segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário 
     
          Mário conservara os costumes religiosos que adquirira na infância. Num domingo que fora ouvir missa a S. Sulpício, àquela mesma capela da Virgem onde sua tia o levava quando era pequeno, estando mais distraído e pensativo do que de ordinário, sentara se numa cadeira de veludo de Utrecht, atrás de uma coluna, sem reparar que no recosto da cadeira estava escrito o nome: Mabeuf, sacristão. A missa tinha apenas começado, quando um velho se chegou a ele, dizendo-lhe: 

— Queira desculpar, mas este é o meu lugar.

     Mário ergueu-se apressadamente, e o velho entrou na posse da sua cadeira.
     Terminada a missa, Mário ficou ainda pensativo a alguns passos de distância: o velho aproximou-se novamente e disse-lhe: 

— Peço-lhe que me desculpe tê-lo incomodado no começo da missa e de agora mesmo o tornar a incomodar. O senhor deve ter-me achado importuno, portanto é necessário que lhe dê uma explicação. 
— É inútil, senhor! 
— Não é — tornou o velho — não quero que vá fazendo má ideia de mim. Tenho muita predileção por este lugar. Parece-me que a missa aqui é melhor. Não sabe porquê? Eu lhe digo. Foi neste lugar que eu vi, durante dez anos, de dois em dois ou de três em três meses, regularmente, um pobre e honrado pai, que não tinha outra ocasião nem maneira de ver seu filho, por isso que lhe impediam certos assuntos de família. Aparecia sempre à hora em que sabia trazerem seu filho à missa. O pequenino nem suspeitava que seu pai aqui estivesse; nem mesmo sabia que tinha pai, o pobre inocente. O pai, pela sua parte, conservava-se atrás do pilar, para que o não vissem. Contemplava o filho e chorava; o pobre homem adorava a criancinha. Vi isto muitas vezes. Este lugar ficou como santificado por mim, e acostumei-me a ouvir sempre nele a missa. Prefiro-o à bancada em que devia estar, como sacristão. Tive até algum conhecimento com o infeliz homem. Tinha um sogro, uma tia rica, e não sei que mais parentes que o ameaçavam de deserdar a criança, se ele, que era seu pai, lhe falasse. Sacrificara-se para que o filho pudesse um dia ser rico e feliz. Parece que não consentiam que ele o visse por motivo de opiniões políticas. Eu aprovo que se tenham opiniões políticas; mas há gente que não sabe ter mão nelas. Valha-me Deus! Um homem não é um monstro só porque esteve em Waterloo; não se separa um pai de seu filho por semelhante coisa. Era um coronel de Bonaparte; e julgo que morreu. Residia em Vernon, onde está meu irmão, que é prior, e chamava-se... Tinha assim um nome como Pontmarie ou Montparcy... O que ele tinha também era uma cicatriz no rosto. 
— Pontmercy — disse Mário, empalidecendo. 
— É isso mesmo! Pontmercy. Conhecia-o? 
— Era meu pai!

     O velho sacristão juntou as mãos e exclamou: 

— Logo o senhor é o menino de então! É isso, é; devia ser agora um homem. Pobre criança! Pode dizer que teve um pai bem seu amigo!

     Mário ofereceu o braço ao velho e conduziu-o até sua casa. No dia seguinte disse ao senhor Gillenormand: 

— Fui convidado por alguns amigos para uma caçada; dá-me licença que me ausente por três dias? 
— Por quatro! — respondeu-lhe o avô. — Vai divertir-te.

     E, piscando o olho, disse em voz baixa a sua filha: 

— Alguns amoricos!

continua na página 472...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - V - Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Sobre a Paciência das Mãos

Elias Canetti

AS ENTRANHAS DO PODER

     Sobre a Paciência das Mãos

      Todas as atividades impetuosas das mãos são vistas como arcaicas. Não é apenas do agarrar com propósito hostil que se esperam subtaneidade e crueldade. São esperadas também, e involuntariamente, de procedimentos que somente se desenvolveram mais tarde, como o golpear, o espetar, o empurrar, o lançar e o atirar, por mais que estes se tenham ramificado e tornado tecnologicamente mais complexos. É possível que sua velocidade e precisão tenham aumentado, mas tanto o seu sentido quanto o seu propósito permanecem ainda os antigos. Para o caçador e o guerreiro, tais atividades tornaram-se importantes; mas elas nada acrescentaram à verdadeira glória da mão humana.
     Sua perfeição, a mão a atingiu por outros caminhos — mais exatamente, em toda parte onde renunciou à violência e à presa. A verdadeira grandeza das mãos reside em sua paciência. Os atos tranquilos e vagarosos da mão criaram o mundo no qual gostaríamos de viver. O oleiro, cujas mãos são capazes de dar forma ao barro, figura como criador bem no começo da Bíblia.
     Mas como é que as mãos tornaram-se pacientes? Como adquiriram a sensibilidade de seus dedos? Uma de suas primeiras atividades de que se tem notícia, e que os macacos adoram, é o coçar a pele dos amigos. Pensa-se que estão procurando alguma coisa, e como, sem dúvida, eles às vezes encontram algo, atribuiu-se a essa atividade um propósito assaz estreito, nada mais do que útil. Na realidade, o que lhes importa é sobretudo a sensação agradável que os pelos na pele proporcionam a cada um dos dedos. Esses exercícios com os dedos são os mais antigos que se conhecem. Eles é que zeram dos dedos o no instrumento que hoje admiramos.

continua página 319...
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Leia também:

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Sobre a Paciência das Mãos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

sábado, 6 de dezembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mynheer Peeperkorn (Fim) - [a]

