Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
2.4 - O Antissemitismo Esquerdista
Se não fossem as assustadoras consequências do antissemitismo em nosso próprio tempo,
poderíamos ter dado menor atenção ao seu desenvolvimento na Alemanha. Como movimento
político, o antissemitismo do século XIX pode ser melhor estudado na França, onde, por quase
uma década, dominou o cenário político. Como força ideológica, concorrendo com outras
ideologias mais respeitáveis, atingiu sua forma mais eloquente na Áustria.
Em parte alguma haviam os judeus prestado tão grandes serviços ao Estado como na Áustria,
onde numerosas nacionalidades conviviam conjugadas apenas pela Monarquia Dual dos
Habsburgos, e onde o banqueiro nacional judeu, em contraste com o que ocorreu em todos os
outros países europeus, sobreviveu à queda da monarquia. Exatamente como no início do seu
desenvolvimento, no alvorecer do século XVIII, o crédito de um Samuel Oppenheimer havia
sido idêntico ao crédito de que dispunha a própria casa dos Habsburgos, enquanto "no fim o
crédito austríaco era o do Creditanstalt", estabelecimento bancário dos Rothschild.[45] Embora a
monarquia do Danúbio não tivesse população homogênea, que é o pré-requisito mais importante
para a evolução de um Estado-nação, não pôde evitar a transformação do despotismo
esclarecido em monarquia constitucional e a criação de um serviço público moderno. Isso
significou que ela teve de adotar certas instituições de um Estado-nação. O sistema de classes evoluiu ali ao longo de linhas nacionais, de modo que certas nacionalidades começaram a ser
identificadas com certas classes ou, pelo menos, profissões. O austro-alemão tornou-se a
nacionalidade dominante, num sentido semelhante àquele em que a burguesia se tornou a classe
dominante nos Estados-nações. A aristocracia húngara, dona de terras, tinha o papel da nobreza
de outros países. A máquina estatal esforçava-se para se manter a distância da sociedade,
governando acima das nacionalidades, exatamente como os demais Estados-nações faziam com
relação às classes — governando acima delas. O resultado, para os judeus, foi simples; a
nacionalidade judaica no império dos Habsburgos não pôde fundir-se com as outras, nem se
constituir em nação, como não se havia incorporado às outras classes no Estado-nação, nem se
tornou classe em si mesma. Do mesmo modo como nos Estados-nações os judeus diferiam das
demais classes por causa da sua relação especial com o Estado, diferiam de todas as outras
nacionalidades na Áustria por causa da sua relação especial com a monarquia dos Habsburgos.
E, da mesma forma como, em toda parte, toda classe que entrava em conflito aberto com o
Estado virava antissemita, assim, na Áustria, toda nacionalidade que entrava em conflito aberto
com a monarquia iniciava seu combate atacando os judeus. Mas houve uma diferença marcante
entre esses conflitos na Áustria e os que ocorriam na Alemanha e na França. Na Áustria, eles
eram mais agudos e, ao romper a Primeira Grande Guerra, todas as nacionalidades — e isto
significa: todas as camadas sociais — estavam em forte oposição ao Estado, de modo que, mais do que em qualquer
outro país da Europa ocidental ou central, a população do império austro-húngaro estava
impregnada de antissemitismo ativo.
