segunda-feira, 12 de maio de 2025

A Montanha Mágica - Enciclopédia (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 

Capítulo V

Enciclopédia
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continuando...

     Via-se, de resto, na expressão do Sr. Settembrini, que, apesar do seu silêncio, continuava a atividade do seu espírito. Ainda se encontrava bem perto de Hans Castorp, tanto que este até se viu forçado a reclinar o corpo um pouquinho para trás. Os olhos negros do italiano fitavam o rosto do jovem com a fixidez cega de um homem absorto pelas suas ideias. 

– O senhor sofre, engenheiro – prosseguiu. – Sofre como quem anda desnorteado. É o que se pode ler na sua fisionomia. Mas também a sua conduta em face do sofrimento deveria ser uma conduta europeia, e não a do Oriente, que povoa tão abundantemente esta região, justamente por ser efeminado e ter uma inclinação para a enfermidade... A compaixão e a paciência infinita – eis a maneira oriental de enfrentar o sofrimento. Não pode, não deve ser a nossa, não convém ao senhor!... Acabamos de falar da minha correspondência... Veja, aqui... Ou melhor, venha comigo! Aqui não se pode conversar... Vamos retirar-nos e entrar nesta salinha. Quero fazer-lhe algumas confidencias que... Venha! – E dando meia-volta arrastou Hans Castorp para fora do vestíbulo até a primeira saleta, a mais próxima do portão, mobiliada como sala de leitura, e onde a essa hora não havia pensionistas. Sob a abóbada branca, nas paredes revestidas de painéis claros, viam-se estantes de livros, uma mesa central, rodeada de cadeiras e coberta de jornais fixos em pregadores, e escrivaninhas sob as arcadas das janelas. O Sr. Settembrini avançou até uma dessas janelas, seguido de Hans Castorp. A porta permanecia aberta. 
– Estes papéis – disse o italiano, tirando com mão pressurosa do bolso do paletó espesso um fascículo contendo um envelope volumoso com diversos folhetos e uma carta, que fez resvalar entre os dedos, para que Hans Castorp os pudesse ver –, estes papéis têm o cabeçalho em francês: “Liga Internacional para a Organização do Progresso”. Recebo-os de Lugano, onde existe uma seção filiada à liga. O senhor quer conhecer os seus princípios, os seus objetivos? Vou indicá-los em duas palavras. A Liga para a Organização do Progresso deriva da doutrina evolucionista de Darwin, concepção filosófica segundo a qual a vocação natural mais profunda da humanidade é o seu próprio aperfeiçoamento. Por conseguinte, constitui dever de cada indivíduo desejoso de corresponder a essa vocação natural colaborar ativamente para o progresso da humanidade. Muitos acudiram ao chamado da liga. É considerável o número dos seus sócios na França, Itália, Espanha, Turquia e até na Alemanha. Também eu tenho a honra de figurar como tal nas listas da liga. Foi esboçado um amplo programa de reformas, baseado em princípios científicos, um programa que abrange todas as possibilidades atuais de aperfeiçoamento do organismo humano. Estuda-se o problema da saúde da nossa raça; são examinados todos os métodos para combater a degenerescência, que é, sem dúvida, uma consequência inquietante da progressiva industrialização. Além disso, promove a liga a fundação de universidades populares, empenha-se na supressão da luta de classes, por meio de todos os melhoramentos sociais que possam contribuir para esse fim, e preocupa-se com a abolição das lutas entre os povos e da guerra, mediante o desenvolvimento do direito internacional. Como o senhor vê, os esforços da liga são generosos e vastíssimos. Diversas revistas internacionais testemunham as suas atividades, revistas mensais, redigidas em três ou quatro idiomas importantes e que relatam de forma vívida a evolução progressista da humanidade civilizada. Foram fundados numerosos grupos locais nos diferentes países, que devem realizar discussões noturnas e solenidades dominicais, com a finalidade de esclarecer e de edificar o público no sentido do ideal do progresso humano. Mas antes de tudo dedica-se a liga a ajudar, por meio da sua documentação, os partidos políticos progressistas de todos os países... O senhor está seguindo as minhas palavras, engenheiro? 
– Perfeitamente! – respondeu Hans Castorp com uma veemência precipitada. Ao proferir essa palavra tinha a sensação de quem escorrega, mas ainda consegue, mal e mal, manter-se de pé.  

     O Sr. Settembrini pareceu satisfeito. 

– Creio que lhe abri perspectivas novas e surpreendentes. 
– Sim, senhor, confesso que é a primeira vez que ouço falar dessas... dessas atividades. 
– Que pena! – exclamou Settembrini em voz abafada. – Que pena que ninguém lhe tenha falado delas antes. Mas talvez ainda não seja tarde. Olhe estes folhetos... O senhor deseja saber do que eles tratam? Pois então escute! Esta primavera foi convocada em Barcelona uma solene assembleia geral da liga. Como sabe, essa cidade ufana-se de manter relações particulares com a ideia progressista. O congresso realizou-se durante uma semana, com banquetes e solenidades de toda espécie. Meu Deus! Eu tencionava seguir para lá, tinha o mais ardente desejo de participar das deliberações. Mas esse patife do conselheiro proibiu a viagem, ameaçando-me de morte. Que quer o senhor? Eu receei a morte e não fui. Estava desesperado, como pode imaginar, por causa da peça que me pregou a minha saúde precária. Não há nada mais doloroso do que ver como a nossa parte orgânica, a parte animal do nosso ser, nos impede de servir à razão. Tanto mais viva é a satisfação que me causa esta carta que recebi da secretaria da liga em Lugano. O senhor está curioso de saber o seu conteúdo? Não duvido. Vou lhe dar algumas informações rápidas... A Liga para a Organização do Progresso, consciente do fato de que a sua tarefa consiste em promover a felicidade dos homens, ou, em outros termos, em lutar contra o sofrimento humano por meio de um adequado trabalho social, e com o fim de exterminá-lo por completo; considerando, ademais, que essa tarefa suprema só pode ser executada com o auxílio da ciência sociológica, cujo objetivo final é o Estado perfeito – a liga, pois, resolveu, em Barcelona, a publicação de uma obra em numerosos volumes que levará o título Sociologia dos males, e na qual serão estudados, de uma forma sistemática e completa, os males humanos, segundo as suas categorias e espécies. O senhor vai objetar: que adiantam categorias, espécies e sistemas? Respondo-lhe: a ordem e a classificação formam o começo do domínio, e o inimigo mais perigoso é o inimigo desconhecido. É necessário arrancar o gênero humano dos estados primitivos do medo e da apatia passiva e conduzi-lo rumo à fase da atividade consciente do seu objetivo. É mister ensinar-lhe que desaparecem os efeitos cujas causas primeiro reconhecemos e depois abolimos, e que quase todos os males do indivíduo são enfermidades do organismo social. Muito bem! É esta a intenção da “patologia sociológica”. Em aproximadamente vinte volumes de tipo enciclopédico, serão enumerados e tratados todos os males imagináveis dos homens, desde os males mais pessoais e mais íntimos até os grandes conflitos coletivos, os males que têm a sua origem nas inimizades de classes e nos entrechoques internacionais; numa palavra, a obra mostrará os elementos químicos que, em múltipla mistura e combinação, compõem todos os sofrimentos humanos, e, tomando por diretriz a dignidade e a felicidade dos homens, indicará para cada caso os remédios e as medidas que lhe parecem apropriados para eliminar a causa do mal. Destacados especialistas dentre os sábios europeus, médicos, economistas e psicólogos, repartirão entre si a redação dessa enciclopédia dos sofrimentos, e a secretaria central em Lugano será o estuário para onde confluirão os rios de artigos. Vejo que seus olhos me perguntam qual será o papel que desempenharei em tudo isso. Deixe que eu termine! Nesta grande obra também não devem ser omitidas as belas-letras, na medida em que estas tiverem por assunto o sofrimento humano. Por isso foi previsto um volume especial que, para consolo e instrução dos que sofrem, deve conter uma compilação e uma breve análise de todas as obras-primas da literatura universal que se refiram ao respectivo conflito. E precisamente essa é a tarefa da qual foi incumbido, na carta que o senhor vê aqui, este seu humilde criado. 
– Não diga, Sr. Settembrini! Permita que o felicite de todo o coração! É uma incumbência formidável e que, como creio, vem a talho de foice para o senhor. Não me surpreende nem um pouquinho que a liga tenha pensado no senhor. Como não deve estar satisfeito, agora que pode contribuir para o extermínio do sofrimento humano! 
– É um trabalho enorme – disse o Sr. Settembrini, pensativo –, que requer muito tino e muita leitura. Tanto mais – acrescentou, enquanto o seu olhar parecia perder-se na multiplicidade de suas tarefas –, tanto mais que as belas-letras quase sempre têm por assunto o sofrimento, e até obras-primas de segunda ou terceira categoria se preocupam de alguma forma com ele. Não faz mal ou, antes, tanto melhor! Por vasta que seja a tarefa, em todo caso é das que é possível executar neste lugar maldito, ainda que eu espere não ser obrigado a terminá-la aqui. O mesmo não se pode dizer – continuou, aproximando-se novamente de Hans Castorp e baixando a voz até quase cochichar –, o mesmo não se pode dizer dos deveres que a natureza impõe ao senhor, engenheiro. Eis o ponto a que eu tencionava chegar, e nesse sentido desejava exortá-lo. O senhor sabe quanto admiro a sua profissão; mas, como é uma profissão prática e não uma profissão literária, o senhor não pode exercê-la aqui, bem ao contrário da minha. Só na planície pode ser europeu, só ali pode combater o sofrimento ativamente, à sua maneira, só ali pode promover o progresso e aproveitar o tempo. Falei-lhe da tarefa que me coube, apenas para lhe recordar isso, para chamá-lo à razão, para corrigir os seus conceitos que, aparentemente, começam a perturbar se sob a influência da atmosfera. Insisto com o senhor: vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e não se perca no ambiente estranho! Evite este atoleiro, esta ilha de Circe. O senhor não é bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!

     Ao proferir em voz abafada as suas exortações, o humanista sacudira a cabeça com insistência. A seguir, permaneceu calado, com os olhos baixos e o cenho carregado. Era impossível responder-lhe com brincadeiras ou evasivas, como era costume de Hans Castorp, e como, por um instante, pensou fazer novamente. Também ele baixara as pálpebras. Por fim, encolhendo os ombros, disse, também em voz baixa: 

– Que devo fazer? 
– O que eu lhe disse. 
– Isso significa: partir?

     O Sr. Settembrini ficou calado. 

– Quer o senhor dizer que eu devo regressar para casa? 
– É o que lhe aconselhei logo na primeira noite, engenheiro. 
– Sim, senhor, e naquela ocasião eu tinha plena liberdade de fazê-lo, embora achasse pouco razoável fugir daqui, só porque o ar das alturas me incomodava um pouco. Mas, desde então, a situação mudou bastante. Nesse ínterim houve o exame médico, depois do qual o Dr. Behrens me disse claramente que não valia a pena regressar, pois dentro de pouco tempo me veria obrigado a voltar para cá e, se continuasse a viver daquele jeito na planície, me arriscaria a que dentro de pouco tempo todo o lóbulo do pulmão fosse por água abaixo. 
– Eu sei. Agora o senhor tem seu passaporte no bolso. 
– Sim. O senhor diz isso ironicamente... com aquela ironia justa, perfeitamente compreensível, que é um meio clássico e correto de eloquência... Está vendo como gravei na memória as suas próprias palavras? Mas pode o senhor assumir a responsabilidade de me dar o conselho de regressar, apesar dessa fotografia e do resultado da radioscopia e do diagnóstico do Dr. Behrens?

     Settembrini hesitou um momento. Depois, endireitou-se, abriu os olhos, fixou-os em Hans Castorp, firmes e negros, e replicou com uma ênfase que não deixava de encerrar um quê de teatral e de exagerado: 

– Sim, engenheiro, assumo esta responsabilidade.