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
(Fim)
...
     Uma cascata não deixa de ser objetivo atraente para excursões, e dificilmente se explica por que Hans Castorp, apesar de sentir inclinação particular pelas quedas-d’água, ainda não visitara o pitoresco salto situado na floresta do vale de Fluela. Essa omissão talvez fosse perdoável durante o tempo em que convivera com Joachim; o rigoroso senso do dever, peculiar ao primo, que não viera para divertir-se, e nunca perdia de vista a finalidade da sua estadia, havia limitado o horizonte de ambos aos arredores próximos do Sanatório Berghof. E depois do decesso de Joachim – sim, também depois dele, as relações entre Hans Castorp e a paisagem alpina haviam guardado, abstraindo os passeios de esqui, o caráter de conservadora monotonia, que contrastava fortemente com o vasto alcance das suas experiências interiores e dos seus afazeres de “regente”. Esse contraste exercia sobre o jovem um encanto que ele, em certo sentido, saboreava com plena consciência. Mesmo assim aprovou vivamente um projeto de excursão de coche até aquele lugar famoso, projeto que um dia foi ventilado no pequeno círculo dos seus amigos, entre as referidas sete pessoas (inclusive ele próprio).
     Nesse ínterim chegara o mês de maio, mês das delícias, segundo as ingênuas cantilenas da planície. Aqui em cima, o ar de maio costumava ser bastante frio e não muito convidativo; mas ao menos podia-se dizer que o degelo estava terminado. Verdade é que diversas vezes no decorrer dos últimos dias haviam caído grossos flocos, mas a neve derretia-se logo, deixando atrás apenas um pouco de umidade. As massas compactas do inverno acabavam de fundir-se, de esvair-se, de desaparecer, com exceção de alguns restos isolados, e o verdor do mundo novamente transitável constituía um convite a todo espírito empreendedor.
     No curso das semanas passadas, as atividades sociais do grupo tinham sido influenciadas pela indisposição do seu chefe supremo, o majestoso Pieter Peeperkorn, cuja febre maligna, lembrança dos trópicos, não queria ceder nem aos efeitos de um clima excepcional, nem aos antídotos de um médico tão competente como era o Conselheiro Behrens. O holandês passara muito tempo na cama, e não somente nos dias em que a quarta reivindicava cruelmente os seus direitos. O baço e o fígado davam-lhe muito trabalho, conforme o médico explicava em particular aos amigos mais chegados do enfermo. Também o estômago não se achava em estado perfeito, e Behrens não se esqueceu de indicar o perigo de um enfraquecimento progressivo, a que estava exposta, sob essas circunstâncias, até mesmo uma constituição tão robusta como a de Peeperkorn.
     Durante todas essas semanas, Mynheer não presidira senão um único festim noturno, e também os passeios em comum tinham sido cancelados, exceção feita de um só, de pouca extensão. Por outra parte – contamos isso aqui entre nós – Hans Castorp experimentava uma espécie de alívio graças a esse afrouxamento dos laços que ligavam o grupo; pois a nova fraternidade com o companheiro de viagem de Mme. Chauchat causava-lhe dificuldades. Nas conversas que ele mantinha com Peeperkorn em presença de terceiros voltavam a aparecer aquela “atitude forçada”, aquela “evitação” e “esquivança”, que o holandês percebera na sua conduta para com Clávdia, e que pareciam ter a sua origem numa obrigação de partilhar a filipina. Hans Castorp servia-se de estranhos circunlóquios para não empregar o tratamento direto, nos casos em que este se impunha. Era o mesmo dilema, ou talvez o dilema inverso, que pesava sobre as palavras que ele trocava com Clávdia na frente de outras pessoas ou apenas do próprio Peeperkorn. Devido à satisfação que este lhe havia dado, esse dilema colocava o jovem entre Cila e Caribdes.
     Mas agora estava na ordem do dia o projeto da excursão à cascata. Peeperkorn em pessoa fixara o itinerário e sentia-se disposto a tentar a empresa. Era o terceiro dia depois de um ataque de quarta, e Mynheer comunicou que tinha a intenção de aproveitá-lo. Não almoçara no refeitório; como nesses últimos tempos acontecia frequentemente, tomara as primeiras refeições no salão do seu apartamento, em companhia de Mme. Chauchat. Mas já na hora do café da manhã Hans Castorp recebera, por intermédio do porteiro coxo, a ordem de se aprontar para um passeio de coche, uma hora depois do almoço, de transmitir essa ordem aos senhores Ferge e Wehsal, e finalmente de comunicar a Settembrini e Naphta que o carro passaria pela sua casa para buscá-los. Além disso devia Hans Castorp arranjar dois landôs para as três da tarde.
     A essa hora encontraram-se diante do portão do Sanatório Berghof. Enquanto Hans Castorp, Ferge e Wehsal esperavam ali os donos do apartamento principesco, distraíram-se acariciando os cavalos, que com os grossos e úmidos beiços pretos lhes tiravam das palmas da mão pedaços de açúcar. Com um pequeno atraso apenas os companheiros de viagem surgiram na escadaria. Peeperkorn, cuja cabeça de rei parecia mais magra, e que trajava um sobretudo comprido, um pouco gasto, deteve-se no patamar, ao lado de Clávdia, tirando o chapéu redondo e macio, e seus lábios articularam um ‘Bom-dia!” inaudível. A seguir apertou as mãos de cada um dos três senhores, que haviam ido ao encontro do casal, até o pé da escada. 

– Meu caro jovem! – disse então dirigindo-se a Hans Castorp e pondo-lhe a mão esquerda sobre o ombro. – Como vais, meu filho? 
– Vou indo aqui muito bem. Obrigado. E desse lado aí, como vão as coisas? – respondeu o jovem.

     O sol brilhava. Era um dia lindo, sem nuvens. Mesmo assim tinham agido com acerto vestindo casacões de meia-estação, porque era provável que durante o passeio o frio se tornasse sensível. Também Mme. Chauchat trajava um sobretudo quente, cinturado, de uma fazenda felpuda, com grandes quadrados de xadrez, e com uma gola de pele que lhe cobria os ombros. No chapéu de feltro trazia um véu cor de azeitona, atado por baixo do queixo, e que dobrava as abas em torno do rosto. Ficava tão encantadora com esse chapéu que literalmente fazia sofrer a maioria dos cavalheiros presentes, exceção feita de Ferge, o único que não estava apaixonado por ela. Foram distribuídos os lugares, provisoriamente, já que mais tarde os externos se reuniriam ao grupo, e a indiferença de Ferge teve por conseqüência caber-lhe o assento de costas, no primeiro landô, na frente de Mynheer e de madame, ao passo que Hans Castorp embarcou junto com Wehsal no segundo carro, não sem ter apanhado um sorriso irônico de Clávdia. O vulto frágil do criado malaio também participava da excursão. Com um volumoso cesto, sob cuja tampa apontavam os gargalos de duas garrafas de vinho, e que foi depositado debaixo de um dos assentos de costas do primeiro landô, o homenzinho aparecera atrás dos seus amos, e quando se achava instalado na boleia, com os braços cruzados, deu-se aos cavalos o sinal de partida. Com os freios apertados, os carros começaram a descer pela curva da rampa.
     Também Wehsal notara o sorriso de Mme. Chauchat. Mostrando os dentes cariados, fez comentários acerca dele para Hans Castorp. 

