanta sabedoria nos mesmos coros: Mon Dieu, qu'une vertu naissante Parmi tant de périls marche à pas incertains! Qu'une âme qui te cherche et veut être innocente Trouve d'obstacle à ses desseins! ["Meu Deus, como uma virtude nascente, entre tantos perigos, anda a passo inseguro! Uma alma que te procura e quer ser inocente, quantos obstáculos encontra para os seus desígnios!" (Athalie, ato II, cena IX). (N, do T)]
     O jovem empregado, por mais que fosse "longe do mundo criado", no Templo-Palácio de Balbec, não seguira o conselho de Joad: Sur la richesse et l'or ne mets point ton appui.["Não busques apoio no ouro ou nas riquezas." (Cit. modif. de Athalie, ato IV, cena II) (N. do T) " Athalie, ato II, cena IX. (N. do T)]
     Talvez achasse uma desculpa, dizendo: "Os pecadores cobrem a terra." Fosse como fosse, e embora o Sr. Nissim Bernard não esperasse um prazo tão curto, logo ao primeiro dia: Et soit frayeur encor ou pour le caresser De ses bras innocents il se sentit presser." [- "E fosse ainda por terror ou para acariciá-lo, sentiu-se apertado por seus braços inocentes." (Cit. modif. de Athalie, ato I, cena II). (N. do T)]
     E, desde o segundo dia, o Sr. Nissim Bernard, passeando o empregado, "a aproximação contagiosa lhe alterava a inocência". Desde então, a vida do jovem havia mudado.
     Era em vão que ele carregava o pão e o sal, como lhe mandava o seu chefe, todo o seu rosto cantava:

De fleurs en fleurs, de plaisirs en plaisirs Promenons nos désirs. De nos ans passagers le nombre est incertain. Hâtons-nous aujourd'hui de jouir de la viel L'honneur et les emplois Sont le prix d'une aveugle et douce obéissance, Pour la triste innocence Qui viendrait élever la voix. ["De flores em flores, de prazeres em prazeres, passeemos nossos desejos. Incerto é o número de nossos anos passageiros. Apressemo-nos a gozar a vida hoje! A honra e os empregos são o preço de uma e doce obediência. Pela triste inocência quem viria erguer a voz?" (Citações modif. de Athalie, ato li, ce IX e ato III, cena VIII). (N. do T) 

