quarta-feira, 18 de junho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.4)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

continuando... 

     2.4 - O Antissemitismo Esquerdista 
          Se não fossem as assustadoras consequências do antissemitismo em nosso próprio tempo, poderíamos ter dado menor atenção ao seu desenvolvimento na Alemanha. Como movimento político, o antissemitismo do século XIX pode ser melhor estudado na França, onde, por quase uma década, dominou o cenário político. Como força ideológica, concorrendo com outras ideologias mais respeitáveis, atingiu sua forma mais eloquente na Áustria.
     Em parte alguma haviam os judeus prestado tão grandes serviços ao Estado como na Áustria, onde numerosas nacionalidades conviviam conjugadas apenas pela Monarquia Dual dos Habsburgos, e onde o banqueiro nacional judeu, em contraste com o que ocorreu em todos os outros países europeus, sobreviveu à queda da monarquia. Exatamente como no início do seu desenvolvimento, no alvorecer do século XVIII, o crédito de um Samuel Oppenheimer havia sido idêntico ao crédito de que dispunha a própria casa dos Habsburgos, enquanto "no fim o crédito austríaco era o do Creditanstalt", estabelecimento bancário dos Rothschild.[45] Embora a monarquia do Danúbio não tivesse população homogênea, que é o pré-requisito mais importante para a evolução de um Estado-nação, não pôde evitar a transformação do despotismo esclarecido em monarquia constitucional e a criação de um serviço público moderno. Isso significou que ela teve de adotar certas instituições de um Estado-nação. O sistema de classes evoluiu ali ao longo de linhas nacionais, de modo que certas nacionalidades começaram a ser identificadas com certas classes ou, pelo menos, profissões. O austro-alemão tornou-se a nacionalidade dominante, num sentido semelhante àquele em que a burguesia se tornou a classe dominante nos Estados-nações. A aristocracia húngara, dona de terras, tinha o papel da nobreza de outros países. A máquina estatal esforçava-se para se manter a distância da sociedade, governando acima das nacionalidades, exatamente como os demais Estados-nações faziam com relação às classes — governando acima delas. O resultado, para os judeus, foi simples; a nacionalidade judaica no império dos Habsburgos não pôde fundir-se com as outras, nem se constituir em nação, como não se havia incorporado às outras classes no Estado-nação, nem se tornou classe em si mesma. Do mesmo modo como nos Estados-nações os judeus diferiam das demais classes por causa da sua relação especial com o Estado, diferiam de todas as outras nacionalidades na Áustria por causa da sua relação especial com a monarquia dos Habsburgos. E, da mesma forma como, em toda parte, toda classe que entrava em conflito aberto com o Estado virava antissemita, assim, na Áustria, toda nacionalidade que entrava em conflito aberto com a monarquia iniciava seu combate atacando os judeus. Mas houve uma diferença marcante entre esses conflitos na Áustria e os que ocorriam na Alemanha e na França. Na Áustria, eles eram mais agudos e, ao romper a Primeira Grande Guerra, todas as nacionalidades — e isto significa: todas as camadas sociais — estavam em forte oposição ao Estado, de modo que, mais do que em qualquer outro país da Europa ocidental ou central, a população do império austro-húngaro estava impregnada de antissemitismo ativo.
     Entre esses conflitos, destaca-se a crescente hostilidade antiestatal da população germânica, acelerada após a fundação do Reich alemão em 1870, quando foi descoberta a utilidade dos slogans antissemitas, principalmente depois da crise financeira de 1873. A situação social na Áustria era praticamente a mesma que na Alemanha, mas a propaganda dos partidos — que na Áustria multinacional operavam em bases nacionais — destinava-se a angariar os votos da classe média, pregando abertamente a deslealdade para com o Estado. O Partido Liberal Alemão, por exemplo, sob a direção de Schoenerer, foi no início um partido da baixa classe média, sem conexões ou restrições por parte da nobreza, e com uma imagem definitivamente esquerdista. Nunca obteve uma real base de massa, mas foi notavelmente bem-sucedido nas universidades nos anos 80, constituindo a primeira organização estudantil eficientemente 'estruturada' no antissemitismo declarado. O antissemitismo de Schoenerer, de início dirigido quase que exclusivamente contra os Rothschild, conquistou as simpatias do movimento trabalhista, que via nele um verdadeiro radical desgarrado.[46] Sua principal vantagem era poder basear sua propaganda antissemita sobre fatos demonstráveis: como membro do Reichsrat [Parlamento] austríaco, Schoenerer havia lutado pela nacionalização das estradas de ferro da Áustria, das quais a maior parte estava, desde 1836, nas mãos dos Rothschild, em virtude de uma licença estatal que expirava em 1886. Schoenerer conseguiu reunir 40 mil assinaturas contra a renovação da licença e colocar a questão judaica no picadeiro do interesse público. As íntimas ligações entre os Rothschild e os interesses financeiros da monarquia tornaram-se óbvias, quando o governo tentou prorrogar a licença em condições que eram patentemente desvantajosas para o Estado. A agitação comandada por Schoenerer desencadeou na Áustria um movimento antissemita politicamente articulado.[47] O problema é que esse movimento, em contraste com a agitação de Stoecker na Alemanha, foi iniciado e dirigido por um homem cuja sinceridade estava fora de dúvida, e por isso não se limitaria a usar o antissemitismo como arma de propaganda, mas desenvolveria rapidamente aquela ideologia pangermânica que iria influenciar o nazismo mais do que outro ramo do antissemitismo alemão.
     Embora viesse a ser vitorioso a longo prazo, o movimento de Schoenerer foi temporariamente derrotado por um outro partido antissemita, o dos social-cristãos, sob a liderança de Lueger. Enquanto Schoenerer atacava a Igreja Católica e a sua considerável influência na política austríaca quase tanto quanto atacava os judeus, os social-cristãos eram um partido católico que sempre procurou aliar-se àquelas forças conservadoras reacionárias que se haviam demonstrado tão prestimosas na Alemanha e na França. Como faziam maiores concessões sociais, tiveram mais sucesso do que na França ou na Alemanha. Os social-cristãos sobreviveram à queda da monarquia dos Habsburgos e tornaram se o grupo mais influente na Áustria republicana depois da guerra de 1918. Quando, nos anos 90, Lueger foi levado pelo voto à prefeitura de Viena após veemente campanha antissemita, seu partido já adotava atitude equívoca em relação aos judeus, tão típica no Estado-nação: hostilidade aberta aos intelectuais judeus e benevolência para com os judeus comerciantes. Assim, não foi por acaso que, após amarga e sangrenta luta pelo poder, travada contra o movimento socialista dos trabalhadores, os social-cristãos se assenhorearam da máquina estatal, quando a Áustria, reduzida à sua etnia alemã, se estabeleceu, após a derrubada dos Habsburgos em 1917, como Estado-nação. Demonstraram ser o único partido que estava preparado para esse papel. Como os Habsburgos eram uma dinastia alemã e conferiam certa predominância aos seus súditos alemães, os social-cristãos nunca atacaram a monarquia. É lógico, portanto, que seu antissemitismo não teve consequências. Foi arma eleitoral antes de tudo — o que era significativo em termos de futuro —, mas as décadas do governo municipal de Lueger em Viena foram, na verdade, uma espécie de idade de ouro para os judeus. Por mais que se excedessem em sua propaganda, os social-cristãos nunca proclamaram, como o fizeram Schoenerer e os panger-manistas, que "consideravam o antissemitismo o esteio principal de ideologia nacional, a mais essencial expressão de genuína convicção popular e, portanto, a grande realização nacional do século".[48] E, embora estivessem sob influência de círculos clericais, exatamente como o movimento antissemita da França, eram muito mais comedidos em seus ataques contra os judeus, porque não atacavam a monarquia como os antissemitas da França atacavam a Terceira República.
     Os sucessos e fracassos dos dois partidos antissemitas da Áustria demonstram a pouca relevância que os conflitos sociais ocupavam na problemática da época. Comparada com a mobilização duradoura de todos os oponentes do governo, a angariação dos votos da classe média inferior foi um fenômeno temporário. O antissemitismo e a oposição à monarquia desapareceram em Viena e nas cidades por causa da prosperidade do período que antecedeu à guerra [1914] e que reconciliou a população urbana com o governo. Mas, no aparente paradoxo, a espinha dorsal do movimento de Schoenerer continuava forte naquelas províncias de língua alemã do império dos Habsburgos que não tinham qualquer população judaica, e onde a concorrência com os judeus ou o ódio pelos banqueiros judeus nunca havia existido. A sobrevivência do movimento pangermânico e do seu violento antissemitismo nessas províncias, à época em que ele desaparecia nos centros urbanos, foi simplesmente devida ao fato de que essas províncias nunca foram atingidas pela prosperidade que mudou momentaneamente a atitude dos habitantes das cidades reconciliados com o Estado.
     A completa falta de lealdade para com o seu próprio país e governo, que os pangermânicos austríacos substituíram pela franca lealdade ao Reich alemão de Bismarck, e o consequente conceito de nacionalidade como independente de Estado e de território, ligado mais à etnia e ascendência genética, levaram o grupo de Schoenerer à ideologia verdadeiramente imperialista — e nisso reside a chave da sua fraqueza temporária e do seu impulso final. É também a razão pela qual o partido pangermânico na Alemanha (o Alldeutschen), que nunca ultrapassou os limites do chauvinismo comum, permaneceu tão desconfiado e relutante em tomar as mãos estendidas de seus irmãos germanistas austríacos. Esse movimento austríaco aspirava a mais do que subir ao poder como um partido, a mais do que possuir a máquina do Estado. Ele desejava reorganizar revolucionariamente a Europa central, para que os alemães da Áustria, juntamente com os alemães da Alemanha, mutuamente fortalecidos, se tornassem o povo governante, do qual todos os outros povos seriam dependentes, mantidos na mesma espécie de semi servidão em que viviam as nacionalidades eslavas da Áustria. Por causa de sua estreita afinidade com o imperialismo e da mudança fundamental que trouxe ao conceito de nacionalidade, devemos postergar a discussão sobre o movimento pangermânico austríaco. Ele não é mais, ao menos em suas consequências, um mero movimento preparatório no século XIX; pertence, mais do que qualquer outro ramo do antissemitismo, ao curso dos eventos de nosso século.
     Com o antissemitismo francês ocorreu exatamente o oposto. O Caso Dreyfus trouxe à tona os elementos do antissemitismo do século XIX em seus aspectos meramente ideológicos e políticos: foi a culminância do antissemitismo resultante das condições especiais do Estado nação. Contudo, sua natureza violenta prefigurou acontecimentos futuros, de modo que os principais atores do processo parecem às vezes estar realizando um grandioso ensaio geral do espetáculo, que teria de ser adiado por mais de três décadas. O Caso Dreyfus reuniu todas as correntes, abertas ou subterrâneas, sociais ou políticas, que haviam levado a questão judaica à posição de predominância no século XIX; por outro lado, sua deflagração prematura fez com que permanecesse no quadro de uma ideologia típica do século XIX que, embora sobrevivesse a todos os governos e crises políticas da França, nunca realmente se encaixou no contexto político do século XX. Quando, após a derrota da França em 1940, o antissemitismo francês teve sua chance suprema sob o governo de Vichy, assumiu caráter definitivamente antiquado e, para os fins anunciados, bastante inócuo, o que os intelectuais nazistas da Alemanha nunca esqueceram de salientar.[49] Mas o antissemitismo francês não teve qualquer influência na formação do nazismo e, como fator histórico, não chegaria a atuar na implantação da catástrofe final.
