sábado, 27 de dezembro de 2025

Espumas Flutuantes - HEBREIA

Castro Alves

À memória de Meu Pai, 
de Minha Mãe 
e de Meu Irmão 
O. D. C. 

HEBREIA 
 Flos campi et lilium convalium
 Cântico dos Cânticos

     Pomba d’esp’rança sobre um mar d’escolhos! 
 Lírio do vale oriental, brilhante! 
 Estrela vésper do pastor errante! 
 Ramo de murta a rescender cheirosa!...

Tu és, ó filha de Israel formosa... 
 Tu és, ó linda, sedutora Hebréia... 
 Pálida rosa da infeliz Judéia 
 Sem ter o orvalho, que do céu deriva! 

Por que descoras, quando a tarde esquiva 
 Mira-se triste sobre o azul das vagas? 
 Serão saudades das infindas plagas, 
 Onde a oliveira no Jordão se inclina? 

Sonhas acaso, quando o sol declina, 
 A terra santa do oriente imenso? 
 E as caravanas no deserto extenso? 
 E os pegureiros da palmeira à sombra?!...

Sim, fora belo na relvosa alfombra, 
 Junto da fonte, onde Raquel gemera, 
 Viver contigo qual Jacó vivera 
 Guiando escravo teu feliz rebanho...  

Depois nas águas de cheiroso banho 
 — Como Susana a estremecer de frio — 
 Fitar-te, ó flor do Babilônio rio, 
 Fitar-te a medo no salgueiro oculto... 

Vem pois!... Contigo no deserto inculto 
 Fugindo às iras de Saul embora, 
 Davi eu fora, — se Micol tu foras, 
 Vibrando na harpa do profeta o canto... 

Não vês?... Do seio me goteja o pranto 
 Qual da torrente do Cedrón deserto!... 
 Como lutara o patriarca incerto 
 Lutei, meu anjo, mas caí vencido. 

Eu sou o Lótus para o chão pendido. 
 Vem ser o orvalho oriental, brilhante!... 
 Ai! guia o passo ao viajor perdido, 
 Estrela vésper do pastor errante!...
Bahia, 1866


QUEM DÁ AOS POBRES, EMPRESTA A DEUS
Ao Gabinete Português de Leitura, por ocasião de oferecer o produto de um
benefício às famílias dos soldados mortos na guerra

Eu, que a pobreza de meus pobres cantos 
 Dei aos heróis — aos miseráveis grandes —, 
 Eu, que sou cego, — mas só peço luzes... 
 Que sou pequeno, — mas só fito os Andes... 
 Canto nest’hora, como o bardo antigo 
 Das priscas eras, que bem longe vão, 
 O grande NADA dos heróis, que dormem 
 Do vasto pampa no funéreo chão...

Duas grandezas neste instante cruzam-se! 
 Duas realezas hoje aqui se abraçam!... 
 Uma — é um livro laureado em luzes... 
 Outra — uma espada, onde os lauréis se enlaçam. 
 Nem cora o livro de ombrear co'o sabre... 
 Nem cora o sabre de chamá-lo irmão... 
 Quando em loureiros se biparte o gládio 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

E foram grandes teus heróis, ó pátria, 
 — Mulher fecunda, que não cria escravos —,  
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos: 
 “Parti — soldados, mas voltai-me — bravos!” 
 E qual Moema desgrenhada, altiva, 
 Eis tua prole, que se arroja então, 
 De um mar de glórias apartando as vagas 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

E esses Leandros do Helesponto novo 
 Se resvalaram — foi no chão da história... 
 Se tropeçaram — foi na eternidade... 
 Se naufragaram — foi no mar da glória... 
 E hoje o que resta dos heróis gigantes?... 
 Aqui — os filhos que vos pedem pão... 
 Além — a ossada, que branqueia a lua, 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

Ai! quantas vezes a criança loura 
 Seu pai procura pequenina e nua, 
 E vai, brincando co'o vetusto sabre, 
 Sentar-se à espera no portal da rua... 
 Mísera mãe, sobre teu peito aquece 
 Esta avezinha, que não tem mais pão!...
Seu pai descansa — fulminado cedro — 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

Mas, já que as águias lá no Sul tombaram 
 E os filhos d’águias o Poder esquece... 
 É grande, é nobre, é gigantesco, é santo!... 
 Lançai — a esmola, e colhereis — a prece!... 
 Oh! dai a esmola... que, do infante lindo 
 Por entre os dedos da pequena mão, 
 Ela transborda... e vai cair nas tumbas 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

Há duas coisas neste mundo santas: 
 — O rir do infante, — o descansar do morto... 
 O berço — é a barca, que encalhou na vida, 
 A cova — é a barca do sidéreo porto... 
 E vós dissestes para o berço — Avante! — 
 Enquanto os nautas, que ao Eterno vão, 
 Os ossos deixam, qual na praia as âncoras, 
 Do vasto pampa no funéreo chão. 

É santo o laço, em qu’hoje aqui se estreitam 
 De heroicos troncos — os rebentos novos —! 
 É que são gêmeos dos heróis os filhos 
 Inda que filhos de diversos povos! 
 Sim! me parece que n’est'hora augusta 
 Os mortos saltam da feral mansão...  
E um “bravo!” altivo de além-mar partindo 
 Rola do pampa no funéreo chão!...

São Salvador, 31 de outubro de 1867 

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Prólogo / Hebreia
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Antônio Frederico de Castro Alves - foi um poeta, dramaturgo e advogado brasileiro, considerado o principal representante da terceira geração do romantismo no Brasil. Ficou conhecido por seus poemas abolicionistas, que renderam-lhe a alcunha de "poeta dos escravos".
Nascimento: 14 de março de 1847, Castro Alves, Bahia - Falecimento: 6 de julho de 1871, Salvador, Bahia. 
Influenciado por: Gonçalves Dias, Lord Byron, Victor Hugo, 
Formação: Faculdade de Direito do Recife | FDR, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) 
Pais: Clélia Brasília da Silva Castro, Antônio José Alves
Irmãos: Adelaide Alves, Cassiano José Alves
O “poeta dos escravos” foi um poeta sensível aos graves problemas sociais do seu tempo. Expressou sua indignação contra as tiranias e denunciou a opressão do povo.
A poesia abolicionista é sua melhor realização nessa linha, denunciando energicamente a crueldade da escravidão e clamando pela liberdade. Seu poema abolicionista mais famoso é “O Navio Negreiro”.

Paco de Lucía

Violão flamenco

Sevilla

o maior violonista flamenco de todos os tempos!


Paco de Lucía se apresentando ao vivo no concerto da Expo '92 em Sevilha, Espanha.






Descubra "O Legado Oculto de Paco de Lucía", uma história fascinante sobre o gênio que revolucionou o flamenco, mas deixou profundas questões em aberto. O que seus filhos herdam quando o sobrenome é imortal, mas o pai estava ausente? Junte-se a nós nesta jornada que revela os amores, sacrifícios e complexas batalhas judiciais que moldaram a vida dos cinco herdeiros do maior guitarrista de flamenco de todos os tempos. De um amor proibido que desafiou a aristocracia espanhola a um triunfo em uma batalha pelos direitos autorais, esta é uma história de família, arte e a árdua responsabilidade de proteger um legado cultural incomparável. Não perca esta comovente crônica que mudará sua perspectiva sobre o mito de Paco de Lucía e seu impacto duradouro!