     Desde esse dia, o Sr. Nissim Bernard jamais deixara de vir ocupar sua mesa no almoço (como o teria feito à orquestra alguém que sustenta uma figurante, figurante essa de um gênero fortemente caracterizado e que ainda espera o seu Degas). O prazer do Sr. Nissim Bernard era seguir na sala de jantar, e até às longínquas perspectivas onde, sob sua palmeira, se assentava o caixa, as evoluções do adolescente atencioso no serviço, no serviço de todos e menos no do Sr. Nissim Bernard; desde que este o sustentava, fosse porque o jovem menino do coro não julgasse necessário manifestar a mesma gentileza a alguém de quem se sabia suficientemente amado, fosse por que tal amor o irritasse ou que temesse que, uma vez descoberto, lhe fizesse perder outras ocasiões. Mas, até mesmo essa frieza agradava ao Sr. Nissim Bernard, por tudo o que ela dissimulava. Seja por atavismo hebraico ou pela profanação do sentimento cristão, singularmente se deleitava com a cerimônia raciniana, fosse judia ou católica. Caso se tratasse de uma verdadeira representação de Esther ou de Athalie, o Sr. Nissim Bernard teria lamentado que a diferença de séculos não lhe tivesse permitido conhecer o autor, Jean Racine, a fim de obter um papel maior para o seu protegido. Mas, como a cerimônia do almoço não provinha de nenhum escritor, ele se contentava em estar em bons termos com o gerente e com Aimé para que o "jovem israelita" fosse promovido às funções desejadas, de subchefe ou até mesmo de chefe; graduado. Tinham-lhe sido oferecidas as de despenseiro. Mas o Sr. Bernard o obrigou a recusá-la, pois assim não poderia mais vir vê-lo, todos os dias, correndo pelo refeitório verde e fazer-se servir por ele como um estranho. Tal prazer era tão forte que todos os anos o Sr. Bernard regressava a Balbec e almoçava fora, hábitos em que o Sr. Bloch via, no primeiro, um gosto poético pela claridade e os ocasos daquela costa preferida a todas as outras; e, no segundo, uma inveterada mania de velho celibatário.
     A falar a verdade, esse engano dos parentes do Sr. Nissim Bernard, os quais não desconfiavam do motivo real de sua volta a Balbec todos os anos, e do que a pedante sra. Bloch denominava as suas infidelidades culinárias, esse engano era uma verdade mais profunda e do segundo grau. Pois o próprio Sr. Nissim Bernard ignorava o que podia entrar de amor à praia de Balbec, da vista marítima que se tem do restaurante, e dos hábitos maníacos, no seu gosto de sustentar, como a uma figurante de ópera de outra espécie, a que ainda faltasse um Degas, um dos empregados da casa que também eram "meninas". Assim, o Sr. Bernard mantinha excelentes relações com o gerente daquele teatro que era o hotel de Balbec, e com o diretor de cena e regente Aimé, cujo papel em todo esse negócio não era dos mais claros. Um dia, dar-se-iam intrigas para conseguir um grande papel, talvez uma posição de mordomo. Enquanto esperava, o prazer do Sr. Nissim Bernard, por mais poético e sossegadamente contemplativo que fosse, tinha um tanto das características desses homens mulherengos que sempre sabem. Swann outrora, por exemplo que, indo a uma festa, encontrarão a sua amante. Mal o Sr. Bernard se assentasse, já veria o objeto de seus anseios avançar em cena, trazendo na mão frutas ou charutos numa bandeja. Assim todas as manhãs, após haver beijado a sobrinha, ter se inquietado com os trabalhos de meu amigo Bloch e dado de comer torrões de açúcar na palma estendida a seus cavalos, febrilmente se apressava a chegar para almoçar no Grande Hotel. A casa poderia estar em chamas, sua sobrinha ter um ataque, que mesmo assim sem dúvida ele sairia.
     Receava, como a uma peste, um resfriado que o pusesse de cama pois era hipocondríaco e que houvesse necessidade de mandar pedir a Aimé que lhe enviasse para sua casa, antes da hora da refeição, o seu jovem amigo.
     Aliás, ele gostava do labirinto de corredores, gabinetes secretos, salões, vestiários, despensas e galerias que era o hotel de Balbec. Por atavismo de oriental amava os serralhos e, quando saía à noite, viam-no explorar-lhe às escondidas os esconderijos. Ao passo que, arriscando-se até o subsolo e apesar de tudo procurando não ser visto e evitar o escândalo, o Sr. Nissim Bernard, em sua busca de jovens levitas, lembrava estes versos de La Juive: Ô Dieu de nos peres/ Parmi nous descends/ Cache nos mysteres A Toei/ des méchantsils ["ó Deus. dos nossos, pais, desce entre. nós; oculta, nossos mistérios aos olhos, dos malvados!" Juive 1, A Judia, ópera de Halévy. (N. do T)]
     Eu, ao contrário, subia para o quarto de duas irmãs que tinham acompanhado a Balbec, como camareiras, uma velha dama estrangeira. Era o que a linguagem dos hotéis denominava "mensageiras", e a de Françoise, que pensava que um mensageiro [courrier] ou uma mensageira [courriere] e - ali para fazer recados [courses], "recadeiras" [coursieres]. Quanto aos hotéis, conservaram-se com mais nobreza no tempo em que se cantava: "É o mensageiro de gabinete."
     Apesar da dificuldade que um hóspede encontrava para ir aos quartos das camareiras, e reciprocamente, eu bem depressa liguei-me em amizade muito viva com estas duas pessoas: Srta. Marie Gineste e Sra. Célesté Albaret. Nascidas ao sopé das altas montanhas da região central da França, à beira de regatos e de torrentes (a água passava mesmo sob a casa da família, onde girava um moinho, e que fora devastada diversas vezes pela inundação), elas pareciam ter-lhes conservado a natureza. Marie Gineste a mais regularmente rápida e sacudida; Céleste Albaret, mais vagarosa e perseguida, parada como um lago, porém com terríveis acessos de efervescência em que o seu furor lembrava o perigo das enchentes e dos turbilhões ligados que arrastam tudo, devastam tudo. Vinham ver-me diversas vezes pela manhã, quando eu ainda estava deitado. Jamais conheci pessoas tão voluntariamente ignorantes, que não haviam aprendido absolutamente nada na escola, e cuja linguagem, no entanto, possuía algo de tão literário que, sem o natural quase selvagem de seu tom, a gente poderia julgar afetadas as suas palavras. Com uma familiaridade que não aperfeiçoo, apesar dos elogios (que não estão aqui para me louvar, mas para louvar o gênio estranho de Céleste) e das críticas, igualmente falsas, mas muito sinceras, que estas frases parecem comportar a meu respeito, enquanto eu mergulhava pãezinhos no meu leite, Céleste me dizia: 

- Ó diabinho preto de cabelo de galo, ó que profunda malícia! Não sei em que pensava sua mãe quando o fez, pois o senhor é igual a um pássaro. Olha, Marie, não parece até que ele alisa as penas, e vira o pescoço com facilidade? Tem um ar tão leve que parece estar aprendendo a voar. Ah, o senhor tem sorte de que aqueles que o geraram o tenham feito nascer entre os ricos; que seria do senhor, perdulário como é? Olha como ele joga fora o pãozinho só porque tocou na cama. Bem, agora derramou o leite, espere que vou lhe pôr um guardanapo, pois o senhor não saberia colocá-lo sozinho; nunca vi ninguém tão bobo e desajeitado como o senhor. -

     Ouvia-se então o ruído mais regular de torrente de Marie Gineste que, furiosa, fazia reprimendas à irmã: 

- Ora, Céleste, não vais calar a boca? Estás louca para falares ao senhor desse modo? -

     Céleste limitava-se a sorrir; e, como eu detestava que pusessem um guardanapo: 

- Mas não, Marie! Vê só, olha como se ergue feito uma serpente. Uma verdadeira serpente, estou dizendo.-