– Viu – perguntou – como ela se riu do senhor, porque tem de ir sozinho comigo? Primeiro o dano, depois o escárnio. Não acha o senhor irritante e repulsivo estar assim a meu lado? 
– Controle-se, Wehsal, e deixe de falar desse jeito miserável – repreendeu-o Hans Castorp. – As mulheres sorriem a qualquer instante, pelo prazer de sorrir. Não vale a pena refletir sobre todos os seus sorrisos. Por que insiste o senhor em rebaixar-se deste modo? Como nós todos, o senhor tem suas qualidades e seus defeitos. Por exemplo, toca bastante bem o Sonho de uma noite de verão, coisa que nem todos sabem fazer. O senhor deveria tocá-lo novamente qualquer dia destes.
– Pois sim! – respondeu o pobre-diabo. – O senhor me fala com muita condescendência e nem sequer percebe o desaforo que está contido no seu consolo e que somente me humilha ainda mais. Para o senhor é fácil dizer essas coisas e reconfortar a gente do alto dos seus tamancos; pois, se hoje se encontra numa situação um tanto ridícula, pelo menos teve a sua vez, Santo Deus, e esteve no sétimo céu! Sentiu os braços dela em torno do pescoço, e tudo aquilo, Santo Deus! me queima a garganta e o fundo do coração quando me volta à memória. E o senhor, com plena consciência do que gozou, pode contemplar desdenhosamente os meus tormentos de mendigo... 
– Não é bonita essa sua maneira de expressar-se, Wehsal. É até sumamente repugnante. Não acho necessário ocultar-lhe esta minha opinião, uma vez que o senhor me tachou de desaforado. E tenho a impressão de que o senhor fala de propósito dessa forma repulsiva. Faz tudo para parecer asqueroso e avilta-se a cada momento. Sua paixão por ela é realmente violenta? 
– É terrível – replicou Wehsal, meneando a cabeça. – São indescritíveis as torturas que sofro pela sede e pela cobiça de possuí-la. Quem me dera dizer que isso será a minha morte! Mas num estado desses não se pode nem viver nem morrer. Enquanto ela estava ausente, comecei a me sentir melhor. Aos poucos consegui me preocupar menos. Mas desde que voltou e a vejo todos os dias, a minha paixão me faz morder o braço e agarrar miragens. Já não sei o que fazer. Uma coisa assim não deveria existir. Mas não é possível desejar que desapareça. Quem sofre de tal paixão não pode ter esse desejo, porque seria o mesmo que desejar que desaparecesse a própria vida, que se amalgamou com a paixão; é coisa que não se pode... Que adiantaria morrer? Depois, sim; com prazer! Nos braços dela; com a maior satisfação! Mas antes, seria absurdo; pois a vida é o desejo, e o desejo é a vida e não pode voltar-se contra si próprio; nisso é que consiste o maldito dilema. E quando digo “maldito”, isto não passa de uma maneira de falar. É como se um terceiro falasse, porque eu mesmo absolutamente não posso ter essa opinião. Há muitos tipos de tormentos, Castorp, e quem está sendo torturado quer se ver livre, quer simplesmente, incondicionalmente, que o soltem. Eis o que é o seu único objetivo. Mas quando se trata da tortura da cobiça carnal, não se pode desejar a libertação, a não ser pelo caminho e sob a condição de a ver saciada. Não há outro meio, por preço algum! Assim são as coisas, e quem não sofre disso não perde tempo com reflexões desse gênero, mas quem sofre chega a ver estrelas e a compreender o Senhor dos Passos. Deus do Céu! Que instituição curiosa é essa de a carne cobiçar tão violentamente uma outra carne, só porque esta não é a própria, mas pertence à alma de outrem! Como é singular esse desejo, e para bem dizer, como é modesto, na sua bondade pudica! É o caso de dizer: se a carne deseja apenas isso, vá lá, que o tenha! Afinal de contas, que é que eu quero, Castorp? Quero, acaso, matá-la? Quero derramar o sangue dela? Quero apenas é acariciá-la! Castorp, meu caro Castorp, desculpe que me lamente dessa forma, mas, afinal, ela poderia muito bem entregar-se a mim! Haveria nisso algo de sublime, Castorp! Eu não sou nenhum animal; à minha maneira, também sou um ser humano! O desejo da carne espalha-se em todas as direções; não tem limites e não se fixa, e por isso o chamamos bestial. Mas quando se concentra numa única criatura, com um rosto humano, então os nossos lábios começam a falar de amor. Mas o que eu desejo não é apenas o torso dela, o manequim de carne que é o seu corpo; pois, se no seu rosto uma coisinha de nada tivesse uma forma diferente, talvez deixasse eu de cobiçar todo o resto do corpo. Assim se vê claramente: o que eu amo é a sua alma e a amo com a alma. Pois o amor ao rosto é o amor da alma ... 
– Mas que é que o senhor tem, Wehsal? Parece fora de si e nem sabe em que tom está falando... 
– Mas, precisamente isso, precisamente isso é a desgraça – prosseguiu o coitado –, a desgraça é ter ela uma alma, ser ela uma criatura humana, dotada de corpo e alma! Ora, a sua alma nada quer saber da minha, e o seu corpo nada do meu. Que miséria, que grandíssima miséria! Daí acontece que o meu desejo está condenado à vergonha, e meu corpo tem de se retorcer eternamente! Por que ela não quer saber de mim, Castorp, nem com o corpo nem com a alma? Por que lhe causa horror o meu desejo? Porventura não sou homem? Um homem repugnante não é homem? Sou homem no mais alto grau; juro que ultrapassaria tudo que já se viu, se ela me abrisse o paraíso dos seus braços, que são tão formosos porque pertencem ao rosto da sua alma! Eu seria capaz de lhe dar todas as volúpias do mundo, Castorp, se se tratasse apenas dos corpos e não das almas também; se não existisse a maldita alma dela, que nada quer saber de mim, mas sem a qual eu não lhe cobiçaria o corpo. E neste nojento dilema dos diabos debato-me eternamente! 
– Psiu, Wehsal! Fale mais baixo! O cocheiro entende o que está dizendo. De propósito não volta a cabeça, mas vejo pelas costas dele que escuta. 
– Ele me entende e escuta; aí está, Castorp! Aí temos novamente aquela coisa, aquela instituição com a sua particularidade e seus característicos. Se eu falasse de palingenesia ou... ou de hidrostática, ele não entenderia patavina; não saberia de que se trata, não escutaria e não mostraria o menor interesse. Pois esses assuntos não são populares. Mas a coisa mais sublime, a mais extrema e a mais secreta, num sentido sinistro, o assunto da carne e da alma, olhe, essa coisa é ao mesmo tempo a mais popular. Todos a entendem, todos podem zombar de quem sofre dela e a quem ela transforma os dias em torturas voluptuosas, e as noites num inferno ignominioso! Castorp, meu caro Castorp, deixe que eu me lamente um pouco; pois que noites são estas que eu tenho! Noite após noite sonho com ela; ah, com quanta coisa dela não sonhei! A garganta e o estômago me queimam, quando recordo. E todos os sonhos terminam assim: ela me esbofeteia, me bate em pleno rosto e às vezes me cospe na cara, me cospe na cara, com o rosto da sua alma crispado de asco, e então acordo, coberto de suor e de vergonha e de volúpia... 
– Muito bem, Wehsal, e agora vamos fazer uma pequena pausa e tomar a decisão de calar a boca até que cheguemos à casa do merceeiro e alguém venha nos fazer companhia. É da minha parte uma sugestão e uma ordem. Não quero ofendê-lo e admito que o senhor se encontra em graves apuros. Mas lá em casa contavam a história de um indivíduo que tinha recebido o seguinte castigo: quando falava, saíam-lhe da boca serpentes e sapos, a cada palavra uma serpente ou um sapo. O livro não rezava o que aquela personagem fazia diante disso, mas sempre fui de opinião que ela deve ter calado a boca. 
– Mas falar é uma necessidade humana, meu caro Castorp – tornou Wehsal melancolicamente –, uma necessidade humana. É preciso desabafar, quando se está em tais apuros. 
– É até um direito que o homem tem, Wehsal, se assim quiser. Mas, a meu ver, existem direitos que sob certas circunstâncias não convém usar. 

