sábado, 30 de setembro de 2023

Memórias - 25: um lugar de trabalho y muerte

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Um

baitasar

Memórias

25 – um lugar de trabalho y muerte

ainda escuto seus sussurros enquanto cantarolava cantigas para afastar las voces de la Montaña, Hija mía, no se puede vivir sin encantamientos, pero el encantamiento no puede debilitar la verdad.

aprendi, confesso que demorou, mas aprendi jamais desmerecer o duro esforço para sobreviver

sonhar sem esconder a própria realidade, desinventar as mentiras que nos fazem enfiadas em tocas escuras e imundas, medrosas e desistidas da própria vida

ela repetia que tinha direito a outra vida porque esta sua vida ela não reconhecia como a vida que queria, Un contrabando de vida, mí hija...

um lugar de trabalho e morte

seus lamentos denunciavam o desilusório con la montaña de maíz, Aquí, todas son asfixiadas y sofocadas hasta que se rompen el cuello.

os tempos sempre foram duros para las campesinas, o amor pela vida nunca foi deixado em paz, as moscas, os cachorros, as galinhas, os ratões e aquele sol ardente estão ali para lembrá-las da sua aparência redonda e vermelha de raiz e adubo

a poeira quente e cinza avisa quando o campo de reduz a escórias enquanto são feitos os preparos para o plantio, o jeito de cultivar en la Montaña é cortar, queimar, deixar la tierra desnuda no descanso e quando a vida sobrevive los hombres sobem para jogar o milho dentro das covas, é das cinzas que renasce a fertilidade das covas

mí hermana gostava do companheiro, ele a fez rir e se metia de um jeito que apetecia ficar arriada ao seu lado na esteira, una mujer desnuda como la tierra que sonhava viver longe da aguardente de milho e dos bailes suados no pátio

o suor de la Montaña promete apenas fumaça, cinza y muerte

O meu mundo é apenas de aparências, argumentava o menudo

¿Qué crees que se pasa por acá?

Encontrei um lugar com pessoas mais puras.

Simples... simples...

É mais que isso, são ingênuas e desconhecem a maldade.

¡Qué tonteria dices, sonos calaveras criaturas!

o cabo já estava em pé, parado na porta, mirava a trilha de águas sujas que escorregava entre cães, galinhas, crianças e velhos, precisava concordar com Blanca, ali não estavam seguros

ele desgrudou o ombro da porta e se virou para Blanca, a penumbra das velas escondia as claridades do madrugamento e a dor da sua descoberta, os olhos grudados um no outro, olhos tristes e desafiadores, caminhou até estar ajoelhado na frente daquela mujer avermelhada, sem pelos escondidos

Queres mesmo que me vá?

Sí... quién se queda acá tiene que escalar la montaña...

Sinto que este é o meu destino.

No... quizás sea mi destino imaginando cosas que podríamos hacer juntos si el tiempo no fuera nuestro enemigo. Me pregunto: ¿Por qué tú y yo ahora, después de tantos caminos cruzados... pero también después de algunas coincidencias que nos ha deparado la vida?

Não sei a resposta, minha Blanca amada. Mas sei que não consigo ficar longe de ti, não consigo nem pensar nesta possibilidade, isso dói demais.

Yo siento lo mismo. Estás plantado dentro de mí con raíces tan grandes que es imposible arrancarlas. Y la emoción que siento cuando estamos el uno con el otro en la esterilla es algo transcendente, maravilloso... las sensaciones se quedan y se acumulan, crecen, tienen el espacio del universo... como si la vida pudiera acabarse pero la energia se quedara aquí para siempre.

Ah! Eu não quero a impossibilidade de te amar assim por muito e muito tempo. Eu não queria perder esse tempo de viver contigo.

Yo tampoco. Me gustaría la oportunidad de estar contigo tantos momentos, pasear cogida de tu mano, sentarme en un banco de una plaza una tarde cualquiera, otro día soleado, mirarte a los ojos que me dicen: te quiero te quiero... sentir tu cabeza apoyada en mi hombro... estar acurrucada mirando la luna llena y el cielo estrellado... recibir flores, decirte cosas, abrazarte una y otra vez, mimarte, repetirte millones de veces: te quiero te quiero te quiero...

Te quero... te quero... também te quero...

Yo también, pero lejos de esta montaña de maíz.

o sol já requentava as costas, o vozerio de cantorias das mulheres caminhava entre as paredes e os invadia

No te olvides que tienes un jefe.

Não quero mais chefes em minha vida.

Pero tienes, y si te achar por acá todos vamos a sufrir juntos. Mi pueblo ya está sufriendo demasiado como para sufrir tambén por nosotros.

... me vou... então?

Vuleve cuando creas que debes.

os ratos em correria atravessam os sítios e as palhas, siempre correndo nervosos

não, mí hermana Blanca não queria mais aquela vida de luto permanente, injusta e carregada com os rastros da indiferença, vozes de colibri

sonhava com senhoras finas e delicadas

o seu homem se foi junto com o sol brotando de la tierra, subindo como manchas pelas paredes de barro, ela se amaldiçoou, ¡Imbécil, vive por él, calla y muere!

estava só na saudade e na solidão, lutando contra mosquitos que roubam para suas barrigas fartas o sangue de los campesinos

las mujeres têm os olhos cansados de olhar la Montaña acima, esperando angustiadas para verem seu homem descendo, até que caem de joelhos pedindo perdão por tudo de ruim que possam ter feito sem saber que era ruim, prometendo fazer só o que as deixam fazer, Senta aqui, cala, fala, responde, reza, abre as pernas, mergulhadas no suco extraído de todas nós, Esquece isso e mergulha o teu suco em mim.

os homens descem com os olhos cansados de olhar através de la tierra la Montaña de maíz, até que caem de joelhos agradecendo a própria vida miserável que continua, conformados com o que sempre tiveram, Todavía vivimos...

e assim, agachadas – aferrándose en sus piernas –, adormecem con sus ojos abiertos, resmungam e agradecem a volta de sus hombres, estão grudadas naquela terra como as suas pegadas

amamentam enrugadas enquanto os rastros vão de lá para cá, de lugar algum para nenhum, sin dejar jamás la tierra, sabem do seu calor e do seu frio, cuando la tierra cae enferma as sombras se vão sobre as próprias pisadas

a luz amarelona da vela iluminava o rosto de Blanca, frente a frente, naquele caco de espelho o lábio leporino aparecia rasgado mais que sempre, No me gusta las noches de verano.
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sexta-feira, 29 de setembro de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: Democracias

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


9
Democracias


No capítulo anterior, fomos obrigados a falar algumas vezes em ditaduras e democracias, antes de nos determos no exame destes conceitos. Isto porque o assunto que estamos estudando é realmente um todo constituído de partes interdependentes e entrelaçadas em vários sentidos. As divisões que se fazem são artificiais e têm apenas a finalidade de facilitar a apreensão do assunto, de forma que não há critérios rígidos para o que “vem antes” e o que “vem depois”. 

Como muitos termos em Política, “democracia” é uma palavra extremamente ambígua. Seria, é claro, uma piada dizer que democracia é tudo aquilo que os diversos governos dizem que é democracia, mas a piada não estaria muito longe da verdade. Ao mesmo tempo, Estados onde o grau de liberdade e a participação dos cidadãos no processo decisório são muito diferentes entre si também se chamam a si mesmos de democracias. Por exemplo, não é impossível que um país onde o presidente da República seja escolhido por um pequeno grupo, o Parlamento tenha atribuições muito restritas e o Judiciário seja bastante fraco se rotule de democracia, como acontecia no Brasil durante a vigência do regime militar instalado em 1964. Seria esse Estado, então, “igual” a outro onde a situação fosse mais aberta e a soberania popular realmente exercida.

