em busca do tempo perdido
volume III
O Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Capítulo Primeiro
Felizmente nos vimos bem depressa desembaraçados da filha de Françoise, que tivera de
se ausentar por várias semanas. Aos conselhos habituais dados em Combray à família de um
enfermo:
"Não vão tentar uma pequena viagem, mudança de ares, a volta do apetite, etc." ela
acrescentara a ideia quase única que forjara especialmente, e que assim repetia todas as vezes
que a víamos, sem se cansar, e como que para metê-la na cabeça dos outros:
- Ele deveria ter se tratado radicalmente desde o começo.
Não preconizava um gênero de cura em vez de outro, desde que o tratamento fosse
radical. Quanto a Françoise, ela via que eram dados poucos remédios à minha avó. Como,
segundo ela, não servem senão para arruinar o estômago, sentia-se contente com isso, porém,
mais do que contente, humilhada. Tinha no sul uns primos relativamente ricos cuja filha,
adoecendo em plena adolescência, morrera aos vinte e três anos; durante alguns anos, o pai e a
mãe se arruinaram na compra de remédios, em consulta a médicos diferentes, em peregrinações
de uma estância termal a outra, até que ela morreu. Ora, isso parecia a Françoise, no caso
desses parentes, uma espécie de luxo, como se eles tivessem tido um castelo ou cavalos de
corrida. Eles próprios, por mais aflitos que estivessem, extraíam uma certa vaidade de tantas
despesas. Não possuíam mais nada, nem principalmente o bem mais precioso, a filha, mas
gostavam de repetir que tinham feito por ela tanto ou mais que as pessoas mais abastadas. Os
raios ultravioleta, a cuja ação fora a infeliz submetida várias vezes por dia, durante meses,
deixavam-nos especialmente lisonjeados. O pai, envaidecido em sua dor por uma espécie de
glória, chegava de vez em quando a falar da filha como de uma estrela da ópera pela qual se
tivesse arruinado. Françoise não era insensível a tanta encenação; a que rodeava a doença de
minha avó lhe parecia meio pobre, boa para uma enferma num teatrinho provinciano.
Houve um instante em que as perturbações da uremia alcançaram os olhos de minha avó.
Durante alguns dias, ela não viu absolutamente nada. Seus olhos não eram de modo algum como
os de um cego, permanecendo os mesmos. E só percebi que ela não enxergava por causa da
estranheza de um certo sorriso de acolhimento que ela exibia logo que abriam a porta, até que lhe
pegavam a mão para dar-lhe bom-dia, sorriso que principiava cedo demais e permanecia
estereotipado em seus lábios, fixo, mas sempre de frente e tentando ser visto de todos os lados,
porque já não dispunha do olhar para regulá-lo, indicar-lhe o momento, a direção, adaptá-lo, fazê
lo variar de acordo com a mudança de lugar ou de expressão da pessoa que acabava de entrar,
porque ficava sozinho, sem um sorriso dos olhos que desviasse um pouco dele a atenção do
visitante, e que desse modo assumia, em sua falta de jeito, uma importância excessiva, dando a
impressão de uma amabilidade exagerada. Depois, a vista voltou completamente; dos olhos, o
mal nômade passou aos ouvidos. Durante alguns dias, minha avó ficou surda. E, como tivesse
medo de ser surpreendida pela entrada súbita de alguém que não ouvira aproximar-se, a todo
momento ela virava a cabeça bruscamente para a porta (embora deitada do lado da parede). Mas
o movimento de seu pescoço era desajeitado, pois não é em poucos dias que nos acostumamos a
essa transposição, senão de olhar os ruídos, ao menos de escutar com os olhos. Por fim as dores
diminuíram, porém o embaraço da fala aumentou. Éramos obrigados a fazer minha avó repetir
quase tudo o que dizia.