     Mas também Hans Castorp entesara a sua postura. Mantinha os tacões juntos e encarava o Sr. Settembrini. Desta vez tratava-se de um duelo. Hans Castorp não arredava pé. Existiam influências próximas a fortificá-lo. De um lado havia um pedagogo, e do outro, lá fora, uma mulher de olhos rasgados. Hans Castorp nem sequer se desculpou pelo que diria; não acrescentou: “Não leve a mal as minhas palavras!” Limitou-se a retrucar: 

– Nesse caso, o senhor é mais prudente quando se trata de si próprio do que em relação a outros. O senhor não viajou para o congresso da liga em Barcelona, contra a proibição do médico. Tinha medo da morte e ficou aqui.

     Até certo ponto estava desfeita, indubitavelmente, a pose do Sr. Settembrini. Esboçando um sorriso um tanto forçado, respondeu ele: 

– Sei apreciar uma resposta incisiva, mesmo que a sua lógica não se distancie muito do sofisma. Repugna-me entrar naquela odiosa competição que está na moda aqui; do contrário lhe responderia que ando muito mais doente do que o senhor. Desgraçadamente estou, sem exagero, tão enfermo que mantenho apenas artificialmente, na intenção de me iludir a mim mesmo, a esperança de abandonar este lugar e voltar ao mundo lá de baixo. No momento em que se tornar evidente a indecência dessa atitude, virarei as costas a este estabelecimento e ocuparei, para o resto dos meus dias, um quarto numa casa particular em qualquer lugar do vale. Será triste, mas, como a esfera do meu trabalho é a mais livre e a mais espiritual de todas, isso não me impedirá de servir até o meu último suspiro a causa da humanidade e de fazer frente ao espírito da doença. Já chamei a atenção do senhor para a diferença que nesse ponto existe entre nós. Meu caro engenheiro, o senhor não é um homem capaz de defender aqui o que há de melhor na sua natureza. Verifico isso desde o nosso primeiro encontro. O senhor me objeta que não fui a Barcelona. Submeti-me à proibição do médico para não me destruir antes do tempo. Mas fiz isso com as mais enérgicas reservas, sob o mais altivo e doloroso protesto do meu espírito contra a pressão do meu corpo miserável. Será que esse protesto está vivo também no senhor, quando se sujeita aos preceitos das potências daqui? Não serão apenas o corpo e a sua tendência nefasta aquilo que o faz obedecer com demasiada espontaneidade?... 
– Que tem o senhor contra o corpo? – interrompeu-o rapidamente Hans Castorp, fixando no italiano os olhos arregalados, cuja esclerótica estava estriada de veias vermelhas. Sua audácia entontecia-o visivelmente. “De que falo?”, pensou. “É incrível como isso vai longe. Mas, uma vez que me pus em pé de guerra contra ele, vou fazer o possível para não lhe deixar a última palavra. Naturalmente ele acabará triunfando; não faz mal, porque sempre tirarei disso algum proveito. Vou provocá-lo.” E completou a sua objeção, dizendo: – O senhor não é humanista? Como pode falar mal do corpo?

     Settembrini sorriu, dessa vez sem esforço, seguro de si. 

– “Que tem o senhor contra a análise?” – citou, com a cabeça inclinada em direção do ombro. – “Não gosta da análise?” O senhor sempre me encontrará disposto a responder às suas perguntas, engenheiro – continuou com uma reverência, esboçando com a mão um gesto de saudação que descia até o soalho –, sobretudo quando os seus argumentos dão prova de espírito. O senhor riposta com elegância... Humanista? Claro que o sou. O senhor nunca me apanhará manifestando tendências ascéticas. Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim como faço em face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como tomo o partido das coisas mundanas, dos interesses da vida, contra a aversão sentimental ao mundo; represento o Classicismo contra o Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas existe um poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação, meu supremo respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por mais que eu abomine ver como alguns procuram opor ao corpo qualquer fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não ignoro que, dentro da antítese de corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e diabólico; pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! “O senhor é humanista!” Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem, como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza. Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso será inútil o senhor me acusar de obscurantismo cristão...

     Hans Castorp defendeu-se com um gesto. 

– ... será absolutamente inútil o senhor me acusar disso – insistiu Settembrini – só porque um belo dia o humanismo no seu nobre orgulho chegou a se dar conta da humilhação, da ignomínia que reside no fato de o espírito estar ligado ao corpo, à natureza. Sabe o senhor que nos foi transmitido um dito do grande Plotino, segundo o qual “ele sentia vergonha de ter um corpo”? – perguntou Settembrini, de uma forma que tão seriamente exigia uma resposta, que Hans Castorp se viu obrigado a confessar que ouvia isso pela primeira vez. – Quem nos transmitiu essas palavras foi Porfírio. É uma sentença absurda, se assim quiser. Mas o absurdo é a honestidade espiritual, e no fundo não há nada mais nobre do que a objeção do absurdo, nos casos em que o espírito procura manter a sua dignidade em face da natureza e recusa abdicar em favor dela... O senhor ouviu falar do terremoto de Lisboa? 
– Não, houve um terremoto? Aqui não leio jornais. 
– O senhor me entendeu mal. Seja dito de passagem que é lastimável – e característico deste lugar – que o senhor se descuide aqui da leitura da imprensa. Mas o senhor não me compreendeu bem. O fenômeno natural a que aludi não é recente; passou-se faz aproximadamente cento e cinqüenta anos... 
– Ah, sim! Espere um pouco. É verdade. Li que Goethe recebeu a notícia em Weimar, no seu quarto, à noite, e disse ao criado... 
– Ora, não era disso que queria falar – interrompeu-o Settembrini, fechando os olhos e agitando no ar a mãozinha trigueira. – O senhor aliás confunde as catástrofes. Pensa no terremoto de Messina. Eu me refiro ao abalo sísmico que sofreu Lisboa em 1755. 
– Perdão. 
– Bem, Voltaire revoltou-se contra ele. 
– Quer dizer... Mas como? Ele se revoltou? 
– Pois é, rebelou-se. Não admitiu aquele fado ou fato brutal. Negou-se a abdicar perante ele. Protestou em nome do espírito e da razão contra esse escandaloso excesso da natureza que vitimou três quartas partes de uma florescente cidade e milhares de vidas humanas... O senhor fica pasmado? Sorri? Que pasme, mas, quanto ao sorriso, tomo a liberdade de censurá-lo. A atitude de Voltaire era a de um autêntico descendente daqueles antigos gauleses que atiravam as suas flechas contra o céu. Olhe, engenheiro, aí vê o senhor a hostilidade do espírito em face da natureza, a orgulhosa desconfiança com que a encara, a maneira nobre pela qual se obstina no direito de criticar a ela e a seu poder maligno e insensato. Pois a natureza é o poder, e aceitar o poder, conformar-se com ele – repare bem: conformar-se intimamente com ele, é servil! E com isso o senhor chega àquele humanismo que absolutamente não se deixa cair em nenhuma contradição e que não se torna culpado de nenhuma recaída na hipocrisia cristã, ao decidir-se a ver no corpo o princípio mau e antagônico. A contradição que o senhor pensa encontrar é, no fundo, sempre a mesma. “Que tem o senhor contra a análise?” Nada... quando ela se empenha em instruir, em libertar, em promover o progresso; Tudo... quando traz consigo o asqueroso olor faisandé do túmulo. E o mesmo se dá com o corpo. É preciso honrá-lo e defendê-lo onde se trata da sua emancipação e da sua beleza, da liberdade dos sentidos, da felicidade, do prazer. É mister desprezá-lo, cada vez que se opuser, como princípio da gravidade e da inércia, ao movimento rumo à luz. Convém detestá-lo quando chega a representar o princípio da doença e da morte, quando o seu espírito específico se torna o espírito da perversidade, o espírito da decomposição, da volúpia e da vergonha...

     Essas últimas palavras, Settembrini as proferira muito perto de Hans Castorp, falando quase sem voz e com muita velocidade, como para terminar depressa. Chegou socorro a Hans Castorp: Joachim, com dois cartões-postais na mão, entrou na sala de leitura. Ficou interrompido o discurso do literato, e a habilidade com que a sua fisionomia passou a assumir uma expressão leve e mundana não deixou de impressionar o seu aluno -se é que podemos chamar assim a Hans Castorp. 

– Olá, tenente! O senhor deve ter andado à procura do seu primo. Desculpe! Entabulamos uma conversa – e se não me engano, tivemos até uma pequena discussão. Ele não é nada mau como argumentador, o senhor seu primo, um adversário bastante perigoso num debate, quando dá importância ao assunto.

continua pág 163...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Enciclopédia (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1] Personagens de Wilhelm Busch (1832-1908), autor de obras infantis muito divulgadas na Alemanha. No Brasil, são conhecidos como ]uca e Chico, na tradução de Olavo Bilac. (N. do E.)

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Tem-se dito que o silêncio é uma força)

em busca do tempo perdido


volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


     Tem-se dito que o silêncio é uma força; num sentido inteiramente diverso, é de fato uma força terrível à disposição dos que são amados. Ele aumenta a ansiedade de quem está esperando. Nada convida tanto a aproximar-se de uma criatura como aquilo que dela nos separa, e qual a barreira mais intransponível que o silêncio? Diz-se também que o silêncio é um suplício, capaz de tornar louco a quem a ele seja coagido nas prisões. Mas que suplício maior do que guardar silêncio o de suportá-lo vindo de quem se ama! Robert se dizia: "Que será que ela está fazendo então, para se calar desse modo? Sem dúvida está me enganando com outros..." E pensava ainda: "Que será que eu fiz para que se cale assim? Talvez me odeie, e para sempre." E se acusava. Dessa forma, o silêncio o enlouquecia mesmo, pelo ciúme e pelo remorso. Além disso, mais cruel que o das prisões, semelhante silêncio é a própria prisão. Um tabique imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, essa camada interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Existirá mais terrível iluminação que o silêncio que nos mostra não uma ausente, mas mil, cada uma se entregando a uma traição? Às vezes, num alívio brusco, Robert julgava que aquele silêncio ia terminar em breve, que a carta esperada chegaria. Ele a via, ela chegava, ele auscultava cada ruído, já estava acalmado, murmurava:

"A carta! A carta!" Depois de assim ter entrevisto um oásis imaginário de carinho, voltava a ver-se engatinhando no deserto real do silêncio sem fim.

     Sofria por antecipação, sem se esquecer de uma só, todas as dores de um rompimento que, em outras ocasiões, julgava poder evitar, como as pessoas que regulam todos os seus assuntos em vista de uma expatriação que não se efetuará, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte, agita-se momentaneamente desligado delas, semelhante ao coração que se retira de um enfermo e que permanece batendo, separado do corpo. Em todo caso, a esperança de que a amante regressaria lhe dava a coragem para perseverar no rompimento, assim como a crença de que se retornará vivo da batalha ajuda a enfrentar a morte. E, como o hábito é, de todas as plantas humanas, a que menos precisa de solo nutritivo para viver e que é a primeira a aparecer sobre o rochedo aparentemente o mais desolado, talvez praticando a princípio o rompimento por dissimulação, acabasse Robert por se acostumar sinceramente a ele. Mas a incerteza mantinha nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se parecia com o amor. Entretanto, ele se obrigava a não lhe escrever, pensando talvez que seria menos cruel o tormento de viver sem a amante do que viver com ela em determinadas condições, ou que, depois da forma como se tinham deixado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que ele julgava lhe dedicar, se não amor, ao menos a estima e o respeito. Contentava-se em ir ao telefone, que acabavam de instalar em Doncieres, e pedir notícias, ou dar instruções a uma criada de quarto que colocara junto da amiga. De resto, tais comunicações eram complicadas e lhe ocupavam mais tempo, porque, seguindo as opiniões de seus amigos literários quanto à feiúra da capital, mas sobretudo em consideração de seus animais, seus cachorros, seu macaco, seus canários e seu papagaio, cujos gritos incessantes o seu proprietário de Paris deixara de tolerar, a amante de Robert acabava de alugar uma pequena propriedade nos arredores de Versalhes. Entretanto, Robert, em Doncieres, já não dormia um só instante de noite. Uma vez, no meu quarto, vencido pelo cansaço, adormeceu um pouco. Mas de repente começou a falar, queria correr, evitar alguma coisa; dizia: - Estou ouvindo... não, não faça... - Acordou. Disse-me que acabara de sonhar que estava no campo, na casa do sargento-mor. Este procurava afastá-lo de certa parte da casa. Saint-Loup adivinhara que o sargento-mor hospedava em sua casa um tenente muito rico e depravado, que ele sabia que desejava muito a sua amiga. E de súbito, no sonho, ouvira distintamente os gritos intermitentes e regulares que sua amante costumava soltar nos momentos de volúpia. Quisera obrigar o sargento-mor a levá-lo àquele quarto. E este o detinha para impedi-lo de entrar ali, ao passo que fingia um ar ofendido com tanta indiscrição que Robert dizia que nunca poderia esquecer. 