Equívocos ou mentiras desse tipo mostram que, se alguém desejar saber o que é democracia, e para isso arrolar os Estados que se intitulam democráticos, ficará, por assim dizer, num mato sem cachorro. O recurso adicional que vem à mente com mais facilidade é verificar se existem determinadas instituições em cada Estado observado, pois tais instituições representariam um indício seguro da existência de uma democracia. Contudo, apesar de ajudar um pouco, isto ainda não é suficiente. Aliás, em certas circunstâncias, é perfeitamente inútil.

Já vimos, por exemplo, que a existência, em lei, de três Poderes separados e independentes não assegura a presença de uma democracia, não assegura a prevenção dos abusos de poder, nem garante a participação dos cidadãos no processo decisório público — características que aprendemos desde a escola a identificar com democracia: o governo do povo. Isto porque uma coisa é o que está no papel, outra a que na verdade acontece todos os dias. Pode ocorrer até mesmo que a separação e a independência dos três Poderes não sejam claramente violadas, mas os acontecimentos na órbita dos bastidores do poder são capazes de tornar toda a estrutura formal apenas uma aparência, uma espécie de vitrina enganadora.

De outro lado, como também já vimos, há Estados que funcionam (demos o exemplo da Inglaterra) democraticamente e nos quais não há separação dos três Poderes. Na verdade, em qualquer regime parlamentarista, democrático ou não, existe uma identidade ao menos parcial entre Executivo e Legislativo. 

Outro indício, igualmente longe de ser seguro, é a prática de eleições, isto é, da escolha de governantes pelo sufrágio popular. Também aqui a diferença entre o que está no papel e o que se pratica concretamente deve ser vista com cuidado. Pode haver eleições tão manipuladas, das formas mais diversas (com mecanismos que vão desde a compra de votos e a propaganda desleal até a adulteração de resultados), que não significam senão uma encenação para dar fisionomia democrática ao regime. Além disso, os diversos sistemas eleitorais, as qualificações exigidas de eleitores e candidatos e dezenas de outros fatores podem fazer com que as eleições se prestem muito bem a mascarar a ditadura sob a capa da democracia. 

Do outro lado da moeda, como no caso dos três Poderes, é claro que pode haver democracia sem eleições, ou com muito poucas eleições. Isto já não é mais comum em nossos dias, devido ao gigantismo do Estado e das sociedades contemporâneas, mas pode-se muito bem imaginar uma comunidade pequena que formule coletivamente todas as decisões públicas importantes, através de uma assembleia de que participem livremente todos os cidadãos, falando em seus próprios nomes. Eram assim as democracias da Grécia antiga, como são assim algumas pequenas coletividades contemporâneas (os exemplos dados são, em geral, cidadezinhas do nordeste dos Estados Unidos — Nova Inglaterra — e algumas comunidades suíças).  

Pode-se dizer, por fim, que haverá democracia onde exista soberania popular efetivamente exercida, não importa através de que meios institucionais. De novo, não basta que a ordem jurídica estabeleça o princípio da soberania popular, até porque não é necessário que se explicite esse princípio na lei escrita, para que ele vigore. Enfim, o conceito de democracia é mesmo relativo, embora não precisamente no sentido que quis dar a essa relatividade um dos generais-presidentes da República brasileira.

O que é necessário é que, para avaliarmos se um determinado Estado é democrático, vejamos, em cada caso, qual o grau de liberdade dos cidadãos, qual o grau de estabilidade e vigor das instituições políticas, qual o grau de participação popular nas decisões públicas, qual o grau de responsabilidade do governo perante os cidadãos, quais os mecanismos de controle real dos abusos de poder, qual a flexibilidade das instituições básicas para atender às exigências de mudanças pacíficas derivadas da vontade popular e uma série de outros aspectos correlates. Assim, provavelmente, chegaremos à conclusão de que existem muitas democracias, nenhuma delas perfeita em função dos critérios abstratos que desenvolvamos, algumas mais aproximadas deles, outras mais distantes.

Cabe também mostrar que, mesmo que esses aspectos vistos acima sejam observados com rigor, há fatores econômicos e sociais que não podem deixar de ser levados em conta. Por exemplo, um determinado Estado pode garantir de todas as formas, em sua ordem jurídica, o direito de seus cidadãos, direito igual para todos, de obter uma educação formal gratuita, desde a escola primária até a universidade. Contudo, se muitos cidadãos, apesar desse direito garantido, não podem frequentar as escolas, seja porque as exigências da sobrevivência sua e da família não permitem, seja porque não podem deslocar-se até os centros onde a educação é oferecida, seja até mesmo porque a pobreza (e consequentes deficiências de nutrição na infância, além de parcos estímulos ambientais) não lhes permitiu o desenvolvimento intelectual adequado, aí é patente que a democracia “existe mas não existe”. É possível raciocinar da mesma maneira sobre uma série de direitos, como à moradia, ao deslocamento físico para onde se desejar, à saúde e assim por diante. Por isso mesmo, é importante não confundir liberdade política com democracia. 

Finalmente, há outro aspecto, na verdade muito complicado, mas que pode ser visto de relance aqui. Todo Estado (como toda organização muito grande, aliás) depende, para a condução de seu dia-a-dia, de um grupo de pessoas relativamente pequeno: governantes e administradores. Vamos chamar esse pequeno grupo de “elite”, para fins de discussão. Se as elites provêm sempre das mesmas camadas sociais e econômicas, também não há uma democracia “cem por cento”, porque os cidadãos que não têm acesso aos centros de decisão ficam isolados do processo.

Nem sempre é uma questão diretamente econômica que provoca esse fenômeno. Se chamarmos a “subida” às elites de mobilidade social vertical, veremos que, muitas vezes, a ausência ou dificuldade de mobilidade vertical “positiva” para certos cidadãos se devem a fatores como raça, aparência, sexo, religião, hábitos, origem nacional etc.

Durante muito tempo, para citarmos um caso bastante conhecido, os negros não podiam exercer funções públicas de relevância no sul dos Estados Unidos, mesmo em plena vigência da democracia americana e mesmo nas cidades onde a população negra era maioria. Já as mulheres são rotineiramente discriminadas em muitas sociedades democráticas. Os católicos são discriminados na Irlanda do Norte, os imigrantes coreanos no Japão, os imigrantes turcos na Alemanha e assim por diante. Enfim, a multiplicidade de hipóteses em que este tipo de coisa ocorre é muito grande, porque estão em jogo fatores sociais intrincados, como, por exemplo, preconceitos arraigados, que mesmo a legislação mais forte e decidida tem dificuldade em erradicar ou até em enfraquecer.

De qualquer maneira, o estabelecimento de Estados democráticos permanece como aspiração permanente da humanidade, apesar da abundância de conceitos divergentes, da gravidade dos problemas enfrentados por cada sociedade, dos obstáculos criados pela imensa complexidade da vida humana neste nosso planeta. Já não podemos, como vimos, pretender a existência e funcionamento de democracias diretas, ou seja, de democracias em que os cidadãos, todos reunidos, busquem, no debate e na discussão cara a cara, o consenso e a realização do bem comum (evitando-se até mesmo a “tirania da maioria”, um problema muito interessante das democracias que, infelizmente, não vamos ter espaço para examinar aqui, mas que, como se pode imaginar, é muito importante, sobretudo se consideradas as legítimas aspirações de indivíduos e grupos minoritários, em determinados contextos). 