Entre esses conflitos, destaca-se a crescente hostilidade antiestatal da população germânica,
acelerada após a fundação do Reich alemão em 1870, quando foi descoberta a utilidade dos
slogans antissemitas, principalmente depois da crise financeira de 1873. A situação social na
Áustria era praticamente a mesma que na Alemanha, mas a propaganda dos partidos — que na
Áustria multinacional operavam em bases nacionais — destinava-se a angariar os votos da
classe média, pregando abertamente a deslealdade para com o Estado. O Partido Liberal
Alemão, por exemplo, sob a direção de Schoenerer, foi no início um partido da baixa classe
média, sem conexões ou restrições por parte da nobreza, e com uma imagem definitivamente
esquerdista. Nunca obteve uma real base de massa, mas foi notavelmente bem-sucedido nas
universidades nos anos 80, constituindo a primeira organização estudantil eficientemente
'estruturada' no antissemitismo declarado. O antissemitismo de Schoenerer, de início dirigido
quase que exclusivamente contra os Rothschild, conquistou as simpatias do movimento
trabalhista, que via nele um verdadeiro radical desgarrado.[46] Sua principal vantagem era poder
basear sua propaganda antissemita sobre fatos demonstráveis: como membro do Reichsrat
[Parlamento] austríaco, Schoenerer havia lutado pela nacionalização das estradas de ferro da
Áustria, das quais a maior parte estava, desde 1836, nas mãos dos Rothschild, em virtude de
uma licença estatal que expirava em 1886. Schoenerer conseguiu reunir 40 mil assinaturas
contra a renovação da licença e colocar a questão judaica no picadeiro do interesse público. As
íntimas ligações entre os Rothschild e os interesses financeiros da monarquia tornaram-se
óbvias, quando o governo tentou prorrogar a licença em condições que eram patentemente
desvantajosas para o Estado. A agitação comandada por Schoenerer desencadeou na Áustria um
movimento antissemita politicamente articulado.[47] O problema é que esse movimento, em
contraste com a agitação de Stoecker na Alemanha, foi iniciado e dirigido por um homem cuja
sinceridade estava fora de dúvida, e por isso não se limitaria a usar o antissemitismo como arma
de propaganda, mas desenvolveria rapidamente aquela ideologia pangermânica que iria
influenciar o nazismo mais do que outro ramo do antissemitismo alemão.
Embora viesse a ser vitorioso a longo prazo, o movimento de Schoenerer foi temporariamente
derrotado por um outro partido antissemita, o dos social-cristãos, sob a liderança de Lueger.
Enquanto Schoenerer atacava a Igreja Católica e a sua considerável influência na política austríaca quase tanto quanto atacava os judeus,
os social-cristãos eram um partido católico que sempre procurou aliar-se àquelas forças
conservadoras reacionárias que se haviam demonstrado tão prestimosas na Alemanha e na
França. Como faziam maiores concessões sociais, tiveram mais sucesso do que na França ou na
Alemanha. Os social-cristãos sobreviveram à queda da monarquia dos Habsburgos e tornaram
se o grupo mais influente na Áustria republicana depois da guerra de 1918. Quando, nos anos
90, Lueger foi levado pelo voto à prefeitura de Viena após veemente campanha antissemita, seu
partido já adotava atitude equívoca em relação aos judeus, tão típica no Estado-nação:
hostilidade aberta aos intelectuais judeus e benevolência para com os judeus comerciantes.
Assim, não foi por acaso que, após amarga e sangrenta luta pelo poder, travada contra o
movimento socialista dos trabalhadores, os social-cristãos se assenhorearam da máquina estatal,
quando a Áustria, reduzida à sua etnia alemã, se estabeleceu, após a derrubada dos Habsburgos
em 1917, como Estado-nação. Demonstraram ser o único partido que estava preparado para esse
papel. Como os Habsburgos eram uma dinastia alemã e conferiam certa predominância aos seus
súditos alemães, os social-cristãos nunca atacaram a monarquia. É lógico, portanto, que seu
antissemitismo não teve consequências. Foi arma eleitoral antes de tudo — o que era
significativo em termos de futuro —, mas as décadas do governo municipal de Lueger em Viena
foram, na verdade, uma espécie de idade de ouro para os judeus. Por mais que se excedessem em sua propaganda, os social-cristãos nunca proclamaram, como o fizeram Schoenerer e os
panger-manistas, que "consideravam o antissemitismo o esteio principal de ideologia nacional, a
mais essencial expressão de genuína convicção popular e, portanto, a grande realização nacional
do século".[48] E, embora estivessem sob influência de círculos clericais, exatamente como o
movimento antissemita da França, eram muito mais comedidos em seus ataques contra os
judeus, porque não atacavam a monarquia como os antissemitas da França atacavam a Terceira
República.
Os sucessos e fracassos dos dois partidos antissemitas da Áustria demonstram a pouca
relevância que os conflitos sociais ocupavam na problemática da época. Comparada com a
mobilização duradoura de todos os oponentes do governo, a angariação dos votos da classe
média inferior foi um fenômeno temporário. O antissemitismo e a oposição à monarquia
desapareceram em Viena e nas cidades por causa da prosperidade do período que antecedeu à
guerra [1914] e que reconciliou a população urbana com o governo. Mas, no aparente paradoxo,
a espinha dorsal do movimento de Schoenerer continuava forte naquelas províncias de língua
alemã do império dos Habsburgos que não tinham qualquer população judaica, e onde a
concorrência com os judeus ou o ódio pelos banqueiros judeus nunca havia existido. A
sobrevivência do movimento pangermânico e do seu violento antissemitismo nessas províncias,
à época em que ele desaparecia nos centros urbanos, foi simplesmente devida ao fato de que essas províncias nunca
foram atingidas pela prosperidade que mudou momentaneamente a atitude dos habitantes das
cidades reconciliados com o Estado.