     A razão principal dessas limitações foi simples: os partidos antissemitas da França, embora violentos no cenário doméstico, não nutriam quaisquer aspirações supranacionais. Afinal de contas, pertenciam ao Estado-nação mais antigo e estatalmente mais desenvolvido da Europa. Nenhum dos antissemitas tentou seriamente organizar um "partido acima dos partidos", ou apossar-se do Estado para os interesses partidários. Os poucos golpes de Estado que foram tentados, e que podem ser creditados à aliança entre os antissemitas e os oficiais superiores do Exército, foram ou ridiculamente inadequados ou obviamente forjados.[50] Em 1898, dezenove membros do Parlamento foram eleitos em campanhas antissemitas, mas esse ponto alto jamais foi alcançado depois: daí em diante o declínio foi rápido.
     Por outro lado, esse foi o primeiro exemplo do sucesso do antissemitismo como catalisador das demais questões políticas. Pode atribuir-se esse fato à falta de autoridade da Terceira República, que foi implantada com maioria parlamentar insignificante. Aos olhos das massas, o Estado havia perdido prestígio juntamente com a monarquia, e os ataques contra o Estado já deixaram, desde então, de ser um sacrilégio. As primeiras explosões de violência na França lembram muito a agitação semelhante que ocorreu nas repúblicas alemã e austríaca depois da Primeira Grande Guerra. A ditadura nazista tem sido com tanta frequência associada à chamada "adoração do Estado" que até os historiadores perdem de vista o truísmo de que, ao contrário, os nazistas tiraram vantagem do colapso da adoração ao Estado, originada do louvor irrestrito e do culto devido a um soberano, assentado no trono pela graça de Deus, o que nunca ocorre numa república. Na França, cinquenta anos antes de serem os países da Europa central afetados por essa perda universal de reverência, a adoração do Estado já havia sofrido muitas derrotas. Era muito mais fácil atacar os judeus e o governo juntos na França do que na Europa central, onde os judeus eram atacados como meio de agredir o governo.
     Além disso, o antissemitismo francês é mais antigo que os seus similares europeus. Para os representantes da Era do Esclarecimento, que prepararam a Revolução Francesa, era normal o desprezo aos judeus: olhavam-nos como sobreviventes da Idade Média e como agentes financeiros da aristocracia. Os únicos amigos dos judeus na França que chegavam a se pronunciar eram escritores conservadores, que denunciavam as atitudes antijudaicas como "uma das teses favoritas do século XVIII".[51] Para o escritor mais liberal ou radical já pertencia à tradição denunciar os judeus como bárbaros, que ainda viviam em estrutura patriarcal, sem reconhecerem o poder leigo do Estado.[52] Durante e após a Revolução Francesa, o clero e os aristocratas da França uniram suas vozes ao sentimento antijudaico geral embora por motivos materiais: acusaram o governo revolucionário de ter vendido propriedades da Igreja para pagar "aos judeus e comerciantes, que são credores do governo"[53] — no que identificavam os judeus e o Estado, como se essa situação ainda perdurasse. Estes velhos argumentos que, de uma forma ou de outra, se mantiveram acesos na França durante a incessante luta entre a Igreja e o Estado alimentaram a violência e o acirramento de ódios provocados, no fim do século XIX, por outras forças, mais modernas.
     Foi principalmente por causa do apoio dado pela Igreja ao antissemitismo que o movimento socialista francês decidiu finalmente tomar posição contra a propaganda antissemita quando do Caso Dreyfus. Até então, os movimentos esquerdistas da França não escondiam a sua antipatia aos judeus. Seguiam simplesmente a tradição do Esclarecimento do século XVIII, que foi a fonte do liberalismo e radicalismo franceses, e consideravam as atitudes antijudaicas como parte integrante do anticlericalismo. Esses sentimentos da esquerda foram fortalecidos, primeiro, pelo fato de os judeus da Alsácia continuarem a viver de empréstimos de dinheiro aos camponeses, procedimento que já em 1808 havia provocado um decreto específico de Napoleão, para encontrar depois novo alento na política financeira da casa dos Rothschild, que teve papel relevante no financiamento dos Bourbon, manteve estreitas relações com o rei Luís Filipe e floresceu como nunca sob Napoleão III.
     Por trás desses estímulos óbvios, embora bastante superficiais, existia causa mais profunda, crucial a toda a estrutura do radicalismo especificamente francês, e que quase conseguiu levar contra os judeus todo o movimento esquerdista francês. Os banqueiros eram muito mais fortes na economia da França do que em outros países capitalistas, e o desenvolvimento industrial francês, após uma breve ascensão durante o governo de Napoleão III, atrasou-se de tal modo com relação às outras nações que as tendências socialistas pré-capistalistas continuaram a exercer considerável influência. A classe média inferior na Áustria e na Alemanha tornou-se antissemita somente durante os anos 70 e 80, quando já estava tão desesperada que podia ser levada por qualquer político mais hábil. Na França, essa classe revelou-se antissemita cerca de cinquenta anos antes, quando, com o auxílio dos trabalhadores, levou a Revolução de 1848 à vitória. Nos anos 40 do século XIX, ao publicar Les Juifs, róis de Vépoque — livro mais importante entre numerosos panfletos lançados então contra os Rothschild —, Toussenel foi entusiasticamente recebido por toda a imprensa esquerdista, que então representava a pequena burguesia revolucionária. Os sentimentos dessa classe, expressos por Toussenel, embora menos eloquentes e menos sofisticados, não eram muito diferentes daqueles do jovem Marx, e o ataque de Toussenel Boerne havia escrito quinze anos antes.[54] Também esses dois judeus — Marx e Boerne — viam no banqueiro judeu a figura central do sistema capitalista, erro que influenciou a burocracia municipal e a dos níveis inferiores do governo da França até os nossos dias.[55]
     Contudo, essa explosão de sentimento popular antijudaico, alimentado pelo conflito econômico entre os banqueiros judeus e a sua desesperada clientela, não durou mais, como fator importante em política, do que outras explosões semelhantes causadas por motivos puramente econômicos ou sociais. Os vinte anos do governo de Napoleão III constituíram para a comunidade judaica da França uma era de prosperidade e segurança, semelhante às duas décadas que na Alemanha e na Áustria antecederam a Primeira Grande Guerra.
     A única modalidade de antissemitismo francês que realmente vingou, e que sobreviveu ao antissemitismo social e às atitudes desdenhosas dos intelectuais anticlericais, estava ligada a uma xenofobia geral. Especialmente após a Primeira Grande Guerra, os judeus estrangeiros tornaram-se estereótipo de todos os estrangeiros. Em todos os países da Europa central e ocidental esboçou-se uma diferenciação entre os judeus nativos e aqueles que "invadiram" o país, provenientes do Leste. Os judeus poloneses e russos eram tratados na Alemanha e na Áustria exatamente da mesma forma como os judeus romenos e alemães eram tratados na França. Os judeus da Posnânia eram tratados na Alemanha com o mesmo desdém esnobe que na França era reservado aos judeus na Alsácia. Mas somente na França essa diferenciação "antioriental" assumiu certa importância no cenário nacional. E isso se deve provavelmente ao fato de que a casa dos Rothschild, que, mais do que em qualquer outro lugar, era o alvo dos ataques antijudaicos, havia emigrado para a França da Alemanha; assim, até a deflagração da Segunda Grande Guerra, os franceses "naturalmente" suspeitavam que os judeus simpatizassem com o inimigo nacional alemão.
     O antissemitismo nacionalista, inofensivo quando comparado com os movimentos modernos, nunca foi monopólio de reacionários e chauvinistas na França. Nessa questão, o escritor Jean Giraudoux, ministro da propaganda no gabinete de guerra de Daladier, concordava plenamente com Pétain e com o governo de Vichy.[56] Mas este, por mais que se esforçasse em agradar aos alemães, não conseguia ultrapassar as limitações dessa obsoleta antipatia pelos judeus. Essa deficiência era digna de nota porquanto foram os franceses que haviam produzido um antissemita eminente e talentoso, que percebia todo o alcance e as possibilidades das novas armas de moldar a opinião das massas. E característico das condições da França, onde o antissemitismo nunca caiu no descrédito social e intelectual, como ocorreu em outros países europeus, que esse homem fosse um ilustre romancista.
     Louis Ferdinand Céline elaborou uma tese simples, engenhosa e imaginária que deu ao racional antissemitismo francês um pouco da imaginação ideológica que lhe faltava. Afirmava que os judeus haviam frustrado a evolução da Europa como entidade política, causando todas as guerras europeias desde o ano de 843, e planejando a ruína da França e da Alemanha, ao incitar uma contra a outra. Céline propôs essa fantástica explicação da história em seu livro Êcole des cadavres, escrito na época do pacto de Munique [1938] e publicado durante os primeiros meses da guerra [1939]. Um panfleto anterior sobre o assunto, Bagatelle pour un massacre [1938], embora não incluísse nova interpretação da história europeia, já abordava a questão de modo surpreendentemente moderno: evitava as diferenciações entre judeus nativos e estrangeiros, entre judeus bons e maus, e, não se preocupando com laboriosas propostas legislativas — característica particular do antissemitismo francês —, ia direto ao assunto e pedia o massacre de todos os judeus.
     O primeiro livro de Céline teve recepção muito favorável entre os intelectuais mais importantes da França, que se sentiam em parte satisfeitos com o ataque contra os judeus e em parte convencidos de que se tratava de interessante visão literária.[57] Exatamente por essas razões, os fascistas franceses não levaram Céline a sério, a despeito do fato de que os nazistas sempre souberam que ele era o único verdadeiro anti-semita da França. O bom senso inerente dos políticos franceses e sua arraigada responsabilidade proibiam-nos de aceitarem um doido — e só um doido poderia apresentar o massacre como solução de um problema. Como resultado, mesmo os alemães, ao se esforçarem — em vão — para persuadir o povo francês de que o extermínio dos judeus seria uma cura para todos os males sob o sol, tiveram de contar com colaboradores inadequados como Doriot, um seguidor de Mussolini, e Pétain, um velho chauvinista francês sem qualquer compreensão dos problemas modernos. O modo pelo qual essa situação evoluiu ao longo dos anos de boa vontade oficial e mesmo extraoficial em cooperar com a Alemanha nazista indica claramente o quanto o antissemitismo do século XIX era ineficaz para os novos fins políticos do século XX, mesmo num país onde se havia desenvolvido ao máximo e sobrevivido a todas as outras mudanças de opinião pública..Em nada adiantou que jornalistas capazes do século XIX, como Edouard Drumont, e mesmo grandes escritores contemporâneos, como Georges Bernanos, contribuíssem para essa causa: ela parecia ser melhor servida por loucos e charlatães.
     Um dos elementos decisivos dessa situação foi este: por várias razões, a França nunca chegou a ter um partido pan-europeu. Como muitos políticos franceses mostraram,[58] somente uma aliança franco-alemã teria permitido à França competir com a Inglaterra na divisão do mundo e alcançar maior sucesso na disputa pela África. Contudo, de uma forma ou de outra, a França nunca se deixou levar por essa competição, a despeito de todo o seu ruidoso ressentimento e de sua hostilidade para com a Grã-Bretanha. A França era, e continuou sendo — embora declinando em importância —, Ia nation par excel-lence da Europa. Além disso, como seu antissemitismo se nutrira principalmente do conflito franco-alemão, puramente nacional, a questão judaica deixava, quase automaticamente, de ter qualquer papel importante na política supranacional ou imperialista, apesar das condições da Argélia, onde a população mista de judeus e árabes nativos teria oferecido para tanto excelente oportunidade.[59] A simples e brutal destruição do Estado nação francês pela agressão alemã e a pseudo-aliança franco-alemã baseada em ocupação nazista podem ter demonstrado quão pouca força própria Ia nation par excellence havia trazido do seu glorioso passado para os nossos dias; mas isto em nada alterou os elementos essenciais da sua estrutura política.