Agora minha avó, sentindo que já não a entendiam, renunciava a pronunciar uma só
palavra e permanecia imóvel. Quando me via, experimentava uma espécie de sobressalto como
às pessoas a quem de súbito falta o ar, queria falar-me, mas só articulava sons inteligíveis. Então,
dominada por sua impotência, deixava tombar a cabeça, esticava-se inteiramente na cama, a
fisionomia grave, de mármore, as mãos imóveis sobre o lençol ou ocupando-se de uma ação
puramente material, como a de enxugar os dedos com o lenço. Não queria pensar. Depois
começou a ter uma agitação constante. Incessantemente desejava levantar-se.
Mas nós a impedíamos o mais possível de fazê-lo, com receio de que ela se apercebesse
de sua paralisia. Um dia em que a deixáramos sozinha por um instante, encontrei-a de pé, de
camisola, tentando abrir a janela. Em Balbec, num dia em que tinham salvo, contra a sua vontade,
uma viúva que se jogava ao mar, ela me dissera (talvez movida por um desses pressentimentos
que por vezes lemos no mistério, aliás tão obscuro, de nossa vida orgânica, mas onde parece
refletir-se o futuro) que não conhecia crueldade maior do que arrancar uma desesperada à morte
que ela desejou e fazê-la regressar a seu martírio.
Apenas tivemos tempo de segurar minha avó, que manteve com mamãe uma luta quase
brutal; depois, vencida, sentada à força numa poltrona, abandonou seus intentos, deixou de
lastimar-se, seu rosto se tornou impassível e ela pôs-se a catar cuidadosamente os pelos que em
sua camisola deixara um cobertor que lhe havíamos jogado em cima.
Seu olhar mudou completamente, muitas vezes inquieto, queixoso, desvairado. Já não era
o seu olhar de outrora, era o olhar impertinente de uma velha que está variando.
De tanto lhe perguntar se queria ser penteada, Françoise acabou por se convencer de que
a pergunta vinha de minha avó. Trouxe escovas, pentes, água-de-colônia e um peignoir. Dizia:
- Isto não pode cansar a Sra. Amédée; por mais fraca que a gente esteja, sempre pode ser
penteada. - Isto é, nunca estamos demasiadamente fracos para que outra pessoa não possa, no
que lhe diz respeito, pentear-nos.
Mas, quando entrei no quarto, vi entre as mãos cruéis de Françoise, encantada como se
estivesse a ponto de devolver a saúde à minha avó, sob a desolação de uma velha cabeleira que
não tinha forças para suportar o contato do pente, uma cabeça que, incapaz de manter a posição
que lhe fixavam, tombava numa vertigem contínua, em que o esgotamento das forças se alternava
com a dor. Vi aproximar-se o momento em que Françoise ia acabar e não ousei apressá-lo
dizendo:
"Basta", com medo de que me desobedecesse. Mas, em compensação, precipitei-me
quando, para que minha avó visse se estava bem penteada, Françoise, inocentemente feroz, lhe
chegou um espelho. Primeiro, fiquei feliz em poder arrancá-lo a tempo de suas mãos, antes que
minha avó, de quem havíamos cuidadosamente afastado qualquer espelho, tivesse
inadvertidamente visto uma imagem de si própria que não podia conceber. Mas infelizmente,
quando, um momento após, inclinei-me para ela, a fim de beijar aquela testa que tanto se
cansara, ela me encarou com ar atônito, receoso, escandalizado: não me havia reconhecido.