Paco De Lucía - Tico Tico no fubá






Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X - Segunda Parte(a)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção X

DOS MILAGRES[1*]
SEGUNDA PARTE
 
.

     No raciocínio precedente supusemos que o testemunho sobre o qual se baseia o milagre pode talvez equivaler a uma prova completa e que a falsidade deste testemunho seria um verdadeiro prodígio. Mas é fácil mostrar que temos sido muito generosos em nossa concessão e que jamais houve um evento miraculoso estabelecido[1] sobre uma evidência tão completa.
     Porque, em primeiro lugar, não se pode encontrar em toda a história nenhum milagre testificado por número suficiente de homens de tão indubitável bom senso, educação e instrução que nos assegurassem contra todo logro de sua parte; de tão indubitável integridade que os pusesse fora de qualquer suspeita de querer enganar os outros; de tal crédito e de tal reputação aos olhos dos homens que perderiam muito se fossem descobertos em alguma falsidade; e, ao mesmo tempo, testificando fatos realizados de um modo tão público e numa parte do mundo tão famosa que seria inevitável a descoberta da falsidade; todas essas circunstâncias são necessárias para fornecer-nos completa segurança no testemunho humano.  
     Em segundo lugar, podemos observar na natureza humana um princípio que, se examinado com rigor, diminuirá extremamente a segurança que poderíamos ter acerca de algum gênero de prodígio, devido ao testemunho humano. O princípio que geralmente nos orienta em nossos raciocínios estipula que os objetos dos quais não temos nenhuma experiência se assemelham àqueles de que temos experiência; que o que temos visto e é o mais usual é sempre o mais provável; e que, se houver oposição de argumentos, devemos dar preferência aos que se fundam sobre maior número de experiências passadas. Porquanto, procedendo segundo esta regra, rejeitamos rapidamente um fato raro e inacreditável em escala ordinária; ao avançar mais, contudo, o espírito nem sempre respeita a mesma regra; admitindo apressadamente, ao contrário, algo que se afirma completamente absurdo e miraculoso, em virtude da mesma circunstância que deveria destruir toda a sua autoridade. A paixão da surpresa e da admiração resultantes dos milagres, é uma emoção agradável que produz uma tendência sensível para que acreditemos nos eventos dos quais derivam. Isto vai tão longe que mesmo aqueles que não podem usufruir imediatamente deste prazer, nem podem acreditar nos eventos miraculosos que lhes comunicam, sentem indubitavelmente prazer em participar de uma satisfação de segunda mão ou por ricochete, e sentem orgulho e deleite a seguir em excitar a admiração dos outros.
     Com que avidez se recebem os relatos miraculosos dos viajantes, suas descrições de monstros marinhos e terrestres, suas narrações de aventuras maravilhosas, de homens e costumes estranhos? Entretanto, se o espírito religioso se liga ao amor do maravilhoso, acaba se todo o bom senso, e o testemunho humano, nestas circunstâncias, perde todas as suas pretensões de autoridade. O beato pode ser um entusiasta e imagina que vê coisas que são irreais; pode estar ciente de que sua narrativa é falsa e assim mesmo persiste nela com as melhores intenções do mundo, a fim de promover uma causa tão sagrada. Ou mesmo, se esta ilusão não ocorre, a vaidade excitada por uma tentação tão forte atua nele mais poderosamente do que nos outros homens em outras circunstâncias; ademais, o interesse pessoal age com igual força. Seus ouvintes podem não ter, e geralmente não têm, argumentos suficientes para debater seu testemunho; renunciam por princípio a todo senso crítico em relação aos assuntos misteriosos e sublimes; ou, se tivessem grande desejo em empregá-lo, a paixão e uma imaginação ardentes perturbariam a regularidade de suas operações. Sua credulidade aumenta sua imprudência e sua imprudência subjuga sua credulidade.
     A eloquência, no seu mais alto grau, sobrepuja a razão e a reflexão; mas como ela se dirige inteiramente à fantasia ou aos afetos, cativa os ouvintes condescendentes e subjuga seu entendimento. Felizmente, é raro que alcance esta culminância. Mas o que um Cícero ou um Demóstenes raramente podiam realizar sobre um auditório romano ou ateniense, qualquer capuchinho, qualquer predicador itinerante ou sedentário pode desempenhar em maior grau sobre a maioria dos homens, atingindo semelhantes paixões grosseiras e vulgares.
     Os numerosos exemplos de milagres forjados, de profecias e de eventos sobrenaturais que, em todas as épocas, têm sido revelados por testemunhas que se opõem ou que se retratam a si mesmos por seu absurdo, são provas suficientes da forte tendência humana para o extraordinário e o maravilhoso e deveriam razoavelmente engendrar suspeitas contra todos os relatos deste gênero. Pois esta é nossa maneira natural de pensar, inclusive em relação aos eventos mais comuns e mais críveis. Não há, por exemplo, gênero de relato que surja tão facilmente e se propague tão depressa, especialmente no campo e nas aldeias de província, como aqueles que se referem aos casamentos; de tal modo que, se duas pessoas jovens de igual condição social são vistas um par de vezes juntas, toda a vizinhança pensa imediatamente em uni-las. O prazer de contar uma novidade tão interessante, de propagá-la e de ser o primeiro a informá-la, invade a inteligência. E isto é tão conhecido que nenhuma pessoa de bom senso presta atenção a tais relatos, até que os veja confirmados por alguma maior evidência. A maioria dos homens não é levada, devido às paixões e outras causas mais fortes, a crer e a transmitir, com a máxima veemência e segurança, todos os milagres religiosos?[2]
     Em terceiro lugar, o fato de que os relatos sobrenaturais proliferam principalmente entre as nações ignorantes e bárbaras constitui forte suspeita contra eles; e se um povo civilizado tem admitido alguns destes relatos, decorre do fato de tê-los recebido de ancestrais ignorantes e bárbaros, que os transmitiram com a sanção e a autoridade invioláveis que sempre acompanham as opiniões recebidas. Quando examinamos as primeiras histórias de todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo, onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios, presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais que se misturam a eles. Mas, como o seu número diminui a cada página, à medida que nos aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada de misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.
     É estranho, tende a dizer um leitor judicioso, depois de ler atentamente estes historiadores maravilhosos, que tais eventos prodigiosos não ocorram jamais em nossos dias! Mas creio eu que não há nada de estranho que os homens mintam em todas as épocas. Deveis, certamente, ter encontrado muitos exemplos desta debilidade. Haveis, vós mesmos, ouvido muitos destes relatos maravilhosos que, desprezados por todas as pessoas sábias e sensatas, têm sido finalmente abandonados até pelo homem comum. Podeis estar seguros de que estas famosas mentiras, que se têm difundido e florescido até alcançarem uma altura tão monstruosa, tiveram origens análogas; mas, como foram semeadas num solo mais propício, cresceram até se tomarem prodígios quase tão grandes como os que aqueles narram.
     Teve aguda sagacidade o falso profeta[3] Alexandre — atualmente esquecido, embora outrora fosse tão famoso — de estrear suas imposturas na Paflagôma, onde, como nos diz Luciano, o povo era extremamente ignorante e simplório e propenso para absorver mesmo a mais grosseira impostura. Pois as pessoas que habitam regiões distantes e sem possibilidade de se informarem melhor, são também induzidas por esta fraqueza a crer que o assunto é o menos digno de investigação. Recebem assim as histórias acrescidas de cem pormenores. Enquanto os tolos propagam rapidamente a impostura, os sábios e os doutos contentam-se geralmente em mofar-se de seu absurdo, sem se informarem dos fatos particulares, que permitiriam refutá-las claramente. E, assim, o impostor acima mencionado estava capacitado para proceder, começando por seus ignorantes paflagônios e atraindo sectários até mesmo entre os filósofos gregos e os homens da mais eminente e distinta posição em Roma; além disso, conseguiu atrair a atenção do sábio imperador Marco Aurélio, a ponto de fazer-lhe confiar no êxito de uma expedição militar sobre suas profecias enganadoras.
