sexta-feira, 4 de julho de 2025

Cinema Paradiso

Alfredo e Toto



"O menino Toto se encanta pelo cinema e inicia uma grande amizade com o projecionista de sua pequena cidade. Já adulto e agora um cineasta bem-sucedido, Toto volta a lembrar de sua infância ao descobrir que seu velho amigo faleceu."


Ambientado em uma pequena cidade siciliana, o filme centra-se na amizade entre um jovem e um projecionista idoso que trabalha no cinema que dá nome ao filme. A coprodução ítalo-francesa é estrelada por Philippe Noiret , Jacques Perrin , Antonella Attili , Pupella Maggio e Salvatore Cascio . A trilha sonora foi composta por Ennio Morricone e seu filho, Andrea , marcando o início de uma colaboração entre Tornatore e Morricone que durou até a morte de Morricone em 2020.





Datas de lançamento: 17 de novembro de 1988 (Itália)
                                    20 de setembro de 1989 (França)
                                      2 de março de 1990 (Brasil)
Diretor: Giuseppe Tornatore
Prêmios: Oscar de Melhor Filme Internacional
Música composta por: Ennio Morricone, Andrea Morricone
Autor: Giuseppe Tornatore
Duração: 1h 58m


Ennio Morricone - Cinema Paradiso 
(In Concerto - Venezia 10.11.07)




Massa e Poder - A Malta: A Malta de Lamentação

Elias Canetti

A MALTA

      A Malta de Lamentação

     A descrição mais impressionante que conheço de uma malta de lamentação provém dos warramungas da Austrália Central.

     Antes ainda que o moribundo houvesse dado seu último suspiro, começaram os lamentos e as auto flagelações. Tão logo se soube que o m estava próximo, os homens todos correram velozmente para o local. Algumas das mulheres, que se haviam reunido provindas de todas as partes, jaziam prostradas sobre o corpo do moribundo, enquanto outras se encontravam de pé ou ajoelhadas ao redor, e cravavam as extremidades pontiagudas de seus cajados na própria cabeça: o sangue escorria-lhes pelo rosto, ao mesmo tempo que se podia ouvir-lhes o choro e o lamento ininterruptos. Muitos dos homens que acorreram ao local lançavam-se em grande confusão sobre aquele que ali jazia; as mulheres levantaram-se para lhes dar lugar, até que, por m, nada mais se podia ver senão uma tumultuada massa de corpos nus. De súbito, gritando estridentemente, chegou correndo um homem brandindo uma faca de pedra. Ao chegar ao local, ele subitamente enfiou a faca nas próprias coxas, atravessando os músculos, de modo que, não conseguindo mais ficar em pé, caiu sobre a tumultuada massa de corpos. Sua mãe, suas mulheres e suas irmãs retiraram-no daquele tumulto e puseram a boca em suas feridas abertas, enquanto ele, exausto e desamparado, jazia no chão. Pouco a pouco, a massa de corpos escuros foi se desenredando, permitindo a visão do desafortunado moribundo que era o objeto — ou, antes, a vítima — dessa bem-intencionada demonstração de afeto e aflição. Se, antes, já estava doente, agora, com a partida dos amigos, piorara ainda mais; estava claro que não viveria por muito tempo. O choro e a lamentação persistiram. O sol se pôs e a escuridão se fez no acampamento. Naquela mesma noite o homem morreu. A choradeira fez-se, então, ainda mais alta do que antes. Como que desvairados de aflição, homens e mulheres lançavam-se de um lado para o outro, ferindo-se a si próprios com facas e lanças pontiagudas, ao passo que as mulheres golpeavam-se na cabeça com tacapes; ninguém se defendia dos cortes ou dos golpes.
     Uma hora mais tarde, iluminado por tochas, um cortejo fúnebre pôs-se a caminho em meio à escuridão. Carregaram o corpo para um bosque, distante cerca de uma milha, e, sobre uma plataforma de galhos, depositaram-no no interior de uma seringueira baixa. Quando clareou, na manhã seguinte, não mais se percebia nenhum vestígio de assentamento humano no acampamento em que o homem havia morrido. Todos haviam deslocado suas miseráveis cabanas para mais longe, deixando para trás, em total abandono, o local de sua morte, pois ninguém queria deparar com o fantasma do falecido, que certamente vagava nas redondezas; menos ainda desejavam encontrar o espírito do homem que, ainda vivo, provocara aquela morte valendo-se de algum feitiço maligno, espírito este que, com certeza, sob a forma de um animal, retornaria ao local do crime a m de desfrutar de seu triunfo.
     Por toda parte, no novo acampamento, havia homens estirados no chão com as feridas abertas nas coxas, feridas que, com as próprias mãos, se haviam infligido. Tinham cumprido sua obrigação para com o morto e carregariam até o m da vida as profundas cicatrizes nas coxas, como sinais de sua honra. Em um deles podiam-se contar não menos que 23 marcas de feridas, as quais ele se havia infligido ao longo do tempo. — Enquanto isso, as mulheres haviam retomado a lamentação, conforme era seu dever. Com os braços entrelaçados, quarenta ou cinquenta delas, distribuídas em grupos de cinco ou seis, choravam e gritavam numa espécie de desvario, enquanto algumas, tidas por parentes mais próximas, golpeavam a própria cabeça com lanças pontiagudas, e as viúvas iam ainda além, chamuscando as feridas na cabeça com pedaços de pau em brasa.

     De imediato, essa descrição, à qual se poderiam somar muitas outras semelhantes, deixa clara uma coisa: o importante é a excitação em si. Vários propósitos imiscuem-se no fato descrito, demandando que sejam analisados. O essencial, porém, é a excitação como tal — um estado no qual todos têm, juntos, algo a lamentar. A selvageria da lamentação; sua duração; sua retomada na manhã seguinte, no novo acampamento; o ritmo espantoso no qual ela se intensifica e recomeça, a despeito mesmo da fadiga total — todos esses fatores bastariam para provar que o importante aí é, acima de tudo, a excitação da lamentação conjunta. Tendo-se conhecido apenas esse único caso, característico dos aborígines australianos, compreender-se-á por que razão tal excitação é qualificada como a de uma malta, e por que se afigura indispensável criar para esta a designação especial de malta de lamentação.
      Tudo principia com a notícia de que a morte está próxima. Os homens acorrem a toda a pressa para o local, onde já se encontram as mulheres. Dentre estas, as parentes mais próximas jazem amontoadas sobre o doente. É importante que a lamentação não tenha início apenas depois da morte, mas tão logo não mais existam esperanças de que o doente se recupere. Acreditando-se já que ele vai morrer, não mais se é capaz de conter a lamentação. A malta irrompe; estava à espreita de sua oportunidade e não mais permite que a vítima lhe escape. A força gigantesca com a qual ela se lança sobre seu objeto sela-lhe o destino. Dificilmente pode-se supor que o doente grave submetido a esse tratamento venha a se recuperar dele. Sob a gritaria desvairada dos homens, ele quase sufoca; é de se supor que, por vezes, o doente realmente morra sufocado; em todo caso, sua morte é apressada. A exigência, usual entre nós, de que se deixe a pessoa morrer em paz soaria totalmente incompreensível a essa gente, interessada na própria excitação.
     O que significa esse amontoado que se forma sobre o moribundo, essa confusão de corpos que, evidentemente, lutam por aproximar-se o mais possível dele? Afirma-se que as mulheres, as primeiras a chegar, se levantam para dar lugar aos homens, como se também estes — ou, de todo modo, alguns deles — tivessem um direito à maior proximidade possível com o doente. Quaisquer que sejam as interpretações que os nativos deem para a formação desse aglomerado de gente, o que efetivamente ocorre é que o amontoado de corpos mais uma vez absorve integralmente o moribundo.
     A proximidade física de todos quantos pertencem à malta — sua densidade — não poderia ser levada mais além. Juntamente com o moribundo, eles formam um amontoado. O doente ainda lhes pertence, e eles o retêm consigo. Não podendo levantar-se, juntar-se a eles, eles é que se deitam com o moribundo. Quem quer que acredite possuir algum direito sobre ele luta para participar daquele amontoado que tem nele o seu centro. É como se desejassem morrer com ele: as feridas que se infligem, o lançar-se sobre o amontoado ou sobre o que quer que seja, o sucumbir dos que se auto flagelaram — tudo isso tem por função demonstrar a seriedade com que agem. Talvez fosse correto dizer ainda que desejam igualar-se ao moribundo. Mas não pretendem realmente matar-se. O que deve persistir é o amontoado ao qual pertence o doente, e é isso que eles pretendem com sua conduta. A essência da malta de lamentação consiste nessa equiparação ao moribundo, anteriormente à chegada da morte.
     Contudo, é próprio também dessa malta repelir o morto, tão logo ele morra. A verdadeira tensão da malta de lamentação constitui-se da transformação dessa desvairada retenção e detenção do moribundo numa amedrontada expulsão e isolamento do morto. Ainda durante a noite, desaparece-se com ele às pressas. Destroem-se todos os vestígios de sua existência — seus apetrechos, sua cabana e o que mais lhe tenha pertencido; até mesmo o acampamento no qual ele vivia juntamente com os outros é exterminado e queimado. De súbito, todos se voltam duramente contra ele, que, tendo se afastado dos demais, tornou-se perigoso. É possível que ele passe a invejar os vivos, deles vingando-se pelo fato de estar morto. Todos os sinais de afeto não foram capazes de retê-lo, nem mesmo a densidade dos corpos amontoados. O ressentimento do morto torna-o um inimigo; valendo-se de centenas de ardis e maldades, ele pode imiscuir-se furtivamente entre os vivos, que, por sua vez, necessitarão de idêntica profusão de meios para dele defender-se.
      No novo acampamento, dá-se prosseguimento à lamentação. Não se abre mão de imediato da excitação que emprestou ao grupo o forte sentimento de sua unidade. A necessidade desse sentimento faz-se agora maior do que nunca, pois está-se em perigo. As pessoas exibem sua dor na medida em que seguem ferindo-se a si próprias. É como numa guerra; aquilo, porém, que o inimigo poderia impingir-lhes, elas mesmas se impingem. O homem que ostenta em seu corpo 23 cicatrizes de ferimentos encara-as como condecorações, como se as tivesse conquistado em expedições militares.
     Temos de nos perguntar se esse é o único sentido dos perigosos ferimentos que os homens se impingem nessas ocasiões. Aparentemente, as mulheres vão ainda mais longe que os homens nessa prática. Em todo caso, sua lamentação é mais persistente. Há muita raiva nessa automutilação — a raiva da impotência diante da morte —, e é como se as pessoas se punissem pela morte. Poder-se-ia pensar também que, com a perda que impinge ao próprio corpo, o indivíduo deseja manifestar o dano causado à totalidade do grupo. A destruição, entretanto, volta-se também contra a própria moradia — mesmo sendo ela miserável —, e, nesse sentido, lembra a ânsia de destruição da massa, conforme a conhecemos e elucidamos anteriormente. Mediante a destruição das coisas isoladas, destruição esta na qual a malta se completa, ela dura mais; e mais agudo faz-se seu apartar-se do tempo em que conheceu e sofreu o infortúnio ameaçador. Tudo começa de novo, e começa precisamente no vigoroso estado da excitação coletiva.
      É importante, para concluir, fixar ambos os movimentos essenciais no desenvolvimento da malta de lamentação. O primeiro é o movimento impetuoso rumo ao moribundo e a formação ao seu redor de um amontoado ambíguo, a meio caminho entre a vida e a morte. O segundo é a fuga amedrontada para longe do morto — dele e de tudo quanto ele possa ter tocado.