Segundo o nosso médico, era um sintoma de que aumentava a congestão cerebral. Era
preciso aliviá-lo. Cottard hesitava. Françoise esperou um instante que lhe aplicassem ventosas
"clarificadas". Procurou-lhe os efeitos num dicionário, mas não pôde encontrá-los. Mesmo que
dissesse "escarificadas" em vez de "clarificadas", nem assim teria encontrado tal adjetivo, pois
não o procurava no ''e'' nem no ''c''- de fato, ela dizia "clarificadas", mas escrevia (e
conseqüentemente julgava que era escrito) "esclarificadas". Cottard, o que a decepcionou,
preferiu as sanguessugas, mas sem muita esperança. Quando, horas depois, entrei no quarto de
minha avó, presas à sua nuca, às suas têmporas, às suas orelhas, as pequenas serpentes negras
se estorciam na cabeleira ensangüentada, como as da Medusa. Mas, em seu rosto pálido e
apaziguado, inteiramente imóvel, vi totalmente abertos, luminosos e calmos, seus belos olhos de
outrora, talvez ainda mais carregados de inteligência do que antes da enfermidade, porque, visto
que ela não podia falar, não devia mexer-se, era só a seus olhos que confiava o pensamento, o
pensamento que ora ocupa em nós lugar imenso, oferecendo-nos tesouros insuspeitados, ora
parece estar reduzido a nada e depois renascer como que por geração espontânea, graças a
algumas gotas de sangue que são retiradas seus olhos doces e líquidos como o óleo em que de
novo ardia o fogo aceso, iluminando diante da enferma o universo reconquistado. Sua calma não
era mais o sossego do desespero, mas da esperança. Compreendia que estava melhor, queria
ser prudente, não se mover, e fez-me apenas o dom de um belo sorriso para que eu soubesse
que se sentia melhor, e me apertou levemente a mão.
Sabia eu que desgosto causava à minha avó a vista de certos animais e, com mais forte
razão, o ser tocada por eles. Sabia que era em consideração a uma utilidade superior que tolerava
as sanguessugas. Assim, Françoise me exasperava ao repetir-lhe com esses risinhos que a gente
tem com as crianças que desejamos fazer brincar:
- Oh, esses bichinhos que estão correndo sobre a senhora! -
Além do mais, aquilo era tratar sem respeito a nossa doente, como se ela tivesse voltado a
ser criança.
Porém minha avó, cuja fisionomia assumira a calma bravura de um estoico, nem sequer
parecia ouvi-la.
Infelizmente, logo que foram retiradas as sanguessugas, a congestão se tornou cada vez
mais grave. Surpreendeu-me que, naquele momento em que minha avó estava tão mal, Françoise
desaparecesse a todo instante. É que havia encomendado um vestido de luto e não queria fazer
esperar a costureira. Na vida da grande maioria das mulheres, tudo, mesmo o desgosto mais
profundo, redunda numa questão de prova de roupa.
Alguns dias depois, enquanto eu dormia, minha mãe veio me chamar no meio da noite.
Com a atenção carinhosa que, nas grandes ocasiões, as pessoas acabrunhadas por uma dor
profunda evidenciam mesmo para com os pequenos incômodos alheios, ela me disse:
- Perdoa-me vir perturbar o teu sono.
- Não estava dormindo - respondi, acordando.
Dizia-o de boa-fé. A grande modificação que provoca em nós o despertar é menos o fato
de nos introduzir na vida clara da consciência do que de nos fazer perder a lembrança da luz um
tanto mais nuançada em que repousava a nossa inteligência, como no fundo opalino das águas.
Os pensamentos meio velados, sobre os quais ainda há pouco deslizávamos, conduziam em nós
um movimento perfeitamente suficiente para que pudéssemos designá-los com o nome de vigília.
Mas o despertar então encontra uma interferência de memória. Pouco depois, denominamo-lo de
sono porque não nos lembramos mais dele. E quando reluz essa brilhante estrela, que, no
momento do despertar, ilumina por detrás de quem dorme o seu sono inteiro, ela o faz crer,
durante alguns segundos, que não se tratava de sono e sim de vigília. Na verdade, estrela
cadente que, com sua luz, transporta a existência mentirosa, mas também os aspectos do sono, e
só permite ao que desperta dizer consigo:
"Dormi."
Com uma voz tão doce que parecia recear me fazer mal, minha mãe me perguntou se não
me cansaria muito levantar-me, e, acarinhando-me as mãos:
- Meu pobre menino, só poderás contar agora com teu papai e tua mamãe.