- Meu sonho é idiota acrescentou, ainda sufocado.  

     Mas vi perfeitamente que, na hora seguinte, esteve várias vezes a ponto de telefonar à amante para lhe pedir a reconciliação. Meu pai tinha telefone há pouco, mas não sei se isso teria servido muito a Saint-Loup. Aliás, não me parecia muito conveniente dar a meus pais, mesmo a um simples aparelho instalado em casa deles, esse papel de intermediário entre Saint-Loup e sua amante, por mais distinta e nobre de sentimentos que ela fosse. O pesadelo que Saint-Loup tivera se apagou um pouco de seu espírito. Com olhar distraído, fixo, ele veio me visitar durante todos aqueles dias atrozes que delinearam para mim, seguindo-se um após outro, a curva magnífica de alguma rampa duramente forjada, onde Robert ficava, perguntando-se que resolução a sua amiga iria tomar.
     Por fim, ela lhe perguntou se ele consentia em perdoá-la. E, logo que ele compreendeu que o rompimento fora evitado, percebeu todos os inconvenientes de uma reaproximação. Aliás, já sofria menos e quase aceitara uma dor da qual seria preciso, talvez dentro de poucos meses, encontrar de novo a dentada caso a ligação recomeçasse. E talvez só tenha hesitado por enfim estar certo de poder reaver a amante; de poder e, consequentemente, fazê-lo. Unicamente ela, para poder recuperar a calma, pediu-lhe que não voltasse a Paris a 14 de janeiro. Ora, ele não tinha ânimo de ir a Paris sem vê-la. Por outro lado, ela consentira em viajar em sua companhia, mas para isso era necessário uma licença especial, que o capitão de Borodino não queria conceder. 

- Isto me aborrece por causa da nossa visita à casa de minha tia, que terá de ser adiada. Sem dúvida voltarei a Paris pela Páscoa. 
- Não poderemos ir à casa da Sra. de Guermantes nessa ocasião, pois então já estarei em Balbec. Mas isso não tem importância. 
- Em Balbec? Mas você não iria só no mês de agosto? 
- Sim, mas este ano, devido à minha saúde, devem me mandar mais cedo. 

     Todo o seu temor era de que eu julgasse mal a sua amante, depois do que me contara.

- Ela é violenta só porque tem muita franqueza, é demasiado íntegra nos seus sentimentos. Mas é uma criatura sublime. Tu não podes imaginar as delicadezas poéticas que possui. Vai passar, todos os anos, o Dia de Finados em Bruges. É "bem", não é verdade? Se algum dia a conheceres, verás, ela tem uma grandeza...

     E, como estivesse imbuído de uma certa linguagem que se falava em torno daquela mulher, nos meios literários: 

- Ela tem algo de sideral e até de fatídico, compreendes o que quero dizer, o poeta que era quase um sacerdote.  

     Durante todo o jantar, procurei um pretexto que permitisse a Saint-Loup pedir à tia que me recebesse sem esperar que ele voltasse a Paris. Ora, tal pretexto me foi fornecido pelo desejo que eu tinha de rever os quadros de Elstir, o grande pintor que Saint-Loup e eu tínhamos conhecido em Balbec. Pretexto em que havia, aliás, alguma verdade, pois se, em minhas visitas a Elstir, pedira eu à sua pintura que me conduzisse à compreensão e ao amor das coisas melhores que ela própria, a um degelo verdadeiro, a uma autêntica praça de província, a mulheres de carne e osso na praia (quando muito, lhe encomendara o retrato das realidades que não soubera aprofundar, como um caminho orlado de espinheiros-alvos, não para que me conservasse a sua beleza, mas para que a desvelasse para mim), agora, pelo contrário, a originalidade e a sedução de tais pinturas é que excitavam o meu desejo, e o que eu queria ver acima de tudo eram outros quadros de Elstir.
     Parecia-me, aliás, que seus menores quadros eram algo inteiramente diverso das obras primas de outros pintores, mesmo os maiores que ele. Sua obra era como um reino fechado, de fronteiras indevassáveis, de matéria sem par. Colecionando avidamente as raras revistas onde tinham sido publicados estudos sobre ele, fiquei sabendo que só recentemente é que ele começara a pintar paisagens e naturezas-mortas, mas que havia principiado por quadros mitológicos (vira eu as fotos de dois deles no seu ateliê), e que depois ficara por muito tempo impressionado pela arte japonesa.
     Algumas obras mais características de suas diferentes maneiras se achavam na província. Certa casa dos Andelys, onde se encontrava uma de suas mais belas paisagens, parecia-me tão preciosa, dava-me um desejo tão vivo de viajar como uma aldeia de Chartres, em cuja pedra de mó está engastado um glorioso vitral; e eu me sentia atraído para esse homem que, no interior de sua casa grosseira, na rua principal, encerrado como um astrólogo, interrogava um desses espelhos do mundo que é um quadro de Elstir e que talvez tivesse comprado por milhares de francos com essa simpatia que une até os corações, até as índoles dos que pensam da mesma forma que nós acerca de um assunto essencial. Ora, três obras importantes do meu pintor preferido estavam relacionadas numa daquelas revistas como pertencentes à Sra. de Guermantes. Afinal, foi com sinceridade que, na tarde em que Saint-Loup me anunciara a viagem de sua amiga a Bruges, pude, no decorrer do jantar, diante de seus amigos, atirar-lhe como que de improviso: 

- Escuta, me permites? Na última conversa a respeito da dama de que falamos, não te lembras de Elstir, o pintor que conheci em Balbec? 
- Sim, naturalmente. 
- Lembras-te da minha admiração por ele? 
- Perfeitamente, e da carta que lhe mandamos entregar. 
- Muito bem. Um dos motivos, e não dos mais importantes, um motivo acessório pelo qual eu desejaria conhecer a dita senhora, sabes muito bem qual é? 
- Claro que sim! Tantos parênteses! 
- É que ela possui em casa pelo menos um quadro muito bonito de Elstir. 
- Ora, eu não sabia. 
- Elstir estará em Balbec, sem dúvida, pela Páscoa. Sabe que ele passa agora quase o ano inteiro naquela costa. Gostaria muito de ter visto esse quadro antes de minha partida. Não sei se você tem bastante intimidade com sua tia; não poderia, valorizando-me habilmente a seus olhos a ponto que ela não se recuse, pedir-lhe que me deixe ir ver o quadro sem estar na sua companhia, já que você não estará presente? 
- Está combinado, respondo por ela; vou tratar disso. 
 - Robert, como gosto de você. 
- Você é amável em gostar de mim, mas também o seria se me tratasse por tu como me prometeu e como começara a fazê-lo. 
- Espero que não seja a sua partida o que estão tramando. - disse-me um dos amigos de Robert. - Você sabe, se Saint-Loup sai de licença, isso não deve mudar coisa alguma, pois estamos aí. Será talvez menos agradável para você, mas não mediremos esforços para tentar fazê-lo esquecer a ausência dele.

     Com efeito, no momento em que se supunha que a amiga de Robert estava sozinha em Bruges, acabava-se de saber que o capitão de Borodino, até então de opinião contrária, vinha de conceder ao suboficial Saint-Loup uma longa licença para Bruges. Eis o que se passara. O príncipe, muito cioso de sua basta cabeleira, era um assíduo freguês do maior cabeleireiro da cidade, outrora ajudante do velho cabeleireiro de Napoleão III. O capitão de Borodino dava-se bem com o cabeleireiro, pois era, apesar de seus modos imponentes, muito simples com as pessoas do povo. Mas o cabeleireiro, em cujo estabelecimento o príncipe tinha uma conta atrasada de pelo menos cinco meses, e que os frascos de "Portugal", de "Água dos Soberanos", os ferros de frisar, as navalhas e os couros inchavam, não menos que os xampus, os cortes de cabelo, etc., colocava mais alto Saint-Loup, que pagava integralmente as contas, possuía vários carros e cavalos de sela. Posto ao corrente do aborrecimento de Saint-Loup por não poder viajar com a amante, o cabeleireiro vivamente falou do assunto ao príncipe, atado com uma sobrepeliz branca no momento em que o barbeiro lhe mantinha a cabeça inclinada e ameaçava a sua garganta. A narração dessas aventuras galantes de um rapaz arrancou ao capitão-príncipe um sorriso de indulgência bonapartista. É pouco provável que pensasse em sua conta não paga, mas a recomendação do cabeleireiro o inclinava tanto ao bom humor como ao mau humor de um duque. Ainda estava com o queixo coberto de espuma quando prometeu a licença, que foi assinada na mesma tarde. Quanto ao cabeleireiro, que se acostumara a gabar-se incessantemente, e que, para isso, se arrogava, com extraordinária faculdade de mentiras, prestígios totalmente inventados, por uma vez que prestou um serviço notável a Saint-Loup, não só não lhe trombeteou o mérito, mas, como se a vaidade tivesse necessidade de mentir, e, quando não havia motivos para fazê-lo, cedesse o lugar à modéstia, jamais voltou a falar do caso a Robert.
     Todos os amigos de Robert me disseram que, enquanto ficasse em Doncieres, ou em qualquer época em que para ali regressasse, se Robert estivesse ausente, os seus carros, seus cavalos, suas casas, suas horas de liberdade estariam à minha disposição, e eu sentia que era de coração que aqueles rapazes punham o seu luxo, sua juventude e o seu vigor a serviço da minha fraqueza. 

- Por que afinal recomeçaram eles, após terem insistido para que eu ficasse não haveria você de voltar todos os anos? Veja que esta vida lhe agrada muito! E mesmo porque você se interessa por tudo que se passa no regimento, como se fosse um veterano.