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[45] Ver Paul H. Emden, "The story of the Vienna Creditanstalt", em Menorah Journal, XXVIII, 1, 1940.
[46] Ver F. A. Neuschaefer, Georg Ritter von Schoenerer, e Eduard Pichl, Georg Schoenerer, 1938, 6 vols. Mesmo em 1912, quando a agitação de Schoenerer já havia muito perdera todo significado, a Arbeiterzeitung [Folha do trabalhador] expressou-lhe sentimentos carinhosos, através das palavras que uma vez Bismarck pronunciara a respeito de Lassalle: "E, se trocássemos tiros, a justiça ainda exigiria que admitíssemos mesmo durante o tiroteio: Ele é um homem; e os outros são velhas" (Neuschaefer, p. 33).
[47] Ver Neuschaefer, op. cit., pp. 22ss., e Pichl, op. cit., I, pp. 236ss.
[48] Citado de Pichl, op. cit., vol. I, p. 26.
[49] Ver especialmente Walfried Vernunft, "Die Hintergründe des franzósischen Antisemi-tismus" [Fundamentos do anti semitismo francês], em Nationalsozialistische Monatshefte [Cadernos mensais nacional-socialistas], junho de 1939.
[50] Ver o capítulo 4.
[51] Ver X. de Maistre, Les soirées de Saint-Petersburg, 1821, II, p. 55.
[52] Charles Fourier, Nouveau monde industriei et sociétaire, 1829, vol. VI de suas Oeuvres completes, 1845 (reeditadas em 1966), p. 421. Para as doutrinas antijudaicas de Fourier, ver também Edmund Silberner, "Charles Fourier on the Jewish Question", em Jewish Social Studies, outubro de 1946.
[53] Ver o jornal Le Patriote Français, n? 457, de 8 de novembro de 1790, citado por Cle-mens August Hoberg, "Die geistigen Grundlagen des Antisemitismus im modernen Frankreich" [Causas espirituais do anti-semitismo na França moderna], em Forschungen zur Judenfrage, 1940, vol. IV.
[54] O ensaio de Marx sobre a questão judaica é suficientemente bem conhecido; assim não precisa ser citado. Como as afirmações de Boerne, em virtude de seu caráter meramente polêmico e não-teórico, vão hoje sendo esquecidas, citamos parte de sua 72? carta de Paris (janeiro de 1832): "Rothschild beijou a mão do papa. (...) Finalmente chegou a ordem que Deus havia planejado quando criou o mundo. Um cristão pobre beija os pés do papa, e um judeu rico lhe beija a mão. Se Rothschild houvesse obtido seu empréstimo romano a 60%, em vez de a 65%, e pudesse ter mandado ao tesoureiro-mor mais de 10 mil ducados, ter-lhe-iam permitido abraçar o Santo Padre. (...) Não seria a maior ventura para o mundo se todos os reis fossem depostos e a família Rothschild colocada no trono?" (EmBriefe aus Paris, 1830-1833 [Cartas de Paris].)
[55] Essa atitude é bem descrita no prefácio, da autoria do conselheiro municipal Paul Brousse, à famosa obra de Cesare Lombroso sobre o antissemitismo (1899). A parte característica do argumento está contida no seguinte: "O pequeno comerciante precisa de crédito, e sabemos como o crédito é caro e mal organizado hoje em dia. O pequeno comerciante responsabiliza o banqueiro judeu também por isso. Em escala abaixo, todos, até o trabalhador (...) pensam que estão incrementando a revolução se a expropriação geral dos capitalistas for precedida pela expropriação dos capitalistas judeus, que são os mais típicos e cujos nomes são mais conhecidos das massas".
[56]  Quanto à surpreendente continuidade dos argumentos antissemitas franceses, compare-se, por exemplo, a descrição, por Charles Fourier, do judeu "Iscariotes", que chega à França com 100 mil libras, estabelece-se numa cidade com seis competidores em seu ramo, esmaga todas as firmas concorrentes, junta uma grande fortuna, e volta para a Alemanha (Théorie des quatre mou vements, 1808, em: Oeuvres completes, v. I, p. 233), com a imagem de Giraudoux de 1939: "Através de uma infiltração cujo segredo tentei em vão descobrir, centenas de milhares de ashquenasim, que fugiram dos guetos poloneses e romenos, entraram em nosso país (...) eliminando nossos concidadãos e, ao mesmo tempo, arruinando seus costumes e tradições profissionais. (...) Acostumados há séculos a trabalhar em piores condições em todos os setores do pequeno artesanato, (...) desafiam todas as investigações do censo, do fisco e do trabalho". (Em Pleinspouvoirs, 1939.)
[57] Ver especialmente a apreciação crítica, na Nouvelle Revue Française, de Mareei Arland (fevereiro de 1938), que afirma que a posição de Céline é essencialmente solide. André Gide (abril de 1938) acha que Céline, ao descrever apenas a spécialité judaica, conseguiu pintar não a realidade, mas a própria alucinação que a realidade provoca.
[58] Como, por exemplo, RenéPinon, em France et Allemagne 1870-1913, 1913.
[59] Alguns aspectos da questão judaica na Argélia são tratados no artigo da autora, "Why the Crémieux Decree was abrogated", em Contemporary Jewish Record, abril de 1943. [Por decreto do ministro da Justiça da França no governo republicano de 1870, Adolphe Crémieux — de origem judaica —, os judeus da Argélia tornaram-se cidadãos da França, o que não aconteceu com a população árabe. Este decreto foi revogado sob o regime de Vichy, quando os judeus argelinos foram perseguidos tanto pelos árabes locais quanto pelas autoridades francesas e nazistas. Temendo a independência da Argélia, a maioria desses judeus, valendo-se da sua cidadania francesa, que lhes foi devolvida após a liberação da França em 1945, emigrou para a França, N. E.]