Entramos no quarto. Curvada em semicírculo sobre a cama, um ser diverso que não a
minha avó, uma espécie de animal que se tivesse disfarçado com seus cabelos e deitado em seus
lençóis, arquejava e se lamuriava, sacudindo as cobertas com suas convulsões. As pálpebras
estavam fechadas, e era porque fechavam mal, antes que porque se abrissem, que deixavam ver
um canto da pupila, velado, remelento, refletindo a obscuridade de uma visão orgânica e de um
sofrimento interno. Toda essa agitação não se dirigia a nós, que ela não via nem conhecia.
Mas, se era apenas um animal que ali se debatia, onde estava a minha avó? No entanto, a
gente reconhecia o formato de seu nariz, agora desproporcionado em relação ao rosto, mas junto
ao qual continuava um sinalzinho, e sua mão que afastava as cobertas com um gesto que outrora
indicava que as cobertas a incomodavam e que agora não significava coisa alguma.
Mamãe me pediu que trouxesse um pouco d'água com vinagre para molhar a testa de
minha avó. Era a única coisa que a refrescava, segundo mamãe, que a via tentar afastar os
cabelos. Mas da porta fizeram-me sinal que voltasse. A nova de que minha avó estava nas últimas
espalhara-se imediatamente pela casa. Um desses "extras" que mandam chamar nos períodos
excepcionais para aliviar o trabalho dos criados, o que transforma as agonias em algo semelhante
a festas, acabava de fazer entrar o duque de Guermantes, o qual, parado na antessala,
perguntava por mim; não pude fugir-lhe.
- Acabo de saber, meu caro senhor, essas notícias macabras. Gostaria de apertar a mão
de seu pai em sinal de condolências.
Desculpei-me com a dificuldade de incomodá-lo naquele momento. O Sr. de Guermantes
caía como no instante em que se parte de viagem. Porém sentia de tal modo a importância da
cortesia que estava nos fazendo, que isso lhe ocultava o resto e ele queria absolutamente entrar
no salão. Em geral, tinha o hábito de cumprir integralmente as formalidades com que decidira
honrar alguém, e pouco se importava se as malas fossem feitas ou que o esquife estivesse
pronto.
- Mandaram chamar Dieulafoy? Ah, é um grave erro. E se me tivessem dito, ele teria vindo
por minha causa; não me recusa nada, embora se tenha negado a ir à casa da duquesa de
Chartres. Como vêem, coloco-me decididamente acima de uma princesa de sangue real. Aliás,
diante da morte, somos todos iguais - acrescentou, não para me convencer de que minha avó se
tornaria sua igual, mas tendo talvez percebido que uma conversação prolongada, relativamente a
seu poder sobre Dieulafoy e à sua preeminência sobre a duquesa de Chartres, não seria de bom
tom. De resto, seu conselho não me espantava. Sabia que em casa dos Guermantes citava-se
com frequência o nome de Dieulafoy (apenas com um pouco mais de respeito) como o de um
"fornecedor" sem rival. E a velha duquesa de Mortemart, nascida Guermantes (impossível
compreender por que razão, quando se trata de uma duquesa, dizem quase sempre: "a velha
duquesa de" ou, ao contrário, com um ar fino e Watteau, se ela é jovem, "a duquesinha de"),
preconizava quase mecanicamente e com um piscar de olhos nos casos graves:
"Dieulafoy, Dieulafoy", como se tivessem necessidade de um sorveteiro "Poiré Blanche"
ou, para os biscoitos, "Rebattet, Rebattet". Mas eu ignorava que meu pai acabava de mandar
chamar precisamente Dieulafoy.