     São tão grandes as vantagens de lançar uma impostura entre um povo ignorante que, mesmo quando a fraude é muito grosseira para se impor à generalidade dos homens — embora raramente isto ocorra —, tem mais possibilidade de triunfar em países longínquos do que se seu primeiro teatro tivesse sido numa cidade renomada por suas artes e conhecimentos. Os mais ignorantes e os mais bárbaros destes bárbaros levam o relato para o estrangeiro. Nenhum de seus compatriotas tem extensas vinculações no exterior, reputação ou autoridade suficiente para desmentir e destruir o logro. A inclinação dos homens para o maravilhoso tem plena oportunidade de revelar-se. E, assim, uma história completamente desacreditada no lugar onde nasceu passará por certa a mil milhas de distância. Mas, se Alexandre tivesse fixado residência em Atenas, os filósofos deste célebre centro de saber teriam imediatamente difundido, por todo o Império Romano, sua opinião sobre o assunto; e sua opinião, apoiada por tamanha autoridade demonstrada com todas as forças da razão e da eloquência, teria aberto por completo os olhos dos homens. E verdade que Luciano, ao passar por acaso por Paflagônia, teve oportunidade de realizar estes bons ofícios. Porém, por mais que se deseje, nem sempre ocorre que todo Alexandre se encontre com um Luciano disposto a revelar e desmascarar suas imposturas.[4]
     Como quarta razão[5] diminuindo a autoridade dos prodígios, posso acrescentar que não há testemunho favorável a nenhum prodígio, mesmo em relação àqueles que não foram expressamente desmascarados, que não seja contradito por um número infinito de testemunhas, de modo que não apenas o milagre destrói o crédito do testemunho, mas o testemunho destrói-se a si mesmo. Para tornar isto mais compreensível, consideremos que em questões religiosas tudo o que é diferente é contraditório, e que é impossível que as religiões da antiga Roma, da Turquia, do Sião e da China estejam todas estabelecidas em base sólida. Portanto, todo milagre que se pretende que tenha ocorrido em quaisquer dessas religiões — e todas estão repletas de milagres — tem como finalidade direta estabelecer o sistema particular ao qual ele se refere, de modo que tem a mesma força para destruir, embora indiretamente, qualquer outro sistema. Destruindo um sistema, destrói-se igualmente o crédito naqueles milagres sobre os quais estava fundado o sistema, de modo que todos os prodígios de diferentes religiões devem considerar-se como fatos contraditórios, e as evidências destes prodígios, quer fracas quer fortes, como opostas umas às outras. De acordo com este método de raciocínio, quando cremos em algum milagre de Maomé ou de seus sucessores, temos como garantia o testemunho de alguns árabes bárbaros. E, por outro lado, devemos considerar a autoridade de Tito Lívio, de Plutarco, de Tácito e, numa palavra, o testemunho de todos os autores gregos, chineses e católicos romanos que relataram algum específico milagre de sua religião, e devemos considerar seu testemunho, digo eu, do mesmo modo como se houvessem mencionado o milagre maometano, e que o houvessem contradito em termos claros, com a mesma certeza conferida aos milagres que rela tam. Este argumento pode parecer demasiado sutil e refinado, mas em realidade não difere do modo de raciocinar de um juiz que supõe que o crédito de duas testemunhas, acusando de um crime a uma outra pessoa, é destruído pelo depoimento contrário de duas testemunhas que afirmam haver visto esta mesma pessoa a duzentas léguas de distância no momento exato em que o crime, diz-se, foi cometido.
     Um dos milagres, o mais bem testificado em toda a história profana, é aquele que Tácito conta de Vespasiano, que curou a um cego em Alexandria por meio de sua saliva e a um coxo apenas tocando-lhe com o seu pé. Estes homens, obedecendo a uma ordem do deus Serapis, recorreram ao imperador para essas curas milagrosas. A descrição deste evento pode ser lida neste grande historiador,[6] onde cada pormenor parece valorizar o testemunho, e poderia ser desenvolvida à vontade, com toda a força de argumento e eloquência, se alguém se preocupasse atualmente em reforçar a evidência desta superstição desacreditada e idolátrica. A gravidade, a solidez, a idade e a probabilidade de tão grande imperador, que, durante o transcurso de sua vida, conversou familiarmente com seus amigos e cortesãos e não afetou jamais estes ares extraordinários de divindade que assumiam Alexandre e Demétrio. O historiador era escritor da época, célebre por sua franqueza e veracidade e, além disso, dotado talvez do maior e do mais penetrante gênio de toda a Antiguidade, e tão isento de qualquer tendência para a credulidade, sendo, ao contrário, acusado de ateísmo e profanidade; as personagens a cuja autoridade se referia o milagre eram de caráter indiscutível para o julgamento e a veracidade, como muito bem o podemos presumir; havia testemunhas oculares do fato, confirmando seu testemunho mesmo depois que a família dos Flávios foi despojada do império e não podia mais recompensar uma mentira. Utrum que, qui interfuere, nunc quo que memorant, postquam nulium mendacio pretium.[7] E se acrescentarmos o aspecto público dos fatos, como relata a história, parecerá que não se pode supor evidência mais poderosa a favor de uma falsidade tão grosseira e tão palpável.
     Há também uma história memorável, contada pelo cardeal de Retz, merecedora de nossa consideração. Quando este político intrigante se refugiou na Espanha para escapar à perseguição de seus inimigos, passando por Saragoça, capital de Aragão, mostraram-lhe na catedral um homem que durante sete anos havia servido de porteiro e que era bem conhecido na cidade por todos os devotos da igreja local. Ele foi visto, por muito tempo, desprovido de uma de suas pernas; contudo, havia recuperado este membro pela fricção de óleo santo sobre o coto; e o cardeal nos assegura que o viu com as duas pernas. Este milagre foi confirmado por todos os cânones da Igreja; todos os habitantes da cidade foram chamados para confirmar o fato; e o cardeal verificou que todos criam, com ardente devoção, inteiramente no milagre. Aqui também o narrador foi contemporâneo do suposto prodígio; era de caráter incrédulo, libertino e também possuidor de grande talento; o milagre era de natureza tão singular que dificilmente poderia admitir contrafação, e as testemunhas muito numerosas, e quase todas espectadoras do fato ao qual deram o seu testemunho. E o que aumenta poderosamente a força dos testemunhos e pode duplicar nossa surpresa nesta conjuntura diz respeito ao fato de que o próprio cardeal, narrando o evento, parece não aferir-lhe nenhum crédito e, por conseguinte, não se pode suspeitar de sua participação nesta fraude sagrada. Considerava justamente que não era necessário, para rejeitar um fato desta natureza, refutar o testemunho com exatidão e revelar sua falsidade através de todas as circunstâncias de velhacaria e credulidade que o produziram. Sabia que, se isto era em geral completamente impossível, por mais perto que se estivesse no tempo e no espaço, era extremamente difícil para quem estivesse imediatamente presente, devido ao fanatismo, à ignorância, à astúcia e à patifaria dos homens. Portanto, concluía, como bom raciocinador, que semelhante testificação levava sua falsidade em sua própria face, e que um milagre apoiado pelo testemunho dos homens era mais propriamente objeto de escárnio que de argumentação.