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - Parêntesis / III - Sob que condição se pode respeitar o passado

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sétimo — Parêntesis

III - Sob que condição se pode respeitar o passado
     
     O monaquismo, do modo que existia na Espanha e existe ainda no Tibete, é uma espécie de tísica para a civilização. Suspende rápido a ação vital do corpo social.
     Despovoa de um modo simples. Claustração, castração. Foi um flagelo para a Europa.
     Acrescentai a isto a violência, tão frequentes vezes feita à consciência, as vocações forçadas, a feudalidade que se apoiava no claustro, a primogenitura que ver a no monaquismo o excesso da família, as ferocidades de que acabamos de falar, os in pace, as bocas fechadas, os cérebros murados, tantas inteligências desditosas me das no calabouço dos votos, eternos, a profissão, o enterramento das almas vivas. Acrescentai os suplícios individuais às degradações nacionais, e, quem quer que sejais, sentir-vos-eis estremecer em presença da cogula e do véu, duas mortalhas de invenção humana.
     Todavia, apesar da filosofia e do progresso, o espírito claustral persiste em pleno século XIX a respeito de certos pontos e em certos lugares, e uma estranha recrudescência espanta nesta ocasião o mundo civilizado. A teima das instituições envelhecidas em quererem perpetuar-se, assemelha-se à obstinação do perfume rançoso que nos reclamasse os cabelos, à pretensão do peixe podre que quisesse ser comido, à perseguição da roupa de criança que quisesse vestir o homem, à ternura dos cadáveres que voltassem a abraçar os vivos.
      Ingratos!, diz a roupa. Protegi-vos do mau tempo e não quereis saber de mim!
     Porquê? Venho do alto mar, diz o peixe. Fui a rosa, diz o perfume. Eu amei-vos, diz o cadáver. Fui eu que vos civilizei, diz o convento.
     A isto uma única resposta: Noutro tempo.
     Parece estranho haver quem pense na prolongação indefinida das coisas defuntas e no governo dos homens por embalsamação, quem queira restaurar os dogmas em mau estado, dourar de novo os retábulos, remoçar os claustros, tornar a benzer os relicários, mobilar outra vez as superstições, reabastecer os fanatismos, pôr cabos novos nos hissopes e nas espadas, reconstituir o monaquismo e o militarismo, quem acredite na salvação da sociedade pela multiplicação dos parasitas, quem pretenda impor o passado ao presente. Há teóricos, todavia, que professam estas teorias. O processo desses teóricos, aliás homens de espírito, é simplíssimo; aplicam sobre o passado um esboço a que dão o nome de ordem social, direito divino, moral, família, respeito aos passados, autoridade antiga, tradição santa, legitimidade, religião, e vão gritando: «Vede! Olhai para isto, homens de bem!» Esta lógica também era conhecida dos antigos. Cobriam de greda uma novilha preta e diziam: «É branca, bos crétatus».
      Enquanto a nós, respeitamos uma ou outra coisa do passado, e poupamo-lo todo, contanto que ele esteja pelo que realmente é, uma coisa morta; pois se quer ser uma coisa viva, nesse caso atacamo-lo e fazemos esforços para o matar.
      Superstições, hipocrisia, beatice, prejuízos, todas estas larvas, apesar de larvas, têm apego à vida; têm dentes e unhas no seu fumo; é necessário arcar com elas peito a peito e fazer-lhes a guerra, mas guerra sem tréguas; pois é uma das fatalidades da humanidade ser condenada a combater eternamente com fantasmas. É sempre difícil agarrar a sombra pela garganta e derrubá-la.
     Um convento em França, à luz do meio-dia do século XIX, é um colégio de mochos, fazendo frente ao dia. Um claustro, em flagrante delito de ascetismo no meio da pátria dos cidadãos de 89, de 1830 e 1848, Roma dilatando-se por Paris, é um anacronismo. Em tempos normais, para dissolver um anacronismo e fazê-lo desaparecer de todo, basta fazer-lhe soletrar uma data. Porém nós não estamos em tempos normais.
     Combatamos, portanto.
     Combatamos, mas distingamos. O característico da verdade é não ser nunca excessiva. Que necessidade tem ela de exagerar? Há coisas que é necessário destruir e coisas que devem simplesmente esclarecer-se e olhar-se. Que força não tem o exame benévolo e grave! Não apliquemos a chama onde a luz basta.
     Na hipótese, pois, do século XIX somos contrários, em tese geral, às clausuras ascéticas, entre todos os povos, tanto na Ásia como na Europa, tanto na Índia como na Turquia. Quem diz convento, diz pântano. É evidente a sua putrefacção, insalubre a sua estagnação, a sua fermentação dá origem a febre entre os povos, estiolando-os; a sua multiplicação torna-se uma praga do Egito. Não podemos lembrar-nos sem horror desses países em que os faquires, os bonzos, os santões, os caloiros, os marabutos, os talapões e os dervixes pululam como vermes.
     Dito isto, subsiste a questão religiosa. Esta tem certos aspectos misteriosos, quase temíveis; seja-nos lícito, pois, encará-la de frente.

continua na página 391...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - III - Sob que condição se pode respeitar o passado
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
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Monaquismo é um estilo de vida dedicado à prática religiosa, caracterizado pela renúncia aos bens materiais, pela busca da perfeição espiritual e, em muitos casos, pela vida em comunidade ou isolamento.

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (5b) - Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
5.


      Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna completamente confusa. Perguntar-se-á: por quê? É que ela estava evidentemente em um estado de espírito mórbido. Sua apreensão subiu ao ponto extremo com a história do ouriço. Que significaria esse ouriço? Que convenção estaria nisso subentendida? Que representaria ele? Qual seria a mensagem cifrada? E ainda por cúmulo, Iván Fiódorovitch que aconteceu estar presente durante a conversa, estragou todo o negócio com a sua resposta. Na sua opinião não havia hieróglifo nem mensagem de qualquer espécie, o ouriço “era simplesmente um ouriço e nada mais do que um ouriço - no máximo significando um amistoso desejo de esquecer o amuo recente e recomeçar; em uma palavra, tudo era travessura, mas inocente e perdoável”.
     Devemos notar, entre parênteses, que ele conjeturara direito.
     O príncipe tinha voltado para casa depois de ter sido ridicularizado e despedido por Agláia, tendo ficado sentado a um canto, mais de meia hora, no mais negro dos desesperos quando, inesperadamente, surgiu Kólia com o ouriço. E o céu logo clareou. Foi como se o príncipe tivesse ressuscitado. Deu em perguntar uma porção de coisas a Kólia, suspenso em cada palavra dita por ele, repetindo as perguntas mais de dez vezes, rindo como uma criança e continuamente apertando as mãos dos dois garotos engraçados que o examinavam com tanta franqueza.
     A conclusão de tudo era que Agláia o perdoara e que poderia ir vê-la outra vez. Iria à noite, e isso para ele não era o fato principal, mas o único.

- Que crianças que vocês são, Kólia! E... e... que belo é que vocês sejam assim crianças! - exclamara, por fim, jubiloso.
 - O fato puro é que ela está apaixonada pelo senhor, príncipe, isso é que é tudo! - respondera Kólia com autoridade, categoricamente.