continua página 163...
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Leia também:

Massa e Poder - A Malta: A Malta de Lamentação
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mais alguém (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Mais alguém 
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     Dias longos – os mais longos, objetivamente falando, com referência ao número das suas horas de sol; pois a extensão astronômica era incapaz de influir sobre a pouca duração do dia avulso tanto como dos dias em geral, na sua fuga monótona. O equinócio da primavera já se passara havia três meses. Chegara o solstício de verão. Mas o ano natural ali em cima seguia o calendário com certa relutância. Somente nesses dias a primavera começara a impor-se definitivamente, uma primavera ainda livre de todo o peso do verão, aromática, transparente e leve, com um azul de esplendor argentino e com uma abundância infantil de cores na floração dos prados. 
    Nas encostas, Hans Castorp encontrava as mesmas flores das quais Joachim, na sua amabilidade, lhe pusera no quarto alguns exemplares, então os últimos, para lhe dar as boas vindas: aquilégias e campânulas. Isto significava que o ciclo do ano estava a ponto de se fechar sobre si. Mas quantas variedades da vida orgânica não tinha brotado do solo, por entre a nova esmeraldina das vertentes e das pradarias: estrelas, cálices, campanas e outras formas menos regulares, enchendo com o seu perfume seco o ar abrasado pelo sol! Assomavam lícnides alpinas e amores-perfeitos selvagens em enormes quantidades, bem-me-queres, margaridas, prímulas amarelas e vermelhas – tudo muito maior e mais lindo do que Hans Castorp conhecia da planície, se é que ali prestara atenção à flora. Também se viam soldanelas balouçando as campanazinhas providas de pestanas, soldanelas azuis, purpúreas e rosadas, especialidade da região.
     O jovem ia colhendo essas flores graciosas; levava ramalhetes ao sanatório, e isso numa intenção muito séria; não o fazia apenas para adornar o quarto, senão para se dedicar, como se propusera, a estudos rigorosamente científicos. Adquirira alguns apetrechos florísticos, um manual de botânica geral, uma pazinha de tamanho adequado para desenterrar as plantas, um herbário e uma lupa forte. Com isso se punha a trabalhar na sacada, já em trajes de verão, num dos ternos que trouxera consigo quando da sua chegada, o que também evidenciava que o ano em breve completaria o giro.
     Havia flores frescas em diversos jarros sobre tudo que era mesa no interior do quarto, bem como na mesinha com a lâmpada, que se achava ao lado da excelente espreguiçadeira. Flores meio murchas, já um tanto débeis, mas ainda cheias de seiva, encontravam-se espalhadas pelo parapeito e pelo chão da sacada, enquanto outras, cuidadosamente desdobradas, iam sendo comprimidas por grandes pedras colocadas sobre duas folhas de mata-borrão, que lhes absorviam a umidade, para que Hans Castorp pudesse classificar os preparados ressequidos e achatados no seu álbum, onde os fixava com tiras de papel gomado. O jovem estava deitado, com os joelhos erguidos, uma perna sobre a outra, enquanto o manual aberto lhe repousava sobre o peito, com o dorso para cima, formando uma espécie de cumeeira. Mantinha o vidro espesso e polido da lupa entre os ingênuos olhos azuis e uma flor, cuja corola removera parcialmente com o canivete, a fim de poder melhor examinar o tálamo. Grandemente aumentado pela lente, o objeto parecia intumescer, assumindo extravagantes formas carnosas. Ali estavam as anteras a derramar da extremidade dos filamentos o pólen amarelo! Sobre o ovário eriçava-se o estilete canelado, e por meio de um corte longitudinal era possível ver o canalzinho por onde os grãos e os utrículos do pólen, boiando numa secreção açucarada, eram arrastados até a cavidade do gineceu. Hans Castorp contava, conferia e comparava; fazia estudos a respeito da estrutura e da posição das pétalas do cálice e da corola, tanto dos órgãos masculinos como femininos; confrontava aquilo que via com gravuras científicas e esquemáticas; verificava com satisfação a exatidão científica na estrutura das plantas que conhecia; passava, então, a determinar, com a ajuda de Lineu, aquelas cujos nomes ignorava, quanto à seção, ao grupo, à ordem, à série, à família e à espécie. Como dispusesse de muito tempo, conseguiu realizar alguns progressos na sistemática botânica, à base da morfologia comparativa. Abaixo da planta seca colada na página do herbário, escrevia numa bela caligrafia o nome latino que a ciência humanística galantemente lhe outorgara; a seguir acrescentava as peculiaridades características. Por fim mostrou tudo ao honrado Joachim, que ficou surpreso.
     À noite, Hans Castorp contemplava os astros. Apossara-se dele o interesse pelo transcurso do ano, posto que já tivesse assistido na terra a mais de vinte voltas em torno do sol, sem nunca se importar com essas coisas. Se nós mesmos involuntariamente nos servimos de termos como “equinócio da primavera”, fizemo-lo em conformidade com a maneira de pensar do nosso herói, levando em conta as suas ocupações presentes. Pois dessa espécie eram os termini que nos últimos tempos ele gostava de empregar, novamente pasmando o primo pelos seus conhecimentos especializados. 