Há cidadãos demais, problemas demais, tarefas demais a desempenhar. Hoje, procura-se viabilizar a democracia representativa, isto é, uma forma de governo através da qual os cidadãos escolhem representantes que assumirão as responsabilidades pela condução direta dos negócios públicos. As democracias representativas, que à primeira vista poderiam parecer uma solução perfeita, apresentam problemas difíceis, a começar pelos sistemas empregados para a escolha dos representantes — ou, em última análise, a escolha dos governantes. E, se superados razoavelmente os problemas da escolha dos representantes, vamos encontrar ainda muitos outros, como, por exemplo, o fenômeno, por infelicidade não tão raro quanto seria de desejar, da assunção de autonomia por parte dos escolhidos, isto é, dos representantes do povo. Eles podem tentar passar, como passam com frequência, a mandar no povo, a agir como se sua autoridade fosse original e não derivada de uma delegação, teoricamente revogável, da soberania popular. Estes problemas, e alguns outros, vamos ver rapidamente, em capítulos que se seguirão. 

*

1 Tente desenvolver uma escala, uma espécie de régua para medir democracias. Em vez de centímetros, ponha coisas que você considere importantes para avaliar se o Estado X é democrático ou não, ou quão democrático ele é. Invente seus próprios critérios e aplique-os a alguns Estados cujo funcionamento você conheça. Se não conhecer o de nenhum, invente Estados também. 

2 Se por acaso você tem um amigo ou colega que, sem colaboração alguma sua (nem dele com você), fez também sua própria régua, procure compará-las e discutir os critérios de cada uma. E possível que o que uma régua considere democrático, a outra não considere? Qual é a “certa”? 

3 Os Estados Unidos são uma democracia? A Rússia é uma democracia? O Brasil é uma democracia? O Corinthians e o Flamengo são democracias? A Igreja Católica é uma democracia?

4 A Xaxulândia é um Estado cuja população se compõe de dois grupos nacionais distintos: os xás e os xus, que falam línguas um pouco diferentes e cuja aparência física também é diferente. Pela lei, os xás e os xus têm os mesmos direitos, inclusive quanto à ocupação de cargos públicos. Contudo, enquanto os xás podem candidatar-se livremente, os xus precisam passar primeiro por uma seleção destinada a verificar suas qualificações intelectuais, morais, cívicas etc. Depois de passarem, os xus são tratados de maneira exatamente igual à dos xás, na ocupação de cargos públicos. Comente isso, até mesmo inventando, se quiser, uma história para a Xaxulândia. 

5 Num certo Estado, existem três Poderes, separados e independentes, com o rei exercendo o Executivo. Um dia, o rei delibera fechar um parque, antes público, para seu uso. Os prejudicados recorrem ao Judiciário, que pode resolver a questão sem consultar o rei. Mas o rei telefona para o presidente do Tribunal e diz: “Olhe aqui, se vocês decidirem contra mim, não posso fazer nada, porque estamos numa democracia. Mas, se vocês decidirem contra mim, nunca mais convido ninguém do Judiciário para funções oficiais, congelo a liberação de verbas para o pagamento de seus salários, nomeio juízes que sejam seus inimigos e não me responsabilizo pela reação dos meus militares.” Comente.

6 Num certo Estado, o Poder Judiciário é exercido por parlamentares influentes, escolhidos por votos de seus pares. Um dia, o Poder Judiciário se vê diante de um caso que, se julgado de acordo com a letra da lei, prejudicará os interesses dos parlamentares. Um dos juízes propõe, então, que se mude a letra da lei, para que a solução do caso seja diferente. “Você está maluco?”, dizem os outros juízes. “Isto pode ser feito, mas se for feito, como poderemos encarar a imprensa e o povo? Isto não se faz!” Comente.

7 “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, diz nossa Constituição. Contudo, depois de um movimento que consegue a adesão da maior parte dos cidadãos, o povo exige uma certa tomada de posição que não convém ao governo naquele momento. O governo diz que não pode atender ao que o povo pede, inclusive porque o povo é representado pelos deputados, os quais, depois de muita discussão e confusão, concluem que não vão endossar a reivindicação do povo. E, mais ainda, quem insistir naquilo será considerado subversivo. Comente. 

8 “Você é livre para fazer o que quiser”, diz um sujeito para outro, que se queixa de que o bairro onde ambos moram está ficando cada vez mais insuportável para morar, devido à criminalidade e à poluição. “Eu mesmo vou me mudar amanhã.” E vai embora para a nova casa que comprou, mas seu vizinho não pode fazer o mesmo, porque não tem condição econômica para mudar-se. Comente. 

9 Comente: “Aqui todo mundo tem liberdade e oportunidade, mas não tenho culpa se algumas pessoas são ignorantes, mal-educadas, negras e sem juízo, e se pagam um preço por isso.” 

continua na página 066...
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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Democracias
João Ubaldo Ribeiro - Política: Ditaduras
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João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela
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Equipe de Produção
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e Silva Marcio Araujo

Revisão
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CIP-Brasil.
Catalogação-na-fonte S
indicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

Charlie Parker - Bird

Charlie Parker & Dizzy Gillespie 

"Hot House" at DuMont Television, 
February 24, 1952 

Transmitido no Earl Wilson Show 'Stage Entrance' em 24 de fevereiro (ou 25?), De 1952.

Charlie Parker toca com Dizzy Gillespie na única filmagem que captura o “pássaro” em uma verdadeira performance ao vivo (artigo de Mike Springer)

Aqui está uma transmissão de TV histórica dos fundadores do bebop, Charlie Parker e Dizzy Gillespie, tocando juntos em 1952. É um dos dois únicos filmes sonoros conhecidos de Parker tocando - e o único dele tocando ao vivo, em vez de sincronizar com um pré-gravado acompanhar.

A performance é de uma transmissão de 24 de fevereiro de 1952 na pioneira DuMont Television Network. O segmento começa com uma breve cerimônia em que Parker e Gillespie recebem prêmios da revista Down Beat (Earl Wilson e Leonard Feather). Segue uma performance do padrão bebop “Hot House”, composta por Tad Dameron em torno da estrutura harmônica de “What Is This Thing Called Love?”, de Cole Porter.

O quinteto inclui Parker no saxofone alto, Gillespie no trompete, Sandy Block no baixo, Charlie Smith na bateria e Dick Hyman no piano.

Foi Hyman, que tocou com Parker e tinha seu próprio show noturno na rede DuMont, quem ajudou a organizar a apresentação. Em uma entrevista de 2010 para a JazzWax, Hyman falou sobre como foi tocar no show com Parker e Gillespie. “Foi junto”, disse ele. “Esses caras tocaram com muita diversão e sentimento. É uma performance incrível, considerando que foi um show pop com apenas duas câmeras.”






Bloomdido (Master Take)
Charlie Parker · Dizzy Gillespie




Producer: Norman Granz
Alto Saxophone: Charlie Parker
Trumpet: Dizzy Gillespie
Piano: Thelonious Monk
Double Bass: Curly Russell
Drums: Buddy Rich


Charlie Parker 
- Celebrity (& Buddy Rich). [Live 1950]





Charlie Parker and Coleman Hawkins 
1950




Charles Parker Jr. (Kansas City, 29 de agosto de 1920 — Nova Iorque, 12 de março de 1955) foi um saxofonista americano de jazz e compositor. No início da sua carreira, Parker foi apelidado de Yardbird; esse apelido mais tarde foi encurtado para Bird e permaneceu como o apelido de Parker para o resto da sua vida.

Com absoluto domínio técnico de seu instrumento, Parker era um virtuose consumado, que conseguia combinar a mais complexa organização harmônica, rítmica e melódica com uma clareza muito rara de encontrar em instrumentistas anteriores ou posteriores à sua atuação.

Para Parker, improvisar não era simplesmente tomar uma melodia original e construir variações sobre ela. Quando o saxofonista pegava um tema qualquer como base para criar, o que o interessava não era a melodia, e sim a harmonia. Era o esqueleto harmônico do tema original que ele utilizava como ponto de partida e estímulo para suas digressões, nas quais uma mescla cativante de garra e fantasia constituía a regra.