     Não tivesse ouvido; e, conversando com ele (sem cessar de cruzar e descruzar as pernas, inclinando-se para trás, numa atitude displicente, com o pé na mão), chamava-o de "meu caro". Ao contrário, porém, de uma nobreza cujos títulos ainda guardavam sua significação, providos, como continuavam, de ricos morgadios que recompensavam gloriosos serviços e faziam mais viva a lembrança de altas funções em que se exerce o comando sobre muitos homens e onde é necessário conhecê-los, o príncipe de Borodino se não distintamente e em sua consciência clara e pessoal, pelo menos no corpo, que o revelava por seus modos e atitudes considerava a sua linhagem como uma prerrogativa de fato; a esses mesmos plebeus a quem Saint-Loup bateria no ombro e tomaria pelo braço, ele se dirigia com uma afabilidade imponente, em que uma reserva cheia de grandeza temperava a bonomia sorridente que lhe era natural, num tom ao mesmo tempo de sincera benevolência e de altivez intencional. Isto, sem dúvida, se devia a que ele estava menos afastado das grandes embaixadas e da corte, onde seu pai desfrutara dos mais altos cargos e onde as maneiras de Saint-Loup, de cotovelo na mesa e pé na mão, teriam sido mal recebidas; mas se devia, sobretudo, a que desprezava menos essa burguesia, visto que ela era o grande reservatório onde o primeiro imperador fora buscar seus marechais, seus nobres, e onde o segundo encontrara um Fould e um Rouher.
     Sem dúvida, filho ou neto de imperador, e só tendo um esquadrão para comandar, as preocupações de seu pai ou de seu avô não podiam, por falta de objeto a que se aplicar, sobreviver de fato no pensamento do Sr. De Borodino. Mas, como o espírito de um artista continua a modelar muitos anos depois de se haver extinto a estátua que esculpiu, tais preocupações tinham tomado corpo nele, nele se haviam materializado, encarnado; eram elas que o seu rosto refletia. Era com a vivacidade do primeiro imperador na voz que ele dirigia uma censura a um cabo, com a melancolia sonhadora do segundo que exalava a baforada de um cigarro. Quando passava em trajes civis pelas ruas de Doncieres, um certo brilho do olhar, fugindo por sob o chapéu-coco, fazia reluzir em torno ao capitão um soberano incógnito; as pessoas tremiam quando ele entrava no escritório do sargento-mor, seguido pelo ajudante e pelo furriel, como por Berthier e por Masséna. Quando escolhia a fazenda de uma calça para o seu esquadrão, fixava no cabo alfaiate um olhar capaz de frustrar Talleyrand e de enganar Alexandre. E às vezes, ao passar uma tropa em revista, parava, deixando que seus admiráveis olhos azuis sonhassem, torcia o bigode, dava a impressão de edificar uma Prússia e uma Itália novas. Mas logo, tornando-se de Napoleão III à Napoleão I, observava que o enfardamento não estava polido e queria provar o rancho da tropa. E em sua casa, na vida privada, era para as esposas de oficiais burgueses (desde que não fossem franco-maçons) que mandava exibir não apenas uma baixela de Sevres, de azul régio, digna de um embaixador (dada a seu pai por Napoleão, e que parecia ainda mais preciosa na casa provinciana onde residia, no Passeio Público, como essas porcelanas raras que os turistas admiram com mais prazer no armário rústico de uma velha casa senhorial transformada em fazenda bem frequentada e próspera), mas ainda outros presentes do imperador: aquelas nobres e encantadoras maneiras que também teriam feito maravilhas em algum posto de representação, se para alguns o ser "nascido" não representasse passar a vida inteira no mais injusto dos ostracismos, assim como os gestos familiares, a bondade, a graça e, encerrando imagens gloriosas sob um azul igualmente régio, a relíquia misteriosa, iluminada e sobrevivente do olhar. E, a propósito das relações burguesas que o príncipe cultivava em Doncieres, convém dizer o seguinte: o tenente-coronel tocava piano admiravelmente, a esposa do médico-chefe cantava como se tivesse conquistado um primeiro prêmio no conservatório. Este último casal, assim como o tenente-coronel e sua mulher, jantava todas as semanas na casa do Sr. de Borodino. Certamente ficavam lisonjeados, sabendo que o príncipe, quando ia de licença a Paris,-jantava na casa da Sra. de Pourtales, dos Murat, etc.. Mas diziam consigo: "É um simples capitão, sente-se muito feliz por irmos à sua casa; afinal, é um grande amigo nosso." Mas, quando o Sr. de Borodino, que desde há muito vinha trabalhando para aproximar-se de Paris, foi nomeado para Beauvais, fez a sua mudança, esqueceu tão completamente os dois casais músicos como o teatro de Doncieres e o pequeno restaurante de onde mandava vir com frequência o seu almoço e, para grande indignação deles, nem o tenente-coronel, nem o médico-chefe, que tantas vezes tinham jantado em casa do príncipe, nunca mais receberam, em toda a vida, qualquer notícia sua.
     Certa manhã, Saint-Loup me confessou que escrevera à minha avó para lhe dar notícias a meu respeito e lhe sugerir a ideia de conversar comigo, já que estava em funcionamento um serviço telefônico entre Doncieres e Paris. Em breve, no mesmo dia, ela devia me mandar chamar ao aparelho, e ele me aconselhou que estivesse às quinze para as quatro no posto. Àquela época, o telefone ainda não era de uso tão corrente como hoje. E, no entanto, o hábito leva tão pouco tempo para despojar de seu mistério as forças sagradas com que estamos em contato que, não tendo conseguido imediatamente a minha ligação, a única ideia que tive foi de que aquilo era tão demorado, tão incômodo, que quase acabei fazendo uma queixa: como todos nós agora, eu não achava bastante rápida, à minha disposição, em suas bruscas mudanças, a admirável magia pela qual são suficientes uns poucos instantes para que surja junto a nós, invisível mas presente, a criatura a quem desejávamos falar e que, ficando à sua mesa, na cidade em que mora (no caso de minha avó era Paris), sob um céu diverso do nosso, durante um tempo que não é forçosamente o mesmo, em meio a circunstâncias e preocupações que ignoramos e que essa criatura vai nos dizer, se acha de súbito transportada a centenas de léguas (ela e todo o ambiente em que permanece mergulhada), perto de nossos ouvidos, no momento em que o nosso capricho assim ordenou. E somos como o personagem do conto a quem uma fada, ante o desejo que ele exprime, faz surgir, banhada em claridade sobrenatural, a avó ou a noiva no ato de folhear um livro, de derramar lágrimas, de colher flores, tão perto do espectador e entretanto tão longe, no próprio local onde se encontra de verdade. Para que tal milagre se cumpra, basta-nos aproximar os lábios da prancheta mágica e chamar - às vezes, admito-o, um pouco longamente as Virgens Vigilantes, cuja voz podemos ouvir todos os dias sem jamais conhecer-lhes o rosto, e que são anjos da guarda nas trevas vertiginosas cujas portas vigiam com ciúme; as Todo-poderosas devido a quem os ausentes surgem ao nosso lado, sem que seja permitido vislumbrá-los; as Danaides do invisível que sem cessar esvaziam, voltam a encher e transmitem as umas de sons; as irônicas Fúrias que, no momento em que murmuramos uma confidência a uma amiga, com a esperança de que ninguém nos ouça, gritam cruelmente: "Estou ouvindo!"; as servas sempre irritadas do Mistério, as desconfiadas sacerdotisas do Invisível, as Senhoritas do telefone!
     E logo que nosso chamado ressoou, na noite cheia de aparições para a qual só os nossos ouvidos se abrem, um leve ruído um ruído abstrato o da distância suprimida e a voz do ser amado se dirige a nós. É ele, é a sua voz que nos fala, que está ali.
     Mas como está longe! Quantas vezes não pude escutá-la sem angústia, como se diante dessa impossibilidade de ver, antes de longas horas de viagem, aquela cuja voz estava tão perto de meu ouvido, eu sentisse melhor o que há de decepcionante na aparência de uma reaproximação mais doce, e a que distância podemos estar das pessoas amadas no momento em que parece não termos mais que estender a mão para retê-las. Presença real a dessa voz tão próxima na separação efetiva! Mas também antecipação de uma separação eterna! Com muita frequência, escutando desse modo, sem ver quem me falava de tão longe, pareceu-me que essa voz clamava das profundezas de onde não se sobe, e conheci a ansiedade que ia me estreitar um dia, quando uma voz voltasse assim (sozinha e já não presa a um corpo que eu não devia rever nunca mais) a cochichar no meu ouvido palavras que eu gostaria de beijar de passagem sobre lábios para sempre em pó.
     Infelizmente, naquele dia em Doncieres o milagre não ocorreu. Quando cheguei ao posto telefônico, minha avó já me havia chamado; entrei na cabine, a linha estava ocupada; alguém conversava, sem dúvida sem saber que não havia ninguém para lhe responder, pois, quando puxei para mim o receptor, aquele pedaço de madeira se pôs a falar como Polichinelo; fi-lo calar se, assim como no guignol, repondo-o em seu lugar, mas, como Polichinelo, logo que o trazia para junto de mim, ele começava o seu palavrório. Em desespero de causa, acabei por pendurar em definitivo o receptor, acabei por sufocar as convulsões daquela coisa sonora, que tagarelou até o último segundo, e fui procurar o funcionário que me disse para esperar um momento; depois falei e, após alguns instantes de silêncio, ouvi de súbito aquela voz que eu julgava erroneamente conhecer tão bem, pois até então, de cada vez que minha avó conversava comigo, o que ela me dizia eu sempre o acompanhara na partitura aberta de seu rosto, onde os olhos ocupavam enorme espaço; mas sua própria voz, escutava-a hoje pela primeira vez. E porque essa voz me surgia mudada em suas proporções desde o instante em que era um todo, e assim me chegava sozinha e sem o acompanhamento das feições do rosto, descobri o quanto era doce aquela voz; talvez mesmo nunca o tivesse sido a esse ponto, pois minha avó, sentindo-me distante e infeliz, julgava poder abandonar-se à efusão de uma ternura que, por "princípios" de educação, ela habitualmente recalcava e escondia. A voz era doce, mas também como era triste, primeiro devido à própria doçura, quase filtrada, mais do que nunca o seriam algumas vozes humanas, de toda dureza, de todo elemento de resistência aos outros, de todo egoísmo; frágil à força de delicadeza, parecia a todo instante prestes a quebrar-se, a expirar em um puro correr de lágrimas; a seguir, tendo-a sozinha comigo, vista sem a máscara do rosto, nela reparava, pela primeira vez, os desgostos que a tinham marcado no decurso da vida.

continua na página 58...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Tem-se dito que o silêncio é uma força)
Volume 4
Volume 5
Volume 7

sábado, 10 de maio de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - z)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(z)

continuando...