– Agora o Sol se acha a ponto de entrar no signo de Câncer – disse, por exemplo, durante um passeio. – Você sabia disso? É o primeiro signo de verão do zodíaco; compreende? Depois, o Sol passará por Leão e por Virgem, em direção ao ponto do outono, um dos pontos equinociais, aonde chegará em fins de setembro, quando a sua posição voltará a coincidir com o equador do céu, como ocorreu recentemente em março, com a entrada do Sol no signo de Áries. 
– Isso me escapou – respondeu Joachim, um tanto carrancudo. – Que sabedoria é essa? Signo de Áries? Zodíaco? 
– Sim, senhor, o zodíaco, o círculo dos signos. As velhíssimas constelações: Escorpião, Sagitário, Capricórnio, etc. Não é possível não se interessar por isso. Há doze signos, como até você deve saber. Três para cada estação, os ascendentes e os descendentes, a órbita das constelações que o Sol perfaz. Acho isso grandioso! Imagine que os encontraram pintados no teto de um templo egípcio; era até um templo de Afrodite, nas proximidades de Tebas. Os caldeus também os conheciam; os caldeus, sabe? Aquele velho povo de magos, de origem árabe e semítica, sumamente versado em astrologia e em profecias. Também eles já estudaram o cinturão celeste, por onde se movimentam os planetas, e subdividiram-no nesses doze signos, os dodecatemoria, tais como nos foram transmitidos. É notável! Isso é a humanidade! 
– Agora você já diz “humanidade”, como Settembrini. 
– Sim, como ele, ou talvez de modo um pouco diferente. A gente deve aceitá-la assim como ela é, e de qualquer maneira trata-se de uma coisa impressionante. Penso nos caldeus com grande simpatia, quando fico deitado, olhando os planetas que eles também já conheciam. Verdade é que não conheciam todos. Urano foi descoberto só recentemente, por meio do telescópio, faz cento e vinte anos. 
– Recentemente? 
– Pois, sim, é o que chamo “recentemente”, em comparação com os três mil anos decorridos desde a época deles. Mas quando estou na minha cadeira, contemplando os planetas, esses três mil anos, por sua vez, transformam-se em “recentemente”, e eu me recordo intimamente dos caldeus, que também os viram e pensaram à sua maneira a respeito deles. E isso é a humanidade. 
– Muito bem. Você está revolvendo ideias grandiosas no seu cérebro. 
– Você diz “grandiosas” e eu as chamo “íntimas”. Depende do ponto de vista... Mas, quando o Sol entrar no signo de Libra, daqui a três meses, aproximadamente, os dias voltarão a ser mais curtos, de forma que o dia e a noite serão iguais. E mais tarde continuarão diminuindo, até a época do Natal, como você sabe. Mas não se esqueça de que os dias aumentarão novamente, enquanto o Sol passar pelos signos de inverno, Capricórnio, Aquário, Peixes, pois o ponto da primavera torna então a aproximar-se, como já o fez três mil vezes desde os tempos dos caldeus, e os dias prosseguirão aumentando, até daqui a um ano, quando chegar de novo o princípio do verão. 
– Claro! 
– Nada de claro! Em realidade, isso não passa de uma ilusão. Durante o inverno, aumentam os dias, e quando chega o mais longo, em 21 de junho, com o início do verão, já começa a descida, voltam a diminuir, enquanto nos encaminhamos para o inverno. Isso lhe pareceu “claro”, mas quem faz abstração dessa tal “clareza” passa por momentos de angústia e pavor e sente necessidade de agarrar-se em qualquer coisa firme. É como se algum espírito brincalhão tivesse disposto o mundo de tal forma que ao princípio do inverno começasse em realidade a primavera, e ao início do verão, o outono... Você tem a impressão de que lhe pregam uma peça, de que o fazem girar, mostrando-lhe a perspectiva de um ponto onde se dará meia volta. Falar-se em voltas, quando se anda num círculo! Ora, o círculo consta de um sem-número de pontos em que se muda de direção. As voltas não podem ser medidas. Não há rumo que persista, e a eternidade não é uma linha reta, mas um carrossel. 
– Pare com isso! 
– Festejos de solstício! – exclamou Hans Castorp. – Solstício de verão! Fogueiras acesas nas montanhas e cirandas dançadas de mãos dadas ao redor das labaredas erguidas! Nunca vi isso, mas ouvi dizer que é assim que fazem os homens primitivos, quando celebram a primeira noite de verão, com a qual se inicia o outono, essa hora meridiana e esse ponto culminante do ano, donde, então, parte a descida. Dançam, giram e exultam. De que exultam, na sua primitividade? Você é capaz de compreendê-los? Por que sentem essa alegria desenfreada? Será porque o caminho começa a descer, em direção às trevas, ou talvez porque subiram até esse momento e agora se acham em cima, no ponto da inflexão inevitável, que é a noite da plenitude do verão, o apogeu, mesclado de depressão e altivez? Chamo as coisas pelo seu nome, com as palavras que me ocorrem. É uma presunção melancólica ou uma melancolia presumida o que faz os homens primitivos exultar e dançar em torno das chamas. Agem assim por puro desespero, se você me permite essa expressão, em homenagem ao círculo falaz e à eternidade sem rumo duradouro, na qual tudo se repete. 
– Não permito nada – resmungou Joachim. – Por favor, não me meta nessa história! São assuntos meio estrambólicos esses com que você se ocupa à noite, durante o repouso. 
– Pois é. Não quero negar que você emprega o seu tempo de um modo mais vantajoso, quando estuda a sua gramática russa. Em breve dominará perfeitamente esse idioma. Olhe, rapaz, isso será muito útil para você, se um dia houver uma guerra, o que queira Deus não aconteça! 
– Queira Deus não aconteça? Você fala como um civil. A guerra é necessária. Sem guerras, o mundo apodreceria dentro de pouco tempo, como disse Moltke. 
– Bem, parece que ele tem tendência para isso – replicou Hans Castorp. Estava a ponto de falar novamente dos caldeus, que também haviam feito guerras e conquistado a Babilônia, se bem que fossem semitas e quase judeus. Mas, nesse momento, os primos repararam em dois senhores que, caminhando à sua frente, tinham sido interrompidos na sua conversa pelo som da voz de Hans Castorp e se voltavam para olhá-los.