Foi assim que, no pós-guerra, ao lado do trompetista Dizzy Gillespie, Parker tornou-se um dos fundadores do bebop, o novo estilo sofisticado com o qual o jazz se tornaria definitivamente música "para ouvir", substituindo a música "para dançar" que havia sido a marca do swing jazz das big bands dos anos 1930 e 1940.


A Montanha Mágica - Compra necessária (b)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Compra necessária

continuando...

Também Joachim estava um pouco perplexo, e Settembrini permaneceu calado, apenas alçando os sobrolhos, como quem, por cortesia, aguarda o fim da fala de um interlocutor. Na realidade, porém, tinha a intenção de deixar chegar o momento em que Hans Castorp se atrapalhasse todo. Por fim respondeu:

Sapristi, meu caro engenheiro! O senhor acaba de manifestar qualidades filosóficas que eu não esperava da sua parte. De acordo com a sua teoria, deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito. Permita-me, no entanto, observar que não pude acompanhar as suas deduções, que as rejeito e me oponho a elas com verdadeira hostilidade. Tal como o senhor me vê, sou um pouco intolerante em assuntos espirituais e prefiro ser tachado de pedante a deixar de combater opiniões que me parecem tão censuráveis como essas que o senhor nos apresentou... Per... mita-me... Já sei o que o senhor tenciona replicar. Quer dizer que não falou muito a sério, que os pontos de vista que acaba de expor não são propriamente os seus, que apenas apanhou uma opinião dentre as muitas possíveis que flutuam no ar, e que o fez a fim de se exercitar um pouco, sem assumir nenhuma responsabilidade. É o que está em harmonia com a sua idade, que ainda se compraz em dispensar a resolução viril e em tentar, provisoriamente, toda espécie de teorias. Placet experiri – acrescentou, pronunciando o “c” de placet brandamente, à italiana. – Uma excelente máxima. O que me deixa pasmado é apenas o fato de ver as suas experiências tomarem justamente este rumo. Não me parece tratar-se de um mero acaso. Receio que exista no senhor uma tendência capaz de se arraigar no seu caráter, se não for combatida a tempo. Por isso me creio na obrigação de corrigi-lo. O senhor opinou que a doença reunida à estupidez era a coisa mais triste que havia no mundo. Estou de acordo. Também eu prefiro um doente espirituoso a um bobalhão tísico, porém não posso deixar de protestar, quando o senhor se mete a considerar a combinação de enfermidade e tolice como uma espécie de falta de estilo, um ato de mau gosto praticado pela Natureza, e um dilema para o sentimento humano, conforme lhe aprouve expressar-se. E quando o senhor julga a doença tão nobre e – como dizia? – tão digna de reverência, que simplesmente não se pode harmonizar com a estupidez. É outra expressão sua. Pois bem, eu não concordo com isso. A doença absolutamente não é nobre, e nem um pouquinho digna de reverência. Essa concepção é por si mesma mórbida ou leva à morbidez. O método mais acertado de despertar no senhor repugnância contra ela talvez seja dizer-lhe que é velha e feia. Tem ela a sua origem em épocas supersticiosas, acossadas de remorsos, e nas quais a ideia do humano, privada de toda dignidade, degenerara a ponto de se tornar uma caricatura, épocas angustiadas, que consideravam a harmonia e o bem-estar coisas suspeitas, diabólicas, ao passo que a debilidade equivalia a um passaporte para o Céu. Mas a Razão e o Iluminismo dissiparam essas sombras que pairavam sobre a alma da humanidade; verdade é que ainda não terminaram a sua obra, e a luta continua. Esta luta, meu caro senhor, chama-se trabalho, trabalho terreno, trabalho em prol da Terra, da honra e dos interesses da humanidade. E temperadas, dia a dia, por essa luta, aquelas forças acabarão por libertar o Homem e por guiá-lo pelos caminhos do progresso e da civilização, rumo a uma luz cada vez mais clara, mais sua e mais pura.  

“Puxa!”, pensou Hans Castorp, espantado e confuso. “Mas isto soa como uma ária de ópera! Como é que provoquei esse discurso? Ele me parece, aliás, um pouco árido. Por que fala o homem constantemente do trabalho? Sempre insiste no trabalho, embora aqui em cima isto venha um pouco fora de propósito.” Finalmente respondeu:

– Muito bem, Sr. Settembrini. É mesmo notável como o senhor sabe falar. Essas coisas não poderiam ser ditas de um modo... de um modo mais plástico...

– Um retrocesso – prosseguiu Settembrini, enquanto erguia o guarda-chuva por cima da cabeça de um transeunte –, um retrocesso espiritual em direção aos conceitos desses tempos tenebrosos, atormentados... Creia-me, meu caro engenheiro, que isso é uma doença; uma doença explorada a fundo, para a qual a ciência conhece diversas denominações; uma deriva da terminologia estética e psicológica, e a outra, da política. São termos escolares, que nada têm a ver com o nosso tema, e dos quais o senhor pode perfeitamente prescindir. Mas, como tudo se encadeia na vida espiritual, e uma coisa se depreende da outra, como não se pode estender ao Diabo nem sequer o dedo mínimo, sem que ele logo agarre a mão inteira e com ela todo o homem... Como, por outro lado, um princípio são somente pode gerar efeitos sadios, sendo indiferente qual o ponto de partida – queira, pois, o senhor gravar na memória que a doença, longe de ser nobre e por demais digna de reverência para ser compatível com a estupidez, representa, pelo contrário, uma humilhação... Sim, senhor, uma humilhação dolorosa do Homem, um insulto à ideia, um rebaixamento que no caso individual pode merecer tolerância e cuidado, mas que seria uma aberração homenagear espiritualmente – grave isto na memória! –, uma aberração e o início de todas as demais aberrações espirituais. Aquela mulher que o senhor mencionou... Nem quero me lembrar do nome dela... Ah, sim, a Srª. Stöhr, muito obrigado... Bem, não é, ao que me parece, o caso dessa criatura ridícula o que coloca o sentimento humano diante de um dilema, para usar as suas palavras. Estúpido e doente -meu Deus, isto são as peculiaridades da própria miséria; o caso é simples, e nada nos resta a fazer senão sentir compaixão e encolher os ombros. O dilema, meu caro senhor, a tragédia começa onde a Natureza se mostrou bastante cruel para destruir, ou para tornar de antemão impossível, a harmonia da personalidade, associando um espírito nobre e cheio de vitalidade a um corpo pouco apto para a vida. O senhor conhece Leopardi, meu caro engenheiro? Ou o senhor, tenente? Um poeta infeliz da minha terra, um corcunda enfermiço, com uma alma primitivamente grande, mas rebaixada sem cessar pela miséria do seu corpo e arrastada aos abismos da ironia, uma alma cujas lamentações dilaceram o coração. Ouçam isto!

E Settembrini pôs-se a recitar em italiano, deixando as sílabas se derreterem na língua, agitando a cabeça e às vezes cerrando os olhos, sem se preocupar com o fato de que seus companheiros não entendiam uma só palavra. O que lhe importava era visivelmente saborear a beleza da sua prosódia e a força da sua memória, e exibi-las diante do auditório. Finalmente disse:

– Mas os senhores não compreendem. Estão ouvindo sem perceber o sentido doloroso dos versos. O aleijado Leopardi – é preciso sentir essa desgraça na sua plenitude, cavalheiros – carecia sobretudo do amor das mulheres, e foi isso, antes de mais nada, que o tornou incapaz de impedir o definhamento da sua alma. O esplendor da glória e da virtude empalidecia ante seus olhos; a Natureza afigurava-se-lhe malvada – ela é realmente malvada, estúpida e malvada; neste ponto concordo com ele – e ele caiu no desespero. É horrível dizê-lo: ele desesperou da ciência e do progresso. Eis, meu caro engenheiro, um exemplo de autêntica tragédia. Aqui o senhor encontra o seu “dilema para o sentimento humano”, e não no caso daquela mulher, de cujo nome recuso terminantemente carregar a minha memória... Não me fale da “espiritualização” que pode resultar da enfermidade; por amor de Deus, não faça isto! Uma alma sem corpo é tão desumana e horripilante quanto um corpo sem alma. A primeira é, aliás, uma rara exceção, e o segundo, o mais comum. Via de regra é o corpo que exubera, açambarca toda a vida e toda a importância, e se emancipa da maneira mais asquerosa. Um homem que vive enfermo é corpo e nada mais, e nisto está o anti-humano, o aviltante... Na maioria das vezes não vale mais que um cadáver... 