     O príncipe enrubesceu, mas desta vez não respondeu nada, tendo Kólia simplesmente rido e batido palmas. Um minuto depois ria o príncipe também; e desde então começou a olhar para o relógio cada cinco minutos, para ver como o tempo custava a passar, achando que demorava para chegar a noite. Mas o temperamento da Sra. Epantchíná sobrepujou qualquer senso de conveniência; por fim, não pôde deixar de desafogar a sua excitação paroxística.
     A despeito dos protestos do marido e das filhas, imediatamente mandou chamar Agláia, com o fim de lhe fazer a fatal pergunta e arrancar-lhe uma resposta perfeitamente clara e decisiva. “Para pôr um fim nisso tudo, de uma vez para sempre, para ficar livre e não ter de voltar ao assunto de novo! Se esperar até amanhã, morro sem vir a saber!” E foi então que eles se deram conta do absurdo ponto a que tinham levado as coisas. Não puderam extrair de Agláia senão fingida admiração, cólera, risadas e gracejos para com o príncipe e para quantos a interrogavam.
     Lizavéta Prokófievna permaneceu nos seus aposentos até ao anoitecer, só descendo para o chá na hora em que o príncipe era esperado. Aguardava a vinda dele em pânico e quase caiu com um ataque quando ele apareceu. O príncipe, por sua parte, entrou timidamente, como que procurando um lugar conveniente, olhando para os olhos de todo o mundo, e com o ar de querer indagar de todos eles por que era que Agláia não estava já na sala, fato que logo o deixou preocupado.
     Essa noite não estava presente nenhuma outra visita. A família estava só. O Príncipe Chtch... ainda se achava em Petersburgo, ocupado com os negócios do tio de Evguénii Pávlovitch. “Se esse, ao menos, estivesse aqui, para dizer qualquer coisa, fosse o que fosse” - disse Lizavéta Prokófievna a si própria, deplorando aquela ausência. Iván Fiódorovitch mostrava-se com um ar espantado; as irmãs permaneciam sérias e, de propósito, ou não, caladas. Lizavéta Prokófievna ficou sem saber como iniciar a conversa.
     Finalmente, vigorosamente criou ânimo e descompôs a estrada de ferro, encarando o príncipe como em um resoluto desafio. Pobre Míchkin! Agláia não descia e ele estava em palpos de aranha. Perdendo a cabeça e mal podendo pronunciar as palavras, exprimiu a opinião de que melhorar a linha seria excessivamente prático; mas Adelaída riu de repente, e ele ficou outra vez esmagado. Foi nesse instante que Agláia surgiu.
     Calmamente e com dignidade, fez uma cerimoniosa curvatura para o príncipe e solenemente se foi sentar no lugar mais à vista, junto à mesa redonda. De lá olhava para o príncipe, indagadoramente. E todo o mundo percebeu que era chegado o momento em que todas as dúvidas seriam dissipadas. Foi então que ela lhe perguntou firmemente e com ar quase de reprimenda:

- Recebeu o meu ouriço? 
- Recebi - respondeu o príncipe, com o coração sucumbido; e ficou escarlate. 
- Então explique logo o que pensa a respeito. Isso é essencial para a paz de espirito de mamãe e de toda a família.
- Agláia, minha filha, Agláia... - começou o general subitamente alvoroçado. 
- Mas que despropósito, menina! - disse Lizavéta Prokófievna, alarmada, sem saber direito por quê. 
- Não vejo em que seja isso um despropósito, mamãe! - respondeu logo a filha, desabridamente - Eu hoje mandei ao príncipe um ouriço, e quero saber a opinião dele. Então, príncipe?
- Mas que espécie de opinião, Agláia Ivánovna?
- Sobre o ouriço.
- Quereis dizer, suponho eu, Agláia Ivánovna, que desejais saber como eu recebi.., o ouriço... ou, melhor, como encarei o fato de.. me mandardes.., o ouriço, isto é... Em tal caso, a meu ver, creio que, de fato...

     Faltou-lhe o ar e emudeceu. 

- Bem, não disse lá grande coisa - sentenciou Agláia, depois de esperar cinco segundos. - Muito bem. Concordo em que ponhamos de lado o ouriço. Mas ficarei muito contente se puder pôr um fim a uma série de mal-entendidos que se veem acumulando entre nós. Quero saber pessoalmente se pretende me pedir em casamento, ou não?  
- Deus do Céu! - rompeu do peito de Lizavéta Prokófievna.

     O príncipe sobressaltou-se e recuou; Iván Fiódorovitch ficou petrificado, as irmãs fecharam os semblantes.

- Não minta, príncipe. Diga a verdade. Por sua causa venho sendo perseguida por estranhas perguntas. Há qualquer fundamento para que tais perguntas se deem? Então?!...
- Eu não vos fiz o meu pedido, Agláia Ivánovna - o príncipe subitamente reanimado. - Mas sabeis quanto vos amo e quanto creio em vós.., mesmo agora.
- O que eu estou perguntando é.. se está pedindo, ou não está pedindo a minha mão!
- Estou - respondeu Míchkin com o coração opresso.

     Seguiu-se um movimento geral de pasmo.

- A coisa não é absolutamente assim, meu caro amigo - atalhou Iván Fiódorovitch, violentamente agitado - Isto... isto é quase impossível, se é que é assim, Agláia. Perdoe, príncipe, perdoe,. meu caro amigo!... Lizavéta Prokófievna! - e se voltou pedindo o auxílio da esposa - Tu deves tomar parte nisto...
- Eu não! Recuso-me! - exclamou Lizavéta Prokófievna sacudindo as mãos.
- Deixe que eu fale, mamãe. Neste caso eu valho alguma coisa; o momento capital da minha sorte está sendo decidido (esta foi a expressão usada por Agláia). Eu quero decidir por mim mesma e fico contente de o fazer perante todos aqui. Permita que lhe pergunte, príncipe: se “acaricia tal intenção”, de que modo se propõe a assegurar a minha felicidade? 
- Para falar a verdade, não sei, Agláia Ivánovna; como responder-vos a esta pergunta... Responder o quê? E, além do mais, é isso necessário? 
- Parece-me que está embaraçado e com falta de ar. Descanse um pouco e refaça o seu espírito. Beba um copo de água, embora daqui a pouco lhe tragam um pouco de chá.
- Eu vos amo, Agláia Ivánovna, eu vos amo muitíssimo, não amo senão a vós e... Não gracejeis, imploro-vos.., eu vos amo muitíssimo.
- Trata-se de um assunto importante, aliás, e não somos crianças; devemos encará-lo praticamente... Tenha a bondade de explicar qual é a sua fortuna!
- Agláia, que é isso? Que é que você está fazendo? Não se trata disso, absolutamente não se trata disso -   murmurou Iván Fiódorovitch, desapontado. 
- Que vergonha! - disse Lizavéta Prokófievna em um balbucio audível, ao que Aleksándra, também em um balbucio, rematou. - Ela está fora do seu juízo. 
- A minha fortuna?... Isto é, quanto tenho em dinheiro? - disse o príncipe, aparvalhado.
- Justamente!
- Atualmente... eu tenho cento e trinta e cinco mil rublos - afirmou o príncipe, corando. 
- E é tudo? - disse Agláia, alto, com franca admiração, sem nenhum fingido rubor - Não tem importância, todavia, principalmente vivendo com economia. Pensa entrar para algum cargo?
- Eu estava pensando em me preparar para os exames, a ver se me torno um preceptor...
- Muito apropriado; e nem há dúvida que isso aumentará a sua renda. Pretende então vir a ser um gentil-homem da câmara?
- Gentil-homem da câmara? Nunca pensei nisso, mas...

     Mas a essa altura as duas irmãs não puderam resistir e caíram na gargalhada. Adelaída já havia desde antes reparado pelos traços contraídos do rosto de Agláia sintomas de iminente e irreprimível risada que ela estava a prender com quanta força tinha. Olhou Agláia ameaçadoramente para as irmãs que ainda riam, mas um segundo depois também ela desandou em um acesso de gargalhada frenética e quase histérica. Por fim se levantou e saiu correndo da sala.

- Eu já estava vendo que tudo era brincadeira e nada mais! - exclamou Adelaída.
- Desde o começo, desde a história do ouriço.
- Não, isso não permitirei. De modo algum - e exasperada, fervendo de raiva, Lizavéta Prokófievna se precipitou atrás de Agláia.

     As irmãs correram lá para dentro, imediatamente, atrás dela. O príncipe ficou sozinho na sala, com o chefe da família.

- Isso agora... Poderia você imaginar uma coisa destas, Liév Nikoláievitch? exclamou abruptamente o General Epantchín, mal sabendo o que deveria dizer. - Sim, seriamente, diga-me! 
- Vejo que Agláia Ivánovna está se rindo de mim - disse Míchkin, tristemente.
- Espere um pouco, meu rapaz. Vou até lá e você espere aí um pouco, porque... afinal de contas, você, no mínimo, Liév Nikoláievitch, deve me explicar já agora como foi que tudo isso aconteceu, e que significa isto encarado em conjunto, por assim dizer?! Você há de concordar, meu rapaz - eu sou o pai dela! Seja como for, sou pai... E todavia não compreendo nada; que você ao menos me ponha a par. 
- Eu amo Agláia Ivánovna, ela sabe disso... e eu acho que o sabe há muito tempo.

     O general encolheu os ombros. 

- Estranho, estranho!... E você gosta mesmo muito dela?
- Muito.  
- Pois tudo isso me parece muito estranho. Isto é uma surpresa e um tal golpe que eu... Quer saber de uma coisa, meu rapaz, não se trata de fortuna (embora eu esperasse que você tivesse um pouco mais), mas é a felicidade de minha filha... De fato... está você em condições de assegurar... a felicidade dela? E... e... que significa isso? É brincadeira ou é verdade, da parte dela? Não quanto a você, mas quanto a ela, me refiro eu agora.

     Nisto se ouviu a voz de Aleksándra, lá da porta, chamando o pai.

- Espere um pouco, meu rapaz, espere um pouco! Espere um pouco e fique aí a cogitar. Voltarei já – disse apressadamente, quase que em alarma, avançou lá para dentro em resposta ao chamado.

     Encontrou a mulher e a filha, uma nos braços da outra, misturando as lágrimas. Eram lágrimas de felicidade, de ternura e reconciliação. Agláia estava beijando as mãos da mãe, as faces e os lábios. Permaneciam apertadas em um grande amplexo. 

- Olhe para isto, Iván Fiódorovitch. Aqui está ela, como realmente é - dizia Lizavéta Prokófievna.

     Agláia escorregou aquele seu rosto feliz, banhado de lágrimas, até ao seio materno, e depois olhou para o pai; riu alto, atirou-se sobre ele, abraçou-o calorosamente, beijando-o várias vezes. Depois se atirou de novo sobre sua mãe, e escondeu o rosto completamente no seio dela, sem que ninguém o pudesse ver. E logo desatou a chorar outra vez. Lizavéta Prokófievna cobria-a com a ponta da sua manta.