     Assim guardaram silêncio, conforme a ordem de Hans Castorp. Ademais, o coche não tardou a alcançar a casinha coberta de vinhas do merceeiro, onde não os deixaram esperar nem um instante. Naphta e Settembrini já se achavam na rua; o humanista trajava aquela jaqueta puída, forrada de peles, e o jesuíta, um sobretudo amarelo-esbranquiçado, de meia estação, pespontado em toda parte, e que lhe dava aparência de janota. Acenaram uns aos outros. Trocaram cumprimentos, enquanto os carros faziam meia-volta, e os dois senhores embarcaram também. Naphta ocupou o quarto assento do primeiro landô, ao lado de Ferge, ao passo que Settembrini., de humor radiante, transbordando de piadas esplêndidas, se associou a Hans Castorp e Wehsal. Este lhe cedeu o seu lugar no fundo do carro, onde o Sr. Settembrini se instalou com a mais elegante displicência, na atitude de quem costuma passear em corsos.
     E celebrou o prazer de andar de carro, quando o corpo se encontra em confortável estado de repouso e todavia é transportado através de um cenário que sempre se modifica. Demonstrou a Hans Castorp sentimentos de complacência paternal, e até acariciou com palmadinhas a face do pobre Wehsal, enquanto o convidava a esquecer-se do seu próprio eu antipático e de abandonar-se à admiração desse mundo luminoso, que lhe designava num amplo gesto da mão direita, revestida com uma surrada luva de couro.

continua pág 406...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn (Fim) - [a]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Moby Dick: 42 - A Brancura da Baleia