– Engraçado! – exclamou Joachim de súbito, inclinando-se para a frente, a fim de olhar o primo, que caminhava do outro lado de Settembrini. – Não faz muito, você disse uma coisa bem parecida. 

- Será? – tornou Hans Castorp. – Bem, pode ser que uma ideia semelhante me tenha passado pela cabeça. 

Settembrini permaneceu calado durante alguns momentos, antes de dizer:

– Tanto melhor, meus senhores. Tanto melhor se assim é. Longe de mim a intenção de lhes expor uma filosofia original. Não é isto o que me cabe fazer. Se o nosso engenheiro, espontaneamente, já chegou a observações análogas, confirma-se a minha opinião segundo a qual ele é um diletante do espírito e simplesmente se entrega, à maneira dos jovens talentosos, a experiências com toda espécie de conceitos possível. Um jovem de talento não é uma folha em branco, senão uma folha sobre a qual tudo já foi escrito, com tinta simpática, por assim dizer, tudo, tanto o bem como o mal, e cumpre ao educador desenvolver decididamente o bem e apagar, mediante uma influência adequada, o mal que deseja manifestar-se... Os senhores fizeram compras? – perguntou então num tom diferente.

– Não, senhor, nada de especial – respondeu Hans Castorp. – Quer dizer...

– Compramos alguns cobertores para meu primo – respondeu Joachim displicentemente. 

– É para o repouso... Com esse frio de rachar... Dizem que devo observar o regime durante as semanas da minha estadia – explicou Hans Castorp, rindo e baixando os olhos. 

– Ah? Cobertores! Repouso! – exclamou Settembrini. – Sim, sim, sim! Com efeito: placet experiri – repetiu, com pronúncia italiana. Depois se despediu, pois, cumprimentados pelo porteiro coxo, acabavam de entrar no sanatório. No vestíbulo, Settembrini tomou o caminho para os salões, a fim de ler os jornais antes do almoço, segundo disse. Parecia querer gazear o segundo repouso.  

– Deus me livre! – desabafou Hans Castorp, quando estava com Joachim no elevador. – É mesmo um pedagogo. Ele já nos disse outro dia que tinha uma veia pedagógica. E a gente deve cuidar-se na presença dele e não dizer uma palavra indevida, senão segue logo uma preleção que não acaba nunca. Mas vale a pena ouvi-lo falar. Cada palavra lhe sai da boca tão arredondada e apetitosa, que sempre me faz lembrar pãezinhos frescos.

Joachim deu uma risada. 

– Não lhe diga isso. Creio que ele ficaria decepcionado se soubesse que você pensa em pãezinhos ao escutar as suas teorias. 

– Acha mesmo? Ora, não tenho tanta certeza disso. Sempre me parece que ele não se preocupa exclusivamente com as suas teorias, e que estas desempenham um papel secundário. O que lhe interessa mais é o falar em si, o seu modo peculiar de fazer as palavras saltar e rolar... tão elásticas como bolas de borracha... Tenho a impressão de que não lhe é desagradável verificar que os outros notam o efeito. O cervejeiro Magnus disse, indubitavelmente, uma asneira, quando falou dos “belos caracteres”, mas Settembrini nos deveria ter dito o que é, em realidade, o objetivo da literatura. Eu não quis perguntar, para não mostrar a minha ignorância. Não sou nada competente nessas coisas, e até agora nunca vi um literato. Contudo, se o que importa não são os belos caracteres, devem ser as belas palavras. Tal a minha impressão, quando me acho em companhia de Settembrini. Que palavras usa esse homem! Sem o mínimo acanhamento fala de “virtude”, ora essa! Nunca na vida empreguei esse vocábulo. Até mesmo na escola, dizíamos “coragem”, quando líamos “virtus” nos livros. Naquele momento senti um choque; não posso negá-lo. E depois, fico nervoso quando ele se mete a resmungar sobre o frio e sobre Behrens e sobre a Srª. Magnus, porque ela perde proteínas, sobre tudo o que existe, enfim. É um homem de oposição, como logo percebi. Investe contra qualquer coisa, e uma atitude dessas sempre me dá a impressão de negligência. Não posso evitá-lo.  

– É o que você pensa – disse Joachim ponderadamente. – Mas, por outro lado, tal atitude revela um certo orgulho que nada tem de negligente. Pelo contrário, Settembrini é um homem que se respeita a si mesmo, ou respeita os homens em geral. E isso me agrada nele, porque, a meu ver, é um sinal de decência.

– Tem razão – concordou Hans Castorp. – Ele até me parece um tanto severo. A gente, às vezes, fica constrangido diante dele, porque se sente... como dizer?... controlado. Sim, senhor, é isso mesmo. Você quer acreditar que tenho a impressão de que ele não aprovava a compra dos cobertores para o repouso, que se opunha a ela e até estava escandalizado?

– Não – disse Joachim, circunspecto e admirado. – Por que razão? Não posso imaginar... – E com isso se foi, metendo o termômetro na boca e levando todos os seus apetrechos para o repouso, enquanto Hans Castorp começou logo a mudar de roupa e a arrumar-se para o almoço, do qual os separava nem sequer uma hora.  

continua pág 066...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Compra necessária (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A Hora da Estrela - Em pequena ela vira uma casa

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

   Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom olhar para dentro. Então seu ideal se transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela. Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:

– Você sabe se a gente pode comprar um buraco? 

– Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta?

   Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste.
   Quando ele falava em ficar rico, uma vez ela lhe disse:

– Não será somente visão? 

– Vá para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu só não digo palavrões grossos porque você é moça-donzela. 

– Cuidado com suas preocupações, dizem que dá ferida no estômago.

– Preocupações coisa nenhuma, pois eu sei no certo que vou vencer. Bem, e você tem preocupações? 

– Não, não tenho nenhuma. Acho que não preciso vencer na vida.

   Foi a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus. Estava habituada a se esquecer de si mesma. Nunca quebrava seus hábitos, tinha medo de inventar.

– Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado “Alice no País das Maravilhas” e que era também um matemático? Falaram também em “élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra”? 

– Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher. Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça direita. 

– Nessa rádio eles dizem essa coisa de “cultura” e palavras difíceis, por exemplo: o que quer dizer “eletrônico”?

   Silêncio.

– Eu sei mas não quero dizer. 

– Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic. A rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura? 

– Cultura é cultura — continuou ele emburrado. Você também vive me encostando na parede. 

– É que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer “renda per capita”? 

– Ora, é fácil, é coisa de médico. 

– O que dizer rua Conde de Bonfim? O que é que conde? É príncipe?

   Não contou que o roubara no mictório da fábrica: o colega o tinha deixado na pia quando lavara as mãos. Ninguém soube, ele era um verdadeiro técnico em roubar: não usava o relógio de pulso no trabalho.

– Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se devia ter alegria de viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma música linda, eu até chorei. 

– Era samba? 

– Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música chamava-se “Una Furtiva Lacrima”. Não sei por que eles não disseram lágrima.