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X(1)
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X(2a)
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Notas:
[1*] Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de 1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração. De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação, cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]
[1] Nas edições K a L lê-se: “em qualquer história”.
[2] As edições de K e N apresentam este parágrafo como nota.
[3] Nas edições de k a N lê-se astucioso impostor.
[4] Sem dúvida, pode-se objetar aqui que procedo temerariamente e formo minhas opiniões a propósito de Alexandre apenas pelo relato do assunto feito por Luciano, seu declarado inimigo. Certamente, seria desejável que tivessem sido conservados alguns dos relatos publicados por seus discípulos e cúmplices. A opinião e o contraste que existem sobre o caráter e a conduta de um mesmo homem, quando descritos por um amigo ou inimigo, são tão grandes, mesmo na vida cotidiana e muito mais ainda nestas questões religiosas, como entre dois homens de fama mundial, por exemplo, Alexandre e São Paulo. Veja-se uma carta a Gilbert West, Esq., acerca da “Conversão e apostolado de São Paulo” (Hume).
[5] Parece-nos que os argumentos de Hume contra a viabilidade dos milagres mostraram: 1) que é entre as nações ignorantes e bárbaras que a ocorrência de milagres é mais comum e abundante, 2) que as paixões da surpresa e da admiração são tendências universais da natureza humana e quando ligadas ao sentimento religioso impelem os homens a uma conduta descontrolada, 3) que cada milagre tem a finalidade específica de estabelecer um sistema religioso e, como em religião tudo o que é diferente é contraditório, os milagres de uma religião são evidências contra os milagres das outras, e 4) que o milagre importa naviolentação do curso normal da natureza e, como apenas a experiência confere autoridade ao testemunho humano e segurança acerca das leis da natureza, nenhum testemunho humano se nivela a uma prova, ou atinge o grau de provável. [N. do T.]
[6] Na edição L Hume anota: Hist., livro 4, cap. 8. Na edição N ele anota: Hist., livro 5, cap. 8. Em verdade, a passagem ocorre em Histórias, livro IV, cap. 81. Suetônio apresenta quase o mesmo relato na Vida de Ve pasiano (Hume).
[7] “Aqueles que estavam presentes continuam a mencionar os dois episódios, quando já deixou de ser compensatório propagar uma mentira.” [Trad. por Anoar Aiex].

Crônica: Equívocos

Luis Fernando Veríssimo


     Uma família de classe média alta. Pai, mulher, um filho de sete anos. É a noite do dia em que o filho fez sete anos. A mãe recolhe os detritos da festa.

     O pai ajuda o filho a guardar os presentes que ganhou dos amigos. Nota que o filho está quieto e sério, mas pensa: "É o cansaço." Afinal ele passou o dia correndo de um lado para o outro, comendo cachorro-quente e sorvete, brincando com os convidados por dentro e por fora da casa. Tem que estar cansado.

- Quanto presente, hein, filho? 
- É. 
- E esta espada. Mas que beleza. Esta eu não tinha visto. 
- Pai... 
- E como pesa! Parece uma espada de verdade. É de metal mesmo. Quem foi que deu? 
- Era sobre isso que eu queria falar com você.

     O pai estranha a seriedade do filho. Nunca o viu assim. Nunca viu nenhum garoto de sete anos sério assim. Solene assim. Coisa estranha... O filho tira a espada da mão do pai. Diz:

- Pai, eu sou Thunder Boy. 
- Thunder Boy? 
- Garoto Trovão. 
- Muito bem, meu filho. Agora vamos pra cama. 
- Espere. Esta espada. Estava escrito. Eu a receberia quando fizesse sete anos.

     O pai se controla para não rir. Pelo menos a leitura de história em quadrinhos está ajudando a gramática do guri. "Eu a receberia..." O guri continua.

- Hoje ela veio. É um sinal. Devo assumir meu destino. A espada passa a um novo Thunder Boy a cada geração. Tem sido assim desde que ela caiu do céu, no vale sagrado de Bem Tael, há sete mil anos, e foi empunhada por Ramil, o primeiro Garoto Trovão.

     O pai está impressionado. Não reconhece a voz do filho. E a gravidade do seu olhar. Está decidido. Vai cortar as histórias em quadrinhos por uns tempos.

- Certo, filho. Mas agora vamos... 
- Vou ter que sair de casa. Quero que você explique à mamãe. Vai ser duro para ela. Conto com você para apoiá-la. Diga que estava escrito. Era o meu destino. 
- Nós nunca mais vamos ver você? - pergunta o pai, resolvendo entrar no jogo do filho enquanto o encaminha, sutilmente, para a cama. 
- Claro que sim. A espada do Thunder Boy está a serviço do bem e da justiça. Enquanto vocês forem pessoas boas e justas poderão contar com a minha ajuda. 
- Ainda bem - diz o pai.

     E não diz mais nada. Porque vê o filho dirigir-se para a janela do seu quarto, e erguer a espada como uma cruz, e gritar para os céus "Ramil!". E ouve um trovão que faz estremecer a casa. E vê a espada iluminar-se e ficar azul. E o seu filho também.

     O pai encontra a mulher na sala. Ela diz:

- Viu só? Trovoada. Vá entender este tempo. 
- Quem foi que deu a espada pra ele? 
- Não foi você? Pensei que tivesse sido você. 
- Tenho uma coisa pra te contar. 
- O que é? 
- Senta, primeiro.

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Luis Fernando Veríssimo (1936 - 2025) foi um escritor gaúcho reconhecido por suas famosas crônicas. Normalmente se utilizando do humor (algumas nem tão bem humoradas, mas sempre nos provocando...), seus textos curtos trazem histórias que versam sobre o cotidiano e as relações humanas.