Moby Dick

Herman Melville

42 -  A Brancura da Baleia
      
      O que a baleia branca era para Ahab, foi sugerido; o que era, por vezes, para mim, resta ainda dizer.
      À parte as considerações mais óbvias a respeito de Moby Dick, que ocasionalmente despertavam apreensões na alma de qualquer um, havia um outro pensamento, ou melhor, um horror impreciso e inominável a seu respeito que, às vezes, superava todo o resto por sua intensidade; e tão místico e alheio à expressão, como era, que chego a desesperar de tentar colocá-lo em forma compreensível. Era a brancura da baleia que, acima de tudo, me pasmava. Mas como posso ter a esperança de me explicar aqui? E, contudo, de modo difuso e aleatório, explicar-me é preciso, ou todos esses capítulos podem reduzir-se a nada.
     Ainda que em muitos objetos naturais a brancura realce com refinamento sua beleza, como se lhe transmitisse alguma virtude própria, como nos mármores, camélias e pérolas; e ainda que várias nações tenham reconhecido de algum modo uma proeminência real desse matiz sobre os demais; mesmo os antigos e poderosos reis de Pegu colocando o título de “Senhor dos Elefantes Brancos” acima de todas as outras atribuições magniloquentes de domínio; e os modernos reis de Sião desfraldando o mesmo quadrúpede branco como a neve em seu estandarte real; e a flâmula de Hanover mostrando uma única figura, a de uma montaria branca como a neve; e o poderoso Império Austríaco, herdeiro Cesáreo da Roma soberana, tendo como cor imperial o mesmo matiz; e ainda que essa proeminência se aplique à própria raça humana, concedendo ao homem branco o domínio ideal sobre toda tribo escura; e ainda que, além disso tudo, a brancura tenha até significado alegria, pois entre os romanos uma pedra branca marcava um dia de júbilo; e ainda que em outras mortais simpatias e simbologias este mesmo matiz seja o emblema de coisas nobres e tocantes – a inocência das noivas, a benignidade da velhice; ainda que entre os peles-vermelhas da América presentear com um cinturão branco de conchas, o wampum, fosse a mais profunda penhora da honra; e ainda que em muitos climas o branco represente a majestade da Justiça no arminho do Juiz e contribua para o fausto diário de reis e rainhas transportados por corcéis brancos como o leite; e ainda que nos mistérios mais elevados das religiões mais augustas tenha se tornado o símbolo do imaculado e do poder divino; entre os Persas adoradores do fogo, a chama branca bifurcada sendo a mais sagrada do altar; e nas mitologias gregas, o Poderoso Jove encarnando um touro branco como a neve; e ainda que para o nobre Iroquês o sacrifício do Cachorro Branco sagrado no meio do inverno fosse de longe o ritual mais sagrado de sua teologia, sendo essa criatura imaculada e fiel considerada a oferenda mais pura que podiam enviar ao Grande Espírito, junto aos votos anuais de sua própria fidelidade; e ainda que diretamente da palavra Latina para branco todos os padres Cristãos derivem o nome de uma parte de sua veste sagrada, a alva ou túnica, usada embaixo da batina; e ainda que nas pompas sacras da fé Romana, o branco seja especialmente usado para a comemoração da Paixão do Senhor; e ainda que na visão de São João o manto branco seja dado aos redimidos, e os vinte e quatro anciãos estejam vestidos de branco diante do grande trono branco, e o Santíssimo, que ali se senta branco como a lã; mesmo a despeito dessa reunião de associações a tudo que é encantador, respeitável e sublime, insinua-se algo furtivo na ideia mais íntima desse matiz, que incute mais de pânico na alma do que o vermelho que amedronta o sangue.
     Essa qualidade furtiva é que faz com que a idéia de brancura, quando divorciada de associações benévolas, e em par com um objeto terrível, agrave o terror ao seu limite mais extremo. Veja o urso polar, e o tubarão branco dos trópicos; que outra coisa senão sua brancura lisa ou encarquilhada faz com que sejam os horrores transcendentes que são? É essa brancura horripilante que transmite uma suavidade abominável, mais repugnante do que terrível, à satisfação muda e maligna de seu aspecto. De modo que nem o tigre, de garras ferozes em seu manto heráldico, consegue abalar tanto a coragem quanto o urso, ou o tubarão, de branca mortalha.{a}
     Pense no albatroz, de onde vêm aquelas nuvens de alumbramento espiritual e de pálido pavor, em meio às quais esse fantasma branco plana em todas as imaginações? Não foi Coleridge quem primeiro lançou o feitiço; mas a grandiosa, laureada e nunca lisonjeira Natureza divina.{b}
     A história mais famosa em nossos anais do Oeste e nas tradições indígenas é a do Corcel Branco das Pradarias; um magnífico cavalo branco como o leite, de olhos grandes e cabeça pequena, peito amplo, e com a dignidade de mil monarcas em seu porte altivo e desdenhoso. Foi o Xerxes eleito de todos os enormes bandos de cavalos selvagens, cujas pastagens, naquele tempo, tinham por único limite as montanhas Rochosas e os Alleghanies. Com sua liderança flamejante comandava-os para o oeste como a estrela eleita que todas as noites traz consigo legiões de luzes. A cascata reluzente de sua crina e o cometa recurvo de sua cauda investiam-no com adornos mais resplandecentes do que poderiam lhe oferecer os melhores artesãos de ouro e prata. Uma aparição imperial e arcangélica naquele mundo do ocidente não decadente, que aos olhos dos velhos armadores e caçadores fazia reviver a glória dos tempos primevos, quando Adão caminhava majestoso como um deus, enfunado e destemido como esse cavalo poderoso. Quer marchasse entre os seus ajudantes e marechais à frente das inúmeras coortes que serpenteavam interminavelmente pelas planícies, como um Ohio; quer pastasse com seus súditos, dando voltas por toda parte até o horizonte, o Corcel Branco, a galope, os passava em revista, com suas narinas quentes se avermelhando através de sua brancura leitosa e fresca; sob qualquer aspecto que se apresentasse, para os Índios mais corajosos era sempre objeto de respeito e trêmula reverência. Também não se pode questionar, a julgar pelos registros lendários sobre esse nobre animal, que era especialmente sua brancura espiritual que assim o revestia de divindade; e que essa divindade, embora inspirasse adoração, ao mesmo tempo reforçava um certo terror inominável.
     Mas há outros exemplos nos quais a brancura perde toda essa glória estranha e acessória que envolve o Corcel Branco e o Albatroz.
     O que há no Albino de tão repugnante e muitas vezes terrível, que ele é por vezes odiado por seus próprios amigos e parentes! É a brancura que o cobre, algo que se expressa pelo nome que carrega. O Albino é tão bem feito quanto qualquer outro homem – não tem uma deformidade substantiva –, e, no entanto, seu aspecto de brancura absoluta torna-o mais estranhamente medonho do que o mais horrível dos abortos. Por que será?
      Tampouco em outros aspectos a Natureza, por seus meios menos palpáveis, mas não por isso menos maliciosos, deixou de juntar às suas forças esse régio atributo do terrível. Por seu aspecto nevado, o fantasma de luvas dos Mares do Sul foi denominado Branca Tormenta. Tampouco, em certos casos históricos, a arte da maldade humana deixou de lado a ação de um auxiliar tão poderoso. Como reforçou o efeito daquela passagem de Froissart, quando, mascarados com o símbolo alvo de sua facção, os desesperados Chapéus Brancos de Ghent assassinaram seu bailio na praça do mercado!
     Nem tampouco, em algumas coisas, a experiência hereditária comum a toda a humanidade deixou de testemunhar o aspecto sobrenatural desse matiz. Não se pode duvidar de que a característica visível no aspecto de um defunto que mais assusta o observador é a palidez marmórea que ali jaz; como se de fato aquela palidez fosse tanto o emblema da consternação no outro mundo, como da atribulação mortal neste daqui. E da palidez dos defuntos emprestamos o matiz expressivo das mortalhas com as quais os envolvemos. Nem mesmo em nossas superstições deixamos de jogar o mesmo manto nevado sobre os nossos fantasmas; todos os espectros surgem em meio a uma neblina branca como leite – Sim, enquanto estes terrores nos assaltam, acrescentemos que mesmo o rei dos terrores, quando personificado pelo evangelista, cavalga um cavalo branco.
     Portanto, ainda que ele, sob outras paixões, simbolize qualquer coisa grandiosa ou graciosa por meio do branco, nenhum homem pode negar que, em seu significado ideal mais profundo, essa cor invoca na alma uma aparição peculiar.
      Mas ainda que sobre este ponto não haja dissenso, como o homem o explica? Pareceria impossível analisá-lo. Será que podemos, então, citando alguns casos nos quais essa questão da brancura – que embora provisoriamente despida, total ou parcialmente, de todas as associações diretas que nos levem ao reconhecimento do terror, ainda exerce sobre nós o mesmo feitiço, contudo modificado; – podemos, dessarte, ter a esperança de lançar alguma luz sobre uma pista casual que nos conduza à causa oculta que buscamos?
      Tentemos. Mas, num assunto como esse, sutileza demanda sutileza, e sem usar a imaginação nenhum homem consegue acompanhar um outro por estes salões. E embora, sem dúvida, pelo menos algumas das impressões imaginativas prestes a ser apresentadas possam ter sido sentidas por grande parte dos homens, talvez poucos deles tivessem plena consciência então, e, por isso, talvez não sejam mais capazes de lembrá-las agora.
     Por que, para o homem de imaginação sem brida que conhece apenas vagamente as características desse dia, a simples menção do Domingo Branco cria em sua fantasia uma longa procissão silenciosa e sombria de peregrinos caminhando lentamente, deprimidos e cobertos de neve recém caída? Ou para os broncos, brutos protestantes do centro dos Estados Unidos, por que a referência ocasional a um frade ou a uma freira vestidos de branco invoca uma estátua sem olhos na alma?
     Ou o que é que, além das tradições de guerreiros e reis atirados ao calabouço (que não explicam isso inteiramente), torna a Torre Branca de Londres tão mais fértil na imaginação do norte-americano de província, do que outras estruturas históricas, vizinhas – a torre Byward, ou mesmo a Bloody? E as torres ainda mais sublimes, as Montanhas Brancas de New Hampshire, de onde, em certas disposições de humor, vem aquela alucinação gigantesca na alma à simples menção de seu nome, enquanto a ideia da Serra Azul da Virgínia é repleta de sonhos meigos, orvalhados e difusos? Ou por que, a despeito de todas as latitudes e longitudes, o nome do Mar Branco exerce uma impressão tão fantasmagórica sobre a imaginação, enquanto o Mar Amarelo nos embala com pensamentos mortais de tardes longas, brilhantes e amenas sobre as ondas, seguidas dos mais agradáveis e indolentes poentes? Ou então, para escolher um exemplo totalmente irreal, endereçado à fantasia, por que, ao ler os antigos contos de fadas da Europa Central, o “homem pálido e alto” das florestas de Hartz, cujo palor imutável desliza silenciosamente pelo verde dos arvoredos – por que esse fantasma é mais terrível do que todos os demônios barulhentos de Blocksburg?
      Tampouco é, unicamente, a recordação de seus terremotos, destruidores de catedrais; nem o estampido de seus mares frenéticos; nem a secura de seus áridos céus que nunca chovem; nem a visão de seu vasto campo de torres inclinadas, cúpulas alquebradas e cruzes derrubadas (como as vergas inclinadas das frotas ancoradas); nem suas avenidas suburbanas onde as paredes das casas se empilham umas sobre as outras, como um baralho em desordem – não são essas coisas isoladamente que fazem de Lima, cidade sem lágrimas, a mais estranha e triste que tu poderias ver. Pois que Lima vestiu o véu branco; e existe um horror supremo na brancura de sua desgraça. Antiga como Pizarro, essa brancura mantém suas ruínas sempre novas; não admite o verdor alegre da ruína completa; espalha por toda sua fortificação destruída a palidez rígida de uma apoplexia que corrige suas próprias distorções.
     Bem sei que, na opinião da maioria, não se admite que o fenômeno da brancura seja o agente principal a realçar o terror dos objetos já em si terríveis; nem para as mentes sem imaginação há algo de terrível naquelas aparências, cujo horror, para um outro tipo de mente, consiste quase que exclusivamente nesse fenômeno, ainda mais quando se apresenta sob uma forma que se aproxime do silêncio ou da universalidade. O que quero dizer com essas duas afirmações talvez possa ser elucidado pelos seguintes exemplos.
     Primeiro: O marujo, quando se aproxima da costa de terras desconhecidas, se à noite escuta o rugir das ondas, fica vigilante, e sente um palpitar que lhe aguça as faculdades; mas, em circunstâncias muito similares, espere vê-lo ser chamado a sair da rede para contemplar seu navio velejando no mar noturno de uma brancura leitosa – como se, vindos dos promontórios das cercanias, bandos de ursos brancos de pelos alisados nadassem à sua volta, e então ele sente um medo mudo e supersticioso; a mortalha espectral das águas embranquecidas lhe é tão terrível quanto um verdadeiro fantasma; em vão o comando lhe assegura que ainda estão longe das águas rasas; coração e leme ambos baixam; e ele não descansa até que esteja outra vez sobre águas azuis. Mas que marujo diria: “Senhor, não foi tanto o medo de bater nos rochedos submersos que me deixou agitado, mas o medo daquela brancura hedionda”?
      Segundo: Para o Índio nativo do Peru, a contínua visão dos Andes e seus baixeiros de neve não transmite pavor, exceto, talvez, pelo simples imaginar da eterna desolação congelada que reina em altitudes tão vastas, e a ideia natural do terror que seria perder-se em solidões tão inóspitas. O mesmo sucede com o homem das florestas do Oeste, que com uma relativa indiferença contempla uma pradaria sem limites coberta pela neve, nem sombra de árvore ou galho que quebre o transe imóvel da brancura. Já não é assim com o marinheiro diante do cenário dos mares Antárticos; no qual, às vezes, por um ardil infernal de prestidigitação das potências do ar e do gelo, tremendo e a ponto de naufragar, em lugar de avistar um arco-íris que pudesse lhe trazer conforto e esperança em sua desgraça, vê o que parece um cemitério imenso que range à sua frente com seus monumentos de gelo inclinados e cruzes estilhaçadas.
     Mas, dizes tu, julgo que este capítulo alvaiadado sobre a brancura é apenas uma bandeira branca desfraldada por um espírito covarde; tu te rendeste à melancolia, Ishmael.
     Diga-me, então, por que esse potro jovem e forte, criado num vale pacífico de Vermont, longe dos animais predadores – por que é que se atrás dele se agitar, no dia mais ensolarado, uma veste feita de búfalo, de tal modo que ele nem a possa ver, mas apenas sentir seu cheiro animal almiscarado –, por que ele irá se sobressaltar, resfolegar e começar a patear a terra com os olhos esbugalhados num frenesi assustado? Não há nele recordação de ataques de criaturas selvagens de sua terra verde setentrional, de modo que o estranho almíscar que sente não pode suscitar lembranças de coisa alguma associada à experiência de perigos anteriores. O que sabe esse potro da Nova Inglaterra sobre os bisões negros do distante Oregon?
      Não! Mas aqui se vê, mesmo num animal que não fala, o instinto do conhecimento do demonismo no mundo. Ainda que a milhares de milhas do Oregon, quando sente aquele almíscar selvagem, as manadas de bisões que chifram e atacam se tornam tão presentes como o são para o abandonado potro selvagem das pradarias, que naquele instante pode estar sendo pisoteado na poeira.
     Assim, então, as ondulações sufocadas do mar leitoso; o ruído triste do gelo dos festões das montanhas; os deslocamentos melancólicos da neve amontoada na pradaria; para Ishmael, tudo isso é equivalente ao agitar a veste de búfalo para o potro assustadiço!
     Embora ninguém saiba onde ficam essas coisas inomináveis cujos sinais místicos oferecem essas indicações, tanto para mim quanto para o potro, algures tais coisas devem existir. Embora em muitos de seus aspectos o mundo visível pareça ser feito de amor, as esferas invisíveis foram feitas de medo.
     Mas ainda não resolvemos a magia dessa brancura, e nem sabemos por que tem um apelo tão poderoso na alma; e ainda mais estranha e muito mais prodigiosa – por que, como vimos, é ela simultaneamente o símbolo mais significativo das coisas espirituais, o próprio véu da Divindade Cristã; e, contudo, o agente intensificador nas coisas que mais aterrorizam a humanidade.
     Será que, por sua indefinição, ela obscurece os vácuos e as imensidões impiedosas do universo, e dessa forma nos apunhala pelas costas com a idéia da aniquilação quando contemplamos as profundezas brancas da Via Láctea? Ou será que o branco, em sua essência, não é uma cor, mas a ausência visível de cor, e, ao mesmo tempo, a fusão de todas as cores; será que são essas as razões pelas quais existe um espaço em branco, repleto de significado, na ampla paisagem das neves – um ateísmo sem cor e de todas as cores do qual nos esquivamos? E quando consideramos a outra teoria dos filósofos naturais, segundo a qual todas as outras cores terrenas – todos os adornos imponentes ou atraentes –, os tons suaves do céu e da floresta no crepúsculo; sim, e o veludo dourado das borboletas, e a borboleta dos lábios das moças; tudo isso não passa de ilusões sutis, que não são em verdade inerentes às substâncias, mas apenas formas exteriores; de tal modo que toda a Natureza deificada se pinta como a prostituta, cuja sedução cobre apenas a câmara mortuária dentro de si; e se formos mais além, e imaginarmos que o místico cosmético que produz cada um de seus matizes, o grande princípio da luz, permanecesse sempre branco ou sem cor em si, e se agindo sem mediação sobre a matéria tocasse todos os objetos, mesmo as tulipas e as rosas, com sua própria tinta ausente – pensando nisso tudo, o universo paralisado quedaria leproso diante de nós; e como os viajantes obstinados na Lapônia, que se recusam a usar lentes coloridas ou corantes nos olhos, assim também o condenado infiel se vê cego diante da monumental mortalha branca que envolve toda a perspectiva à sua volta. E de todas essas coisas a baleia albina é o símbolo. Surpreende-te ainda a ferocidade da caçada?