   “Una Furtiva Lacrima” fora a única coisa belíssima na sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era “assim”. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma. Muitas coisas sabia que não sabia entender. “Aristocracia” significaria por acaso uma graça concedida? Provavelmente. Se é assim, que assim seja. O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se entender. Seu coração disparara. E junto de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojando-se no desconhecido de si mesma disse:

– Eu acho que até sei cantar essa música. Lá-lá-lá-lá-lá. 

– Você até parece uma muda cantando. Voz de cana rachada. 

– Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida. 

   Ela achava que “lacrima” em vez de lágrima era erro do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos domingos, só tinha essa música. O substrato último da música era a sua única vibração.

continua pag 57...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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A Hora da Estrela - Em pequena ela vira uma casa

O Cortiço - VIII Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


VIII 
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Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo, acrescentando noutro tom:

- Agora é tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez Até logo!

   E saiu.
   Jerônimo ouviu as suas ultimas palavras já de olhos fechados e, quando Piedade entrou no quarto, parecia sucumbido de fraqueza. A lavadeira aproximou-se da cama do marido em ponta de pés, puxou-lhe o lençol mais para cima do peito e afastou-se de novo, abafando os passos. À porta da entrada a Augusta, que fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe por este com um gesto interrogativo; Piedade respondeu sem falar, pondo a mão no rosto e vergando desse lado a cabeça, para exprimir que ele agora estava dormindo.
   As duas saíram para falar à vontade; mas, nessa ocasião, lá fora no pátio da estalagem, acabava de armar-se um escândalo medonho. Era o caso que o Henriquinho da casa do Miranda ficava às vezes à janela do sobrado, nas horas de preguiça, entre o almoço e o jantar, entretido a ver a Leocádia lavar, seguindo-lhe os movimentos uniformes do grosso quadril e o tremular das redondas tetas à larga dentro do cabeção de chita. E, quando a pilhava sozinha, fazia-lhe sinais brejeiros, piscava-lhe o olho, batendo com a mão direita aberta sobre a mão esquerda fechada. Ela respondia, indicando com o polegar o interior do sobrado, como se dissesse que fosse procurar a mulher do dono da casa.
   Naquele dia, porém, o estudante apareceu à janela, trazendo nos braços um coelhinho todo branco, que ele na véspera arrematara num leilão de festa. Leocádia cobiçou o bichinho e, correndo para o depósito de garrafas vazias, que ficava por debaixo do sobrado, pediu com muito empenho ao Henrique que lhe desse. Este, sempre com seu sistema de conversar por mímica, declarou com um gesto qual era a condição da dádiva.
   Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o esperasse por detrás do cortiço, no capinzal dos fundos.
   A família do Miranda havia saído. Henrique, mesmo com a roupa de andar em casa e sem chapéu, desceu à rua, ganhou um terreno que existia à esquerda do sobrado e, com o seu coelho debaixo do braço, atirou-se para o capinzal. Leocádia esperava por ele debaixo das mangueiras.

- Aqui não! disse ela, logo que o viu chegar. Aqui agora podem dar com a gente!... 

- Então onde? 

- Vem cá!

   E tomou à sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as plantas. Henrique seguiu-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobraçado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces.
   Ouvia-se o martelar dos ferreiros e dos trabalhadores da pedreira.
   Depois de alguns minutos, ela parou num lugar plantado de bambus e bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ruínas.

- Aqui!

   E Leocádia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ela, que o conteve:

- Espera! preciso tirar a saia; está encharcada! 

- Não faz mal! segredou ele, impaciente no seu desejo. 

- Pode-me vir um corrimento!

   E sacou fora a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a custo só cobria até o joelho, grossas, maciças, de uma brancura levemente rósea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos.

- Avia-te! Anda! apressou ela, lançando-se de costas ao chão e arregaçando a fralda até a cintura; as coxas abertas.

   O estudante atirou-se sôfrego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho.
   Passou-se um instante de silêncio entre os dois, em que as folhas secas do chão rangeram e farfalharam.

- Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne-Mole, nesta última barriga, tomou conta de um pequeno ai na casa de uma família de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis por mês!... É muito bom passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho!

   E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a queixar-se dos repelões que recebia cada vez mais acelerados.

- Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. Não batas assim com ele! mas não o soltes, hein!

   Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos e pôs-se a dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando os dentes.
   Nisto, passos rápidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direção em que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a insociável figura do Bruno.
   Não lhe deu tempo a que se aproximasse; de um salto galgou por detrás das bananeiras e desapareceu por entre o matagal de bambus, tão rápido como o coelho que, vendo-se livre, ganhara pela outra banda o caminho do capinzal.
   Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda não tinha acabado de vestir a saia molhada.

- Com quem te esfregavas tu, sua vaca?! bradou ele, a botar os bofes pela boca.

   E, antes que ela respondesse, já uma formidável punhada a fazia rolar por terra.
   Leocádia abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e pontapés que acabou de amarrar a roupa.

- Agora eu vi! sabes! Nega se fores capaz! 

- Vá à pata que o pôs! exclamou ela, com a cara que era um tomate. Já lhe disse que não quero saber de você pra nada, seu bêbedo!

   E, vendo que ele ia recomeçar a dança, abaixou-se depressa, segurou com ambas as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e gritou, erguendo-o sobre a cabeça:

- Chega-te pra cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco!

   O ferreiro compreendeu que ela era capaz de fazer o que dizia e estacou lívido e ofegante.

- Arme a trouxa e rua! sabe? 

- Olha a desgraça! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma ocasião! Nem preciso de você pra nada, fique sabendo!

   E, para meter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga:

- Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou pensará que todos são como você, que nem para fazer um filho serve, diabo do sem-préstimo? 

- Mas não me hás de levar nada de casa! Isso te juro eu biraia! 

- Ah, descanse! que não levarei nada do que é seu, nem preciso! 

- Põe essa pedra no chão! 

- Um corno! Eu arrumo-te na cabeça se te chegas pra cá! 

- Sim, sim, sim, contanto que te musques por uma vez! 

- Pois então despache o beco!

   Ele virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça pendida, as mãos nas algibeiras das calças, aparentando agora um soberano desprezo pelo que se passava.
   Só então foi que ela se lembrou do coelho.

- Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando direção contrária à do marido.

   Este fora ai direito ao cortiço narrar, a quem quisesse ouvir, o que se acabava de dar. O escândalo assanhou a estalagem inteira, como um jato de água quente sobre um formigueiro. “Ora, aquilo tinha de acontecer mais hoje mais amanhã! - Um belo dia a casa vinha abaixo! - A Leocádia parecia não desejar senão isso mesmo!” Mas ninguém atinava com quem diabo pilhara o Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hipóteses; lembrando-se nomes e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfatório. O Albino tentou logo arranjar a reconciliação do casal, jurando que o Bruno estava enganado com certeza e que vira mal. “Leocádia era uma excelente rapariga, incapaz de tamanha safadagem!” O ferreiro tapou-lhe a boca com uma bolacha, e ninguém mais se meteu a congraçá-los. Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava pela janela cá para fora tudo o que ia encontrando pertencente à mulher. Uma cadeira fez-se pedaços contra as pedras, depois veio um candeeiro de querosene, uma trouxa de roupas, saias e casaquinhos de chita, caixas de chapéus cheias de trapos, uma gaiola de pássaros, uma chaleira; e tudo era arremessado com fúria ao meio da área, entre o silêncio comovido dos que assistiam ao despejo. Um chim, que entrara para vender camarões e parara distraído perto da janela do ferreiro, levou na cabeça com uma bilha da Bahia e berrava como criança que acaba de ser esbordoada. A Machona, que não podia ouvir ninguém gritar mais alto do que ela, caiu-lhe em cima aos murros e o pôs fora do portão com tremenda descompostura. “Era o que faltava que viesse também aquele salamaleque do inferno para azoinar uma criatura mais do que já estava!” Dona Isabel, com as mãos cruzadas sobre o ventre, tinha para aquela destruição um profundo olhar de lástima. Augusta meneava a cabeça tristemente sem conceber como havia mulheres que procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indiferente, não interrompera sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de mãos nas cadeiras, a sala pelo meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a sanha daquele marido, tão brutal como o dela o fora.