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sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2b} A Organização Totalitária)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

O Movimento Totalitário
     2 - A Organização Totalitária
          continuando...
     Se a importância das formações paramilitares para os movimentos totalitários não reside no seu duvidoso valor militar, também não reside inteiramente na sua falsa imitação do Exército regular. Como formações de elite, são mais nitidamente separadas do mundo externo do que qualquer outro grupo. Os nazistas cedo compreenderam a íntima relação entre a militância total e a separação total da normalidade; as tropas de assalto nunca eram enviadas a serviço para as suas comunidades de origem e os oficiais ativos da SA, no estágio anterior ao poder, e os da SS, já sob o regime nazista, eram tão móveis e tão frequentemente substituídos que simplesmente não podiam habituar-se ou deitar raízes em nenhuma parte do mundo comum.[80] Eram organizados segundo o modelo das gangues de criminosos e usados para o assassinato organizado.[81] Esses assassinatos eram perpetrados publicamente e oficialmente confessados pela alta hierarquia nazista, de modo que essa franca cumplicidade quase impossibilitava aos membros deixarem o movimento, mesmo sob o governo não-totalitário e mesmo que não fossem ameaçados, como realmente o eram, por seus antigos camaradas. A esse respeito, a função das formações de elite é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda: enquanto as últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança, as primeiras, disseminando a cumplicidade, fazem com que cada membro do partido sinta que abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei, e que será responsabilizado por todos os crimes da elite.[82] Consegue-se isto ainda no estágio anterior ao poder, quando a liderança sistematicamente assume responsabilidade por todos os crimes e não deixa dúvida de que foram cometidos para o bem final do movimento.
     A criação de condições artificiais de guerra civil, através das quais os nazistas exerceram chantagem até subir ao poder, não pretende apenas provocar desordens. Para o movimento, a violência organizada é o mais eficaz dos muros protetores que cercam o seu mundo fictício, cuja "realidade" é comprovada quando um membro receia mais abandonar o movimento do que as consequências da sua cumplicidade em atos ilegais, e se sente mais seguro como membro do que como oponente. Esse sentimento de segurança, resultante da violência organizada com a qual as formações de elite protegem os membros do partido contra o mundo exterior, é tão importante para a integridade do mundo fictício da organização quanto o medo do seu terrorismo.
     No centro, do movimento, como o motor que o aciona, senta-se o Líder. Separa-o da formação de elite um círculo interno de iniciados que o envolvem numa aura de impenetrável mistério correspondente à sua "preponderância inatingível".[83] Sua posição dentro desse círculo íntimo depende da habilidade com que arma intrigas entre os membros e efetua constantes mudanças de pessoal. Deve a liderança mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do partido pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocrático organizacionais. Difere do antigo tipo de ditador por não precisar vencer por meio da simples violência. Hitler não necessitou nem da SA nem da SS para assegurar a sua posição como líder do movimento nazista; pelo contrário, Rõhm, o chefe da SA, que podia contar com a lealdade da SA em relação à sua pessoa, era um dos inimigos de Hitler dentro do partido. Stálin venceu Trótski, que não somente tinha muito maior poder de atração sobre as massas, mas que, ainda como chefe do Exército Vermelho, detinha em suas mãos o maior potencial de poder da Rússia soviética na época.[84] E não era Stálin, mas Trótski, o maior talento organizacional, o burocrata mais capaz da Revolução Russa.[85] Por outro lado, tanto Hitler como Stálin eram mestres em detalhes e, nos estágios iniciais de suas carreiras, dedicaram-se quase exclusivamente a questões de pessoal, de modo que, alguns anos depois, quase todo homem importante no partido devia a eles a sua posição.[86]
     Tais capacidades pessoais, no entanto, embora sejam um pré-requisito absoluto para os primeiros estágios da carreira, e mesmo mais tarde estejam longe de serem insignificantes, já não são decisivas a partir do momento em que o movimento totalitário se consolida, em que se estabelece o princípio de que "o desejo do Führer é a lei do Partido", e toda a hierarquia partidária está eficazmente treinada para o único fim de transmitir rapidamente o desejo do Líder a todos os escalões. A essa altura, o Líder torna-se insubstituível, porque toda a complicada estrutura do movimento perderia a sua raison d'être sem as suas ordens. Agora, a despeito das eternas cabalas do círculo íntimo e das infindáveis mudanças de pessoal, com as tremendas acumulações de ódio, amargura e ressentimento pessoal que acarretam, a posição do Líder pode repousar em segurança contra as caóticas revoluções palacianas — não devido aos seus dons superiores, a respeito dos quais os homens dos círculos íntimos geralmente não têm ilusões, mas graças à sincera e sensata convicção desses homens de que, sem ele, todo o movimento iria imediatamente por água abaixo.
     A suprema tarefa do Líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada do movimento — agir como a defesa mágica do movimento contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta através da qual o movimento se liga a esse mundo. O Líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua qualidade oficial. Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio de liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo ' Líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente. Essa completa identificação do Líder com todo sub líder nomeado por ele e esse monopólio de responsabilidade centralizado por tudo o que foi, está sendo ou virá a ser feito são também os limites mais visíveis da grande diferença entre o líder totalitário e o ditador ou déspota comum. Um tirano jamais se identificaria com os seus subordinados, e muito menos com cada um dos seus atos;[87] poderia usá-los como bodes expiatórios, deixando, com prazer, que fossem criticados para colocar-se a salvo da ira do povo, mas sempre manteria uma distância absoluta de todos os seus subordinados e súditos. O Líder, ao contrário, não pode tolerar críticas aos seus subordinados, uma vez que todos agem em seu nome; se deseja corrigir os próprios erros, tem que liquidar aqueles que os cometerem por ele; se deseja inculpar a outros por esses erros, tem de matá-los. Pois, nessa estrutura organizacional, o erro só pode ser uma fraude: o Líder estava sendo representado por um impostor.[88]
     Essa responsabilidade total por tudo o que o movimento faz e essa identificação total com cada um dos funcionários têm a consequência muito prática de que ninguém se vê numa situação em que tem de se responsabilizar por suas ações ou explicar os motivos que levaram a elas. Uma vez que o Líder monopoliza o direito e a possibilidade de explicação, ele é, para o mundo exterior, à única pessoa que sabe o que está fazendo, isto é, o único representante do movimento com quem ainda é possível conversar em termos não-totalitários e que,-em caso de censura ou de oposição, não dirá: não me pergunte, pergunte ao Líder. Estando no centro do movimento, o Líder pode agir como se estivesse acima dele. Ê, portanto, perfeitamente compreensível (embora perfeitamente fútil) que pessoas de fora depositem, muitas vezes, suas esperanças numa conversa pessoal com o próprio Líder, quando têm de tratar com movimentos ou governos totalitários. O verdadeiro mistério do Líder totalitário reside na organização que lhe permite assumir a responsabilidade total por todos os crimes cometidos pelas formações de elite e, ao mesmo tempo, adotar a honesta e inocente respeitabilidade do mais ingênuo simpatizante.[89]
     Os movimentos totalitários têm sido chamados de "sociedades secretas. montadas à luz do dia".[90]