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Moby Dick: Etimologia, Excertos, Citações
Moby Dick: 1  - Miragens
Moby Dick: 42 -  A Brancura da Baleia
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?
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{a} Com referência ao Urso polar, é possível ser argumentado por aquele que de bom grado queira ir ainda mais fundo nesse assunto que não é a brancura, tomada em separado, que agrava a intolerável hediondez do animal; porque, analisada, a hediondez agravada, pode-se dizer, origina-se da circunstância de que a ferocidade irresponsável da criatura está investida no tosão da inocência celestial e do amor; e assim, se juntarmos duas emoções tão diferentes em nossas mentes, o Urso polar nos assusta com esse contraste tão pouco natural. Mas, mesmo que isso tudo seja verdade; se não pela brancura, não se sentiria um terror tão intenso.
     Quanto ao tubarão branco, o aspecto fantasmal, branco e deslizante da calma dessa criatura, quando considerada em seus humores normais, corresponde estranhamente à mesma qualidade do quadrúpede polar. Essa peculiaridade é mais bem percebida pelos franceses, pelo nome que consagram a tal peixe. A missa romana dos mortos começa com Requiem eternam (repouso eterno), de onde vem Requiem, a denominar a própria missa e todas as demais músicas fúnebres. Portanto, aludindo à imobilidade de morte, silenciosa e branca desse tubarão, e à mortalidade branda de seus hábitos, os franceses chamam no de Requin. [N. A.]
{b} Lembro-me do primeiro albatroz que vi. Foi durante uma longa tormenta, nas águas turbulentas dos mares antárticos. Do meu turno da manhã, embaixo, subi para o convés nublado; e lá, projetado no convés principal, vi uma coisa magnífica, em suas penugens de brancura imaculada, e com um bico adunco e sublime como um nariz romano. De vez em quando arquejava suas grandes asas de arcanjo, como se cobrisse uma arca sacrossanta. Fantásticas palpitações e vibrações agitavam-no. Ainda que o corpo não estivesse ferido, soltava gritos, como o espectro de um rei em angústia sobrenatural. Em seus olhos estranhos e inexpressivos pensei ver segredos que chegavam até Deus. Como Abraão diante dos anjos, inclinei-me; aquela coisa branca era tão branca, suas asas tão vastas, e naquelas águas de perpétuo exílio, eu perdera as memórias que trouxera a reboque de tradições e cidades. Durante algum tempo fiquei admirando aquele prodígio emplumado. Não sei dizer, só sugerir, as coisas que, então, passavam pela minha cabeça. Mas por fim despertei e me virando perguntei a um marinheiro que pássaro era aquele. Um goney, ele respondeu. Goney! Nunca tinha ouvido esse nome antes; seria possível que aquela coisa gloriosa fosse totalmente desconhecida pelos homens da terra? Não! Mas algum tempo depois descobri que goney era o nome que os marinheiros davam ao albatroz. De modo que não havia possibilidade de a Balada insana de Coleridge ter relação com as minhas impressões místicas, quando vi o pássaro em nosso convés. Pois naquela ocasião ainda não tinha lido a Balada, nem sabia que pássaro era o albatroz. Contudo, ao dizer isso, não faço senão conferir indiretamente um pouco mais de brilho aos já em si brilhantes méritos do poema e do poeta.
     Afirmo, então, que em sua brancura maravilhosa se esconde principalmente o segredo do feitiço; uma verdade ainda mais evidente por esse solecismo que é o de haver aves chamadas albatrozes cinza; e essas, vi-as muitas vezes, mas nunca com a mesma emoção que senti quando vi a ave Antártica.
      Mas como essa criatura mística tinha sido apanhada? Não espalhe, que eu conto: com anzol e linha traiçoeiros, enquanto a ave flutuava sobre o mar. Por fim, o Capitão transformou-a num mensageiro; amarrando em seu pescoço uma etiqueta de couro, na qual estava escrita a data e a posição do navio; e depois a soltando. Mas não duvido que a etiqueta de couro, destinada aos homens, tenha sido tirada no Céu, quando a ave branca voou para se juntar ao alado, evocado e adorado querubim! [N. A.]