     Passou-se isso na rua principal, entre a estância balneária e o Hotel Belvedere, durante o caminho de regresso à “aldeia”. O vale estendia-se engalanado, num vestido de cores suaves, claras e alegres. O ar era delicioso. Uma sinfonia de prazenteiros aromas de flores campestres enchia a atmosfera pura, seca, impregnada de um sol luzidio.
     Reconheceram Lodovico Settembrini, ao lado de um desconhecido. Parecia, porém, que o italiano, por sua vez, não os avistara ou não desejava encontrar-se com eles, pois desviou rapidamente o olhar e, gesticulando, absorveu-se na palestra com o companheiro; até se esforçou por avançar mais depressa. Mas, quando os primos, passando à direita dele, o saudaram com uma mesura humorística, fingiu surpresa enorme e extremamente agradável, exclamando “Sapristi!” e “Vejam só!”. No entanto, procurou dessa vez retardar o passo, para que os primos pudessem passar e distanciar-se, o que eles não compreenderam, ou melhor: não notaram, porque não viram nenhuma razão para isso. Sinceramente satisfeitos pelo reencontro depois de uma longa separação, detiveram-se a seu lado e apertaram-lhe a mão, informando-se sobre o seu estado de saúde e olhando, numa expectativa cortês, para o companheiro dele. Assim o forçaram a fazer o que, evidentemente, preferia evitar, mas o que se afigurava aos jovens a coisa mais natural e mais indicada do mundo, isto é, apresentá-los ao estranho. Fê-lo, finalmente, com uns gestos amáveis e com palavras joviais, quando o grupo já estava a ponto de se pôr em movimento, de maneira que os apertos de mão cruzaram-se diante do seu peito.
     O desconhecido, que tinha aproximadamente a idade de Settembrini, era, como ficaram sabendo, o vizinho dele, o outro inquilino do alfaiate Lukacek. Segundo entenderam os jovens, chamava-se Naphta. Era um homem pequeno, magro, escanhoado e de uma fealdade tão chocante que quase merecia ser qualificada de corrosiva; causou espanto aos primos. Tudo nele parecia cortante: o nariz adunco que dominava o rosto, a boca de lábios, finos e comprimidos, as grossas lentes dos óculos de aros leves, atrás dos quais apontavam os olhos de um cinzento claro, até mesmo o silêncio que o homem guardava, e que fazia supor que também a sua maneira de falar seria incisiva e lógica. Não usava chapéu, como era costume ali, e andava sem sobretudo; suas roupas eram, aliás, muito bem-feitas: um terno de flanela azul-escuro com listras brancas, de corte elegante, não exageradamente moderno, como verificaram os relances críticos e mundanos dos primos, que se encontraram com um olhar do pequeno Sr. Naphta, igualmente examinador, mas mais rápido e mais penetrante, que lhes deslizou pelos corpos. Não soubesse Lodovico Settembrini usar com tanta graça e dignidade o paletó hirsuto e as calças de tecido xadrez, sua pessoa teria destoado desfavoravelmente da aparência distinta dos seus companheiros. Tal não se dava, porém, de maneira alguma, porque as calças tinham sido passadas havia pouco, de modo que à primeira vista pareciam quase novas – obra de seu senhorio, como supuseram os primos. Se o feioso Naphta, pela qualidade e pela elegância mundana das suas roupas, achava-se mais próximo dos primos do que de seu vizinho, aproximavam-no deste e distanciavam-no dos jovens não somente a sua idade mais avançada, como também outra coisa que facilmente se deduzia da tez dos quatro homens: a dos primos era avermelhada e trigueira pelo efeito do sol, ao passo que a de Settembrini e de Naphta era pálida. No decorrer do inverno, o bronze do rosto de Joachim assumira um matiz ainda mais escuro, e o semblante de Hans Castorp luzia, rosado, sob a cabeleira loura. A ação dos raios, entretanto, não exercera efeito algum sobre a palidez latina do Sr. Settembrini, que formava um conjunto nobre com o bigode negro. E a pele do seu companheiro, embora de cabelos louros – eram de um louro cinzento, metálico e desbotado, e ele usava-os penteados para trás, alisados, desnudando a testa fugidia –, mostrava igualmente o tom baço e esbranquiçado das raças morenas. Dois dos quatro levavam bengala: Hans Castorp e Settembrini; Joachim não a apreciava, por razões militares, e Naphta, depois de apresentado, voltara imediatamente ajuntar as mãos atrás das costas. Eram mãos pequenas e delicadas, tais quais os pés, em harmonia com a sua estrutura. O fato de ele estar constipado e o modo débil, ineficaz como tossia, não causavam espécie.
     Aquele ligeiro quê de perplexidade ou de agastamento que Settembrini mostrara ao ver os jovens foi vencido por ele com grande elegância. O italiano exibiu um humor radiante e acompanhou a apresentação de toda sorte de chistes. Designou, por exemplo, o Sr. Naphta como princeps scholasticorum. Afirmou que a alegria “campeava magnificamente na sala do seu peito”, como dizia Aretino; e isso era devido à primavera, a primavera que lhe enchia o coração. Os senhores sabiam – continuou – que ele tinha muita coisa que objetar ao mundo dali de cima e que já desabafara frequentemente. Mas, glória a essa primavera alpina, que pelo menos passageiramente o reconciliava com todos os horrores dessa esfera! Nela não havia nada de tudo quanto a primavera da planície tinha de perturbador e de excitante. Nada de efervescência nas profundidades, nada de brumas carregadas de eletricidade! Só clareza, secura, aprazimento e graça austera! Isso harmonizava com seu gosto, era superbe.
 
continua pág 239...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Mais alguém (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Felizmente nos vimos bem depressa)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Primeiro

      Felizmente nos vimos bem depressa desembaraçados da filha de Françoise, que tivera de se ausentar por várias semanas. Aos conselhos habituais dados em Combray à família de um enfermo:

"Não vão tentar uma pequena viagem, mudança de ares, a volta do apetite, etc." ela acrescentara a ideia quase única que forjara especialmente, e que assim repetia todas as vezes que a víamos, sem se cansar, e como que para metê-la na cabeça dos outros:

- Ele deveria ter se tratado radicalmente desde o começo.

     Não preconizava um gênero de cura em vez de outro, desde que o tratamento fosse radical. Quanto a Françoise, ela via que eram dados poucos remédios à minha avó. Como, segundo ela, não servem senão para arruinar o estômago, sentia-se contente com isso, porém, mais do que contente, humilhada. Tinha no sul uns primos relativamente ricos cuja filha, adoecendo em plena adolescência, morrera aos vinte e três anos; durante alguns anos, o pai e a mãe se arruinaram na compra de remédios, em consulta a médicos diferentes, em peregrinações de uma estância termal a outra, até que ela morreu. Ora, isso parecia a Françoise, no caso desses parentes, uma espécie de luxo, como se eles tivessem tido um castelo ou cavalos de corrida. Eles próprios, por mais aflitos que estivessem, extraíam uma certa vaidade de tantas despesas. Não possuíam mais nada, nem principalmente o bem mais precioso, a filha, mas gostavam de repetir que tinham feito por ela tanto ou mais que as pessoas mais abastadas. Os raios ultravioleta, a cuja ação fora a infeliz submetida várias vezes por dia, durante meses, deixavam-nos especialmente lisonjeados. O pai, envaidecido em sua dor por uma espécie de glória, chegava de vez em quando a falar da filha como de uma estrela da ópera pela qual se tivesse arruinado. Françoise não era insensível a tanta encenação; a que rodeava a doença de minha avó lhe parecia meio pobre, boa para uma enferma num teatrinho provinciano.
     Houve um instante em que as perturbações da uremia alcançaram os olhos de minha avó. Durante alguns dias, ela não viu absolutamente nada. Seus olhos não eram de modo algum como os de um cego, permanecendo os mesmos. E só percebi que ela não enxergava por causa da estranheza de um certo sorriso de acolhimento que ela exibia logo que abriam a porta, até que lhe pegavam a mão para dar-lhe bom-dia, sorriso que principiava cedo demais e permanecia estereotipado em seus lábios, fixo, mas sempre de frente e tentando ser visto de todos os lados, porque já não dispunha do olhar para regulá-lo, indicar-lhe o momento, a direção, adaptá-lo, fazê lo variar de acordo com a mudança de lugar ou de expressão da pessoa que acabava de entrar, porque ficava sozinho, sem um sorriso dos olhos que desviasse um pouco dele a atenção do visitante, e que desse modo assumia, em sua falta de jeito, uma importância excessiva, dando a impressão de uma amabilidade exagerada. Depois, a vista voltou completamente; dos olhos, o mal nômade passou aos ouvidos. Durante alguns dias, minha avó ficou surda. E, como tivesse medo de ser surpreendida pela entrada súbita de alguém que não ouvira aproximar-se, a todo momento ela virava a cabeça bruscamente para a porta (embora deitada do lado da parede). Mas o movimento de seu pescoço era desajeitado, pois não é em poucos dias que nos acostumamos a essa transposição, senão de olhar os ruídos, ao menos de escutar com os olhos. Por fim as dores diminuíram, porém o embaraço da fala aumentou. Éramos obrigados a fazer minha avó repetir quase tudo o que dizia.
     Agora minha avó, sentindo que já não a entendiam, renunciava a pronunciar uma só palavra e permanecia imóvel. Quando me via, experimentava uma espécie de sobressalto como às pessoas a quem de súbito falta o ar, queria falar-me, mas só articulava sons inteligíveis. Então, dominada por sua impotência, deixava tombar a cabeça, esticava-se inteiramente na cama, a fisionomia grave, de mármore, as mãos imóveis sobre o lençol ou ocupando-se de uma ação puramente material, como a de enxugar os dedos com o lenço. Não queria pensar. Depois começou a ter uma agitação constante. Incessantemente desejava levantar-se.
     Mas nós a impedíamos o mais possível de fazê-lo, com receio de que ela se apercebesse de sua paralisia. Um dia em que a deixáramos sozinha por um instante, encontrei-a de pé, de camisola, tentando abrir a janela. Em Balbec, num dia em que tinham salvo, contra a sua vontade, uma viúva que se jogava ao mar, ela me dissera (talvez movida por um desses pressentimentos que por vezes lemos no mistério, aliás tão obscuro, de nossa vida orgânica, mas onde parece refletir-se o futuro) que não conhecia crueldade maior do que arrancar uma desesperada à morte que ela desejou e fazê-la regressar a seu martírio.
     Apenas tivemos tempo de segurar minha avó, que manteve com mamãe uma luta quase brutal; depois, vencida, sentada à força numa poltrona, abandonou seus intentos, deixou de lastimar-se, seu rosto se tornou impassível e ela pôs-se a catar cuidadosamente os pelos que em sua camisola deixara um cobertor que lhe havíamos jogado em cima.
     Seu olhar mudou completamente, muitas vezes inquieto, queixoso, desvairado. Já não era o seu olhar de outrora, era o olhar impertinente de uma velha que está variando.
     De tanto lhe perguntar se queria ser penteada, Françoise acabou por se convencer de que a pergunta vinha de minha avó. Trouxe escovas, pentes, água-de-colônia e um peignoir. Dizia: 

- Isto não pode cansar a Sra. Amédée; por mais fraca que a gente esteja, sempre pode ser penteada. - Isto é, nunca estamos demasiadamente fracos para que outra pessoa não possa, no que lhe diz respeito, pentear-nos.