      Agora, meus sonhos voltavam a ser livres para se reportar a esta ou àquela das amigas de Albertine e, em primeiro lugar, a Andrée, cujas amabilidades talvez me tivessem tocado menos se não tivesse certeza de que seriam conhecidas de Albertine. É claro que a preferência que há muito eu vinha fingindo por Andrée me fornecera em hábitos de conversas, de declarações de carinho como que a matéria de um amor já inteiramente pronto para ela, ao qual até então não faltara mais que um sentimento sincero a acrescentar-lhe, e que agora o meu coração livre de novo, poderia proporcionar. Mas Andrée era muito intelectual, muito nervosa, muito doentia, muito parecida comigo para que a amasse de verdade. Se agora Albertine se me afigurava oca, Andrée estava repleta de algo que eu já conhecia de sobra. No primeiro dia pensara ver na praia a amante de um corredor, embriagada de amor pelo esporte, e Andrée me dizia que havia principiado a praticar esportes a conselho do médico, a fim de curar a neurastenia e as perturbações de nutrição.
      Mas seus melhores momentos eram aqueles em que traduzia um romance de George Eliot. Minha decepção, fruto de um erro inicial sobre o que seria Andrée, não teve, de fato, nenhuma importância para mim. Mas o erro era do tipo desses que, se permitem que o amor nasça e só são reconhecidos como erros quando a situação já não pode ser mudada, tornam-se motivo de sofrimento. Tais erros-que podem ser diferentes dos que havia cometido em relação a Andrée, e até mesmo opostos provêm muitas vezes, como em particular no caso dela, do fato de que assumimos demais o aspecto e as maneiras daquilo que não somos mas desejaríamos ser, para iludir à primeira vista. A aparência exterior, à afetação, à imitação e ao desejo de ser admirado, seja pelos bons, seja pelos maus, acrescenta-se o falso aspecto das palavras e dos gestos. Há cinismos e crueldades que não resistem à prova mais que certas bondades, certas generosidades. Do mesmo modo que muitas vezes se descobre um avaro vaidoso em um homem conhecido por sua caridade, a jactância do vício nos faz supor uma Messalina em uma moça honesta cheia de preconceitos. Eu julgara encontrar em Andrée uma criatura saudável e primitiva, quando não passava de alguém que buscava saúde, como o eram talvez muitos daqueles em que ela pensava encontrá-la, e que na verdade não a possuíam, assim como um homem gordo e artrítico, de rosto vermelho e vestido de flanela branca, não é forçosamente um Hércules. Ora, há circunstâncias em que não é indiferente para a felicidade que a pessoa a quem se amou pelo que parecia ter de saudável na realidade não passasse de um desses enfermos que só recebem sua saúde de outros, como os planetas tomam emprestada a sua luz, como certos corpos se limitam a deixar passar a eletricidade.
     Não importa; Andrée, como Rosemonde e Gisele, e até mais do que elas, era em última análise uma amiga de Albertine, que compartilhava a sua vida e imitava as suas maneiras a ponto de que no primeiro dia eu a princípio não as distinguira uma da outra. Entre essas moças, caules de rosas, cujo encanto principal era se destacarem sobre o mar, reinava a mesma indivisão que no tempo em que não as conhecia e quando o aparecimento de qualquer uma me causava tanta emoção por me anunciar que o pequeno grupo não estava longe. Ainda agora, a vista de uma me proporcionava um prazer onde entrava, numa percentagem que eu não saberia avaliar, a possibilidade de ver as outras a segui-la mais tarde, e, ainda que não viessem naquele dia, a oportunidade de falar a respeito delas e de saber que lhes seria dito que eu estivera na praia.
     Não era mais a atração dos primeiros dias; era uma genuína veleidade de amar que hesitava entre todas, de tal forma cada uma era a substituta natural da outra. Minha maior tristeza não teria sido o fato de ser abandonado por aquela que eu preferia entre todas; mas logo preferiria, porque nela fixara a soma de tristeza e de sonho que flutuava entre elas, aquela que me tivesse abandonado. Ainda nesse caso, era a todas as suas amigas, a cujos olhos eu em breve perderia todo o prestígio, que eu teria inconscientemente lamentado naquela, tendo lhes confessado essa espécie de amor coletivo que o político ou o ator dedicam ao público pelo qual não se consolam de ser abandonados depois de ter recebido todos os seus favores. Mesmo os favores que não pudera obter de Albertine, esperava por eles, de repente, de uma ou outra que me dissera uma palavra ou lançara um olhar ambíguo, ao me deixar à noite, devido aos quais era para essa última que se voltava o meu desejo por um dia inteiro.
      E o meu desejo errava ainda mais sensualmente entre os seus rostos móveis, porque uma fixação relativa das feições já estava bastante iniciada para que se pudesse distinguir, mesmo que mudasse ainda, a efígie maleável e flutuante. Às diferenças existentes entre esses rostos estavam, sem dúvida, muito longe de corresponder as diferenças idênticas no comprimento e largura das feições, as quais, de uma a outra das moças, e por mais dissemelhantes que parecessem, talvez pudessem ser quase superpostas. Mas o nosso conhecimento dos rostos não é matemático.
     Primeiro, não começa por medir as partes, mas tem como ponto de partida uma expressão, um conjunto. Em Andrée, por exemplo, a finura dos olhos doces parecia juntar-se ao nariz estreito, tão delgado como uma simples curva, que tivesse sido traçada para que fosse possível prosseguir numa só linha a intenção de delicadeza divisada anteriormente no duplo sorriso dos olhares gêmeos. Uma linha da mesma finura lhe riscava os cabelos, ágil e profunda como a que o vento traça na areia. E essa linha devia ser hereditária, pois os cabelos inteiramente brancos da mãe de Andrée eram dispostos da mesma maneira, aqui formando um tufo, ali uma depressão, como a neve que se ergue ou se afunda de acordo com as desigualdades do terreno. É evidente que, comparado à fina delineação do de Andrée, o nariz de Rosemonde parecia oferecer amplas superfícies, como uma torre alta assentada numa base poderosa. Ainda que a expressão seja bastante para fazer crer em diferenças enormes entre coisas separadas por algo infinitamente pequeno, e ainda que o infinitamente pequeno possa por si só criar uma expressão absolutamente particular, uma individualidade, o fato é que nem o infinitamente pequeno de uma linha nem a originalidade da expressão faziam com que esses rostos aparecessem irredutíveis uns aos outros. Entre os de minhas amigas, a coloração abria uma separação ainda mais profunda, não tanto pela variada beleza dos tons que lhes proporcionava, tão opostas que eu sentia diante de Rosemonde- inundada de um róseo sulfurino sobre o qual reagia ainda a luz esverdeada dos olhos -e diante de Andrée-cujas faces brancas recebiam tanto da austera distinção de seus cabelos negros o mesmo tipo de prazer como se olhasse alternadamente um gerânio à beira do mar ensolarado e uma camélia à noite; mas sobretudo porque as diferenças infinitamente pequenas das linhas se achavam desmesuradamente aumentadas, assim como as proporções entre as superfícies eram inteiramente mudadas por esse elemento novo da cor, o qual, assim como é um dispensador de matizes; e funciona também como grande regenerador ou, pelo menos, modificador de dimensões. De maneira que as fisionomias, construídas talvez de modo pouco diverso, conforme sejam iluminadas pelo fogo de uma cabeleira ruiva ou de uma pele rosada, ou pela branca luz de um pálido fosco, encompridavam-se ou se ampliavam, tornando-se uma coisa diferente, como esses acessórios dos balés russos, que consistem às vezes, se são vistos em plena luz do dia, numa simples rodela de papel e que o gênio de um Bakst, segundo a iluminação vermelho-pálida ou lunar em que mergulha o cenário, faz incrustar-se duramente neste, como uma turquesa na fachada de um palácio, ou desabrochar molemente, rosa de bengala no meio de um jardim. Assim, ao tomar conhecimento dos rostos, nós os medimos realmente, mas como pintores e não como agrimensores.
     Dava-se o mesmo com Albertine que com suas amigas. Em certos dias, delgada, pálida, aborrecida, uma transparência violácea descendo obliquamente no fundo de seus olhos, como ocorre algumas vezes no mar, ela parecia sentir uma tristeza de exilada. Em outros, seu rosto mais liso atraía os desejos à sua superfície envernizada e os impedia de irem mais além; a menos que eu não a visse de súbito de lado, pois suas faces foscas feito uma cera branca eram, na superfície, rosadas por transparência, o que dava tanta vontade de as beijar, de tocar aquela pele diferente que se esquivava. De outras vezes, a felicidade banhava suas faces de uma claridade tão móvel que a pele, tornada vaga e fluida, deixava passar como que olhares subjacentes que a faziam parecer de uma outra cor, mas não de matéria diferente da dos olhos; às vezes, sem querer, ao olhar para seu rosto matizado de pontinhos castanhos e onde flutuavam apenas duas manchas mais azuis, lembrava um ovo de pintassilgo, e muitas vezes era como uma ágata opalina, trabalhada e polida somente em dois lugares, onde, no meio da pedra escura, luzissem como asas transparentes de uma borboleta azul, os olhos, em que a carne se torna espelho e nos dá a ilusão de deixar, mais que em outras partes do corpo, que nos aproximemos da alma. Porém, com mais freqüência, tinha boa cor e se mostrava mais animada; umas vezes só era cor-de-rosa, em seu rosto branco, a ponta do nariz, fino como o de uma gatinha sorrateira, com a qual se tivesse vontade de brincar; às vezes suas faces eram tão polidas que o olhar deslizava como pelas de uma miniatura, sobre o seu esmalte rosado, ainda mais delicado e interior devido à tampa entreaberta e superposta de seus cabelos negros; ocorria que a pele de suas faces chegava ao rosa violáceo do ciclâmen, e às vezes até, quando ela estava congestionada ou febril, e dando então a ideia de uma compleição doentia que rebaixava o meu desejo a qualquer coisa de mais sensual e fazia seu olhar exprimir algo mais perverso e indecente, assumia o púrpura sombrio de certas rosas de um rubro quase negro. E cada uma destas Albertines era diferente, como é diferente cada uma das aparições da bailarina cujas cores, forma e caráter vão se transmudando, conforme os jogos inumeravelmente variados de um projetor luminoso. Talvez por serem tão diversas as criaturas que eu contemplava em Albertine àquela época, é que mais tarde adquiri o hábito de tornar-me eu mesmo um outro personagem, de acordo com a Albertine em que pensava: um ciumento, um indiferente, um voluptuoso, um melancólico, um furioso, recriados não só ao acaso da lembrança que renascia, mas conforme a intensidade da crença interposta, para uma mesma recordação, pelo modo diverso com que a apreciava. Pois era sempre a isto que precisava retornar, a essas crenças que na maior parte do tempo nos enchem a alma à nossa revelia, mas que, todavia, têm mais importância para a nossa felicidade que determinada criatura que vemos, pois é através delas que a vemos, são elas que atribuem à criatura contemplada a sua efêmera grandeza. Para ser exato, eu deveria dar um nome diferente a cada um dos eus que a seguir pensou em Albertine; mais ainda, deveria dar um nome diferente a cada uma dessas Albertines que apareciam diante de mim, nunca a mesma, como-chamados simplesmente por mim, para maior comodidade, o mar - esses mares que se sucediam e diante dos quais, outra ninfa, se destacava Albertine. Mas principalmente da mesma forma, porém de modo bem mais útil do que se diz, numa narrativa, o tempo que estava fazendo em tal dia-deveria sempre denominar a crença que, no dia em que eu via Albertine, reinava em minha alma, formando a atmosfera e o aspecto dos seres, bem como o aspecto dos mares depende dessas névoas apenas visíveis que mudam a cor de todas as coisas devido a sua concentração, sua mobilidade, sua disseminação, sua fuga-como a que Elstir havia rompido uma tarde não me apresentando às moças com quem se detivera e cujas imagens subitamente me pareceram mais belas quando se afastavam -, névoa que alguns dias depois, quando as conhecera, tornara a formar-se, velando o seu brilho, interpondo-se muitas vezes entre elas e meus olhos, opaca e doce, semelhante à Leucotéia de Virgílio.
     Sem dúvida, os rostos de todas elas tinham mudado de significação para mim, desde que o modo pelo qual era preciso lê-los me fora em certa medida indicado por suas próprias frases, às quais tanto maior valor eu podia atribuir, visto que à vontade as provocava com minhas perguntas, fazia-as variar como um experimentador que submete a contraprovas a verificação daquilo que supôs. E, em suma, é uma forma como outra qualquer de resolver o problema da existência, o de aproximar bastante as coisas e as pessoas que de longe nos pareceram belas e misteriosas, para nos darmos conta de que não têm mistério nem beleza; é uma das higienes entre as quais se pode optar, uma higiene que talvez não seja muito recomendável, mas que nos proporciona uma certa calma para passar a vida e também para nos resignarmos à morte, uma vez que nos permite não lamentar coisa alguma, convencendo-nos que alcançamos o melhor e que o melhor não é grande coisa.
      Eu havia substituído, no fundo do cérebro daquelas moças, o desprezo à castidade, a recordação de saídas diárias, por princípios honestos, talvez capazes de ceder mas tendo até então preservado de qualquer deslize aquelas que os haviam recebido de seu ambiente burguês. Ora, quando nos enganamos desde o começo, mesmo quanto às pequenas coisas, quando um erro de suposição ou de memória nos faz procurar o autor de uma intriga malévola ou o local para onde se desgarrou um objeto em direção falsa, pode acontecer que só descubramos o nosso engano para o substituir não pela verdade, mas por um outro engano. No tocante ao modo de viver daquelas moças e à forma de tratá-las, eu tirava todas as consequências da palavra inocência que havia lido em seus rostos, conversando familiarmente com elas. Mas talvez tivesse lido irrefletidamente, no lapso de uma decifração por demais rápida, e ali não mais estivesse escrita, como não estava o nome de Jules Ferry no programa da matinê em que pela primeira vez ouvira a Berma, o que não me impedira de garantir ao Sr. de Norpois que Jules Ferry, sem qualquer dúvida, escrevia anteatos.
     No caso de qualquer das minhas amigas do pequeno grupo, como não seria o último rosto que eu tivesse visto, o único de quem me lembraria? Porque, de todas as lembranças relativas a uma pessoa, a inteligência elimina aquilo que não concorre para a utilidade imediata de nossas relações cotidianas (mesmo e sobretudo se tais relações são impregnadas de um pouco de amor, o qual, sempre insatisfeito, vive no momento a decorrer)? Ela deixa afrouxar a cadeia dos dias passados, só lhe segura com força o último elo, muitas vezes formado de metal bem diverso do dos elos desaparecidos na noite, e, na viagem que fazemos através da vida, só considera como real a região em que estamos no presente. Nenhuma das minhas primeiras impressões, já tão distantes, podia encontrar contra a sua deformação diária um recurso em minha memória; durante as longas horas que eu passava conversando, lanchando, jogando com aquelas moças, nem me lembrava que elas eram as mesmas virgens implacáveis e sensuais que eu vira, como num afresco, desfilar diante do mar.
      Os geógrafos e os arqueólogos nos conduzem à ilha de Calipso, exumam o palácio de Minos. Unicamente, Calipso não passa de uma mulher, Minos de um rei sem nada de divino. Até as qualidades e os defeitos que a História nos ensina terem sido então o apanágio dessas pessoas muito reais, diferem às vezes, grandemente, das qualidades e defeitos que havíamos atribuído aos seres fabulosos do mesmo nome. Assim se dissipara toda a graciosa mitologia oceânica que eu havia elaborado nos primeiros dias.
     Porém não é totalmente indiferente que nos ocorra, ao menos às vezes, passar o nosso tempo na familiaridade do que julgáramos inacessível e que havíamos desejado.
     Na convivência com as pessoas que a princípio acháramos desagradáveis, persiste sempre, mesmo no meio do prazer fictício que podemos sentir junto delas, o gosto falsificado dos defeitos que conseguiram dissimular. Mas, nas relações como as que eu tinha com Albertine e suas amigas, o legítimo prazer que está em sua origem deixa esse perfume que nenhum artífice consegue conferir aos frutos forçados, às uvas que não amadureceram ao sol. As criaturas sobrenaturais que elas tinham sido um momento para mim, conservavam ainda, mesmo sem que eu o soubesse, um tom de maravilhoso nas relações mais banais que tivera com elas, ou melhor, preservavam essas relações de terem jamais algo de banal. Meu desejo buscara com tamanha avidez a significação dos olhos que, agora, me conheciam e sorriam, mas que no primeiro dia tinham cruzado os meus olhares como raios emitidos de um outro universo, tão ampla e minuciosamente havia ele distribuído a cor e o perfume sobre a superfície carnosa daquelas moças que, estendidas sobre o rochedo, me alcançavam simplesmente sanduíches ou brincavam de adivinhações, que, em muitas dessas tardes, enquanto eu, deitado no chão, como aqueles pintores que buscam a grandeza do antigo na vida moderna e dão a uma mulher que apara a unha do pé a nobreza do "Menino que extrai o espinho" ou que, como Rubens, mudam em deusas mulheres suas conhecidas para compor um quadro mitológico, contemplava aqueles belos corpos morenos e louros, de tipos tão opostos, espalhados a meu redor pela relva, sem esvaziá-los talvez de seu conteúdo medíocre de que os enchera a experiência diária, e no entanto sem me lembrar expressamente de sua origem celeste como se, igual a Hércules ou a Telêmaco, estivesse brincando rodeado de ninfas.
     Depois os concertos acabaram, chegou o mau tempo, minhas amigas deixaram Balbec, não juntas todas, como as andorinhas, mas na mesma semana. Albertine foi a primeira, de repente, sem que nenhuma das amigas pudesse entender, nem então nem mais tarde, por que voltara de súbito a Paris, onde nem trabalhos nem distrações a esperavam.