Nesse momento, minha mãe, que esperava com impaciência os balões de oxigênio que
deveriam tomar mais fácil a respiração de minha avó, entrou ela mesma na antessala, onde não
imaginava encontrar o Sr. de Guermantes. Gostaria de tê-lo escondido em qualquer lugar. Porém,
persuadido de que nada era mais essencial nem lisonjeiro para minha mãe, nem mais
indispensável para manter sua reputação de perfeito cavalheiro, ele me pegou violentamente pelo
braço e, apesar de eu me defender como contra uma violação, repetindo:
"Cavalheiro, Cavalheiro, Cavalheiro", arrastou-me em direção a mamãe, dizendo-me: -
Quer me fazer a grande honra de me apresentar à senhora sua mãe? - derrapando um pouco na
palavra mãe. E de tal modo achava que a honra era somente dela, que não podia evitar um
sorriso, fazendo uma cara solene. Não pude deixar de nomeá-lo, o que logo deslanchou, de sua
parte, reverências e pulinhos de dança, e ele ia recomeçar o cerimonial completo da saudação.
Pensava até em travar conversa, porém minha mãe, mergulhada em sua dor, disse-me que
voltasse depressa e nem sequer respondeu às frases do Sr. de Guermantes, que, esperando ser
recebido como visita e vendo pelo contrário que o deixavam sozinho na antessala, teria acabado
por sair se, no mesmo instante, não tivesse visto entrar Saint-Loup, que chegara naquela manhã a
Paris e acorrera em busca de novidades.
- Ah, esta é muito boa! - gritou alegremente o duque segurando o sobrinho pela manga,
que quase lhe arrancou, sem se preocupar com a presença de minha mãe que voltava a
atravessar a antessala. Saint-Loup não estava aborrecido, creio, apesar de sua mágoa sincera,
nem evitava estar comigo, considerando as suas disposições a meu respeito. Foi-se, arrastado
pelo tio que, tendo algo de muito importante para lhe dizer, e que quase fora a Doncieres com
essa intenção, não cabia em si de contente por se ter poupado tamanho incômodo.
- Ah, se me tivessem dito que bastaria atravessar o pátio e te encontraria aqui, teria
julgado que era uma grande piada! Como diria o teu camarada Bloch, é de matar. - E, afastando
se com Robert, a quem segurava pelo ombro: - Dá no mesmo repetia -, bem se vê que acabo de
tocar em corda de enforcado ou coisa parecida; tenho uma sorte bárbara! -
Não é que o duque de Guermantes fosse mal-educado, muito pelo contrário. Mas era
desses homens incapazes de se pôr no lugar dos outros, desses homens semelhantes nisso à
maioria dos médicos e coveiros, e que, depois de assumir uma fisionomia solene e dizer:
"São momentos muito penosos", e abraçar-nos e aconselhar-nos o repouso, só
consideram uma agonia ou um enterro como uma reunião mundana mais ou menos restrita, em
que, com uma jovialidade por um instante recalcada, procuram com o olhar a pessoa a quem
podem falar de suas ninharias, pedir que os apresentem a uma outra, ou oferecer um lugar no
carro para levá-las de volta. O duque de Guermantes, felicitando-se pelos "bons ventos" que o
haviam impelido para o sobrinho, ficou tão espantado com a acolhida, todavia tão natural, de
minha mãe que mais tarde declarou que ela era tão desagradável quanto cortês era meu pai, que
ela tinha "ausências", durante as quais não parecia sequer ouvir as coisas que lhe diziam e que,
em sua opinião, não estava em seu perfeito juízo ou talvez não o tivesse de todo. Por fim
consentiu, pelo que me disseram, em atribuir aquilo em parte às "circunstâncias" e declarar que
minha mãe lhe parecera muito "afetada" pelo acontecimento. Mas guardava ainda nas pernas o
restante das saudações e reverências para trás que o haviam impedido de executar até o fim, e
aliás percebia tampouco o que era o desgosto de minha mãe que me perguntou, na véspera do
enterro, se eu não procurava distraí-la.