- Que é que nos estás fazendo, tu, cruel menina, é só o que eu quero saber! - dizia, mas jubilosamente, como se já agora pudesse respirar mais livremente.
- Como sou cruel! Como sou cruel! - concordava ela. - E ruim! Não valho nada. Dize isso a papai. Oh! Sim, ele está aqui. Papai, estás aqui? Estás ouvindo? - e riu por entre as lágrimas. 
- Minha querida! Meu ídolo! - o general beijava-lhe as mãos, todo resplandecente de felicidade. Agláia não retirou a mão. - Assim, pois, tu então amas esse jovem?
- Não! Não posso suportar o teu jovem. Não o tolero! - exclamou Agláia, se inflamando repentinamente, e erguendo a cabeça. - E se tu, papai, ousas outra vez... Eu já disse, papai, eu quero dizer, papai, estás ouvindo, eu quero significar que...

     E certamente que seus modos eram veementes. Ficou vermelha e os seus olhos cintilaram. O pai quedou estático e sem jeito. Mas Lizavéta Prokófievna lhe fez um sinal por detrás da filha e ele tomou tal sinal como significando: “Não faças perguntas.” 

- Se assim é, meu anjo, seja como quiseres, é a ti que cabe decidir; ele ficou esperando lá, sozinho. Deveremos nós dar-lhe a entender que se deva ir embora?

     Iván Fiódorovitch, por seu turno, piscou para a esposa.

- Não, não, isso não é necessário. E nem seria delicado. Tu vais até ele, tu mesmo, papai. E eu entrarei logo a seguir. Desejo pedir perdão a esse bom rapaz, porque feri os seus sentimentos.
- Sim, e de um modo terrível - concordou Iván Fiódorovitch, muito sério.
- Bem, então... o melhor é ficarem aqui e eu entro sozinha. Logo imediatamente depois entram todos. Mas venham imediatamente, mal eu esteja chegando; será melhor.   
 
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (5b) - Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna
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Massa e Poder - Os Montes

Elias Canetti


OS MONTES


      Todos os montes aos quais o homem atribui alguma importância foram por ele reunidos. A unidade de um monte composto de frutas ou grãos é o resultado de uma atividade. Muitas mãos trabalharam na colheita; esta vincula-se a uma determinada época do ano e possui significado tão decisivo que uma antiga divisão do ano tem nela a sua origem. Os homens comemoram com festas a sua alegria acerca dos montes que lograram reunir. Exibem-nos com orgulho. Com frequência, as festas têm lugar ao redor desses montes.
      Aquilo que se reuniu ostenta uma natureza homogênea; trata-se de um determinado tipo de frutos ou grãos. São empilhados o mais densamente possível. Quanto maior a quantidade e a densidade, melhor. Tendo-se já muito à mão, não se precisa trazer mais de longe. O tamanho do monte é importante, e os homens gabam-se disso; ele bastará para todos e por muito tempo apenas se for grande o suficiente. Tão logo tenham se acostumado a colher o conteúdo de seus montes, estes jamais serão grandes o bastante. Recordam-se com maior prazer os anos que trouxeram as maiores bênçãos. Nos anais, tais anos são registrados como os mais felizes. As colheitas competem entre si, de um ano para outro, de um lugar para outro. Sejam eles propriedade de uma comunidade ou de indivíduos, os montes são modelares, e sua segurança, uma garantia.
     É verdade que tais montes são, então, consumidos — repentinamente, em alguns lugares, em ocasiões especiais; outras vezes, com vagar, segundo a necessidade. Sua constância é limitada, e sua diminuição está contida já desde o princípio na ideia que deles se faz. Sua nova reunião encontrar-se-á, então, sujeita ao ritmo das estações do ano e dos períodos de chuva. Toda colheita constitui um amontoar rítmico, e a celebração de festas é determinada por esse mesmo ritmo.

continua página 135...
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Leia também:

Massa e Poder - Os Montes
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas como essa ternura parecia irritar)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Mas como essa ternura parecia irritar Robert, a Sra. de Marsantes arrastou o filho para o fundo do salão, onde, num desvão forrado de seda amarela, algumas poltronas de Beauvais condensavam seus panejamentos violáceos como íris purpurinos num campo de botões-de-ouro.
     A Sra. Swann, achando-se sozinha e tendo compreendido que eu era ligado a Saint-Loup, me fez sinal para que fosse para junto dela. Não a tendo visto há bastante tempo, não sabia de que lhe falar. Não perdia de vista o meu chapéu, entre todos os que se encontravam no tapete, mas perguntava-me, com curiosidade, a quem poderia pertencer um que não era o do duque de Guermantes, em cuja copa a letra G estava superada pela coroa ducal. Eu sabia quem eram todos os visitantes e não achava um só a quem pudesse pertencer o tal chapéu.

- Como é simpático o Sr. de Norpois - disse eu à Sra. Swann, apontando-o. 
- É verdade que Robert de Saint-Loup me disse que é uma peste, mas... 
- Ele tem razão - respondeu ela. 

     E, vendo que seu olhar refletia algo que estava me escondendo, apertei-a com perguntas. Talvez satisfeita por parecer estar muito ocupada com uma pessoa naquele salão, onde não conhecia quase ninguém, ela me levou para um canto.

- Aqui está o que, com certeza, o Sr. de Saint-Loup quis lhe dizer - respondeu ela -, mas não o repita, pois ele me acharia indiscreta e eu faço muita questão de sua estima, sou muito "cavalheiro", você sabe. Ultimamente Charlus tem jantado na casa da princesa de Guermantes; não sei como, falaram de você. O Sr. de Norpois lhes teria dito uma estupidez, não vá se inquietar com isso, ninguém deu importância, sabiam muito bem de que boca saía aquilo que você era um adulador meio histérico. Já falei bem antes do meu espanto que um amigo de meu pai, como era o Sr. de Norpois, pudesse se exprimir dessa maneira ao falar de mim. Experimentei um espanto maior ao saber que minha emoção daquele dia antigo, quando falara da Sra. Swann e de Gilberte, era conhecida da princesa de Guermantes, de quem me julgava ignorado. 

     Cada uma de nossas ações, de nossas palavras, de nossas atitudes, está separada do "mundo", das pessoas que não as perceberam diretamente, por um meio cuja permeabilidade varia ao infinito e nos permanece desconhecida; tendo sabido pela experiência que determinada frase importante que vivamente desejáramos fosse difundida (como aquelas, tão entusiastas, que eu outrora dizia a todo mundo em qualquer ocasião a respeito da Sra. Swann, pensando que entre tantos bons grãos disseminados se encontraria um que germinasse), sucedera, muitas vezes devido ao nosso próprio desejo, ficar imediatamente sepultada, com muito mais razão estávamos longe de crer que certa palavra minúscula, que havíamos esquecido, e até mesmo jamais pronunciada por nós e formada a meio caminho pela refração imperfeita de uma palavra diferente, seria transportada, sem que sua marcha nunca se detivesse, a distâncias infinitas no caso, até a residência da princesa de Guermantes e fosse divertir às nossas custas o festim dos deuses. O que recordamos de nossa conduta permanece ignorado do nosso vizinho mais próximo; o que esquecemos haver dito, ou mesmo aquilo que nunca dissemos, vai causar hilaridade até em outro planeta, e a ideia que os outros fazem de nossos feitos e gestos já não se parece com a que nós próprios deles nos fazemos, assim como um desenho a um decalque mal feito e onde, ora a um traço negro corresponderia um espaço vazio, e a um branco um contorno inexplicável. Além do mais, pode ocorrer que o que não foi reproduzido seja um traço irreal que só vemos por complacência, e que, ao contrário, o que nos parece acrescentado nos pertença de verdade, mas de modo tão essencial que nos escapa inteiramente. De modo que essa prova estranha que nos parece tão pouco semelhante tem às vezes o gênero de verdade, com certeza pouco lisonjeiro, mas profundo e útil, de uma fotografia de raios X. Não é motivo para que nos reconheçamos nela. Alguém que tem o hábito de sorrir ao espelho diante de seu belo rosto e ao seu belo torso, se lhe mostrarmos a sua radiografia, terá, diante dessa enfiada de ossos, indicada como sendo uma imagem de si mesmo, a mesma suspeita de erro daquele que visita uma exposição e que, diante do retrato de uma mulher jovem, lê no catálogo: Dromedário deitado. Mais tarde, essa discrepância, entre a imagem que desenhamos e a que é desenhada por outrem, devia eu descobri-la através de terceiros, que, vivendo devotamente em meio a uma coleção de fotografias que haviam tirado de si mesmos, enquanto à sua volta careteavam imagens horrendas, normalmente invisíveis para eles próprios, sentiam-se profundamente espantados, se por um acaso as mostravam, dizendo:

"É o senhor."

     Alguns anos antes, ficaria muito feliz em dizer à Sra. Swann "com que objetivo" me mostrara tão carinhoso para com o Sr. de Norpois, visto que esse "objetivo" era o desejo de conhecê-la. Porém não o sentia mais, não amava mais a Gilberte. Por outro lado, não conseguia identificar a Sra. Swann com a dama cor-de-rosa da minha infância. Assim, falei da mulher que me preocupava naquele momento. 

- Viu agora há pouco a duquesa de Guermantes? - perguntei à Sra. Swann. 