"Ela não disse quê nem porquê, e depois foi embora" resmungava Françoise, que aliás gostaria que fizéssemos o mesmo. Achava-nos indiscretos diante dos empregados, todavia já bem reduzidos em número, mas retidos pelos raros fregueses que permaneciam no hotel, diante do gerente que "comia dinheiro". É verdade que, há muito tempo, o hotel, que não tardaria a fechar, vira partir quase todo o mundo; mas também, nunca fora tão agradável como agora. Não era essa a opinião do gerente; ao longo dos salões onde a gente enregelava e a cuja porta já não montava guarda nenhum groom, ele media os corredores, de redingote novo, tão cuidado pelo barbeiro que seu rosto apagado parecia consistir em uma mistura na qual, para uma parte de carne, havia três de cosméticos, e mudando sem cessar de gravata (tais elegâncias custam mais barato que assegurar o aquecimento e manter o pessoal, e aquele que já não pode mandar dez mil francos para obras de caridade, ainda facilmente banca o generoso dando cem sous de gorjeta ao telegrafista que lhe traz um despacho). Dava a impressão de inspecionar o nada, de querer dar, graças ao bom aspecto pessoal, um ar provisório à miséria que se sentia naquele hotel, onde a temporada não fora boa, e parecia o fantasma de um soberano que regressa para assombraras ruínas do que outrora foi seu palácio. Ficou descontente sobretudo quando o trem local, que já não tinha passageiros suficientes, deixou de funcionar até a primavera seguinte.

- O que falta aqui, - dizia o gerente- são os meios de comoção.

     Apesar do débito registrado, fazia projetos grandiosos para os anos seguintes. E, como, ainda assim, era capaz de reter exatamente belas expressões quando se aplicavam à indústria hoteleira e tinham por resultado engrandecê-la:

- Eu não estava bastante bem assessorado, embora tivesse uma boa equipe na sala de jantar -dizia -; mas os grooms deixam a desejar; verão que falange saberei reunir no ano que vem.

     Enquanto esperava, a interrupção dos serviços do B.C.B. o obrigava a mandar buscar a correspondência e às vezes conduzir os viajantes de carro. Eu pedia muitas vezes para sentar ao lado do cocheiro e, desse modo, passeava qualquer que fosse o tempo, como no inverno que passara em Combray.
     Entretanto, às vezes, a chuva bem forte nos retinha, a minha avó e a mim; estando fechado o cassino, em peças quase completamente vazias, como no porão de um navio quando o vento sopra, e onde todos os dias, como no decorrer de uma travessia, uma nova pessoa daquelas com quem passáramos três meses sem travar relações, o primeiro presidente do conselho de Rennes, o decano de Caen, uma senhora americana e suas filhas, vinham se juntar a nós, começavam a conversar, inventavam uma forma de tornar as horas menos longas, revelavam um talento, ensinavam-nos um jogo, convidavam-nos para tomar chá ou tocar música, ou para uma reunião em determinada hora, combinando em conjunto essas distrações que possuem o verdadeiro segredo de nos dar prazer, apenas porque não pretendem mais que isso, e simplesmente nos ajudam a passar o tempo e a matar o tédio. Enfim, travavam conosco, no fim da nossa temporada, amizades que suas partidas sucessivas, no dia seguinte, vinham interromper. Cheguei a travar relações com o rapaz rico, e com um de seus amigos nobres, e com a atriz que voltara por alguns dias; mas a pequena sociedade só se compunha de três pessoas, tendo o outro amigo regressado a Paris. Convidaram-me para ir jantar com elas no seu restaurante. Creio que ficaram bem contentes por eu não ter aceito. Mas haviam feito o convite da maneira mais amável possível, e, embora na verdade partisse do rapaz rico, visto que os outros eram apenas seus hóspedes, como o amigo que os acompanhava, marquês Maurice de Vaudémont, era de casa muitíssimo nobre, a atriz instintivamente, perguntando-me se não queria ir, acrescentou para me lisonjear: 

- Isso daria imenso prazer a Maurice.

     E, quando encontrei todos os três no hall, foi o Sr. de Vaudémont, enquanto o rapaz rico ficava em silêncio, que me disse:

- Não vai nos dar o prazer de jantar conosco?

     Em resumo, aproveitara eu muito pouco de Balbec, o que me aumentava o desejo de para ali voltar. Parecia-me que ali ficara muito pouco tempo. Não era esta a opinião de meus amigos, que me escreviam para perguntar se tencionava viver em Balbec definitivamente. E, ao ver que era o nome de Balbec que eles se obrigavam a colocar no envelope, e como, em vez de dar para uma campina ou para a rua, a minha janela se abria para os campos do mar, cujo rumor ouvia à noite, e ao qual, antes de adormecer, confiara o meu sono como uma barca, tinha a ilusão de que essa promiscuidade com as ondas devia materialmente, à minha revelia, fazer penetrar em mim a noção do seu charme, à maneira das lições que a gente aprende dormindo.
      O gerente me oferecia melhores quartos para o próximo ano, mas agora sentia-me ligado ao meu, onde entrava sem mais sentir o cheiro do vetiver, e do qual o meu pensamento, que antigamente se elevava dali com tanta dificuldade, acabara por tomar tão exatamente as dimensões que fui obrigado a fazê-lo sofrer um tratamento inverso, quando tive de me deitar de novo no meu quarto antigo, cujo teto era baixo.
      De fato, tínhamos sido forçados a deixar Balbec, já que o frio e a umidade se tornaram penetrantes demais para permanecermos por muito tempo naquele hotel desprovido de lareiras e caloríferos. Aliás, esqueci quase de imediato essas últimas semanas. O que revi quase invariavelmente, quando pensei em Balbec, foram os momentos em que, todas as manhãs, como devia sair à tarde com Albertine e suas amigas, minha avó, por ordens do médico, me forçou a ficar deitado no escuro. O gerente ordenava que não fizessem barulho no meu andar e ele próprio vigiava para ser obedecido. Por causa da luz muito forte, eu conservava fechadas, o máximo de tempo possível, as grandes cortinas cor-de-violeta que me haviam testemunhado tanta hostilidade na primeira noite. Mas, apesar dos alfinetes com os quais, para que a luz do dia não passasse, Françoise as prendia à noite, e que só ela sabia retirar, apesar das cobertas, da toalha da mesa de cretone vermelho, dos tecidos pegados aqui e ali para ajustar às cortinas, não conseguia uni los de todo e a escuridão não era completa; e parecia que se espalhavam pelo tapete um escarlate desfolhar de anêmonas, entre as quais eu não podia evitar de, por um momento, pousar os pés nus. E na parede defronte à janela, parcialmente iluminada, havia um cilindro de ouro, sem qualquer sustentáculo, colocado verticalmente e deslocando-se devagar como a coluna luminosa que precedia os hebreus no deserto. Voltava a me deitar; obrigado a gozar, sem me mexer, apenas pela imaginação, e todos ao mesmo tempo, os prazeres dos jogos, do banho, da caminhada, que a manhã aconselhava, a alegria me fazia bater bruscamente o coração como uma máquina em plena atividade, porém imóvel, e que, para descarregar a sua velocidade, só pode girar sobre si mesma no mesmo lugar.
     Sabia que minhas amigas estavam no molhe mas não podia vê-las, enquanto elas passavam diante dos píncaros assimétricos do mar, no fundo do qual, empoleirada no meio de seus cimos azulados como uma aldeia italiana, eu às vezes discernia, numa clareira, a cidadezinha de Rivebelle, minuciosamente detalhada pelo sol. Não via minhas amigas, mas (enquanto chegavam até meu belvedere o pregão dos jornaleiros, dos "jornalistas", como dizia Françoise, os chamados dos banhistas e das crianças que brincavam, pontuando, à maneira dos gritos dos pássaros marinhos, o ruído das ondas que quebravam suavemente) adivinhava a sua presença, ouvia o riso delas, envolto como o das nereidas na suave arrebentação que subia até os meus ouvidos. 

