sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Conto: Macacos

Clarice Lispector 


chovendo por aqui, ainda sofremos com as chuvas, mas é só sentar, ouvir as palavras da Clarice e pensamos na vida triste sem chuvas, nas queimadas assassinas que semeiam a desesperança... essas pessoas perversas precisam das clarices acariciando suas almas, bem-vinda chuva


Releituras - Tema





     Da primeira vez que tivemos em casa um mico foi perto do Ano-Novo. Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara - e foi quando, muda de perplexidade, vi o presente entrar em casa, já comendo banana, já examinando tudo com grande rapidez e um longo rabo. Mais parecia um macacão ainda não crescido, suas potencialidades eram tremendas. Subia pela roupa estendida na corda, de onde dava gritos de marinheiro, e jogava cascas de banana onde caíssem. E eu exausta. Quando me esquecia e entrava distraída na área de serviço, o grande sobressalto: aquele homem alegre ali. Meu menino menor sabia, antes de eu saber, que eu me desfaria do gorila: "E se eu prometer que um dia o macaco vai adoecer e morrer, você deixa ele ficar? e se você soubesse que de qualquer jeito ele um dia vai cair da janela e morrer lá embaixo?" Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos de morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano-Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.
     Um ano depois, acabava eu de ter uma alegria, quando ali em Copacabana vi o agrupamento. Um homem vendia macaquinhos. Pensei nos meninos, nas alegrias que eles me davam de graça, sem nada a ver com as preocupações que também de graça me davam, imaginei uma cadeia de alegria: "Quem receber esta, que a passe a outro", e outro para outro, como o frêmito num rastro de pólvora. E ali mesmo comprei a que se chamaria Lisette.
     Quase cabia na mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra. De imigrante também eram os olhos redondos.
     Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arredondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante. Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.
     No terceiro dia estávamos na área de serviço admirando Lisette e o modo como ela era nossa. "Um pouco suave demais", pensei com saudade do meu gorila. E de repente foi meu coração respondendo com muita dureza: "Mas isso não é doçura. Isto é morte". A secura da comunicação deixou-me quieta. Depois eu disse aos meninos: "Lisette está morrendo". Olhando-a, percebi então até que ponto de amor já tínhamos ido. Enrolei Lisette num guardanapo, fui com os meninos para o primeiro pronto-socorro, onde o médico não podia atender porque operava de urgência um cachorro. Outro táxi. - Lisette pensa que está passeando, mamãe - outro hospital. Lá deram-lhe oxigênio.
      E com o sopro de vida, subitamente revelou-se uma Lisette que desconhecíamos. De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata e ordinária uma certa altivez irônica; um pouco mais de oxigênio, e deu-lhe uma vontade de falar que ela mal aguentava ser macaca; era, e muito teria a contar. Breve, porém, sucumbia de novo, exausta. Mais oxigênio e dessa vez uma injeção de soro a cuja picada ela reagiu com um tapinha colérico, de pulseira tilintando. O enfermeiro sorriu: "Lisette, meu bem, sossega!"
      O diagnóstico: não ia viver, a menos que tivesse oxigênio à mão e, mesmo assim, improvável. "Não se compra macaco na rua", censurou-me ele abanando a cabeça, "às vezes já vem doente". Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fizera, como se fosse para casar. Resolvi um instante com os meninos. E disse para o enfermeiro: "O senhor está gostando muito de Lisette. Pois se o senhor deixar ela passar uns dias perto do oxigênio, no que ela ficar boa, ela é sua". Mas ele pensava. "Lisette é bonita!", implorei eu. "É linda", concordou ele pensativo. Depois ele suspirou e disse: "Se eu curar Lisette, ela é sua". Fomos embora, de guardanapo vazio.
      No dia seguinte telefonaram, e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O menor me perguntou: "Você acha que ela morreu de brincos?" Eu disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: "Você parece tanto com Lisette!" "Eu também gosto de você", respondi.
   


Macacos - Clarice Lispector
Imantado de Livros 
entendendo um pouco mais...




Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza

 O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      Florentino Ariza tinha conhecido a rota dos galeões nas cartas de navegar da época, e acreditava haver determinado o lugar do naufrágio. Saíram da baía por entre as duas fortalezas da Boca Chica, e ao fim de quatro horas de navegação entraram nas águas interiores do arquipélago, em cujo fundo de coral podiam ser colhidas com a mão as lagostas adormecidas. O ar era tão leve, e o mar tão sereno e diáfano, que Florentino Ariza se sentiu como se não passasse de seu próprio reflexo na água. Para lá do remanso, a duas horas da ilha maior, estava o lugar do naufrágio.
     Congestionado em sua indumentária fúnebre pelo sol infernal, Florentino Ariza explicou a Euclides que ali devia descer a vinte metros e trazer qualquer coisa que encontrasse no fundo. A água era tão clara que o viu mover-se no fundo, como um tubarão entre os tubarões azuis que se cruzavam com ele sem tocá-lo. Depois o viu desaparecer num matagal de corais, e bem quando achou que ele não podia ter mais ar ouviu a voz às suas costas. Euclides estava parado no fundo, com os braços levantados e água pela cintura. Por isso continuaram buscando lugares mais fundos, sempre para o norte, navegando por cima das arraias lentas, das lulas tímidas, dos roseirais tenebrosos, até que Euclides compreendeu que estavam perdendo tempo.

 — Se não me disser o que quer que eu encontre, não sei como vou encontrá-lo — disse.