     Mas, como a duquesa não cumprimentava a Sra. Swann, esta queria dar a impressão de considerá-la uma pessoa sem importância e cuja presença nem sequer se percebe. 

- Não sei, não realizei - disse com ar desagradável, empregando uma palavra traduzida do inglês. 

     Entretanto, eu gostaria de obter informações não só a respeito da Sra. de Guermantes, mas sobre todas as criaturas que tinham relações com ela, e, exatamente como Bloch, com a falta de tato das pessoas que procuram, na conversação, não agradar os outros, mas elucidar egoistamente questões que lhes interessam, interroguei a Sra. de Villeparisis acerca da Sra. Leroi, para tentar imaginar perfeitamente a vida da Sra. de Guermantes. 

- Sim, eu sei - disse ela com desdém fingido -; é filha de um desses grandes comerciantes de madeira. Sei que ela agora dá recepções, mas estou muito velha para fazer novos conhecimentos. Conheci pessoas tão interessantes, tão gentis que, na verdade, creio que a Sra. Leroi não acrescentaria nada ao que já possuo.

     A Sra. de Marsantes, que fazia de dama de honra da marquesa, me apresentou ao príncipe e ainda não tinha acabado quando o Sr. de Norpois me apresentou igualmente nos mais calorosos termos. Talvez achasse cômodo fazer-me uma fineza que não punha em risco o seu crédito, já que eu acabava justamente de ser apresentado, talvez porque pensasse que um estranho, mesmo pessoa ilustre, estivesse menos a par dos salões franceses e quem sabe podia crer que o apresentavam a um rapaz da alta sociedade, talvez para exercer uma de suas prerrogativas, a de acrescentar o peso de sua própria recomendação de embaixador, ou pelo gosto arcaico de fazer reviver, em honra ao príncipe, o uso, lisonjeiro para essa Alteza, de que seriam necessários dois padrinhos para quem lhe quisesse ser apresentado.
     A Sra. de Villeparisis interpelou o Sr. de Norpois, sentindo a necessidade de me dizer, por meio dele, que nada lastimava em não conhecer a Sra. Leroi. 

- Senhor embaixador, não é verdade que a Sra. Leroi é uma pessoa sem interesse, muito inferior a todas estas que se encontram aqui e que tive razão em não atraí-la?

     Seja por independência, seja por cansaço, o Sr. de Norpois se limitou a responder por um cumprimento cheio de respeito, porém vazio de significado. 

- Senhor - disse-lhe rindo a Sra. de Villeparisis -, há pessoas bem ridículas. Creia que tive hoje a visita de um senhor que quis me fazer acreditar que tinha mais prazer em beijar a minha mão do que a de uma jovem.

     Compreendi imediatamente que se tratava de Legrandin. O Sr. de Norpois sorriu com um leve piscar de olho, como se se tratasse de uma concupiscência tão natural que não se poderia querer mal àquele que a sentia, quase um princípio de romance que estava prestes a absolver, até mesmo a encorajar, com uma indulgência perversa à Voisenon ou à Crébillon.

- Muitas mãos de jovens mulheres seriam incapazes de fazer o que vejo ali - disse o príncipe mostrando as aquarelas começadas pela Sra. de Villeparisis. E lhe perguntou se ela havia visto as flores de Fantin-Latour, que acabavam de ser expostas. 
- Elas são de primeira ordem e, como se diz hoje, de um belo pintor, de um dos mestres da palheta -declarou o Sr. de Norpois -; acho apenas que não podem sustentar comparação com as da Sra. de Villeparisis, onde reconheço melhor o colorido da flor. Mesmo considerando que a parcialidade de velho amante, o costume de lisonjear e as opiniões admitidas num círculo ditassem estas palavras ao antigo embaixador, elas entretanto provavam sobre que vazio de gosto genuíno repousa o julgamento artístico das pessoas da sociedade, tão arbitrário que uma ninharia as pode levar aos piores absurdos, quando não encontram pela frente nenhuma impressão verdadeiramente sentida. 
- Não tenho mérito algum em conhecer as flores, sempre vivi no campo - respondeu com modéstia a Sra. de Villeparisis. - Mas acrescentou graciosamente, dirigindo-se ao príncipe -, se desde muito jovem tive, sobre elas, noções um pouco mais sérias do que as outras crianças da roça, devo-as a um homem muito distinto do seu país, o Sr. de Schlegel. Conheci-o em Broglie, aonde minha tia Cordelia (a marechala de Castellane) seu filho me havia levado. Lembro-me muito bem que o Sr. Lebrun, o Sr. de Salvandy e o Sr. Doudan faziam-no falar sobre as flores. Eu era muito pequenina, não podia compreender bem o que ele dizia. Mas ele se divertia em me fazer brincar e, ao voltar ao seu país, enviou-me um belo herbário como lembrança de um passeio que tínhamos feito de phaéton ao Vai Richer, e onde adormeci sobre seus joelhos. Sempre guardei esse herbário, e ele me ensinou a reparar bem nas particularidades das flores, o que não teria percebido sem ele. Quando a Sra. de Barante publicou algumas cartas da Sra. de Broglie, bonitas e afetadas como o era ela própria, esperava eu encontrar ali algumas das conversas do Sr. de Schlegel. Mas tratava-se de uma mulher que só buscava na natureza argumentos para a religião. 

     Robert me chamou do fundo do salão, onde se achava com a mãe. 

- Tens sido gentil - disse-lhe eu. - Como te agradecer? Podemos jantar juntos amanhã? 
- Amanhã, se quiseres, mas então na companhia de Bloch; encontrei-o à porta; após um instante de frieza, pois eu, contra a minha vontade, deixara sem resposta duas cartas dele (não me disse que era isto o que o ofendera, mas o compreendi perfeitamente), mostrou-se de tal modo amável que não pude ser ingrato para um amigo assim.

     Entre nós, da sua parte pelo menos, sinto que é para a vida e para a morte.
     Não creio que Robert se enganasse de modo algum. A difamação furibunda era muitas vezes, em Bloch, o efeito de uma viva simpatia que ele julgava não lhe tributarem. E, como imaginava pouco a vida dos outros, não pensava que pudessem ter estado enfermos ou em viagem, etc.; um silêncio de oito dias lhe parecia decorrer de uma frieza intencional. Assim, eu jamais acreditara que suas piores violências de amigo e, mais tarde, de escritor fossem muito profundas. Exacerbava-se se lhe respondiam com uma dignidade glacial, ou uma trivialidade que o animava a redobrar os golpes, mas cedia com frequência a uma simpatia calorosa. 

- Quanto a ser gentil - continuou Saint-Loup -, pretendes que o tenho sido para contigo, mas não fui gentil de modo nenhum, minha tia disse que tu é que foges dela, que não lhe dizes uma só palavra. Ela se indaga se não tens algo em seu desfavor.

     Felizmente para mim, se me iludia com tais palavras, nossa partida para Balbec, que eu julgava iminente, me impediria de tentar ver de novo a Sra. de Guermantes, de lhe assegurar que nada tinha contra ela e, assim, colocá-la na necessidade de me provar que ela é quem tinha algo contra mim. Mas aquilo bastou-me para lembrar que ela nem sequer me convidara para ir ver os seus Elstirs. Além disso, não se tratava de uma decepção; absolutamente não esperava que ela me falasse nisso; sabia que não lhe agradava, que não podia esperar que me amasse; o máximo a que podia aspirar era que, graças à sua bondade, tivesse dela, já que não deveria revê-la antes de deixar Paris, uma impressão inteiramente afável, que eu levaria a Balbec indefinidamente prolongada, intacta, ao invés de uma recordação mesclada de tristeza e ansiedade.
     A todo momento a Sra. de Marsantes interrompia a conversa com Robert para me dizer o quanto ele lhe falara de mim, o quanto me estimava; tratava-me com uma solicitude que quase me dava pena, pois sentia-a ditada pelo temor de se zangar por minha causa com o filho, esse filho que ainda não vira hoje e com quem estava impaciente por se sentir a sós, e sobre quem, então, julgava que o império que exercia não se igualava ao meu, a que devia poupar. Tendo-me ouvido antes pedir a Bloch notícias do Sr. Nissim Bernard, seu tio, a Sra. de Marsantes indagou se era o mesmo que havia morado em Nice. 

- Nesse caso, conheceu ali o Sr. de Marsantes antes que se casasse comigo -respondera a Sra. de Marsantes. - Meu marido falou-me diversas vezes dele como de um homem excelente, de coração terno e generoso. 

"E dizer que uma vez ao menos ele não mentiu; é incrível!", teria dito Bloch.