     Realmente, embora pouco se saiba quanto à estrutura sociológica e à história mais recente das sociedades secretas, a estrutura dos movimentos, sem precedentes quando comparada com partidos e facções, lembra-nos em primeiro lugar certas características dessas sociedades.[91] As sociedades secretas formam também hierarquias de acordo com o grau de "iniciação", regulam a vida dos seus membros segundo um pressuposto secreto e fictício que faz com que cada coisa pareça ser outra coisa diferente; adotam uma estratégia de mentiras coerentes para iludir as massas de fora, não iniciadas; exigem obediência irrestrita dos seus membros, que são mantidos coesos pela fidelidade a um líder frequentemente desconhecido e sempre misterioso, rodeado, ou supostamente rodeado, por um pequeno círculo de iniciados; e estes, por sua vez, são rodeados por semi iniciados que constituem uma espécie de "amortecedor" contra o mundo profano e hostil.[92] Os movimentos totalitários têm ainda em comum com as sociedades secretas a divisão dicotômica do mundo entre "irmãos jurados de sangue" e uma massa indistinta e inarticulada de inimigos jurados.[93] Essa distinção, baseada na absoluta hostilidade contra o mundo que os rodeia, é muito diferente da tendência dos partidos comuns de dividir o povo entre os que pertencem e os que não pertencem à organização. Os partidos e as sociedades abertas, geralmente, só consideram inimigos aqueles que se lhes opõem expressamente, enquanto o princípio das sociedades secretas sempre foi que "aquele que não estiver expressamente incluído, está excluído".[94] Esse princípio esotérico parece inteiramente inadequado a organizações de massa; contudo, os nazistas ofereciam aos seus membros pelo menos o equivalente psicológico do ritual de iniciação das sociedades secretas quando, em lugar de simplesmente excluírem os judeus da organização, exigiam prova de ascendência não judaiçar dos seus membros, estabelecendo um complicado mecanismo para esclarecer a obscura origem genética de 80 milhões de alemães. O resultado foi uma comédia, e uma comédia cara, quando 80 milhões de alemães saíram à cata de avós judeus; mas aqueles que passavam a prova sentiam pertencer a um grupo de incluídos que se destacava contra uma multidão imaginária de inelegíveis. O mesmo princípio é aplicado no movimento bolchevista, através de repetidos expurgos no partido que inspiram em todos os que sobram uma reafirmação da sua inclusão. Talvez a mais clara semelhança entre as sociedades secretas e os movimentos totalitários esteja na importância do ritual. As marchas na praça Vermelha em Moscou são, nesse ponto, tão típicas quanto as pomposas formalidades do nazismo do tempo de Nurembergue. No centro do ritual nazista estava a chamada "bandeira de sangue", e no centro do ritual bolchevista está o corpo mumificado de Lênin, ambos impregnando a cerimônia com um forte elemento de idolatria. Essa idolatria não prova a existência de tendências pseudo religiosas ou heréticas que muitos querem ver nos movimentos totalitários. Os "ídolos" são simples truques organizacionais, muito praticados nas sociedades secretas, que também forçavam os seus membros a guardar segredo por medo e respeito a símbolos assustadores. As pessoas unem-se mais firmemente através da experiência partilhada de um ritual secreto do que pela simples admissão ao conhecimento do segredo. O fato de que o segredo dos movimentos totalitários é exibido em plena luz do dia não muda necessariamente a natureza da experiência.[95]
     Naturalmente, essas semelhanças não são acidentais; não podem ser explicadas simplesmente pelo fato de que tanto Hitler como Stálin haviam sido membros de sociedades secretas antes de se tornarem líderes totalitários — Hitler no serviço secreto do Reichswehr e Stálin na conspiração do partido bolchevista. São, até certo ponto, resultado natural da ficção conspiratória do totalitarismo, cujas organizações são supostamente criadas para combater as sociedades secretas — a sociedade secreta dos judeus ou a sociedade dos conspiradores trotskistas. O que é notável nas organizações totalitárias é que saibam adotar expedientes organizacionais das sociedades secretas sem jamais manter em segredo seu próprio objetivo. Que os nazistas queriam conquistar o mundo, deportar todos os que fossem "racialmente estrangeiros" e exterminar todos os que tivessem "herança biológica inferior", que os bolchevistas lutam pela revolução mundial — nada disso jamais foi segredo; pelo contrário, esses objetivos sempre fizeram parte da sua propaganda. Em outras palavras, os movimentos totalitários imitam todos os acessórios das sociedades secretas, mas esvaziam-nas do único elemento que poderia justificar os seus métodos: a necessidade de manter segredo.
     Nisso, como em tantos outros aspectos, o nazismo e o bolchevismo chegaram ao mesmo resultado organizacional a partir de origens históricas muito diferentes. Os nazistas começaram com a ficção de uma conspiração e imitaram, mais ou menos conscientemente, o modelo da sociedade secreta dos sábios do Sião, enquanto os bolchevistas vieram de um partido revolucionário, cujo objetivo era a ditadura de um só partido, atravessaram a fase em que o partido ficava "inteiramente acima e separado de tudo", até o instante em que o Politburo do partido ficou "inteiramente acima e separado de tudo";[96] finalmente, Stálin impôs a essa estrutura partidária as rígidas normas totalitárias do seu setor conspirativo, e somente então descobriu a necessidade de uma ficção central para manter na organização de massa a férrea disciplina de uma organização secreta. A evolução nazista pode ser mais lógica, mais coerente consigo mesma, mas a história do partido bolchevista é um exemplo melhor da natureza essencialmente fictícia do totalitarismo, precisamente porque as fictícias conspirações globais, contra as quais e de acordo com as quais a conspiração bolchevista supostamente se organizou, não foram ideologicamente fixadas. Mudaram — dos trotskistas para as trezentas famílias, depois para os vários "imperialismos" e, mais recentemente, para o "cosmopolitismo sem raízes" — e foram ajustadas à realidade política segundo as necessidades do momento; mas nunca e em nenhuma das mais diversas circunstâncias pôde o bolchevismo passar sem algum tipo de ficção.
     Os meios pelos quais Stálin transformou a ditadura unipartidária russa em regime totalitário e os partidos comunistas revolucionários de todo o mundo em movimentos totalitários foram a liquidação das facções divergentes, a abolição da democracia interna do partido e a transformação dos partidos comunistas nacionais em ramificações do Comintern dirigidas a partir de Moscou. As sociedades secretas em geral, e o aparelho conspirativo dos partidos revolucionários em particular, sempre foram caracterizados pela ausência de facções, pela supressão de opiniões dissidentes e pela absoluta centralização do comando. Todas essas medidas têm a óbvia finalidade utilitária de proteger os membros contra a perseguição e a sociedade contra a traição; a obediência total exigida de cada membro e o poder absoluto nas mãos do chefe foram apenas subprodutos inevitáveis de necessidades práticas. O problema, porém, é que os conspiradores têm uma tendência, compreensível aliás, de julgar como mais eficazes na política os métodos das sociedades conspirativas e de supor que, se esses métodos puderem ser aplicados abertamente com o apoio dos instrumentos de violência de toda uma nação, as possibilidades de acúmulo de poder tornam-se infinitas.[97] O setor conspirativo de um partido revolucionário pode, enquanto o próprio partido ainda está intacto, ser equiparado ao Exército dentro de uma estrutura política intacta; embora as suas próprias regras de conduta sejam radicalmente diferentes das regras do corpo civil, o Exército serve ao corpo político e permanece sujeito e controlado por ele. Da mesma forma que o perigo de uma ditadura militar surge quando o Exército já não quer servir mas dominar o corpo político, também o perigo do totalitarismo surge quando o setor conspirativo do partido revolucionário se emancipa do controle do partido e aspira à liderança. Foi isso o que aconteceu aos partidos comunistas sob o regime de Stálin. Os métodos de Stálin sempre foram típicos de um homem proveniente do setor conspirativo do partido: a devoção ao detalhe, a ênfase quanto ao lado pessoal da política, a crueldade no uso e na liquidação de companheiros e amigos. Quem mais o apoiou na luta pela sucessão após a morte de Lenin foi a polícia secreta[98] que, na época, já era uma das mais importantes e poderosas seções do partido.[99]  Nada mais natural que as simpatias da Cheka [a polícia secreta da URSS] pendessem a favor do representante da seção conspirativa, do homem que já a encarava como uma espécie de sociedade secreta e que, portanto, provavelmente lhe preservaria e até acrescentaria os privilégios.
     A tomada dos partidos comunistas pelos setores conspirativos foi, porém, apenas o primeiro passo da sua transformação em movimento totalitário. Não bastava que a polícia secreta da Rússia e os seus agentes nos partidos comunistas do exterior desempenhassem no movimento o mesmo papel das formações de elite criadas pelos nazistas sob forma de tropas paramilitares. Os próprios partidos tinham de ser transformados, para que o domínio da polícia secreta permanecesse seguro. A liquidação das facções e da democracia interna do partido foi, consequentemente, acompanhada na Rússia pela admissão, como membros, de grandes massas politicamente deseducadas e "neutras", manobra que foi rapidamente seguida pelos partidos comunistas no estrangeiro depois que a Frente Popular a adotou na França.
     O totalitarismo nazista começou com uma organização de massa que foi apenas gradualmente dominada pelas formações de elite, enquanto os bolchevistas começaram com formações de elite e organizaram as massas de acordo com elas. Em ambos os casos ò resultado foi idêntico. Além disso, os nazistas, em virtude da tradição e preconceitos militaristas, moldaram inicialmente suas formações de elite segundo o padrão do Exército, enquanto os bolchevistas desde o início outorgaram à polícia secreta o direito de exercer o poder supremo. Contudo, bastaram poucos anos para que também essa diferença desaparecesse: o chefe da SS tornou-se chefe da polícia secreta, e as formações da SS foram gradualmente incorporadas ao antigo pessoal da Gestapo ao qual iriam substituir, embora esse pessoal já fosse constituído de nazistas dignos de confiança.[100]
     
Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2b} A Organização Totalitária)
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[80] As unidades da Caveira da SS eram submetidas às seguintes regras: 1. Nenhuma unidade é convocada para serviço em seu distrito natal. 2. Toda unidade é transferida após três semanas de serviço. 3. Os membros nunca devem ser enviados às ruas sozinhos, nem devem jamais exibir em público sua insígnia da Caveira. Ver "Secret speech by Himmler to the German Army General Staff 1938" (o discurso foi proferido em 1937) em- Nazi conspiracy, IV, 616. Publicado também pelo American Committee for Anti-Nazi Literature.
[81] Heinrich Himmler, "Die Schutzstaffel ais antibolschewistische Kampforganisation" [A SS como organização de luta antibolchevista], em Aus dem Schwarzen Korps, n? 3, 1936, disse publicamente: "Sei que existem pessoas na Alemanha que sentem náuseas quando veem este dólmã negro. Compreendemos isto, e não esperamos que muita gente goste de nós".
[82] Em seus discursos para a SS, Himmler sempre acentuava os crimes cometidos, mencionando a sua gravidade. Diria, por exemplo, acerca da liquidação dos judeus: "Desejo também falar-vos de um assunto muito grave. Entre nós, ele pode ser mencionado francamente, mas nunca o mencionaremos em público". Sobre a liquidação dos intelectuais poloneses: "(...) deveis ser informados disto, e também esquecê-lo imediatamente (...)" (Nazi conspiracy, IV, 558 e 553, respectivamente). Goebbels, op. cit., p. 266, observa no mesmo tom: "No tocante à questão judaica, especialmente, tomamos uma posição da qual não é possível recuar. (...) A experiência nos ensina que um movimento e um povo que queimou as suas pontes luta com determinação muito maior que aqueles que ainda podem recuar".
[83] Souvarine, op. cit., p. 648. A maneira como os movimentos totalitários mantiveram absolutamente secreta a vida privada dos seus líderes (Hitler e Stálin) contrasta com a importância que as democracias veem na divulgação da vida privada de presidentes, reis, primeiros-ministros etc. Os métodos totalitários não permitem uma identificação baseada na convicção de que mesmo o mais importante dos homens é apenas um ser humano.
     Souvarine, op. cit., cita os rótulos mais frequentemente usados para descrever Stálin: "Stálin, o misterioso morador do Kremlin"; "Stálin, personalidade impenetrável"; "Stálin, a Esfinge Comunista"; "Stálin, o Enigma"; o "mistério insolúvel" etc.
[84] "Se [Trótski] houvesse preferido montar um coup d'état militar, teria possivelmente derrotado os triúnviros. Mas deixou o cargo sem fazer a menor tentativa de chamar em sua defesa o exército que havia criado e comandado durante sete anos" (Isaac Deutscher, op. cit., p. 297).
[85] O Comissariado da Guerra, sob Trótski, "era uma instituição [tão] modelar" que Trótski era procurado sempre que havia desordem nos outros ministérios. Souvarine, op. cit., p. 288. 
[86] As circunstâncias da morte de Stálin parecem contradizer a infalibilidade desses métodos. É muito possível que Stálin, o qual, antes de morrer, sem dúvida planejava outro expurgo geral, tenha sido morto por alguns elementos do seu séquito devido ao fato de que ninguém mais se sentia seguro — mas isto nunca pôde ser provado. O fato é que os sucessores de Stálin — seus acólitos, sem dúvida, mas, talvez, dentro dos critérios acima, seus assassinos — desfizeram-se depois do único homem que, entre eles, detinha o poder suficiente para eliminá-los. [Trata-se de Beria, o todo-poderoso chefe da polícia secreta da URSS. (N. E.)].
[87] Hitler telegrafou pessoalmente aos assassinos da SA assumindo a responsabilidade pelo assassinato de Potempa, embora provavelmente nada tivesse a ver com ele. O que importava, no caso, era estabelecer um princípio de identificação ou, nas palavras dos nazistas, "a lealdade mútua do Líder e do povo" na qual "se baseava o Reich" (Hans Frank, op. cit.).
[88] "Uma das principais características de Stálin (...) é jogar sistematicamente os seus crimes e malfeitorias, bem como os seus erros políticos (...) nos ombros daqueles que ele planeja desacreditar e arruinar" (Souvarine, op. cit., p. 655). É óbvio que um líder totalitário pode escolher livremente quem ele deseja que assuma a culpa dos seus erros, uma vez que todos os atos conhecidos pelos sublíderes são inspirados por ele, de modo que qualquer pessoa pode ser forçada a assumir o papel de impostor.
[89]  Já ficou provado, por meio de numerosos documentos, que era o próprio Hitler — e não Himmler, nem Bormann, nem Goebbels — quem sempre tomava a iniciativa das medidas realmente "radicais"; que essas medidas eram sempre mais radicais que aquelas propostas por seus seguidores imediatos; que até mesmo Himmler ficou horrorizado quando recebeu a incumbência da "solução final" da questão judaica. E tampouco merece alguma fé a lenda de que Stálin era mais moderado que as facções esquerdistas do partido bolchevista. É importante lembrar que os líderes totalitários procuram invariavelmente parecer mais moderados para o mundo exterior, e que o seu principal papel — que é o de impelir para frente o movimento a qualquer preço, e de acelerá-lo, e não retardá-lo — é sempre cuidadosamente oculto. Ver, por exemplo, o memorando do almirante Erich Raeder, "My relationship to Adolf Hitler and to the Party", em Nazi conspiracy, VIII, 707 ss: "Quando surgiram informações e boatos acerca de medidas radicais do Partido e da Gestapo, era possível chegar-se à conclusão, pela conduta do Führer, de que essas medidas não haviam sido ordenadas pelo próprio Führer. (...) Em anos subsequentes, cheguei gradualmente à conclusão de que o próprio Führer sempre se inclinava pela solução mais radical, sem deixar que ninguém o percebesse". Na luta intrapartidária que precedeu a subida ao poder absoluto, Stálin sempre teve o cuidado de assumir a pose do "homem do meio-termo" (ver Deutscher, op. cit., pp. 295 ss); embora certamente não fosse nenhum "homem afeito a acomodações", nunca abandonou inteiramente esse papel. Quando, por exemplo, um jornalista estrangeiro lhe indagou, em 1936, acerca dos objetivos de revolução mundial do movimento comunista, ele respondeu: "Nunca tivemos tais planos e intenções. (...) Trata-se de um mal-entendido. (...) Um mal-entendido cômico, ou, antes, tragicômico" (Deutscher, op. cit., p. 422).