O Sol é para todos: 2ª Parte (18b)

Harper Lee

O Sol é para todos

Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto

Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB

SEGUNDA PARTE

18

      Mayella assentiu. 

— Sabia, ele passava em frente de casa todos os dias. 
— Foi a primeira vez que você pediu para ele entrar?

     Mayella teve um pequeno sobressalto com a pergunta. Atticus fez sua pequena peregrinação às janelas, como sempre: fazia uma pergunta e olhava pela janela, à espera da resposta. Não viu o sobressalto involuntário dela, mas acho que percebeu. Virou-se e ergueu as sobrancelhas. 

— Foi a… — começou a repetir. — Foi. 
— Nunca o tinha convidado a entrar antes?

     Agora ela estava preparada para responder. 

— Não, com certeza não. 
— Um “não” é suficiente. Nunca pediu para ele fazer algum serviço para a senhorita? — perguntou Atticus calmamente. 
— Talvez. Por ali passam muitos pretos — admitiu Mayella. 
— Lembra de alguma outra vez? 
— Não. 
— Muito bem, vamos ao que aconteceu. Você disse que, quando virou para trás, Tom Robinson estava lá, certo? 
— É.

     A memória de Atticus de repente ficou muito precisa. 

— Você disse: “Ele me pegou pelo pescoço, me jogou no chão e se aproveitou de mim”… certo? 
— Foi o que eu disse. 
— Lembra dele batendo no seu rosto?

      A testemunha hesitou. 

— Você garante que ele a asfixiou. E você tentava se libertar, lembra? Você “chutou e berrou bem alto”. Lembra-se dele batendo no seu rosto?

     Mayella ficou calada. Parecia estar tentando esclarecer alguma coisa para ela mesma. Por um instante, achei que ela estava usando a minha tática e a do sr. Tate de imaginar que havia alguém na frente dela. Olhou para o sr. Gilmer. 

— É uma pergunta simples, srta. Mayella, então vou repetir. Lembra-se dele batendo no seu rosto?

     A voz de Atticus tinha perdido a gentileza, tinha ficado dura e impessoal como a de um advogado. 

— Lembra-se dele batendo no seu rosto? 
— Não, não lembro se ele me bateu. Quer dizer, sim, ele me bateu. 
— A última frase é a sua resposta? 
— Hein? Sim, ele bateu, eu... não lembro, não lembro… foi tudo tão rápido.

     O juiz Taylor olhou sério para Mayella. 

— Não comece a chorar, mocinha — ele começou a dizer, mas Atticus o interrompeu: 
— Deixe-a chorar, se quiser, meritíssimo. Temos todo o tempo do mundo.

     Mayella fungou, irritada, e olhou para Atticus. 

— Respondo tudo o que você quiser… mas não venha zombar de mim, entendeu? Respondo tudo… 
— Ótimo — disse Atticus. — Só mais umas perguntas. Srta. Mayella, sem querer ser repetitivo, mas disse que o acusado bateu em você, agarrou-a pelo pescoço, sufocou-a e se aproveitou de você. Quero garantir que estamos falando da mesma pessoa. Pode identificar o homem que a estuprou? 
— Sim, foi ele.

     Atticus virou-se para o acusado e pediu: 

— Tom, levante-se. Deixe a srta. Mayella olhar bem para você. Foi este homem, srta. Mayella?

     Os ombros fortes de Tom Robinson se enrijeceram sob a camisa de tecido fino, ele se levantou e apoiou a mão direita no encosto da cadeira. Parecia mal equilibrado, mas não era por causa da postura. O braço esquerdo dele era bem mais curto que o direito e pendia inerte junto ao corpo. Terminava em uma mão atrofiada. E mesmo de longe, no balcão onde eu estava, dava para ver que o braço era inútil. 

— Scout, olha lá! Reverendo, ele é aleijado! — disse Jem, baixinho.

      O reverendo Sykes se inclinou por cima de mim e cochichou para Jem. 

— Quando ele era menino, prendeu o braço numa máquina de tirar caroço de algodão do sr. Dolphus Raymond… Quase morreu de tanto sangrar… A máquina fez todos os músculos se desprenderem dos ossos...

      Atticus perguntou: 

— Foi este homem que a estuprou? 
— Com certeza.

     A pergunta seguinte de Atticus consistia de uma só palavra. 

— Como?

     Mayella estava furiosa. 

— Não sei como ele fez, mas fez… Eu disse que foi tão rápido que…

      — Vamos analisar com calma... — começou Atticus, mas o sr. Gilmer interrompeu com uma objeção: Atticus não estava fazendo uma pergunta irrelevante ou impertinente, mas intimidava a testemunha.

     O juiz Taylor deu uma risada. 

— Ora, sente-se, Horace, ele não está fazendo nada disso. Pelo contrário, a testemunha é que está tentando intimidar Atticus.

     O juiz Taylor foi a única pessoa no tribunal a rir. Até os bebês estavam quietos e de repente me perguntei se teriam sufocado no peito das mães. 