     Mas, quando entrei no quarto, vi entre as mãos cruéis de Françoise, encantada como se estivesse a ponto de devolver a saúde à minha avó, sob a desolação de uma velha cabeleira que não tinha forças para suportar o contato do pente, uma cabeça que, incapaz de manter a posição que lhe fixavam, tombava numa vertigem contínua, em que o esgotamento das forças se alternava com a dor. Vi aproximar-se o momento em que Françoise ia acabar e não ousei apressá-lo dizendo:

"Basta", com medo de que me desobedecesse. Mas, em compensação, precipitei-me quando, para que minha avó visse se estava bem penteada, Françoise, inocentemente feroz, lhe chegou um espelho. Primeiro, fiquei feliz em poder arrancá-lo a tempo de suas mãos, antes que minha avó, de quem havíamos cuidadosamente afastado qualquer espelho, tivesse inadvertidamente visto uma imagem de si própria que não podia conceber. Mas infelizmente, quando, um momento após, inclinei-me para ela, a fim de beijar aquela testa que tanto se cansara, ela me encarou com ar atônito, receoso, escandalizado: não me havia reconhecido.

     Segundo o nosso médico, era um sintoma de que aumentava a congestão cerebral. Era preciso aliviá-lo. Cottard hesitava. Françoise esperou um instante que lhe aplicassem ventosas "clarificadas". Procurou-lhe os efeitos num dicionário, mas não pôde encontrá-los. Mesmo que dissesse "escarificadas" em vez de "clarificadas", nem assim teria encontrado tal adjetivo, pois não o procurava no ''e'' nem no ''c''- de fato, ela dizia "clarificadas", mas escrevia (e conseqüentemente julgava que era escrito) "esclarificadas". Cottard, o que a decepcionou, preferiu as sanguessugas, mas sem muita esperança. Quando, horas depois, entrei no quarto de minha avó, presas à sua nuca, às suas têmporas, às suas orelhas, as pequenas serpentes negras se estorciam na cabeleira ensangüentada, como as da Medusa. Mas, em seu rosto pálido e apaziguado, inteiramente imóvel, vi totalmente abertos, luminosos e calmos, seus belos olhos de outrora, talvez ainda mais carregados de inteligência do que antes da enfermidade, porque, visto que ela não podia falar, não devia mexer-se, era só a seus olhos que confiava o pensamento, o pensamento que ora ocupa em nós lugar imenso, oferecendo-nos tesouros insuspeitados, ora parece estar reduzido a nada e depois renascer como que por geração espontânea, graças a algumas gotas de sangue que são retiradas seus olhos doces e líquidos como o óleo em que de novo ardia o fogo aceso, iluminando diante da enferma o universo reconquistado. Sua calma não era mais o sossego do desespero, mas da esperança. Compreendia que estava melhor, queria ser prudente, não se mover, e fez-me apenas o dom de um belo sorriso para que eu soubesse que se sentia melhor, e me apertou levemente a mão.
     Sabia eu que desgosto causava à minha avó a vista de certos animais e, com mais forte razão, o ser tocada por eles. Sabia que era em consideração a uma utilidade superior que tolerava as sanguessugas. Assim, Françoise me exasperava ao repetir-lhe com esses risinhos que a gente tem com as crianças que desejamos fazer brincar: 

- Oh, esses bichinhos que estão correndo sobre a senhora! - 

     Além do mais, aquilo era tratar sem respeito a nossa doente, como se ela tivesse voltado a ser criança. 
     Porém minha avó, cuja fisionomia assumira a calma bravura de um estoico, nem sequer parecia ouvi-la.
     Infelizmente, logo que foram retiradas as sanguessugas, a congestão se tornou cada vez mais grave. Surpreendeu-me que, naquele momento em que minha avó estava tão mal, Françoise desaparecesse a todo instante. É que havia encomendado um vestido de luto e não queria fazer esperar a costureira. Na vida da grande maioria das mulheres, tudo, mesmo o desgosto mais profundo, redunda numa questão de prova de roupa.
     Alguns dias depois, enquanto eu dormia, minha mãe veio me chamar no meio da noite. Com a atenção carinhosa que, nas grandes ocasiões, as pessoas acabrunhadas por uma dor profunda evidenciam mesmo para com os pequenos incômodos alheios, ela me disse: 

- Perdoa-me vir perturbar o teu sono. 
- Não estava dormindo - respondi, acordando.

     Dizia-o de boa-fé. A grande modificação que provoca em nós o despertar é menos o fato de nos introduzir na vida clara da consciência do que de nos fazer perder a lembrança da luz um tanto mais nuançada em que repousava a nossa inteligência, como no fundo opalino das águas. Os pensamentos meio velados, sobre os quais ainda há pouco deslizávamos, conduziam em nós um movimento perfeitamente suficiente para que pudéssemos designá-los com o nome de vigília. Mas o despertar então encontra uma interferência de memória. Pouco depois, denominamo-lo de sono porque não nos lembramos mais dele. E quando reluz essa brilhante estrela, que, no momento do despertar, ilumina por detrás de quem dorme o seu sono inteiro, ela o faz crer, durante alguns segundos, que não se tratava de sono e sim de vigília. Na verdade, estrela cadente que, com sua luz, transporta a existência mentirosa, mas também os aspectos do sono, e só permite ao que desperta dizer consigo:

"Dormi."

     Com uma voz tão doce que parecia recear me fazer mal, minha mãe me perguntou se não me cansaria muito levantar-me, e, acarinhando-me as mãos: 

- Meu pobre menino, só poderás contar agora com teu papai e tua mamãe.  

     Entramos no quarto. Curvada em semicírculo sobre a cama, um ser diverso que não a minha avó, uma espécie de animal que se tivesse disfarçado com seus cabelos e deitado em seus lençóis, arquejava e se lamuriava, sacudindo as cobertas com suas convulsões. As pálpebras estavam fechadas, e era porque fechavam mal, antes que porque se abrissem, que deixavam ver um canto da pupila, velado, remelento, refletindo a obscuridade de uma visão orgânica e de um sofrimento interno. Toda essa agitação não se dirigia a nós, que ela não via nem conhecia.
     Mas, se era apenas um animal que ali se debatia, onde estava a minha avó? No entanto, a gente reconhecia o formato de seu nariz, agora desproporcionado em relação ao rosto, mas junto ao qual continuava um sinalzinho, e sua mão que afastava as cobertas com um gesto que outrora indicava que as cobertas a incomodavam e que agora não significava coisa alguma.
     Mamãe me pediu que trouxesse um pouco d'água com vinagre para molhar a testa de minha avó. Era a única coisa que a refrescava, segundo mamãe, que a via tentar afastar os cabelos. Mas da porta fizeram-me sinal que voltasse. A nova de que minha avó estava nas últimas espalhara-se imediatamente pela casa. Um desses "extras" que mandam chamar nos períodos excepcionais para aliviar o trabalho dos criados, o que transforma as agonias em algo semelhante a festas, acabava de fazer entrar o duque de Guermantes, o qual, parado na antessala, perguntava por mim; não pude fugir-lhe. 

- Acabo de saber, meu caro senhor, essas notícias macabras. Gostaria de apertar a mão de seu pai em sinal de condolências.

     Desculpei-me com a dificuldade de incomodá-lo naquele momento. O Sr. de Guermantes caía como no instante em que se parte de viagem. Porém sentia de tal modo a importância da cortesia que estava nos fazendo, que isso lhe ocultava o resto e ele queria absolutamente entrar no salão. Em geral, tinha o hábito de cumprir integralmente as formalidades com que decidira honrar alguém, e pouco se importava se as malas fossem feitas ou que o esquife estivesse pronto. 