- Olhamos para ver se você descia. - dizia-me Albertine à noite. - Mas os seus postigos ficaram fechados mesmo na hora do concerto.

     Com efeito, às dez horas ele rebentava debaixo de minhas janelas. Entre os intervalos dos instrumentos, se o mar estava muito cheio, voltava-se a ouvir, contínuo e ligado, o deslizar da água de uma onda, que parecia envolver as cordas do violino em suas volutas de cristal e lançar sua espuma por sobre os ecos intermitentes de uma música submarina. Impacientava-me por não me terem trazido ainda as minhas coisas a fim de que pudesse me vestir. Soava meio-dia e por fim chegava Françoise. E, durante meses a fio, nessa Balbec que tanto desejara, porque só a imaginara batida pela tempestade e coberta de névoas, o bom tempo fora tão deslumbrante e tão fixo que, quando ela vinha abrir a janela, eu pudera sempre, sem me enganar, esperar encontrar a mesma réstia de sol dobrada no ângulo da parede externa, e de uma cor imutável que emocionava menos como um sinal de verão do que pelo teor melancólico, como o de um esmalte artificial e inerte. E, enquanto Françoise desprendia os alfinetes dos cortinados, despregava os tecidos e corria as cortinas, o dia de verão que ela aos poucos desvelava parecia tão morto, tão imemorial, como uma suntuosa e milenária múmia que nossa velha empregada não fizesse mais que ir desenrolando cuidadosamente de suas bandagens, antes de fazê-la aparecer embalsamada em seu vestido de ouro.

Fim

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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - z)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

A Montanha Mágica - Enciclopédia (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo V

Enciclopédia

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     Se certas alusões de Settembrini haviam exasperado Hans Castorp, este não se devia admirar nem acusar o humanista de o ter espionado por motivos pedagógicos. Até um cego teria notado a quantas o jovem andava. Ele mesmo não fazia nada para ocultá-lo. Uma certa exaltação e alguma ingenuidade nobre impediam-no de disfarçar o seu estado de alma. Nesse ponto distinguia-se – com vantagem sua talvez – daquele apaixonado de cabelos ralos, o rapaz de Mannheim, e da sua conduta dissimulada. Recordamos e repetimos que a situação em que Hans Castorp se encontrava acarreta geralmente um impulso e uma necessidade de abrir-se, uma tendência para o desabafo e a confissão, uma cega preocupação consigo próprio e a mania de encher o mundo com os seus assuntos – manifestações tanto mais estranhas para nós, seres prosaicos, quanto menos lógica, menos razão e esperança o caso implica. É difícil precisar o que faz essa gente para se trair; parece que são incapazes de dizer ou fazer qualquer coisa que não os traia; e ainda numa sociedade que, segundo a observação de um espírito crítico, tinha só duas coisas na cabeça: em primeiro lugar, a temperatura, e depois – outra espécie de temperatura, isto é, por exemplo, a preocupação com o problema de saber quem indenizava a Srª. Wurmbrand, esposa de um cônsul-geral de Viena, pela volubilidade do Capitão Miklosich, se era o gigante sueco, ora completamente curado, ou o Sr. Paravant, promotor público de Dortmund, ou talvez ambos. Pois era notório e indiscutível que os laços que haviam unido, durante alguns meses, o promotor e a Srª. Salomon, de Amsterdam, tinham sido dissolvidos em virtude de um amistoso acordo, e que a Srª. Salomon, seguindo as propensões da sua idade, inclinara-se para as classes mais tenras, tomando sob as suas asas o beiçudo Gänser, da mesa da Kleefeld, ou, como o expressava a Srª. Stöhr, num estilo como que jurídico e com certa plasticidade, “requisitando-o”; assim, o promotor público tinha plena liberdade de se bater com o sueco em duelo pela posse da consulesa-geral, ou de pactuar com ele a esse respeito.  
     Eram estes os processos que estavam pendentes na sociedade do Berghof, e particularmente na mocidade febril, processos em que a passagem pela sacada, ao longo da balaustrada, e contornando as divisões de vidro, desempenhava papel saliente. Tais ocorrências ocupavam os pensamentos dos enfermos e formavam uma parte importante da atmosfera local. Mas nem isso exprime com absoluta certeza o que temos em mente. Com efeito, Hans Castorp tinha a impressão esquisita de que um assunto fundamental, ao qual em toda parte do mundo se atribui importância considerável, e que forma um tema constante de alusões sérias ou brincalhonas, era aqui acentuado, valorizado, ressaltado de um modo tão grave e – em virtude dessa gravidade – tão novo, que a coisa em si se apresentava sob aspecto nunca visto, se não terrível, ao menos assustador pela novidade. Ao enunciarmos isso, mudamos a expressão do nosso rosto e assinalamos que, se nos ocorreu até agora falar das relações em apreço num tom leve e chistoso, fizemo-lo pelos mesmos motivos secretos que frequentemente prevalecem, sem que isso enuncie coisa alguma acerca da natureza leve ou chistosa do próprio assunto. No ambiente onde nos encontramos, esse tom seria, de fato, ainda menos indicado do que em outra parte. Hans Castorp pensara ser entendido, dentro dos limites normais, nesse assunto fundamental, alvo de tantas pilhérias, e tinha, sem dúvida, razões para supô-lo. Mas agora verificou que, na planície, não chegara além de um conhecimento pouco suficiente e no fundo andara na mais cândida ignorância a esse respeito, ao passo que na montanha certas experiências pessoais, a cujo caráter aludimos repetidas vezes, e que em determinados momentos lhe arrancavam a exclamação “Deus meu!”, deveras o capacitavam interiormente para notar e compreender o forte acento do inédito, do perigoso, do inominável, que o assunto, para todos ali em cima, tinha em geral e em particular. Não que ali não se pilheriasse também sobre ele. Mas, ainda mais do que na planície, esse tom parecia impróprio nas alturas; havia nele um quê de arrepio e de respiração embargada, que deixava perceber com sobeja nitidez que ele era apenas um véu transparente em volta da angústia que procurava (e inutilmente) disfarçar-se por meio dele. Hans Castorp recordava a palidez terrosa que reparara em Joachim, quando pela primeira e última vez aludira ao físico de Marusja, naquela forma de brincadeira inocente que se usa na planície. Recordava também a lividez fria que se espalhara pelo seu próprio rosto, quando desembaraçara Mme. Chauchat do clarão do sol poente – e recordava o fato de que, antes e depois, em diversas ocasiões, encontrara essa lividez em muitos rostos estranhos, via de regra em dois ao mesmo tempo, como, por exemplo, nos da Srª. Salomon e do jovem Gänser, quando se formara entre eles o que a Srª. Stöhr qualificava com aquele termo jurídico. Dissemos que se recordava disso e compreendia que, sob essas circunstâncias, não somente seria muito difícil não “trair-se”, mas também não valeria a pena. Em outras palavras: não era apenas certa exaltação e certa ingenuidade, senão também um determinado estímulo da parte do ambiente o que fazia com que Hans Castorp se sentisse pouco animado a coibir-se e a dissimular o seu estado de alma.
     Logo à chegada de Hans Castorp, Joachim mencionara a dificuldade de travar conhecimento com outros pensionistas, dificuldade que resultava sobretudo de duas circunstâncias: os primos formavam, dentro da sociedade do sanatório, uma espécie de partido ou de grupo em miniatura, e o marcial Joachim, preocupado exclusivamente com sua cura rápida, mostrava-se, por princípio, avesso a contactos e relações mais íntimas com os companheiros de sofrimento. Não fosse assim, Hans Castorp teria encontrado e aproveitado muito mais oportunidades para divulgar os seus sentimentos com desenfreada espontaneidade. Sem embargo, chegou Joachim a apanhá-lo, certa noite, durante a reunião, em companhia de Hermine Kleefeld, dos dois comensais dela, os senhores Gänser e Rasmussen, e do rapaz de monóculo, com a desmesurada unha; ouviu então como Hans Castorp, de olhos excessivamente brilhantes, e numa voz emocionada, improvisava um discurso sobre as formas singulares e estranhas do rosto de Mme. Chauchat, enquanto os seus ouvintes trocavam olhares, acotovelavam-se e soltavam risinhos afogados.
     Era penoso para Joachim, mas o causador de tal hilaridade permanecia insensível à revelação do seu estado, quiçá opinando que não faria justiça a este, se o deixasse despercebido e oculto. Podia ter certeza de ser compreendido por todos, e conformava-se com os sorrisos maliciosos que acompanhavam essa compreensão. Não somente na sua própria mesa, mas, com o tempo, também nas mesas vizinhas, olhavam-no para pilheriar de suas faces ora pálidas ora ruborizadas, cada vez que, após o começo de uma refeição, a porta envidraçada se fechava com estrondo. E também isso o satisfazia, já que lhe causava a impressão de que a sua ebriedade, ao despertar atenção, era em certo sentido reconhecida e corroborada pelos demais, de uma forma capaz de favorecer sua causa e de lhe animar as esperanças vagas e insensatas; sensação que o tornava mesmo feliz. As coisas iam tão longe que o pessoal, literalmente, se aglomerava para observar o moço obcecado. Dava-se isso, por exemplo, no terraço depois do almoço, ou à frente da portaria nas manhãs de domingo, quando os pensionistas iam lá receber a correspondência, que nesse dia não era distribuída pelos quartos. Muitas pessoas sabiam que haveria por ali um indivíduo intoxicado e excitadíssimo que exibiria abertamente os seus sentimentos. Assim, se agrupavam nas proximidades a Srª. Stöhr, a Srta. Engelhart, a Kleefeld com a sua amiga de cara de anta, o incurável Sr. Albin, o rapaz com a unha comprida, e ainda outros membros da companhia dos enfermos; ficavam parados, contraindo ironicamente as comissuras da boca, sufocando o riso no lenço e olhando o jovem que sorria com ar ausente e apaixonado e, com as faces abrasadas daquele ardor que o incomodava desde a noite da sua chegada, fixando em determinado ponto os olhos luzentes com aquele brilho que neles acendera a tosse do aristocrata austríaco...
     Era, no fundo, muito gentil da parte do Sr. Settembrini aproximar-se, em tais circunstâncias, de Hans Castorp, para entabular uma conversa com ele e informar-se sobre o seu estado de saúde. Mas é duvidoso que seu interlocutor soubesse apreciar com a devida gratidão a atitude filantrópica e a liberdade de preconceitos que nisso se manifestavam. Assim se deu, certa vez, no vestíbulo, numa tarde de domingo. Em torno do porteiro comprimiam-se os pensionistas, estendendo as mãos para agarrar a correspondência. Também Joachim achava-se ali. Seu primo ficara para trás, procurando obter, na referida postura, um olhar de Clávdia Chauchat, que se encontrava perto dele, com seus companheiros de mesa, esperando que se dispersasse a multidão que cercava a portaria. Era essa uma hora em que se misturavam os hóspedes, hora prenhe de oportunidades, e por isso querida e almejada pelo jovem Hans Castorp. Havia oito dias, ele roçara em Mme. Chauchat diante do guichê, de modo que ela até o empurrara levemente e dissera “Perdão!”, com uma ligeira inclinação da cabeça, ao que ele respondera, com uma presença de espírito febril, que agora lhe parecia uma bênção do Céu:

Pas de quoi, madame! 