     Durante todo esse tempo, desejaria dizer à Sra. de Marsantes que Robert sentia por ela infinitamente mais afeto que por mim e que, mesmo que ela me demonstrasse hostilidade, eu não era de natureza a procurar preveni-lo contra ela. Mas, desde que a Sra. de Guermantes partira, eu estava mais livre para observar Robert, e só então percebi que novamente uma espécie de cólera parecia ter-se erguido nele, aflorando-lhe ao rosto sombrio e endurecido. Temia eu que, à lembrança da cena da tarde, ele se sentisse humilhado diante de mim por ter se deixado tratar tão rudemente pela amante sem retrucar.
     Bruscamente, ele se arrancou de junto da mãe, que lhe passara um braço pelo pescoço e, vindo para mim, arrastou-me para trás do pequeno balcão florido da Sra. de Villeparisis, onde esta voltara a sentar-se, e fez me sinal para que o seguisse ao pequeno salão. Dirigia-me para lá com vivacidade quando o Sr. de Charlus, achando que me encaminhava para a saída, deixou de súbito o Sr. de Faffenheim, com quem estava conversando, e deu uma volta rápida que o pôs cara a cara comigo. Vi com inquietação que pegara o chapéu em cujo fundo havia um G e uma coroa ducal. No vão da porta do pequeno salão, disse-me sem me olhar: 

- Já que o senhor agora freqüenta a sociedade, dê-me então o prazer de ir visitar-me. Mas é bastante complicado - acrescentou com ar distraído e intencional, e, como se se tratasse de um prazer que ele temia não mais encontrar, uma vez que deixasse escapar a ocasião de combinar comigo os meios de realizá-lo. - Paro pouco em casa, seria necessário que o senhor me escrevesse. Porém preferiria lhe explicar isso com mais sossego. Vou sair dentro de um instante. Pode dar dois passos comigo? Não vou detê-lo mais que um momento. 
- Seria melhor que prestasse atenção, senhor - disse-lhe. - Por engano, pegou o chapéu de um dos visitantes. 
- Quer me impedir de pegar meu chapéu?

     Como o mesmo me acontecera um pouco antes, imaginei que alguém levara o seu chapéu e ele tomara um ao acaso para não voltar de cabeça descoberta, e eu o embaraçava ao revelar o seu ardil. Assim, não insisti. Disse-lhe que primeiro tinha de falar com Saint-Loup.

- Ele está falando com aquele idiota do duque de Guermantes - acrescentei. 
- É encantador o que o senhor diz, vou contá-lo ao meu irmão. 
- Ah, o senhor acha que isso pode interessar ao Sr. de Charlus? - (Imaginava que, se ele tinha um irmão, esse irmão deveria chamar-se também Charlus. Saint-Loup me dera algumas explicações a esse respeito em Balbec, mas eu as tinha esquecido.) 
- Quem é que está falando no Sr. de Charlus? - perguntou o barão num tom insolente. - Vá para junto de Robert. Sei que o senhor participou, esta manhã, de um desses almoços de orgia que ele tem com uma mulher que o desonra. O senhor deveria usar de sua influência sobre ele para lhe fazer compreender o desgosto que ele causa à sua pobre mãe, e a nós todos, arrastando o nosso nome na lama.

     Gostaria de lhe ter respondido que no almoço aviltante só se falara de Emerson, Ibsen, Tolstoi, e que a moça rogara a Robert que só bebesse água. A fim de dar um pouco de alívio a Robert, cujo orgulho julgava ferido, procurei desculpar a sua amante. Não sabia que naquele momento, apesar de encolerizado contra ela, era a si mesmo que dirigia as censuras. Mesmo nas brigas entre um homem bondoso e uma mulher malvada, e quando o direito está inteiramente de um lado, ocorre sempre que existe uma ninharia que pode dar à malvada a aparência de não estar errada num determinado ponto. E, como ela despreza todos os outros pontos, por pouco que o bondoso tenha precisão dela e seja desmoralizado pela separação, seu enfraquecimento o tornará escrupuloso, ele se lembrará das censuras absurdas que lhe foram feitas e se indagará se elas não terão algum fundamento. 

- Creio que andei errado nesse caso do colar - disse Robert. - E claro que não procurei com más intenções, mas sei muito bem que os outros não se colocam no mesmo ponto de vista que nós mesmos. Ela teve uma infância muito dura. Para ela eu sou, no entanto, o rico que julga que se pode conseguir tudo através do dinheiro, e contra quem o pobre não pode lutar, trate-se de influenciar Boucheron ou de ganhar um processo no tribunal. Sem dúvida, ela foi bem cruel comigo, que nunca procurei senão o seu bem. Mas percebo perfeitamente que ela acha que eu desejei lhe fazer sentir que se pode sujeitá-la pelo dinheiro, e isto não é verdade. Ela, que me ama tanto, que deverá estar pensando! Pobre querida, se soubesse, ela tem tamanhas delicadezas, não posso te dizer, muitas vezes ela fez coisas adoráveis para mim. Como deve se sentir desgraçada neste momento! Em todo caso, aconteça o que acontecer, não quero que ela me tome por um grosseirão, corro à casa de Boucheron a buscar o colar. Quem sabe, talvez ao ver que ajo assim, reconheça os seus erros. Estás vendo? A ideia de que ela sofre neste momento é o que não consigo suportar! O que a gente sofre, a gente sabe, não é nada. Mas ela, pensar que está sofrendo e não poder imaginá-lo; creio que ficaria louco, preferiria não vê-la nunca mais a deixá-la sofrer. Que seja feliz sem mim, se for preciso, é só o que peço. Escuta, sabes que, para mim, tudo que lhe diz respeito é imenso, assume algo de cósmico, corro para o joalheiro e depois vou lhe pedir perdão. Até chegar lá, que pensará ela de mim? Se ela ao menos soubesse que eu ia vê-la! Poderás passar na casa dela casualmente; quem sabe, tudo se acomodaria talvez. Talvez -disse ele com um sorriso, como se não ousasse crer num tal sonho- iremos todos os três jantar no campo. Mas não é possível saber ainda, nunca sei como tratá-la; pobre pequena, talvez vá machucá-la ainda. E depois, sua decisão talvez seja irrevogável.

     Arrastou-me bruscamente para a sua mãe. 

- Adeus - disse-lhe -; sou obrigado a partir. Não sei quando voltarei de licença, sem dúvida não antes de um mês. Escreverei logo que souber.

     Certamente Robert não era desses filhos que, quando estão na sociedade com a mãe, julgam que uma atitude exasperada em relação a ela deve compensar os sorrisos e cumprimentos que dirigem aos estranhos. Nada é mais comum que essa odiosa vingança dos que parecem achar que a grosseria em relação à família completa naturalmente o tom de cerimônia. Diga o que diga a pobre mãe, o filho, como se levado sem querer e como desejando fazê-la pagar caro a sua presença, refuta imediatamente com uma contradição irônica, precisa, cruel, a asserção timidamente arriscada; a mãe adota logo, sem por isso desarmá-lo, a opinião daquele ser superior que ela continuará a enaltecer a todos, na sua ausência, como sendo um temperamento delicioso e que, no entanto, não lhe poupa nenhum dos dardos mais agudos. Saint-Loup era bem diferente, mas a angústia provocada pela ausência de Rachel fazia que, por motivos diversos, ele se comportasse não menos duramente com a mãe. E às palavras que pronunciou, vi a mesma palpitação, semelhante ao de uma asa, que a Sra. de Marsantes não pudera reprimir à chegada do filho, soerguê-la toda; mas agora era uma fisionomia ansiosa e uns olhos desolados o que ela lhe dirigia. 

- Como, Robert, vais embora? É sério? Meu filhinho! No único dia em que poderia estar contigo!

     E baixinho, no tom mais natural, com uma voz de que se esforçava por banir toda tristeza para não inspirar ao filho uma piedade que talvez fosse cruel para ele, ou inútil, e servisse apenas para irritá-lo, como um argumento de simples bom senso, acrescentou: 

- Sabes que não é gentil o que estás fazendo.

     Mas a essa simplicidade ajuntava tanta timidez, para lhe mostrar que não tolhia a sua liberdade, tanta ternura para que ele não a censurasse por atrapalhar os seus divertimentos, que Saint-Loup não pôde deixar de perceber em si mesmo a possibilidade de um enternecimento, ou seja, um obstáculo para passar o resto da noite com a amiga. Assim, enraiveceu-se: 

- É lamentável, mas, gentil ou não, é assim.

     E fez à mãe as censuras de que sem dúvida se sentia talvez merecedor. É assim que os egoístas têm sempre a última palavra; tendo estabelecido, em primeiro lugar, que a sua resolução é inabalável, quanto mais tocante é o sentimento para o qual lhes apelam com o fim de que renunciem a tal resolução, tanto mais condenáveis julgam, não a si próprios, que lhe resistem, mas aqueles que os põem diante da necessidade de lhe resistir, de modo que sua própria dureza pode chegar à mais extrema crueldade sem que isso, a seus olhos, não faça mais que agravar a culpa da pessoa bastante indelicada para sofrer, para ter razão, e assim covardemente lhes causar a dor de agir contra sua própria piedade. Aliás, por si mesma a Sra. de Marsantes deixou de insistir, pois sentia que não poderia retê-lo. 

- Deixo-te - disse-me ele -; mas não o prenda por muito tempo, mamãe, pois ele precisa fazer uma visita daqui a pouco.

     Percebia eu muito bem que minha presença não podia dar nenhum prazer à Sra. de Marsantes, mas preferia, não saindo com Robert, que ela não me julgasse misturado a esses prazeres que a privavam da sua companhia. Gostaria de encontrar alguma desculpa para a conduta do filho, menos por afeto a ele do que por piedade dela. Mas foi ela quem falou primeiro: 

- Pobre filhinho - disse -, estou certa de que o magoei. Veja, meu senhor, as mães são tão egoístas, e ele, no entanto, tem tão poucos divertimentos, já que vem poucas vezes a Paris. Meu Deus, se ele ainda não saiu, gostaria de ir ao seu encontro, decerto que não para retê-lo, mas para lhe dizer que não lhe quero mal, que acho que ele tem razão. Não se incomoda que eu vá olhar na escada?

     E fomos até lá: 

- Robert, Robert! - gritou ela. - Não, já se foi, é tarde demais.

continua na página 125...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas como essa ternura parecia irritar)
Volume 4
Volume 5
Volume 7