A completa falta de lealdade para com o seu próprio país e governo, que os pangermânicos
austríacos substituíram pela franca lealdade ao Reich alemão de Bismarck, e o consequente
conceito de nacionalidade como independente de Estado e de território, ligado mais à etnia e
ascendência genética, levaram o grupo de Schoenerer à ideologia verdadeiramente imperialista
— e nisso reside a chave da sua fraqueza temporária e do seu impulso final. É também a razão
pela qual o partido pangermânico na Alemanha (o Alldeutschen), que nunca ultrapassou os
limites do chauvinismo comum, permaneceu tão desconfiado e relutante em tomar as mãos
estendidas de seus irmãos germanistas austríacos. Esse movimento austríaco aspirava a mais do
que subir ao poder como um partido, a mais do que possuir a máquina do Estado. Ele desejava
reorganizar revolucionariamente a Europa central, para que os alemães da Áustria, juntamente
com os alemães da Alemanha, mutuamente fortalecidos, se tornassem o povo governante, do
qual todos os outros povos seriam dependentes, mantidos na mesma espécie de semi servidão
em que viviam as nacionalidades eslavas da Áustria. Por causa de sua estreita afinidade com o
imperialismo e da mudança fundamental que trouxe ao conceito de nacionalidade, devemos
postergar a discussão sobre o movimento pangermânico austríaco. Ele não é mais, ao menos em
suas consequências, um mero movimento preparatório no século XIX; pertence, mais do que
qualquer outro ramo do antissemitismo, ao curso dos eventos de nosso século.
Com o antissemitismo francês ocorreu exatamente o oposto. O Caso Dreyfus trouxe à tona os
elementos do antissemitismo do século XIX em seus aspectos meramente ideológicos e
políticos: foi a culminância do antissemitismo resultante das condições especiais do Estado
nação. Contudo, sua natureza violenta prefigurou acontecimentos futuros, de modo que os
principais atores do processo parecem às vezes estar realizando um grandioso ensaio geral do
espetáculo, que teria de ser adiado por mais de três décadas. O Caso Dreyfus reuniu todas as
correntes, abertas ou subterrâneas, sociais ou políticas, que haviam levado a questão judaica à
posição de predominância no século XIX; por outro lado, sua deflagração prematura fez com
que permanecesse no quadro de uma ideologia típica do século XIX que, embora sobrevivesse a
todos os governos e crises políticas da França, nunca realmente se encaixou no contexto político
do século XX. Quando, após a derrota da França em 1940, o antissemitismo francês teve sua
chance suprema sob o governo de Vichy, assumiu caráter definitivamente antiquado e, para os
fins anunciados, bastante inócuo, o que os intelectuais nazistas da Alemanha nunca esqueceram
de salientar.[49] Mas o antissemitismo francês não teve qualquer influência na formação do nazismo e, como fator histórico,
não chegaria a atuar na implantação da catástrofe final.
A razão principal dessas limitações foi simples: os partidos antissemitas da França, embora
violentos no cenário doméstico, não nutriam quaisquer aspirações supranacionais. Afinal de
contas, pertenciam ao Estado-nação mais antigo e estatalmente mais desenvolvido da Europa.
Nenhum dos antissemitas tentou seriamente organizar um "partido acima dos partidos", ou
apossar-se do Estado para os interesses partidários. Os poucos golpes de Estado que foram
tentados, e que podem ser creditados à aliança entre os antissemitas e os oficiais superiores do
Exército, foram ou ridiculamente inadequados ou obviamente forjados.[50] Em 1898, dezenove
membros do Parlamento foram eleitos em campanhas antissemitas, mas esse ponto alto jamais
foi alcançado depois: daí em diante o declínio foi rápido.