- Mandaram chamar Dieulafoy? Ah, é um grave erro. E se me tivessem dito, ele teria vindo por minha causa; não me recusa nada, embora se tenha negado a ir à casa da duquesa de Chartres. Como vêem, coloco-me decididamente acima de uma princesa de sangue real. Aliás, diante da morte, somos todos iguais - acrescentou, não para me convencer de que minha avó se tornaria sua igual, mas tendo talvez percebido que uma conversação prolongada, relativamente a seu poder sobre Dieulafoy e à sua preeminência sobre a duquesa de Chartres, não seria de bom tom. De resto, seu conselho não me espantava. Sabia que em casa dos Guermantes citava-se com frequência o nome de Dieulafoy (apenas com um pouco mais de respeito) como o de um "fornecedor" sem rival. E a velha duquesa de Mortemart, nascida Guermantes (impossível compreender por que razão, quando se trata de uma duquesa, dizem quase sempre: "a velha duquesa de" ou, ao contrário, com um ar fino e Watteau, se ela é jovem, "a duquesinha de"), preconizava quase mecanicamente e com um piscar de olhos nos casos graves:

"Dieulafoy, Dieulafoy", como se tivessem necessidade de um sorveteiro "Poiré Blanche" ou, para os biscoitos, "Rebattet, Rebattet". Mas eu ignorava que meu pai acabava de mandar chamar precisamente Dieulafoy.

     Nesse momento, minha mãe, que esperava com impaciência os balões de oxigênio que deveriam tomar mais fácil a respiração de minha avó, entrou ela mesma na antessala, onde não imaginava encontrar o Sr. de Guermantes. Gostaria de tê-lo escondido em qualquer lugar. Porém, persuadido de que nada era mais essencial nem lisonjeiro para minha mãe, nem mais indispensável para manter sua reputação de perfeito cavalheiro, ele me pegou violentamente pelo braço e, apesar de eu me defender como contra uma violação, repetindo:

"Cavalheiro, Cavalheiro, Cavalheiro", arrastou-me em direção a mamãe, dizendo-me: - Quer me fazer a grande honra de me apresentar à senhora sua mãe? - derrapando um pouco na palavra mãe. E de tal modo achava que a honra era somente dela, que não podia evitar um sorriso, fazendo uma cara solene. Não pude deixar de nomeá-lo, o que logo deslanchou, de sua parte, reverências e pulinhos de dança, e ele ia recomeçar o cerimonial completo da saudação. Pensava até em travar conversa, porém minha mãe, mergulhada em sua dor, disse-me que voltasse depressa e nem sequer respondeu às frases do Sr. de Guermantes, que, esperando ser recebido como visita e vendo pelo contrário que o deixavam sozinho na antessala, teria acabado por sair se, no mesmo instante, não tivesse visto entrar Saint-Loup, que chegara naquela manhã a Paris e acorrera em busca de novidades.

- Ah, esta é muito boa! - gritou alegremente o duque segurando o sobrinho pela manga, que quase lhe arrancou, sem se preocupar com a presença de minha mãe que voltava a atravessar a antessala. Saint-Loup não estava aborrecido, creio, apesar de sua mágoa sincera, nem evitava estar comigo, considerando as suas disposições a meu respeito. Foi-se, arrastado pelo tio que, tendo algo de muito importante para lhe dizer, e que quase fora a Doncieres com essa intenção, não cabia em si de contente por se ter poupado tamanho incômodo. 
- Ah, se me tivessem dito que bastaria atravessar o pátio e te encontraria aqui, teria julgado que era uma grande piada! Como diria o teu camarada Bloch, é de matar. - E, afastando se com Robert, a quem segurava pelo ombro: - Dá no mesmo repetia -, bem se vê que acabo de tocar em corda de enforcado ou coisa parecida; tenho uma sorte bárbara! - 

     Não é que o duque de Guermantes fosse mal-educado, muito pelo contrário. Mas era desses homens incapazes de se pôr no lugar dos outros, desses homens semelhantes nisso à maioria dos médicos e coveiros, e que, depois de assumir uma fisionomia solene e dizer:

"São momentos muito penosos", e abraçar-nos e aconselhar-nos o repouso, só consideram uma agonia ou um enterro como uma reunião mundana mais ou menos restrita, em que, com uma jovialidade por um instante recalcada, procuram com o olhar a pessoa a quem podem falar de suas ninharias, pedir que os apresentem a uma outra, ou oferecer um lugar no carro para levá-las de volta. O duque de Guermantes, felicitando-se pelos "bons ventos" que o haviam impelido para o sobrinho, ficou tão espantado com a acolhida, todavia tão natural, de minha mãe que mais tarde declarou que ela era tão desagradável quanto cortês era meu pai, que ela tinha "ausências", durante as quais não parecia sequer ouvir as coisas que lhe diziam e que, em sua opinião, não estava em seu perfeito juízo ou talvez não o tivesse de todo. Por fim consentiu, pelo que me disseram, em atribuir aquilo em parte às "circunstâncias" e declarar que minha mãe lhe parecera muito "afetada" pelo acontecimento. Mas guardava ainda nas pernas o restante das saudações e reverências para trás que o haviam impedido de executar até o fim, e aliás percebia tampouco o que era o desgosto de minha mãe que me perguntou, na véspera do enterro, se eu não procurava distraí-la.

     Um cunhado de minha avó, que era religioso e a quem eu não conhecia, telegrafou da Áustria, onde estava o prior de sua ordem, e, tendo obtido autorização por favor excepcional, veio naquele dia. Acabrunhado de tristeza, lia ao pé da cama textos de rezas e meditações, sem no entanto desviar da enferma os olhos pequeninos. Num momento em que minha avó estava sem sentidos, a vista da tristeza daquele padre me fez mal, e o encarei. Pareceu surpreender-se com minha piedade e então ocorreu algo singular. Juntou as mãos sobre o rosto como um homem absorvido em dolorosa meditação, mas, compreendendo que eu ia desviar os olhos dele, verifiquei que deixara os dedos um pouco separados. E, no momento em que meu olhar o deixou, percebi que seu olho agudo se aproveitara daquele abrigo das mãos para observar se minha dor era sincera. Estava emboscado ali como na sombra de um confessionário. Percebeu que o estava observando e logo fechou hermeticamente a grade dos dedos que deixava entreaberta. Mais tarde voltei a vê-lo, e nunca se cuidou entre nós daquele instante. Ficou tacitamente combinado que eu não notara que ele me espiava. No padre, como no alienista, há sempre um tanto de juiz de instrução. Aliás, qual o amigo, por mais caro que seja, em cujo passado, em comum com o nosso, não tenha havido esses minutos em que achamos mais cômodo persuadir-nos de que ele os esqueceu? 
     O médico deu uma injeção de morfina e, para tornar menos penosa a respiração, pediu balões de oxigênio. Minha mãe e o doutor os seguravam nas mãos; logo que um terminava, passava-se a outro. Eu saíra um momento do quarto. Ao voltar, achei-me como que diante de um milagre. Acompanhada em surdina por um murmúrio incessante, minha avó parecia dirigir-nos um longo cântico feliz que preenchia o quarto, rápido e musical. Logo compreendi que esse cântico não era menos inconsciente, que era tão puramente mecânico feito o arquejar de ainda há pouco. Talvez refletisse em fraca medida algum bem-estar causado pela morfina. Resultava, sobretudo, como o ar já não passava da mesma maneira pelos brônquios, de uma mudança de registro da respiração. Aliviado graças ao duplo efeito do oxigênio e da morfina, o sopro de minha avó já não gemia nem se debatia, porém vivo, leve, deslizava, patinando, para o fluido delicioso. Talvez o hálito, insensível como o do vento na flauta de um caniço, se misturasse, nesse cântico, a alguns desses suspiros mais humanos que, liberados pela aproximação da morte, fazem acreditar em impressões de sofrimento ou de felicidade naqueles que já não sentem mais nada, e vinham acrescentar um acento mais melodioso, mas sem mudar de ritmo, a essa longa frase que se elevava, subia ainda, e depois recaía, para erguer-se de novo do peito aliviado em perseguição ao oxigênio. Depois, chegado assim tão alto, prolongado com tanta força, o cântico, mesclado a um murmúrio de súplicas na volúpia, parecia deter-se em certos momentos, exatamente como uma fonte esgotada. 
     Françoise, quando possuída de grande desgosto, experimentava a necessidade bem inútil de exprimi-lo, mas não tinha a arte tão simples. Julgando minha avó inteiramente perdida, eram as suas próprias impressões que se esforçava para nos dar a conhecer. E só sabia repetir: 

- Isso me dá uma coisa... no mesmo tom com que dizia quando tomava muita sopa de couve: - Tenho um peso no estômago o que, em ambos os casos, era mais natural do que ela parecia julgar. Tão fracamente traduzido, seu desgosto não era menos intenso, agravado pelo aborrecimento de que sua filha, retida em Combray (que a jovem parisiense denominava agora a cambrousse e onde se sentia transformar-se pétrousse), não pudesse verossimilmente voltar para a cerimônia fúnebre que Françoise sentia dever ser algo magnífico. Como sabia que éramos pouco expansivos, convocara previamente Jupien para todas as tardes da semana. Sabia que ele não estaria livre à hora do enterro. Queria ao menos, na volta, contar-lhe.  