- Sempre os mesmos pedaços de asno!... comentava franzindo o nariz. Se a tola da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ela não toma a sério a borracheira do casamento, dão por paus e por pedras, como esta besta! Uma súcia, todos eles!

   Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana queixava-se de que lhe respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa ocasião justamente, um saco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o seu conteúdo, pintalgando de pontos negros os coradouros. Fez-se logo um alarido entre as lavadeiras. “Aquilo não tinha jeito, que diabo! Armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?!... Sebo! que os mais não estavam dispostos a suportar as fúrias de cada um!
   Quem parira Mateus que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leocádia se fosse espojar no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar daquele modo o trabalho da gente, ninguém mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!” Pombinha chegara à porta do número 15, dando fé do barulho, com uma costura na mão, e Nenen, toda afogueada do ferro de engomar, perguntava, com um frouxo riso, se o Bruno ia reformar a mobília da casa. A Rita fingia não ligar importância ao fato e continuava a lavar à sua tina. “Não faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que aguentassem! Ela estava bem livre de sofrer uma daquelas!” O velho Libório chegara-se para ver se, no meio da confusão, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do lugar em que se achava:

- Sai daí, safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pele do rabo!

   Um irmão do santíssimo entrara na estalagem, com a sua capa encarnada, a sua vara de prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro, e parara em meio do pátio, suplicando muito fanhoso: “Uma esmola para a cera do Sacramento!” As mulheres abandonaram por um instante as tinas e foram beijar devotamente a colombina imagem do Espírito Santo. Pingaram na salva moedinhas de vintém.
   Todavia, o Bruno acabava de despejar o que era da mulher e saia de novo de casa, dando uma volta feroz à fechadura. Atravessou por entre o murmurante grupo dos curiosos que permaneciam defronte de sua porta, mudo, com a cara fechada, jogando os braços, como quem, apesar de ter feito muito, não satisfizera ainda completamente a sua cólera.
   Leocádia apareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu, partido e inutilizado, apoderou-se de fúria e avançou sobre a porta, que o marido acabava de fechar, arremetendo com as nádegas contra as duas folhas, que cederam logo, indo ela cair lá dentro de barriga para cima.
   Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fora e, escancarando a janela com arremesso, começou por sua vez a arrasar e a destruir tudo que ainda encontrara em casa.
   Então principiou a verdadeira devastação. E a cada objeto que ela varria para o pátio, gritava sempre: “Upa! Toma, diabo!”

- Aí vai o relógio! Upa! Toma, diabo!

   E o relógio espatifou-se na calçada.

- Aí vai o alguidar! 

- Aí vai o jarro! 

- Aí vão os copos! 

- O cabide! 

- O garrafão! 

- O bacio!   

   Um riso geral, comunicativo, absoluto, abafava o baralho da louça quebrando-se contra as pedras. E Leocádia já não precisava acompanhar os objetos com a sua frase de imprecação, porque cada um deles era recebido cá fora com um coro que berrava:

- Upa! Toma, diabo!

   E a limpeza prosseguia. João Romão acudiu de carreira, mas ninguém se incomodou com a presença dele. Já defronte da porta do Bruno havia uma montanha de cacos acumulados; e o destroço continuava ainda, quando o ferreiro reapareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com um raio de roda de carro na mão direita.
   Os circunstantes o seguiram, atropeladamente, num clamor.

- Não dá! 

- Não pode! 

- Prende! 

- Não deixa bater! 

- Larga o pau! 

- Segura! 

- Aguenta! 

- Cerca! 

- Toma o porrete!

   E Leocádia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povaréu desarmara num fecha-fecha.

- Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aproveitando a confusão, haviam já ferrado um pontapé por detrás.

   O Alexandre, que vinha chegando do serviço nesse momento, apressou-se a correr para o lugar do conflito e cheio de autoridade intimou o Bruno a que se contivesse e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a estação no mesmo instante.

- Pois você não vê esta galinha, que apanhei hoje com a boca na botija, não me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!... interrogou o Bruno, espumando de raiva e quase sem fôlego para falar. 

- Porque você pôs em cacos o que é meu! gritou Leocádia. 

- Está bom! está bom! disse o polícia, procurando dar à voz inflexões autoritárias e reconciliadoras. Fale cada um por sua vez! Seu marido... acrescentou ele, voltando-se para a acusada, diz que a senhora...

- É mentira! interrompeu ela. 

- Mentira?! É boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima! 

- Quem era? - Quem foi? - Quem era o homem? interrogaram todos a um só tempo. 

- Quem era ele, no fim de contas? inquiriu também Alexandre. 

- Não lhe pude ver as fuças!... respondeu o ferreiro; mas, se o apanho, arrancava-lhe o sangue pelas costas!

   Houve um coro de gargalhadas.

- E mentira! repetiu Leocádia, agora sucumbida por uma reação de lágrimas. Há muito tempo que este malvado anda caçando pretexto para romper comigo e, como eu não lhe dou...

   Uma explosão de soluços a interrompeu.
   Desta vez não riram, mas um bichanar de cochichos formou-se em torno do seu pranto.

- Agora... continuou ela, enxugando os olhos na costa da mão; não sei o que será de mim, porque este homem, além de tudo, escangalhou-me até o que eu trouxe quando me casei com ele!... 

- Não disseste que já tinhas ai dentro com que ganhar a vida?... É andar! 

- É falso! soluçou Leocádia. 

- Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle; está tudo terminado! Seu marido vai recebê-la em boa paz... 

- Eu?! esfuziou o ferreiro. Você não me conhece! 

- Nem eu queria! retorquiu a mulher. Prefiro meter-me com um cavalo de tílburi a ter de aturar este bruto!

   E, catando em casa alguma coisa sua que ainda havia, e recolhendo do montão dos cacos o que lhe pareceu aproveitável, fez de tudo uma grande trouxa e foi chamar um carregador.
   A Rita saiu-lhe ao encontro.

- Para onde vais tu?... perguntou-lhe em voz baixa. 

- Não sei, filha, por ai!... Hei de encontrar um furo!... Os cães não vivem?... 

- Espere um instante... disse a mulata. Olha, empurra a trouxa ai para dentro do meu cômodo. - E correndo ao Albino, que lavava: - Passa-me no sabão aquela roupa, ouviste? E, quando Firmo acordar, diz-lhe que precisei ir a rua.

   Depois, deu um pulo ao quarto, mudou a saia molhada, atirou nos ombros o seu xale de crochê e, batendo nas costas da companheira, segredou-lhe:

- Anda cá comigo! não ficarás à toa!

   E as duas saíram, ambas sacudidas, deixando atrás de si suspensa a curiosidade do cortiço inteiro.

Continua página 47...
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Leia também:

O Cortiço - VIII: Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado
O Cortiço - IX:  Passaram-se semanas
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.

Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.

Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.

A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.

Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.

Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

'Pennies from Heaven' 1950

Lester Young



'Pennies from Heaven' 1950



Uma rara apresentação de Lester Young de "Mean To Me" em "Art Ford's Jazz Party", 25 de setembro de 1958. Transmitida pela Danmarks Radio.


Lester Young 
- Mean To Me (1958)




Count Basie e Lester Young
"Jumpin' at the Woodside" (1938) 



Gravação Decca de 1938 de Count Basie de "Jumpin' at the Woodside", com solos de Basie, piano; Earle Warren, saxofone alto; Buck Clayton, trompete; Lester Young, sax tenor; e Herschel Evans, clarinete.