Por outro lado, esse foi o primeiro exemplo do sucesso do antissemitismo como catalisador das
demais questões políticas. Pode atribuir-se esse fato à falta de autoridade da Terceira República,
que foi implantada com maioria parlamentar insignificante. Aos olhos das massas, o Estado
havia perdido prestígio juntamente com a monarquia, e os ataques contra o Estado já deixaram,
desde então, de ser um sacrilégio. As primeiras explosões de violência na França lembram
muito a agitação semelhante que ocorreu nas repúblicas alemã e austríaca depois da Primeira
Grande Guerra. A ditadura nazista tem sido com tanta frequência associada à chamada "adoração do Estado" que até os historiadores perdem de vista o truísmo de que, ao contrário, os
nazistas tiraram vantagem do colapso da adoração ao Estado, originada do louvor irrestrito e do
culto devido a um soberano, assentado no trono pela graça de Deus, o que nunca ocorre numa
república. Na França, cinquenta anos antes de serem os países da Europa central afetados por
essa perda universal de reverência, a adoração do Estado já havia sofrido muitas derrotas. Era
muito mais fácil atacar os judeus e o governo juntos na França do que na Europa central, onde
os judeus eram atacados como meio de agredir o governo.
Além disso, o antissemitismo francês é mais antigo que os seus similares europeus. Para os
representantes da Era do Esclarecimento, que prepararam a Revolução Francesa, era normal o
desprezo aos judeus: olhavam-nos como sobreviventes da Idade Média e como agentes
financeiros da aristocracia. Os únicos amigos dos judeus na França que chegavam a se
pronunciar eram escritores conservadores, que denunciavam as atitudes antijudaicas como "uma
das teses favoritas do século XVIII".[51] Para o escritor mais liberal ou radical já pertencia à
tradição denunciar os judeus como bárbaros, que ainda viviam em estrutura patriarcal, sem
reconhecerem o poder leigo do Estado.[52] Durante e após a Revolução Francesa, o clero e os aristocratas da França uniram suas vozes ao sentimento
antijudaico geral embora por motivos materiais: acusaram o governo revolucionário de ter vendido
propriedades da Igreja para pagar "aos judeus e comerciantes, que são credores do governo"[53] — no que
identificavam os judeus e o Estado, como se essa situação ainda perdurasse. Estes velhos argumentos que,
de uma forma ou de outra, se mantiveram acesos na França durante a incessante luta entre a Igreja e o
Estado alimentaram a violência e o acirramento de ódios provocados, no fim do século XIX, por outras
forças, mais modernas.
Foi principalmente por causa do apoio dado pela Igreja ao antissemitismo que o movimento socialista
francês decidiu finalmente tomar posição contra a propaganda antissemita quando do Caso Dreyfus. Até
então, os movimentos esquerdistas da França não escondiam a sua antipatia aos judeus. Seguiam
simplesmente a tradição do Esclarecimento do século XVIII, que foi a fonte do liberalismo e radicalismo
franceses, e consideravam as atitudes antijudaicas como parte integrante do anticlericalismo. Esses
sentimentos da esquerda foram fortalecidos, primeiro, pelo fato de os judeus da Alsácia continuarem a
viver de empréstimos de dinheiro aos camponeses, procedimento que já em 1808 havia provocado um
decreto específico de Napoleão, para encontrar depois novo alento na política financeira da casa dos
Rothschild, que teve papel relevante no financiamento dos Bourbon, manteve estreitas relações com o rei
Luís Filipe e floresceu como nunca sob Napoleão III.