Um cunhado de minha avó, que era religioso e a quem eu não conhecia, telegrafou da
Áustria, onde estava o prior de sua ordem, e, tendo obtido autorização por favor excepcional, veio
naquele dia. Acabrunhado de tristeza, lia ao pé da cama textos de rezas e meditações, sem no
entanto desviar da enferma os olhos pequeninos. Num momento em que minha avó estava sem
sentidos, a vista da tristeza daquele padre me fez mal, e o encarei. Pareceu surpreender-se com
minha piedade e então ocorreu algo singular. Juntou as mãos sobre o rosto como um homem
absorvido em dolorosa meditação, mas, compreendendo que eu ia desviar os olhos dele,
verifiquei que deixara os dedos um pouco separados. E, no momento em que meu olhar o deixou,
percebi que seu olho agudo se aproveitara daquele abrigo das mãos para observar se minha dor
era sincera. Estava emboscado ali como na sombra de um confessionário. Percebeu que o estava
observando e logo fechou hermeticamente a grade dos dedos que deixava entreaberta. Mais
tarde voltei a vê-lo, e nunca se cuidou entre nós daquele instante. Ficou tacitamente combinado
que eu não notara que ele me espiava. No padre, como no alienista, há sempre um tanto de juiz
de instrução. Aliás, qual o amigo, por mais caro que seja, em cujo passado, em comum com o
nosso, não tenha havido esses minutos em que achamos mais cômodo persuadir-nos de que ele
os esqueceu?
O médico deu uma injeção de morfina e, para tornar menos penosa a respiração, pediu
balões de oxigênio. Minha mãe e o doutor os seguravam nas mãos; logo que um terminava,
passava-se a outro. Eu saíra um momento do quarto. Ao voltar, achei-me como que diante de um
milagre. Acompanhada em surdina por um murmúrio incessante, minha avó parecia dirigir-nos um
longo cântico feliz que preenchia o quarto, rápido e musical. Logo compreendi que esse cântico
não era menos inconsciente, que era tão puramente mecânico feito o arquejar de ainda há pouco.
Talvez refletisse em fraca medida algum bem-estar causado pela morfina. Resultava, sobretudo,
como o ar já não passava da mesma maneira pelos brônquios, de uma mudança de registro da
respiração. Aliviado graças ao duplo efeito do oxigênio e da morfina, o sopro de minha avó já não
gemia nem se debatia, porém vivo, leve, deslizava, patinando, para o fluido delicioso. Talvez o
hálito, insensível como o do vento na flauta de um caniço, se misturasse, nesse cântico, a alguns
desses suspiros mais humanos que, liberados pela aproximação da morte, fazem acreditar em
impressões de sofrimento ou de felicidade naqueles que já não sentem mais nada, e vinham
acrescentar um acento mais melodioso, mas sem mudar de ritmo, a essa longa frase que se
elevava, subia ainda, e depois recaía, para erguer-se de novo do peito aliviado em perseguição ao
oxigênio. Depois, chegado assim tão alto, prolongado com tanta força, o cântico, mesclado a um
murmúrio de súplicas na volúpia, parecia deter-se em certos momentos, exatamente como uma
fonte esgotada.
Françoise, quando possuída de grande desgosto, experimentava a necessidade bem inútil
de exprimi-lo, mas não tinha a arte tão simples. Julgando minha avó inteiramente perdida, eram as
suas próprias impressões que se esforçava para nos dar a conhecer. E só sabia repetir:
- Isso me dá uma coisa... no mesmo tom com que dizia quando tomava muita sopa de
couve: - Tenho um peso no estômago o que, em ambos os casos, era mais natural do que ela
parecia julgar. Tão fracamente traduzido, seu desgosto não era menos intenso, agravado pelo
aborrecimento de que sua filha, retida em Combray (que a jovem parisiense denominava agora a
cambrousse e onde se sentia transformar-se pétrousse), não pudesse verossimilmente voltar para
a cerimônia fúnebre que Françoise sentia dever ser algo magnífico. Como sabia que éramos
pouco expansivos, convocara previamente Jupien para todas as tardes da semana. Sabia que ele
não estaria livre à hora do enterro. Queria ao menos, na volta, contar-lhe.