Lester Young with the Oscar Peterson Trio 
- Full Album





“The Sound Of Jazz” 12/8/1957 


Papa Jo Jones, 
Osie Johnson, 
Billie Holiday, 
Count Basie, 
Lester Young

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Lester Willis Young (Woodville, Mississippi, 27 de agosto de 1909 - Nova Iorque, 15 de março de 1959) foi um saxofonista-tenor norte-americano.

Lester, cuja alcunha era "Prez", cresceu numa família família de músicos de relevo. O seu irmão, Lee Young foi um baterista notável e vários dos outros membros da família eram músicos profissionais. A família mudou-se para Nova Orleães, Luisiana, quando Lester era ainda uma criança. O pai ensinou-lhe a tocar trompete, violino e bateria além de saxofone. Saiu da banda familiar em 1927 porque se recusou a ir em tournée pelo Sul dos Estados Unidos, onde as leis de Jim Crow estavam em vigor.

Tornou-se proeminente nos anos 30, tocando num estilo relaxado que contrastava vivamente com a abordagem agressiva de Coleman Hawkins, o saxofonista-tenor mais importante da época. Com efeito, quando Young saiu da banda de Count Basie para substituir Hawkins na banda de Fletcher Henderson, o seu estilo aborreceu tanto os fãs de Henderson que rapidamente saiu para ir tocar com Andy Kirk. Mais tarde regressou à banda de Basie.

Visto que o jazz já tinha um "rei do swing" com Benny Goodman, um "duque" com Duke Ellington, e um "conde" com Count Basie, Lester Young ficou conhecido como Pres (diminutivo de "presidente"), nome que lhe foi dado por Billie Holiday. Ele devolveu o favor chamando à cantora "Lady Day".

Young virou-se para o bebop nos anos 40. No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial começou a sofrer de problemas mentais e alcoolismo, em geral atribuídos a maus-tratos racistas que teria recebido durante a guerra no exército americano, onde era frequente não ser autorizado a tocar o seu saxofone. Apesar disso, manteve uma grande qualidade na interpretação. É geralmente considerado um dos maiores músicos de jazz de todos os tempos.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (9c)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

9

continuando...

— Você às vezes é muito burra, Jean Louise. Mas acho que não tem muito jeito mesmo.

— O que você quer dizer com isso? 

— Se tio Atticus deixa você andar por aí com qualquer um, é problema dele, como diz vovó, não é culpa sua. E acho que também não tem culpa se tio Atticus adora pretos, mas saiba que ele envergonha a família inteira… 

— Francis, do que diabos você está falando? 

— É isso mesmo. Vovó diz que já não basta vocês serem criados soltos por aí, agora ele também virou amigos dos pretos e nunca mais vamos poder andar pelas ruas de Maycomb. Ele está simplesmente arruinando a nossa família… 

Francis se levantou e passou rápido pela passarela em direção à velha cozinha. Quando estava a uma boa distância, berrou:

— Ele adora preto. 

— Não é nada disso! Não sei do que você está falando, mas é melhor parar com isso já! — rosnei.  

Levantei da escada num pulo e corri pela passarela. Foi fácil pegar Francis. Mandei-o retirar o que tinha dito imediatamente.
Mas ele se soltou e foi se esconder na cozinha.

— Adora preto! — berrou. 

Quando a gente quer pegar uma presa, é melhor não ter pressa. É só ficar em silêncio que a presa fica curiosa e, tão certo quanto dois e dois são quatro, sai do esconderijo. Francis surgiu na porta da cozinha. 

— Ainda está com raiva, Jean Louise? — perguntou, hesitante. 

— Um pouco — respondi.  

Francis foi até a passarela.

— Vai retirar o que disse, Fran… Francis?

Mas me precipitei. Francis voltou correndo para a cozinha e tive de voltar para a escada. Eu podia esperar, pacientemente. Estava lá havia uns cinco minutos quando tia Alexandra perguntou:

— Onde está Francis? 

— Na cozinha. 

— Ele sabe que não é para brincar lá. 

Francis veio até a porta e gritou:

— Vovó, ela me obrigou a entrar aqui e não me deixa sair! 

— Que história é essa, Jean Louise? 

Olhei para tia Alexandra.

— Não obriguei ele a ir até lá, muito menos estou prendendo ele na cozinha. 

— Está sim, ela não me deixa sair! — berrou Francis. 

— Vocês estavam brigando? 

— A Jean Louise ficou com raiva de mim, vovó — disse Francis. 

— Francis, saia já daí! Jean Louise, se eu souber que você aprontou mais alguma, conto para o seu pai. Eu ouvi você dizer “droga” agora mesmo? 

— Não. 

— Pensei que tivesse ouvido. Espero que isso não se repita. 

Tia Alexandra era do tipo que escutava atrás das portas. Assim que ela foi embora, Francis apareceu todo orgulhoso e sorridente.

— Não mexa comigo — ele disse. 

Foi para o quintal e começou a chutar a grama; de vez em quando, se virava para mim e sorria. Jem apareceu na varanda, olhou para nós e foi embora. Francis subiu no pé de mimosa, desceu, enfiou as mãos nos bolsos e andou pelo quintal.

— Ah! — exclamou. 

Perguntei quem ele pensava que era, o tio Jack? Francis retrucou que a avó tinha mandado eu ficar quieta e não mexer com ele. 

— Não estou mexendo com você — eu disse.

Francis me olhou atentamente, concluiu que eu estava derrotada e cantarolou baixinho: 

— Adora preto…

Dessa vez, dei um soco com toda a força na boca dele. Com a mão esquerda inutilizada, comecei a socar com a direita, mas tive de parar. Tio Jimmy segurou meus braços e disse: 

— Chega!

Tia Alexandra acudiu Francis, enxugando as lágrimas dele com um lenço, passando a mão nos cabelos, fazendo carinho no rosto dele. Quando Francis começou a chorar, Atticus, Jem e tio Jimmy vieram para a varanda dos fundos. 

— Quem começou? — perguntou tio Jack.

Francis e eu apontamos um para o outro. 

— Vovó, ela me chamou de prostituta e me atacou! — berrou Francis. 

— É verdade, Scout? — perguntou tio Jack. 

— Acho que sim.  

Tio Jack olhou para mim com uma cara igual à de tia Alexandra.

— Lembra que eu disse que, se você usasse palavras assim, ia se meter em confusão? Eu não disse? 

— Disse, mas… 

— Pois se meteu em confusão. Não saia daí. 

Eu estava tentando decidir se obedecia ou corria, mas demorei muito pensando: quando finalmente me virei para correr, tio Jack foi mais rápido. De repente, me vi olhando para uma formiguinha na grama carregando uma migalha de pão.

— Nunca mais falo com você! Detesto você, odeio você, quero que morra amanhã!

Minhas ameaças pareceram incentivar tio Jack. Busquei consolo em Atticus, mas ele disse que eu tinha provocado e que estava mais do que na hora de irmos para casa. Entrei no banco de trás do carro sem me despedir de ninguém e, quando chegamos em casa, corri para o meu quarto e bati a porta. Jem tentou me consolar, mas não deixei. 
Ao conferir os danos, vi que tinha só umas sete ou oito marcas nos braços e estava pensando na relatividade das coisas quando alguém bateu à porta. Perguntei quem era. Tio Jack.  

— Vá embora!

Tio Jack disse que, se eu falasse daquela maneira, apanhava de novo. Então, fiquei quieta. Quando ele entrou no quarto, fui para um canto e me virei de costas. 

— Scout, você ainda está com raiva de mim? 

— Saia, por favor. 

— Não pensei que fosse ficar zangada comigo — ele disse. — Estou desapontado, você sabe que mereceu. 

— Não fiz nada. 

— Querida, você não pode sair por aí xingando as pessoas… 

— Você foi injusto — eu disse. — Injusto.  

continua página 065...
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Leia também:

O Sol é para todos: 1ª Parte (9c)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.