[90] Ver Alexandre Koyré, "The political function of the modern lie", em Contemporary Jewish Record, junho de 1945.
     Hitler, op. cit., livro II, capitulo ix, discute longamente os prós e contras das sociedades secretas como modelos para os movimentos totalitários. Na verdade, as considerações que ele faz levam-no à conclusão de Koyré de que é preciso adotar os princípios das sociedades secretas sem o seu sigilo e instalá-las "à plena luz do dia". No estágio anterior à tomada do poder, os nazistas nada mantinham em segredo. Foi somente durante a guerra, quando o regime nazista se tornou inteiramente totalitarizado e a liderança do partido se viu cercada por todos os lados pela hierarquia militar, da qual dependia para a condução da guerra, que as formações de elite receberam instruções perfeitamente claras para manterem absolutamente secreto tudo o que dissesse respeito à "solução final", isto é, o extermínio em massa dos judeus. Foi também por essa época que Hitler passou a agir como chefe de um bando de conspiradores, mas não sem anunciar e divulgar pessoalmente esse fato com bastante clareza. No decorrer de uma reunião com o Estado-Maior, em maio de 1939, Hitler estabeleceu as seguintes normas, que parecem haver sido copiadas de uma cartilha de sociedades secretas: "1. Nenhuma informação será dada a quem não precisa saber. 2. Ninguém deve saber mais do que precisa. 3. Ninguém deve saber antes do tempo necessário" (citadas por Heinz Holldack, Was wirklich geschah [O que realmente aconteceu], 1949, p. 378).
[91] A análise que fazemos a seguir acompanha de perto "Sociology of secrecy and of secret societies", de Georg Simmel, em The American Journal of Sociology, vol. XI, n? 4, janeiro de 1906, que constitui o capítulo v de sua Soziologie, Leipzig, 1908, da qual alguns trechos foram traduzidos por Kurt Wolff, sob o título The sociology of Georg Simmel, 1950.
[92]  "Exatamente pelo fato de que os graus inferiores da sociedade constituem uma transição mediatória para o verdadeiro centro do segredo, permitem a compreensão gradual da esfera de repulsa em torno do mesmo, o que proporciona uma proteção mais segura do que adviria da aspereza de uma posição radical, fosse de fora ou de dentro" (ibid., p. 489).
[93] As expressões "irmãos jurados", "camaradas jurados", "comunidade jurada" etc. são repetidas ad nauseam em toda a literatura nazista, em parte devido à atração que tinham para o romantismo juvenil muito comum no movimento da juventude alemã. Foi principalmente Himmler quem usou essas expressões com um sentido mais definido, introduzindo-as na "senha central" da SS ("Unimo-nos assim e marchamos para um futuro distante segundo as leis imutáveis, como uma classe nacional-socialista de homens nórdicos e comunidade jurada das suas tribos [Sippen]." Ver D'Alquen, op. cit.) e lhes deu o expressivo significado de "absoluta hostilidade" contra todos os outros (ver Simmel, op. cit., p. 489): "Assim, quando a massa da humanidade de 1 a 1,5 bilhão [sic!] se unir contra nós, o povo alemão (...)". Ver o discurso de Himmler na reunião dos generais da SS em Posen (atual Poznan, Polônia), a 4 de outubro de 1943, Nazi conspiracy, IV, 558.
[94]  Simmel, op. cit., p. 490. Esse princípio, como tantos outros, foi adotado pelos nazistas após cuidadoso estudo das implicações dos "Protocolos dos sábios do Sião". Hitler dizia já em 1922: "'[Os homens da Direita] ainda não compreenderam que não é necessário ser inimigo dos judeus para que um dia(...) acabem na forca. (...) Basta (...) não ser judeu: com isso se vai parar na forca" (Hitler's speeches, p. 12). Na época, ninguém podia imaginar que esse tipo de propaganda realmente significava que, um dia, não seria necessário ser um inimigo dos nazistas para ser levado à forca; bastaria ser um judeu ou, finalmente, membro de algum outro povo, para ser declarado "racialmente inapto" à vida por alguma Comissão de Saúde. Himmler acreditava e pregava que toda a SS se baseava no princípio de que "devemos ser honestos, decentes, leais e amigos com os membros do nosso próprio sangue, e com ninguém mais" (op. cit., loc. cit.). 
[95] Simmel, op. cit., pp. 480-1.
[96] Souvarine, op. cit., p. 319, adota uma expressão de Bukharín.
[97] Souvarine, op. cit., p. 113, menciona que Stálin "sempre se impressionava com aqueles que eram bem-sucedidos 'nos negócios'. Via a política como um 'negócio' que exigia destreza".
[98] Nas lutas intrapartidárias dos anos 20, "os colaboradores da GPU eram, quase sem exceção, fanáticos seguidores de Stálin. Os serviços da GPU naquela época eram os baluartes da secção stalinista" (Ciliga, op. cit., p. 48). Souvarine, op. cit., p. 289, relata que, mesmo antes, Stálin havia "continuado a ação policial que havia iniciado durante a Guerra Civil" e havia sido representante do Politburo na GPU.
[99]  Imediatamente após a guerra civil na Rússia, o Pravda afirmava que "a fórmula 'Todo o poder aos Sovietes' havia sido substituída por 'Todo o poder à Cheka'. (...) O fim das hostilidades armadas reduziu o controle militar (...) mas deixou uma Cheka ramificada, que se aperfeiçoava através da simplificação operacional" (Souvarine, op. cit., p. 251).
[100] A Gestapo [Geheime Staatspolizei: Polícia Secreta do Estado] foi instituída por Gõring em 1933: Himmlerfoi nomeado chefe da Gestapo em 1934 e passou imediatamente a substituir o seu pessoal por homens da SS; no fim da guerra, 75% dos agentes da Gestapo eram homens da SS. Deve-se considerar também que as unidades da SS eram particularmente qualificadas para esse tipo de trabalho, uma vez que Himmler as havia organizado, mesmo na fase anterior ao poder, para tarefas de espionagem entre membros do partido (Heiden, op. cit., p. 308). Quanto à história da Gestapo, ver Giles, op. cit., e também Nazi conspiracy, vol. II, capítulo xii.