— Bem, srta. Mayella, declarou que o acusado a sufocou e bateu em você; não disse que ele entrou furtivamente por trás e a nocauteou com um golpe, mas que se virou e deu de cara com ele… — lembrou Atticus. Tinha voltado para a mesa e enfatizava as palavras batendo na mesa com os nós dos dedos. —… gostaria de reconsiderar suas declarações? — perguntou Atticus. 
— Quer que eu diga uma coisa que não aconteceu? — perguntou Mayella. 
— Não, quero que diga o que realmente aconteceu. Por favor, conte-nos mais uma vez como foi. 
— Eu já contei. 
— A senhorita declarou que se virou e deu de cara com ele. Ele então a asfixiou? 
— Sim. 
— Em seguida, soltou o seu pescoço e bateu em você? 
— Foi o que eu disse. 
— Ele acertou a mão direita no seu olho esquerdo? 
— Eu me abaixei e… ele não acertou o soco, foi isso. Eu me abaixei e resvalou.

      Finalmente, Mayella tinha entendido. 

— Agora, a senhorita está começando a ser clara. Um momento atrás, não conseguia lembrar direito, não é? 
— Eu disse que ele me bateu. 
— Certo. Ele a asfixiou, bateu em você e a estuprou, certo? 
— Exatamente. 
— Você é uma moça forte, o que fez nesse tempo todo? Ficou de pé, parada? 
— Eu disse que gritei, chutei e lutei.

     Atticus tirou os óculos, virou o olho direito e bom para a jovem e fez várias perguntas. O juiz Taylor pediu: 

— Uma pergunta de cada vez, Atticus. Deixe a testemunha responder. 
— Está bem. Por que não correu? 
— Tentei… 
— Tentou? Por que não conseguiu? 
— Eu… ele me derrubou. Foi isso, ele me derrubou e ficou em cima de mim. 
— Nesse tempo todo, você gritava? 
— Claro que sim. 
— Então por que as crianças não ouviram? Onde elas estavam? No lixão?

      Sem resposta. 

— Onde estavam? Por que não vieram correndo ao ouvir seus gritos? O lixão é mais perto do que o bosque, não é?

     Sem resposta. 

— Ou só gritou quando viu seu pai na janela? Não pensou em gritar antes, não é?

      Sem resposta. 

— Gritou para seu pai e não para Tom Robinson? Foi isso?

     Sem resposta. 

— Quem bateu em você: Tom Robinson ou o seu pai?

     Sem resposta. 

— O que seu pai viu pela janela: um crime de estupro ou a melhor defesa para ele mesmo? Por que não diz a verdade, filha? Bob Ewell bateu em você, não foi?

     Quando Atticus se virou, parecia estar com dor de estômago, mas o rosto de Mayella era uma mistura de terror e fúria. Atticus se sentou, exausto, e limpou a lente dos óculos com o lenço.
      De repente, Mayella resolveu falar. 

— Tenho uma coisa a dizer.

     Atticus levantou a cabeça. 

— Quer nos contar o que aconteceu?

     Mas ela não percebeu o tom compassivo do convite. 

— Vou falar só uma vez, não mais: o preto se aproveitou de mim e se esses elegantes senhores tão importantes não querem fazer nada, é porque são uns covardes fedorentos, são todos uns fedorentos. Esse ar de importância não adianta nada, esse srta. Mayella não significa nada, sr. Finch...

     Ela então chorou de verdade. Os ombros estremeciam com soluços sentidos. Cumpriu a promessa e não respondeu mais nada, nem mesmo quando o sr. Gilmer tentou colocar as coisas de volta nos eixos. Se ela não fosse tão pobre e ignorante, acho que o juiz Taylor mandaria prendê-la pelo desacato que demonstrou por todos no tribunal. De algum modo, Atticus a atingiu profundamente, não sei bem de que maneira, mas não teve nenhum prazer em fazer isso. Ele ficou sentado de cabeça baixa e nunca vi alguém olhar para outra pessoa com tanto ódio quanto Mayella ao passar por Atticus.
     Quando o sr. Gilmer disse ao juiz Taylor que o Estado tinha terminado o interrogatório, o juiz avisou: 

— Está na hora de um intervalo. Dez minutos.

     Atticus e o sr. Gilmer se reuniram em frente ao banco das testemunhas e conversaram em voz baixa. Depois, saíram por uma porta atrás da tribuna das testemunhas, o que foi sinal para nós esticarmos as pernas. Só então percebi que eu tinha ficado sentada na ponta do comprido banco e estava meio dolorida. Jem levantou-se e bocejou, Dill fez o mesmo e o reverendo passou o chapéu pelo rosto. Ele disse que a temperatura era de, no mínimo, trinta graus.
     O sr. Braxton Underwood, que tinha sentado em silêncio numa cadeira reservada para os jornalistas e cujo cérebro esponjoso estava encharcado de depoimentos, passou os olhos pelo balcão dos negros e me viu. Resmungou algo e desviou o olhar. 

— Jem, o sr. Underwood nos viu — avisei. 
— Tudo bem, ele não vai contar para Atticus. Vai só publicar na coluna social da Tribune.

     Jem se virou para Dill, explicando, acho, os detalhes mais importantes do julgamento para ele e fiquei pensando quais seriam. Não tinha havido nenhum debate acalorado entre Atticus e o sr. Gilmer; o sr. Gilmer parecia estar acusando quase contra a vontade; as testemunhas foram levadas pelo cabresto como se faz com os burros, sem muitas objeções. Mas Atticus tinha nos dito uma vez que nos julgamentos presididos pelo juiz Taylor os advogados que conjecturavam demais sobre as provas acabavam provocando severas orientações do juiz ao júri. Papai disse isso para mostrar que o juiz Taylor podia parecer indolente e sonolento, mas suas decisões raramente eram revogadas, o que era a verdadeira prova dos nove. Atticus dizia que ele era um bom juiz.
     Pouco depois, o juiz voltou à sala do tribunal e sentou-se em sua cadeira giratória. Pegou um charuto no bolso do colete e examinou-o atentamente. Cutuquei Dill. Depois de passar pela inspeção do juiz, o charuto recebeu uma bela mordida. 

— Às vezes, a gente vem aqui só para ver ele fazendo isso. — expliquei. — Vai passar o resto da tarde mastigando o charuto, repara só.

      Sem saber que estava sendo observado do balcão, o juiz cortou com o dente a ponta do charuto e soprou-a longe com um fluct! Acertou numa escarradeira com tal precisão que ouvimos a ponta cair lá dentro. 

— Aposto que ele era campeão no arremesso de bolinhas de papel com canudo — Dill cochichou.

     Em geral, no intervalo há uma debandada, mas naquele dia ninguém saiu da sala. Até os membros do Clube dos Ociosos que não conseguiram constranger os mais jovens para que cedessem os lugares para eles, continuaram de pé encostados nas paredes. Acho que o sr. Heck Tate reservou o banheiro do tribunal para uso dos funcionários.
     Atticus e o sr. Gilmer voltaram e o juiz consultou o relógio de pulso. 

— São quase quatro horas — disse, o que era estranho, pois o relógio do tribunal devia ter batido as horas no mínimo duas vezes. Eu não ouvi nem senti suas vibrações. 
— Atticus, que tal terminarmos esta tarde? — perguntou o juiz. 
— Acho possível — respondeu Atticus. 
— Quantas testemunhas ainda tem? 
— Uma. 
— Chame-a.

continua página 137...
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O Sol é para todos: 2ª Parte (18b)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.