“Que sorte”, pensava, “que nas tardes de domingo sempre se distribua a correspondência no vestíbulo!” Pode-se dizer que ele gastava a semana aguardando durante sete dias a volta de uma mesma hora – e aguardar significa adiantar-se, significa sentir o tempo e o presente não como uma dádiva, mas como mero obstáculo, significa negar e aniquilar o seu valor intrínseco e saltá-los espiritualmente. Dizem que é enfadonho esperar. Mas ao mesmo tempo, e mais propriamente, é divertido, porque assim devoramos quantidades de tempo sem as viver e explorar como tais. Poder-se-ia dizer que o homem que apenas espera se parece com um comilão cujo aparelho digestivo deixa passar as massas de comida sem lhes assimilar os valores nutritivos e proveitosos. Indo mais longe, diríamos: como os alimentos não digeridos não fortificam o homem, o tempo desperdiçado na espera não faz envelhecer. Verdade é que praticamente não existe a espera pura, não misturada.

     Fora, pois, devorada uma semana, e novamente chegara a hora dominical do correio, exatamente como se fosse ainda a mesma de oito dias atrás. Continuava, de forma sumamente excitante, a criar oportunidades. Cada minuto encerrava e oferecia a possibilidade que apertava e acossava o coração de Hans Castorp, sem que este lhe permitisse realizar-se. A isso opunham-se inibições de natureza ora militar ora civil: em parte estavam ligadas à presença do honrado Joachim e ao próprio senso de honra e de dever de Hans Castorp; em parte, porém, baseava-se na sensação de que relações de cortesia com Clávdia Chauchat, relações cerimoniosas, que obrigassem a gente a dizer “senhora”, a fazer mesuras e, se possível, a falar francês, não eram nem necessárias nem desejáveis, nem adequadas... Ele deixava-se estar, observando o jeito com que ela falava e ria, exatamente como fizera Pribislav Hippe outrora, lá no pátio da escola. Os lábios de Clávdia Chauchat abriam-se largamente, e os olhos oblíquos e glaucos, por cima das maçãs do rosto, contraíam-se formando estreitas fendas. Isto não era precisamente “belo”. Era apenas como era, e em face da paixão amorosa, o raciocínio estético consegue impor-se tão pouco quanto o raciocínio moral. 

– O senhor também espera cartas, engenheiro? 

     Havia uma única pessoa capaz de falar assim, um desmancha-prazeres. Hans Castorp, num sobressalto, voltou-se para o Sr. Settembrini, que, sorrindo, se achava à sua frente. Era o mesmo sorriso fino e humanístico com que saudara o recém-chegado por ocasião do primeiro encontro, perto do banco, à margem do curso de água. E, como então, Hans Castorp corou ao deparar com ele. Mas, embora nos seus sonhos freqüentemente lhe ocorresse empurrar o “tocador de realejo”, porque “era demais ali”, evidenciou-se que o homem acordado é melhor do que o cismarento, e Hans Castorp avistou esse sorriso com sentimentos, não só de vergonha e de desembriagamento, senão também de gratidão e de necessidade. 

– Cartas? Ora veja, Sr. Settembrini! – respondeu. – Eu não sou embaixador. Talvez haja um cartão-postal para um de nós dois. Meu primo já foi ver.
– A mim, aquele diabo coxo ali na frente já me entregou a minha pequena correspondência – disse Settembrini, levando a mão ao bolso do infalível paletó de fazenda espessa. – Coisas interessantes, coisas de grande envergadura literária e social, inegavelmente! Trata-se de uma obra enciclopédica, para cuja colaboração um instituto humanitário me dá a honra de me convidar... Numa palavra, um belo trabalho... -settembrini interrompeu-se. – Mas e os seus próprios assuntos? – perguntou. – Como vão eles? Até que ponto progrediu, por exemplo, seu processo de aclimatação? Fazendo as contas, o senhor ainda não está entre nós há tanto tempo que essa pergunta venha fora de propósito. 
– Obrigado, Sr. Settembrini. Por enquanto continuo tendo algumas dificuldades. Acho possível que isso vá assim até o último dia. Há quem nunca se habitue, como me disse meu primo logo que cheguei. Mas a gente se habitua ao fato de não se habituar. – Um processo meio complicado – zombou o italiano. 
– Um modo um tanto estranho de se assimilar. Naturalmente, a juventude é capaz de tudo. Não se habitua, mas se arraiga. 
– E, afinal, isto aqui não é uma mina siberiana... 
– Não, não é mesmo. Mas vejo que o senhor prefere comparações orientais. É compreensível. A Ásia nos devora. Aonde quer que se olhe, só se veem caras tártaras. – E o Sr. Settembrini voltou discretamente a cabeça por cima do ombro. – Gengis Khan – acrescentou. – Olhos de lobo de estepe, neve e aguardente, o cnute, o Schlüsselburg, e o cristianismo. Deveriam erguer, aqui no vestíbulo, um altar a Palas Atena, como medida de defesa. O senhor está vendo? Lá na frente, um desses Ivan Ivánovitch, sem roupa-branca, começou a discutir com o promotor Paravant. Cada um diz que é a sua vez de receber a correspondência. Não sei quem tem razão, mas, a meu ver, o promotor acha-se sob a proteção da deusa. É um burro, sem dúvida, mas ao menos sabe latim. 

     Hans Castorp riu-se – o que o Sr. Settembrini nunca fazia. Era impossível imaginá-lo rindo à vontade. Não ia além da contração fina e seca de uma das comissuras da boca. Após ter contemplado o riso do jovem, perguntou: 

– Já lhe entregaram a sua chapa? 
– Entregaram, sim, senhor – confirmou Hans Castorp, dando-se ares de importância. – Já faz algum tempo. Aqui está. 
– Ah, o senhor leva-a consigo na carteira? Como uma espécie de documento, um passaporte ou uma carteira de sócio. Ótimo! Deixe ver. – E erguendo a chapinha de vidro tarjada de preto, segurou-a contra a luz, entre o polegar e o indicador da mão esquerda, gesto muito comum, frequentemente visto ali em cima. O rosto com os olhos negros, amendoados, torceu-se numa leve careta, enquanto examinava a fotografia fúnebre, sem deixar perceber claramente se isso era para ver melhor ou por outros motivos. 
– Pois é – disse então. – Aqui tem o senhor o seu passaporte. Muito agradecido. – Com isso devolveu a chapa ao proprietário, passando-a por cima do próprio braço, e desviando o olhar. 
– Viu os cordões? – perguntou Hans Castorp. – E os pequenos nós? 
– O senhor já sabe – replicou o Sr. Settembrini devagar – o que penso a respeito da importância desses produtos. Sabe também que as manchas e as sombras aí dentro são, na maioria, de origem fisiológica. Vi centenas de radiografias que tinham, pouco mais ou menos, o aspecto da sua, e deixavam ao critério de quem as examinasse toda a liberdade de considerá-las ou não como “passaporte”. Eu falo aqui como leigo, mas ao menos como leigo veterano. 
– E seu próprio passaporte é pior? 
– Sim, um pouco pior... Por outro lado sei que os nossos mestres e superiores não fundam nenhum diagnóstico exclusivamente nesse brinquedo... E então, o senhor pretende passar o inverno conosco? 
– Que vou fazer?... Começo a me familiarizar com a ideia de que só descerei em companhia do meu primo. 
 – Quer dizer que o senhor se habitua a não se... Formulou isso muito espirituosamente. Espero que já tenha recebido a sua bagagem, roupas quentes, calçados resistentes? 
– Recebi, sim, senhor. Está tudo em perfeita ordem. Informei os meus parentes, e a nossa governanta me enviou as coisas por expresso. Agora estou preparado. 
– Isso me tranquiliza. Mas, escute! O senhor vai precisar de um saco de peles. Agora é que me lembro! Esse veranico é traiçoeiro. De um momento para outro podemos estar em pleno inverno. O senhor passará aqui os meses mais frios... 
– Pois é, o saco de repouso – disse Hans Castorp. – É indubitavelmente uma peça necessária. Também já ventilei vagamente o projeto de ir à aldeia, nos próximos dias, junto com meu primo, para comprar um. Lá embaixo nunca mais precisarei dele, mas para quatro ou seis meses já vale a pena. 
– Vale, engenheiro, vale mesmo – disse o Sr. Settembrini baixinho, aproximando-se um pouco mais do jovem. – Sabe o senhor que é horroroso ouvir com que leviandade fala de meses? É horroroso porque é antinatural e contrário ao seu caráter, e porque isso provém unicamente da docilidade dos seus anos. Ai dessa excessiva docilidade da juventude! A juventude é o desespero dos educadores, por estar disposta a aceitar sobretudo as coisas ruins. Não fale como se costuma falar aqui, meu rapaz, mas como convém à sua maneira europeia de viver! Neste ar aqui há muita coisa da Ásia, principalmente. Não é sem motivo que esses tipos da Mongólia moscovita andam pululando por aí. Esse pessoal – e o Sr. Settembrini fez um movimento com o queixo, apontando por cima do ombro – não lhe deve servir de modelo. Não se deixe contagiar pelos conceitos deles. Pelo contrário, oponha-lhes a própria natureza, a sua natureza superior, e mantenha sagrado o que, pela sua índole e pela sua origem, deve ser sagrado ao senhor, filho do Ocidente, do divino Ocidente, filho da civilização; o tempo, por exemplo. Esse procedimento generoso, essa prodigalidade bárbara no emprego do tempo é de estilo asiático. Pode ser que esse seja o motivo por que os filhos do Oriente se dão bem aqui. O senhor nunca notou que, quando um russo fala em “quatro horas”, é como se nós disséssemos “uma hora”? É fácil chegar à conclusão de que o pouco-caso que essa gente faz do tempo está relacionado com a vastidão selvagem do seu país. Onde há muito espaço há muito tempo. Diz-se que eles são o povo que tem tempo e pode esperar. Nós, os europeus, não o podemos. O tempo que temos é tão exíguo quanto o espaço do nosso continente nobre e delicado nos seus contornos. É preciso que administremos economicamente o nosso tempo e o nosso espaço, que tiremos proveito deles, engenheiro, muito proveito! Tome como símbolo as nossas cidades grandes, esses centros, esses focos da civilização, esses cadinhos do pensamento! À medida que sobe ali o preço do solo e se torna impossível o desperdício de espaço, o tempo – repare bem nisso! – também chega a ter um valor cada vez mais elevado. Carpe diem! Quem cantava assim era um homem da metrópole. O tempo é um dom divino, outorgado ao homem para que o explore, sim, meu caro engenheiro, para que o explore a serviço do progresso da humanidade.
  
     Por maiores que fossem os obstáculos que essas últimas palavras, na sua forma alemã, oferecessem à língua mediterrânea do Sr. Settembrini, ele conseguiu proferi-las de um modo agradável, claro, sonoro e – inegavelmente – plástico. Hans Castorp limitou a sua resposta àquele tipo de reverência breve, rígida e acanhada com que um aluno recebe uma lição que encerra uma censura. Que mais poderia replicar? Essa preleção altamente pessoal que o Sr. Settembrini acabava de lhe fazer, secretamente, quase cochichando, e com as costas voltadas aos outros pensionistas, tinha caráter muito objetivo, era muito pouco social, e afastava-se por demais de uma simples conversa, para que o tato permitisse uma manifestação de aplauso. Não se responde a um professor: “Como o senhor falou bem!” Em outras ocasiões, Hans Castorp, às vezes, fizera o, por assim dizer, para se manter num plano de igualdade social com o humanista. Mas este nunca lhe dirigira palavras tão insistentemente pedagógicas, que não deixavam lugar para outra atitude senão a de engolir a reprimenda, aturdido qual um escolar em face de tanta moral.

continua pág 158...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Enciclopédia (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1] Personagens de Wilhelm Busch (1832-1908), autor de obras infantis muito divulgadas na Alemanha. No Brasil, são conhecidos como ]uca e Chico, na tradução de Olavo Bilac. (N. do E.)