Por trás desses estímulos óbvios, embora bastante superficiais, existia causa mais profunda, crucial a toda
a estrutura do radicalismo especificamente francês, e que quase conseguiu levar contra os judeus todo o
movimento esquerdista francês. Os banqueiros eram muito mais fortes na economia da França do que em
outros países capitalistas, e o desenvolvimento industrial francês, após uma breve ascensão durante o
governo de Napoleão III, atrasou-se de tal modo com relação às outras nações que as tendências
socialistas pré-capistalistas continuaram a exercer considerável influência. A classe média inferior na
Áustria e na Alemanha tornou-se antissemita somente durante os anos 70 e 80, quando já estava tão
desesperada que podia ser levada por qualquer político mais hábil. Na França, essa classe revelou-se antissemita cerca de cinquenta anos antes, quando, com o auxílio dos trabalhadores, levou a Revolução de
1848 à vitória. Nos anos 40 do século XIX, ao publicar Les Juifs, róis de Vépoque — livro mais
importante entre numerosos panfletos lançados então contra os Rothschild —, Toussenel foi
entusiasticamente recebido por toda a imprensa esquerdista, que então representava a pequena burguesia
revolucionária. Os sentimentos dessa classe, expressos por Toussenel, embora menos eloquentes e menos
sofisticados, não eram muito diferentes daqueles do jovem Marx, e o ataque de Toussenel Boerne havia escrito quinze anos antes.[54] Também esses dois judeus — Marx e Boerne — viam no
banqueiro judeu a figura central do sistema capitalista, erro que influenciou a burocracia municipal e a
dos níveis inferiores do governo da França até os nossos dias.[55]
Contudo, essa explosão de sentimento popular antijudaico, alimentado pelo conflito econômico entre os
banqueiros judeus e a sua desesperada clientela, não durou mais, como fator importante em política, do
que outras explosões semelhantes causadas por motivos puramente econômicos ou sociais. Os vinte anos
do governo de Napoleão III constituíram para a comunidade judaica da França uma era de prosperidade e
segurança, semelhante às duas décadas que na Alemanha e na Áustria antecederam a Primeira Grande
Guerra.
A única modalidade de antissemitismo francês que realmente vingou, e que sobreviveu ao antissemitismo
social e às atitudes desdenhosas dos intelectuais anticlericais, estava ligada a uma xenofobia geral.
Especialmente após a Primeira Grande Guerra, os judeus estrangeiros tornaram-se estereótipo de todos os
estrangeiros. Em todos os países da Europa central e ocidental esboçou-se uma diferenciação entre os
judeus nativos e aqueles que "invadiram" o país, provenientes do Leste. Os judeus poloneses e russos
eram tratados na Alemanha e na Áustria exatamente da mesma forma como os judeus romenos e alemães
eram tratados na França. Os judeus da Posnânia eram tratados na Alemanha com o mesmo desdém esnobe
que na França era reservado aos judeus na Alsácia. Mas somente na França essa diferenciação
"antioriental" assumiu certa importância no cenário nacional. E isso se deve provavelmente ao fato de que
a casa dos Rothschild, que, mais do que em qualquer outro lugar, era o alvo dos ataques antijudaicos,
havia emigrado para a França da Alemanha; assim, até a deflagração da Segunda Grande Guerra, os
franceses "naturalmente" suspeitavam que os judeus simpatizassem com o inimigo nacional alemão.
O antissemitismo nacionalista, inofensivo quando comparado com os movimentos modernos,
nunca foi monopólio de reacionários e chauvinistas na França. Nessa questão, o escritor Jean
Giraudoux, ministro da propaganda no gabinete de guerra de Daladier, concordava plenamente
com Pétain e com o governo de Vichy.[56] Mas este, por mais que se esforçasse em agradar aos
alemães, não conseguia ultrapassar as limitações dessa obsoleta antipatia pelos judeus. Essa
deficiência era digna de nota porquanto foram os franceses que haviam produzido um antissemita eminente e talentoso, que percebia todo o alcance e as possibilidades das novas armas de
moldar a opinião das massas. E característico das condições da França, onde o antissemitismo
nunca caiu no descrédito social e intelectual, como ocorreu em outros países europeus, que esse
homem fosse um ilustre romancista.
Louis Ferdinand Céline elaborou uma tese simples, engenhosa e imaginária que deu ao racional
antissemitismo francês um pouco da imaginação ideológica que lhe faltava. Afirmava que os
judeus haviam frustrado a evolução da Europa como entidade política, causando todas as
guerras europeias desde o ano de 843, e planejando a ruína da França e da Alemanha, ao incitar
uma contra a outra. Céline propôs essa fantástica explicação da história em seu livro Êcole des
cadavres, escrito na época do pacto de Munique [1938] e publicado durante os primeiros meses
da guerra [1939]. Um panfleto anterior sobre o assunto, Bagatelle pour un massacre [1938],
embora não incluísse nova interpretação da história europeia, já abordava a questão de modo
surpreendentemente moderno: evitava as diferenciações entre judeus nativos e estrangeiros,
entre judeus bons e maus, e, não se preocupando com laboriosas propostas legislativas —
característica particular do antissemitismo francês —, ia direto ao assunto e pedia o massacre de
todos os judeus.