Fazia várias noites que meu pai, meu avô e um de nossos primos velavam e não saíam
mais da casa. Seu devotamento contínuo acabava por assumir uma máscara de indiferença, e a
interminável ociosidade em torno dessa agonia fazia-os dizerem as mesmas frases que são
inseparáveis de uma estada prolongada num vagão de estrada de ferro. Além do mais, esse primo
(sobrinho de minha tia-avó) causava-me tanta antipatia quanta estima merecia e geralmente
obtinha. Conjurava-no sempre com as perífrases em uso, como as almas do outro mundo, se
assombrava ao menor ruído, dizia:
- Parece-me que é ela. -
Mas, em vez de terror, era uma doçura infinita o que essas palavras despertavam em
minha mãe, que desejaria tanto que os mortos voltassem, para às vezes ter a mãe a seu lado.
Voltando agora àquelas horas de agonia:
- Sabe o que é que as irmãs dela nos telegrafaram? - perguntou meu avô a meu primo.
- Sim, Beethoven, disseram-me; é de se pôr num quadro, e isso não me espanta.
- Minha pobre mulher que as amava tanto - disse meu avô enxugando uma lágrima. - Não
devemos lhes querer mal. São doidas varridas, eu sempre disse. Que está acontecendo, não dão
mais oxigênio?
Minha mãe disse:
- Mas então mamãe vai recomeçar a respirar mal.
O médico respondeu:
- Oh não, o efeito do oxigênio vai durar ainda um bom tempo; vamos recomeçar daqui a
pouco.
Parecia-me que não se teria dito isso no caso de uma agonizante e que, se esse bom
efeito deveria durar, é que tinham algum poder em sua vida. O silvo do oxigênio cessou durante
alguns momentos. Mas a queixa feliz da respiração continuava a jorrar sempre, leve, atormentada,
incompleta, recomeçando sem cessar. Por instantes, parecia que tudo estava acabado, o sopro se
extinguia, seja por essas mesmas mudanças de oitavas que há na respiração de uma pessoa que
dorme, seja por uma intermitência natural, um efeito da anestesia, o progresso da asfixia, alguma
fraqueza do coração. O médico voltou a tomar o pulso de minha avó, mas, como se um afluente
viesse trazer seu tributo à corrente ressequida, já um novo canto se harmonizava à frase
interrompida. E esta continuava em outro diapasão com o mesmo impulso inesgotável.
Quem sabe se, mesmo que minha avó disso não tivesse consciência, tantos estados
ternos e venturosos não escapavam dela agora como esses gases mais leves contidos durante
longo tempo? Dir-se-ia que tudo o que ela tinha para nos contar se expandia, que era a nós que
se dirigia com aquela prolixidade, aquela pressa, aquela efusão.
Ao pé da cama, convulsa por todos os haustos daquela agonia, não chorando mais, mas
às vezes inundada em lágrimas, minha mãe apresentava a desolação sem pensamento de uma
folhagem que a chuva açoita e o vento revolve. Mandaram-me enxugar os olhos antes de ir beijar
a minha avó.
- Mas eu julgava que ela não via mais - observou meu pai.
- Nunca se sabe replicou o doutor.
Quando meus lábios a tocaram, as mãos de minha avó se agitaram, ela foi toda percorrida
por um longo tremor, seja por reflexo, seja porque certas afeições tenham a sua hiperestesia que
reconhece, através do véu da inconsciência, aquilo que elas quase não necessitam de sentidos
para amar. De súbito, minha avó se ergueu a meio, fez um esforço violento, como alguém que
defende sua vida. Françoise não pôde resistir àquela cena e rompeu em soluços. Lembrando-me
do que dissera o médico, tentei fazê-la sair do quarto. Nesse momento, minha avó abriu os olhos.
Precipitei-me para Françoise a fim de lhe ocultar as lágrimas, enquanto meus pais falavam à
doente.
O rumor do oxigênio silenciara, o médico se afastou da cama.
Minha avó estava morta.
continua na página 153...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Felizmente nos vimos bem depressa)
Volume 4
Volume 5
Volume 7