     Fazia várias noites que meu pai, meu avô e um de nossos primos velavam e não saíam mais da casa. Seu devotamento contínuo acabava por assumir uma máscara de indiferença, e a interminável ociosidade em torno dessa agonia fazia-os dizerem as mesmas frases que são inseparáveis de uma estada prolongada num vagão de estrada de ferro. Além do mais, esse primo (sobrinho de minha tia-avó) causava-me tanta antipatia quanta estima merecia e geralmente obtinha. Conjurava-no sempre com as perífrases em uso, como as almas do outro mundo, se assombrava ao menor ruído, dizia: 

- Parece-me que é ela. -

     Mas, em vez de terror, era uma doçura infinita o que essas palavras despertavam em minha mãe, que desejaria tanto que os mortos voltassem, para às vezes ter a mãe a seu lado.
     Voltando agora àquelas horas de agonia: 

- Sabe o que é que as irmãs dela nos telegrafaram? - perguntou meu avô a meu primo. 
- Sim, Beethoven, disseram-me; é de se pôr num quadro, e isso não me espanta. 
- Minha pobre mulher que as amava tanto - disse meu avô enxugando uma lágrima. - Não devemos lhes querer mal. São doidas varridas, eu sempre disse. Que está acontecendo, não dão mais oxigênio? 

     Minha mãe disse: 

- Mas então mamãe vai recomeçar a respirar mal. 

     O médico respondeu: 

- Oh não, o efeito do oxigênio vai durar ainda um bom tempo; vamos recomeçar daqui a pouco.

     Parecia-me que não se teria dito isso no caso de uma agonizante e que, se esse bom efeito deveria durar, é que tinham algum poder em sua vida. O silvo do oxigênio cessou durante alguns momentos. Mas a queixa feliz da respiração continuava a jorrar sempre, leve, atormentada, incompleta, recomeçando sem cessar. Por instantes, parecia que tudo estava acabado, o sopro se extinguia, seja por essas mesmas mudanças de oitavas que há na respiração de uma pessoa que dorme, seja por uma intermitência natural, um efeito da anestesia, o progresso da asfixia, alguma fraqueza do coração. O médico voltou a tomar o pulso de minha avó, mas, como se um afluente viesse trazer seu tributo à corrente ressequida, já um novo canto se harmonizava à frase interrompida. E esta continuava em outro diapasão com o mesmo impulso inesgotável.
     Quem sabe se, mesmo que minha avó disso não tivesse consciência, tantos estados ternos e venturosos não escapavam dela agora como esses gases mais leves contidos durante longo tempo? Dir-se-ia que tudo o que ela tinha para nos contar se expandia, que era a nós que se dirigia com aquela prolixidade, aquela pressa, aquela efusão.
     Ao pé da cama, convulsa por todos os haustos daquela agonia, não chorando mais, mas às vezes inundada em lágrimas, minha mãe apresentava a desolação sem pensamento de uma folhagem que a chuva açoita e o vento revolve. Mandaram-me enxugar os olhos antes de ir beijar a minha avó. 

- Mas eu julgava que ela não via mais - observou meu pai. 
- Nunca se sabe replicou o doutor.

     Quando meus lábios a tocaram, as mãos de minha avó se agitaram, ela foi toda percorrida por um longo tremor, seja por reflexo, seja porque certas afeições tenham a sua hiperestesia que reconhece, através do véu da inconsciência, aquilo que elas quase não necessitam de sentidos para amar. De súbito, minha avó se ergueu a meio, fez um esforço violento, como alguém que defende sua vida. Françoise não pôde resistir àquela cena e rompeu em soluços. Lembrando-me do que dissera o médico, tentei fazê-la sair do quarto. Nesse momento, minha avó abriu os olhos. Precipitei-me para Françoise a fim de lhe ocultar as lágrimas, enquanto meus pais falavam à doente.
     O rumor do oxigênio silenciara, o médico se afastou da cama.
     Minha avó estava morta.
 

Edgar Allan Poe - Contos: O coração delator

Edgar Allan Poe - Contos


O coração delator
Título original: The Tell-Tale Heart
Publicado em 1842

      É verdade! nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso fui e sou; mas por que motivo hão de dizer que eu sou doido? A doença havia apurado os meus sentidos, não os havia destruído, não os havia embotado. O que em mim suplantava todos os mais sentidos era a acuidade do ouvido. Ouvia tudo o que ocorria, quer fosse no céu, quer fosse na terra. Ouvia até muitas coisas que ocorriam no inferno. Por que dizem, então, que eu estou doido? Escutem! e observem a serenidade, a sã lucidez com que lhes posso contar a história toda.
     É impossível dizer como foi que esta ideia primeiro penetrou no meu cérebro; mas uma vez concebida, obsidiou-me dia e noite. Não existia móbil. Não existia paixão. Eu era amigo do velho. Nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não lhe cobiçava o ouro. Creio que foi o olho! sim, foi isso! Tinha um olho de abutre — um olho de um azul pálido, coberto de uma membrana. Sempre que me fitava, gelava-me o sangue; e assim, a pouco e pouco — muito lentamente — foi-se gerando em mim a decisão de matar o velho como o único modo de me libertar para sempre daquele olho maldito.
     Agora aqui é que está o nó da questão. Julgais-me doido. Os doidos nada sabem. Mas devíeis-me ter visto. Devíeis ter visto o tino com que procedi — a cautela — a previsão — a dissimulação com que operei! Eu nunca fora mais afável para com o velho do que durante a semana que precedeu o seu assassínio.
     Todas as noites, cerca da meia-noite, desandava o fecho da sua porta e abria-a — oh, com que extremos de cuidado! E então, depois de abrir uma estreita fresta, introduzia uma lanterna de furta-fogo, tendo o cuidado de evitar que a sua luz pudesse ser vista, e depois enfiava a cabeça. Oh, havíeis de rir, se vísseis quão astutamente eu enfiava a cabeça pela fresta da porta! Movia-a lentamente — muito lentamente — afim de não perturbar o sono do velho. Levava-me uma hora a passar a cabeça pela exígua abertura, até o poder ver estendido na cama. Ah, teria um doido procedido com todos estes cuidados? E depois, quando já tinha a cabeça toda dentro do quarto, apagava a lanterna cautelosamente — muito devagarinho, de modo que só um ténue raio ficasse incidindo sobre o olho de abutre.
     Fiz isto durante sete longas noites — sempre à mesma hora, à meia noite — mas sempre encontrei fechado o olho; era assim impossível levar a cabo o meu plano; pois o que me incomodava, o que se tornava para mim incomportável, não era o homem, mas sim o olho maldito!
      Todas as manhãs, ao romper do dia, entrava com todo o descaro no quarto dele, e falava-lhe afoitamente, tratando-o pelo seu nome com todo o carinho e perguntando-lhe como passara a noite: Vedes, pois, que era mister que ele fosse um homem muito perspicaz para suspeitar de que todas as noites, ao bater das doze, eu espreitava o seu dormir!
      Na oitava noite fui mais cauteloso do que de costume ao abrir a porta. O ponteiro de um relógio é mais ligeiro do que era a minha mão. Antes daquela noite nunca eu sentira o alcance das minhas forças — da minha sagacidade. Mal podia exprimir a minha sensação de triunfo! Pensara que eu me achava ali, abrindo a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava o que eu secretamente fazia ou pensava!
      Ri-me francamente, com ufania e regozijo, a esta ideia; e talvez ele me ouvisse, pois que se mexeu na cama subitamente, como que sobressaltado. Pensais talvez que recuei — mas não! O quarto estava escuro como breu, mergulhado em trevas espessas (pois, por medo dos gatunos, as portadas das janelas estavam solidamente aferrolhadas) e, por isso, eu sabia que ele não podia ver a abertura da porta: continuei, portanto, a abri-la de mansinho, mas com mão firme.
     Já tinha a cabeça dentro e ia abrir a lanterna quando me escorregou o polegar no puxador da porta, e o velho deu um pulo na cama, exclamando: 

— Quem anda aí?