O primeiro livro de Céline teve recepção muito favorável entre os intelectuais mais importantes
da França, que se sentiam em parte satisfeitos com o ataque contra os judeus e em parte
convencidos de que se tratava de interessante visão literária.[57] Exatamente por essas razões, os
fascistas franceses não levaram Céline a sério, a despeito do fato de que os nazistas sempre
souberam que ele era o único verdadeiro anti-semita da França. O bom senso inerente dos políticos
franceses e sua arraigada responsabilidade proibiam-nos de aceitarem um doido — e só um
doido poderia apresentar o massacre como solução de um problema. Como resultado, mesmo os
alemães, ao se esforçarem — em vão — para persuadir o povo francês de que o extermínio dos
judeus seria uma cura para todos os males sob o sol, tiveram de contar com colaboradores
inadequados como Doriot, um seguidor de Mussolini, e Pétain, um velho chauvinista francês
sem qualquer compreensão dos problemas modernos. O modo pelo qual essa situação evoluiu
ao longo dos anos de boa vontade oficial e mesmo extraoficial em cooperar com a Alemanha
nazista indica claramente o quanto o antissemitismo do século XIX era ineficaz para os novos
fins políticos do século XX, mesmo num país onde se havia desenvolvido ao máximo e
sobrevivido a todas as outras mudanças de opinião pública..Em nada adiantou que jornalistas
capazes do século XIX, como Edouard Drumont, e mesmo grandes escritores contemporâneos,
como Georges Bernanos, contribuíssem para essa causa: ela parecia ser melhor servida por
loucos e charlatães.
Um dos elementos decisivos dessa situação foi este: por várias razões, a França nunca chegou a
ter um partido pan-europeu. Como muitos políticos franceses mostraram,[58] somente uma aliança
franco-alemã teria permitido à França competir com a Inglaterra na divisão do mundo e alcançar
maior sucesso na disputa pela África. Contudo, de uma forma ou de outra, a França nunca se
deixou levar por essa competição, a despeito de todo o seu ruidoso ressentimento e de sua
hostilidade para com a Grã-Bretanha. A França era, e continuou sendo — embora declinando
em importância —, Ia nation par excel-lence da Europa. Além disso, como seu antissemitismo
se nutrira principalmente do conflito franco-alemão, puramente nacional, a questão judaica
deixava, quase automaticamente, de ter qualquer papel importante na política supranacional ou
imperialista, apesar das condições da Argélia, onde a população mista de judeus e árabes nativos
teria oferecido para tanto excelente oportunidade.[59] A simples e brutal destruição do Estado
nação francês pela agressão alemã e a pseudo-aliança franco-alemã baseada em ocupação
nazista podem ter demonstrado quão pouca força própria Ia nation par excellence havia trazido
do seu glorioso passado para os nossos dias; mas isto em nada alterou os elementos essenciais
da sua estrutura política.
continua página 62...
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Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.4)
[45] Ver Paul H. Emden, "The story of the Vienna Creditanstalt", em Menorah Journal, XXVIII, 1, 1940.
[46] Ver F. A. Neuschaefer, Georg Ritter von Schoenerer, e Eduard Pichl, Georg Schoenerer, 1938, 6 vols. Mesmo em 1912,
quando a agitação de Schoenerer já havia muito perdera todo significado, a Arbeiterzeitung [Folha do trabalhador] expressou-lhe
sentimentos carinhosos, através das palavras que uma vez Bismarck pronunciara a respeito de Lassalle: "E, se trocássemos tiros, a
justiça ainda exigiria que admitíssemos mesmo durante o tiroteio: Ele é um homem; e os outros são velhas" (Neuschaefer, p. 33).
[47] Ver Neuschaefer, op. cit., pp. 22ss., e Pichl, op. cit., I, pp. 236ss.
[48] Citado de Pichl, op. cit., vol. I, p. 26.
[49] Ver especialmente Walfried Vernunft, "Die Hintergründe des franzósischen Antisemi-tismus" [Fundamentos do anti
semitismo francês], em Nationalsozialistische Monatshefte [Cadernos mensais nacional-socialistas], junho de 1939.
[50] Ver o capítulo 4.
[51] Ver X. de Maistre, Les soirées de Saint-Petersburg, 1821, II, p. 55.
[52] Charles Fourier, Nouveau monde industriei et sociétaire, 1829, vol. VI de suas Oeuvres completes, 1845 (reeditadas em
1966), p. 421. Para as doutrinas antijudaicas de Fourier, ver também Edmund Silberner, "Charles Fourier on the Jewish
Question", em Jewish Social Studies, outubro de 1946.