     Quedei-me imóvel e em silêncio. Durante uma hora não mexi um músculo, e nesse lapso de tempo não o ouvi deitar-se de novo. Continuava sentado na cama, de ouvidos à escuta — tal qual como eu, que passei noites após noites escutando os ralos da parede.
     Daí a pouco ouvi um leve gemido, que eu sabia ser o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de queixume — oh, não! — era o som débil, sumido, que sobe do âmago da alma empolgada pelo terror. Eu conhecia bem esse som. Muitas noites, precisamente ao cair da duodécima badalada, quando todo o mundo dormia, ele se escoou do meu próprio peito, tornando mais profundo ainda, com o seu temeroso eco, os terrores que me desvairavam. Repito: conhecia-o muito bem. Eu sabia o que o homem sentia e tinha pena dele, e, todavia, no íntimo do coração exultava. Sabia que ele ficava acordado desde que ouvira o primeiro rumor, quando se mexera na cama. Os seus receios foram-se avolumando. Tentara persuadir-se de que eram infundados, mas não pudera. Dissera repetidas vezes consigo mesmo: « é apenas o vento na chaminé, é só um rato a atravessar o quarto» ou « é apenas o raspar de asas de um grilo» . Sim, ele tentara confortar-se com estas hipóteses: mas achara tudo baldado. Tudo baldado; porque a Morte, aproximando-se dele, pairava na sua frente com a sua negra sombra, e envolvia a vítima. E era a lúgubre influência da invisível sombra que o fazia sentir — embora nada visse nem ouvisse — sentir a presença da minha cabeça a dentro do quarto...
     Tendo esperado muito tempo, muito pacientemente, sem o ouvir deitar-se, resolvi abrir uma estreitíssima fenda na lanterna. Depois abri-a — não podeis imaginar com que requintes de cautela — até que, finalmente, um ténue raio, semelhante ao fio de uma teia de aranha, atravessou a fenda e incidiu em cheio sobre o olho de abutre.
     Estava aberto — arregalado — e eu fiquei furioso ao fitá-lo. Via-o com perfeita nitidez — todo azul, velado de uma membrana hedionda que me gelou até à medula; eu, porém, nada mais podia ver do rosto ou do corpo do velho: pois dirigira o raio, como que por instinto, precisamente sobre o ponto maldito.
      E agora não vos disse eu já que aquilo que vós erradamente tomais por loucura nada mais é do que hiperagudeza dos sentidos? — agora, chegava-me aos ouvidos um ruído abafado, soturno, acelerado, semelhante ao que faz um relógio embrulhado em algodão. Eu conhecia muito bem esse ruído. Era o palpitar do coração do velho. Multiplicou a minha fúria, do mesmo modo que o rufar do tambor espicaça a coragem do soldado.
      Apesar de tudo, porém, refreei-me e mantive-me quieto e em silêncio. Quase nem respirava.
      A lanterna imobilizara-se-me na mão. Tomei a peito ver com que firmeza podia deter o raio sobre o olho. Entrementes, o diabólico palpitar do coração redobrava de intensidade. Batia cada vez com mais força e mais depressa. O terror do velho devia ser extremo! As pancadas eram cada vez mais fortes, cada vez mais fortes, reparais bem? Já vos disse que sou nervoso: sou-o na verdade. E agora, àquela hora avançada da noite, no silêncio pavoroso daquela velha casa, um ruído assim tão estranho excitava-me até às raias de um terror incoercível. Todavia, consegui reprimir-me por mais uns minutos. As palpitações, porém, continuavam num crescendo de intensidade! Parecia-me que o coração do velho ia rebentar.
     Apoderou-se de mim então uma nova ansiedade — e se os vizinhos ouvissem aquelas insólitas pancadas?
      Chegara a hora do velho! Com um berro de raiva dei a força toda à lanterna e saltei para dentro do quarto. Agitou-o todo um tremor — mas só um. Num instante arrastei-o para o soalho, e atirei-lhe para cima a pesada cama. Sorri então alegremente, ao verificar que tudo estava consumado.
     Durante muitos minutos, porém, o coração continuou a bater com um som abafado. Isto, no entanto, não me incomodava: não se podia ouvir do outro lado da parede. Por fim cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. Sim, estava rígido como pedra, morto e bem morto. Pousei a mão sobre o coração e conservei-a aí uns poucos de minutos. Não se percebia a mais ténue palpitação. Não havia que duvidar: estava morto! Aquele olho nunca mais me atormentaria.
     Se ainda me tendes por doido, mudareis de parecer, logo que eu vos descreva as ponderadas precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite ia avançando e eu apressava-me na minha tarefa, mas em silêncio. A primeira coisa que fiz foi esquartejar o cadáver. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.
     Depois arranquei três tábuas do soalho do quarto e sepultei tudo entre os barrotes. Tornei a colocar as tábuas tão habilmente, tão atiladamente, que não havia olho humano — nem mesmo o dele — que pudesse lobrigar fosse o que fosse de anormal. Nada havia que lavar — não havia mancha nenhuma. O sangue caíra todo numa bacia que eu tivera a prudência de utilizar — ah! ah!
     Quando terminei todo este trabalho, eram quatro horas, e ainda estava tão escuro como se fora meia noite. Ao bater a última badalada no sino ouvi que alguém batia à porta da rua.
      Desci para abri-la, serenamente, afoitamente — pois que tinha eu agora que recear?
     Entraram três homens, que se apresentaram, com toda a delicadeza, como agentes de polícia. Um vizinho ouvira um grito durante a noite; levantaram-se suspeitas de que algum crime se houvesse perpetrado, e eles, os agentes, haviam sido incumbidos de passar uma busca ao prédio.
     Sorri — pois que havia eu de temer? Dei as boas-vindas aos recém chegados e franqueei-lhes a casa. O grito, expliquei, fora eu próprio quem em sonhos o soltara. O velho, acrescentei, achava-se ausente na aldeia. Acompanhei os visitantes por toda a casa. Pedi-lhes que examinassem — que examinassem bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele.
      Mostrei-lhes os seus tesouros, arrumados, intactos. No entusiasmo da minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os a descansarem das suas fadigas, enquanto eu, na desvairada audácia do meu perfeito triunfo, colocava a minha cadeira mesmo no sítio por baixo do qual jazia o cadáver da minha vítima.
     Os agentes estavam satisfeitos. As minhas maneiras haviam-nos convencido. Eu estava perfeitamente à minha vontade. Eles estavam sentados, e, enquanto eu lhes respondia jovialmente, conversavam sobre coisas familiares.
      Passado pouco tempo, porém, senti-me empalidecer e, no meu íntimo, desejei que eles se fossem já embora. Doía-me a cabeça e parecia-me ter uma zoeira nos ouvidos: eles, porém, continuavam sentados e não cessavam de cavaquear.
     A zoeira nos ouvidos tornava-se agora mais nítida: falei mais alto a fim de me libertar daquela sensação; mas o ruído continuava e era cada vez mais nítido, até que, por fim, percebi que o ruído não residia dentro dos meus ouvidos.
     Nesta conjuntura, fiquei, sem dúvida, muito pálido; mas falei com mais fluência e engrossei a voz. O ruído, porém, intensificava-se — e que podia eu fazer? Era um ruído abafado, soturno, acelerado, muito semelhante ao que faz um relógio embrulhado em algodão.
     Arquejava, ofegante — e, todavia, os polícias nada ouviam. Falei mais depressa, mais entusiasticamente; o ruído, porém, aumentava de intensidade. Levantei-me e pus-me a discutir sobre frioleiras, num tom de voz forte e com gestos violentos. Por que é que eles se não iam embora? Comecei a andar de uma banda para outra, batendo pesadamente com os pés no chão, fingindo-me enfurecido pelas considerações dos homens — mas o ruído aumentava, aumentava sempre...
      Ó meu Deus! que podia eu fazer? Espumei, disparei, praguejei. Agarrei na cadeira em que estivera sentado e pus-me a raspar com ela as tábuas do soalho, mas o ruído suplantava tudo e cada vez se ouvia mais. Era cada vez mais forte — cada vez mais forte, cada vez mais!
      E, no entanto, os homens continuavam a conversar prazenteiramente e sorriam. Era possível que eles não ouvissem? Deus omnipotente! — não, não! Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! — estavam zombando do meu horror! era o que eu pensava, e é o que penso. Mas tudo, fosse o que fosse, era preferível àquela agonia! Tudo era mais tolerável do que aquela irrisão!
     Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que tinha de gritar ou de morrer! e então as pancadas continuavam — escutai! — a bater cada vez com mais força! cada vez com mais força!

— Patifes! bradei então, no auge do desespero, não dissimulem mais! Confesso o crime! Arranquem essas tábuas! aqui, aqui! — vejam, são as palpitações do seu hediondo coração! 

continua na página 409...
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Edgar Allan Poe - Contos: O coração delator
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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.