[53] Ver o jornal Le Patriote Français, n? 457, de 8 de novembro de 1790, citado por Cle-mens August Hoberg, "Die geistigen
Grundlagen des Antisemitismus im modernen Frankreich" [Causas espirituais do anti-semitismo na França moderna], em
Forschungen zur Judenfrage, 1940, vol. IV.
[54] O ensaio de Marx sobre a questão judaica é suficientemente bem conhecido; assim não precisa ser citado. Como as afirmações
de Boerne, em virtude de seu caráter meramente polêmico e não-teórico, vão hoje sendo esquecidas, citamos parte de sua 72? carta
de Paris (janeiro de 1832): "Rothschild beijou a mão do papa. (...) Finalmente chegou a ordem que Deus havia planejado quando
criou o mundo. Um cristão pobre beija os pés do papa, e um judeu rico lhe beija a mão. Se Rothschild houvesse obtido seu
empréstimo romano a 60%, em vez de a 65%, e pudesse ter mandado ao tesoureiro-mor mais de 10 mil ducados, ter-lhe-iam
permitido abraçar o Santo Padre. (...) Não seria a maior ventura para o mundo se todos os reis fossem depostos e a família
Rothschild colocada no trono?" (EmBriefe aus Paris, 1830-1833 [Cartas de Paris].)
[55] Essa atitude é bem descrita no prefácio, da autoria do conselheiro municipal Paul Brousse, à famosa obra de Cesare Lombroso
sobre o antissemitismo (1899). A parte característica do argumento está contida no seguinte: "O pequeno comerciante precisa de
crédito, e sabemos como o crédito é caro e mal organizado hoje em dia. O pequeno comerciante responsabiliza o banqueiro judeu
também por isso. Em escala abaixo, todos, até o trabalhador (...) pensam que estão incrementando a revolução se a expropriação
geral dos capitalistas for precedida pela expropriação dos capitalistas judeus, que são os mais típicos e cujos nomes são mais
conhecidos das massas".
[56] Quanto à surpreendente continuidade dos argumentos antissemitas franceses, compare-se, por exemplo, a descrição, por
Charles Fourier, do judeu "Iscariotes", que chega à França com 100 mil libras, estabelece-se numa cidade com seis competidores em
seu ramo, esmaga todas as firmas concorrentes, junta uma grande fortuna, e volta para a Alemanha (Théorie des quatre mou
vements, 1808, em: Oeuvres completes, v. I, p. 233), com a imagem de Giraudoux de 1939: "Através de uma infiltração cujo
segredo tentei em vão descobrir, centenas de milhares de ashquenasim, que fugiram dos guetos poloneses e romenos, entraram em
nosso país (...) eliminando nossos concidadãos e, ao mesmo tempo, arruinando seus costumes e tradições profissionais. (...)
Acostumados há séculos a trabalhar em piores condições em todos os setores do pequeno artesanato, (...) desafiam todas as
investigações do censo, do fisco e do trabalho". (Em Pleinspouvoirs, 1939.)
[57] Ver especialmente a apreciação crítica, na Nouvelle Revue Française, de Mareei Arland (fevereiro de 1938), que afirma que a
posição de Céline é essencialmente solide. André Gide (abril de 1938) acha que Céline, ao descrever apenas a spécialité judaica,
conseguiu pintar não a realidade, mas a própria alucinação que a realidade provoca.
[58] Como, por exemplo, RenéPinon, em France et Allemagne 1870-1913, 1913.
[59] Alguns aspectos da questão judaica na Argélia são tratados no artigo da autora, "Why the Crémieux Decree was abrogated",
em Contemporary Jewish Record, abril de 1943. [Por decreto do ministro da Justiça da França no governo republicano de 1870,
Adolphe Crémieux — de origem judaica —, os judeus da Argélia tornaram-se cidadãos da França, o que não aconteceu com a
população árabe. Este decreto foi revogado sob o regime de Vichy, quando os judeus argelinos foram perseguidos tanto pelos árabes
locais quanto pelas autoridades francesas e nazistas. Temendo a independência da Argélia, a maioria desses judeus, valendo-se da
sua cidadania francesa, que lhes foi devolvida após a liberação da França em 1945, emigrou para a França, N. E.]