     Mas ele não falou. Então Euclides lhe propôs que tirasse a roupa e descesse com ele, ainda que só para ver esse outro céu debaixo do mundo que eram os fundos de corais. Mas Florentino Ariza costumava dizer que Deus tinha feito o mar só para olhá-lo pela janela, e nunca aprendeu a nadar. Pouco depois a tarde nublou, o ar ficou frio e úmido, e escureceu tão depressa que precisaram se guiar pelo farol para encontrar o porto. Antes de entrar na baía, viram passar muito perto o transatlântico da França com todas as luzes acesas, enorme e branco, que ia deixando um rastro de guisado mole e couve-flor fervida.
     Desta forma perderam três domingos, e teriam continuado a perdê-los todos se Florentino Ariza não tivesse resolvido partilhar seu segredo com Euclides. Este modificou então todo o plano da busca, e puseram-se a navegar pelo antigo canal dos galeões, que estava a mais de vinte léguas marítimas a oriente do lugar previsto por Florentino Ariza. Antes de passados dois meses, certa tarde de chuva no mar, Euclides permaneceu muito tempo no fundo, e a canoa tinha derivado tanto que teve que nadar quase meia hora para alcançá-la, já que Florentino Ariza não conseguiu aproximá-la com os remos. Quando por fim pôde abordá-la, tirou da boca e mostrou como triunfo da perseverança dois adereços de mulher.
      O que contou era tão fascinante que Florentino Ariza prometeu a si mesmo aprender a nadar, e afundar até onde pudesse só para comprová-lo com os próprios olhos. Contou que naquele lugar, a apenas dezoito metros de profundidade, havia tantos veleiros antigos deitados entre os bancos de coral que era impossível sequer calcular a quantidade, e estavam disseminados por um espaço tão extenso que eram de perder de vista. Contou que o mais surpreendente era que das tantas carcaças de navios que ainda flutuavam na baía nenhuma estava em tão bom estado quanto as naves submersas. Contou que havia várias caravelas ainda com as velas intactas, e que as naves afundadas eram visíveis no fundo, pois parecia que haviam afundado com seu espaço e seu tempo, de maneira que ali continuavam alumiadas pelo mesmo sol das onze da manhã do sábado 9 de junho em que foram a pique. Contou, afogando-se no próprio ímpeto da sua imaginação, que o mais fácil de distinguir era o galeão San José, cujo nome era visível na popa com letras de ouro, mas que ao mesmo tempo era a nave mais danificada pela artilharia dos ingleses. Contou ter visto dentro um polvo de mais de três séculos de idade, cujos tentáculos saíam pelas seteiras dos canhões, mas havia crescido tanto na sala de refeições de bordo que para libertá-lo só desmantelando a nave. Contou que vira o corpo do comandante com seu uniforme de guerra flutuando de lado dentro do aquário do castelo, e que se não baixara até os porões do tesouro foi porque o ar dos pulmões não dera para tanto. Ali estavam as provas: um brinco com uma esmeralda, e uma medalha da Virgem com seu cordão carcomido pelo salitre.
     Essa foi a primeira menção ao tesouro que Florentino Ariza fez a Fermina Daza numa carta que lhe mandou a Fonseca pouco antes do seu regresso. A história do galeão afundado lhe era familiar, pois a tinha ouvido sendo contada a Lorenzo Daza muitas vezes. Ele perdera tempo e dinheiro tratando de convencer uma companhia de mergulhadores alemães a se associar com ele para resgatarem o tesouro submerso. Teria insistido no empreendimento, se não tivesse sido convencido por vários membros da Academia da História de que a lenda do galeão naufragado era invenção de um certo vice-rei bandoleiro, que para encontrar o navio conseguira dinheiros da Coroa. Em todo o caso, Fermina Daza sabia que o galeão estava a uma profundidade de duzentos metros, onde nenhum ser humano poderia atingi-lo, e não aos vinte metros que dizia Florentino Ariza. Mas estava tão acostumada a seus excessos poéticos que celebrou a aventura do galeão como um dos mais belos. Contudo, ao receber outras cartas com pormenores ainda mais fantásticos, e escritos com tanta seriedade como seus protestos de amor, teve de confessar a Hildebranda seu temor de que o noivo alucinado tivesse perdido o juízo.
      Naqueles dias, Euclides já tinha emergido das águas com tais provas de sua fábula que não se tratava mais de continuar ciscando brincos e anéis semeados entre os corais, e sim de capitalizar uma empresa grande para recuperar a meia centena de naves com a fortuna babilônica que continham. Aconteceu então o que mais cedo ou mais tarde aconteceria, e foi que Florentino Ariza pediu ajuda à mãe para levar a bom porto sua aventura. A ela bastou-lhe morder o metal das joias, e olhar contra a luz as pedras de vidro, para concluir que alguém andava abusando da boa fé do filho. Euclides jurou de joelhos a Florentino Ariza que não havia nada de escuso em sua atividade, mas não deu nenhum ar de sua graça domingo seguinte no porto dos pescadores, nem nunca mais em nenhuma parte.
     A única coisa que aquele descalabro rendeu a Florentino Ariza foi o refúgio de amor do farol. Ali chegara na canoa de Euclides, uma noite que os surpreendeu a tempestade em mar aberto, e a partir de então costumava ir lá à tarde conversar com o faroleiro sobre as incontáveis maravilhas da terra e da água que o faroleiro sabia. Esse foi o início de uma amizade que sobreviveu às muitas mudanças do mundo. Florentino Ariza aprendeu a alimentar a luz, primeiro com feixes de lenha e depois com botijões de óleo, antes que nos chegasse a energia elétrica. Aprendeu a dirigi-la e a aumentá-la com espelhos, e nas várias ocasiões em que o faroleiro não pôde fazê-lo, ficou ali, vigiando da torre as noites do mar. Aprendeu a conhecer os navios pelas suas vozes, pelo tamanho de suas luzes no horizonte, e a perceber que algo deles lhe chegava de volta nos relâmpagos do farol.
     Durante o dia o prazer era outro, sobretudo aos domingos. No bairro dos Vice Reis, onde moravam os ricos da cidade velha, as praias das mulheres estavam separadas das dos homens por um muro de argamassa: uma à direita, outra à esquerda do farol. O faroleiro havia instalado uma luneta pela qual se podia contemplar, mediante o pagamento de um centavo, a praia das mulheres. Sem se saberem observadas, as senhoritas da sociedade se mostravam o melhor que podiam dentro de suas roupas de banho de largos panos, mais os sapatinhos de borracha e os chapéus, tudo isso ocultando os corpos quase tanto quanto a roupa de rua, só que de forma menos atraente. Das margens as mães as vigiavam, sentadas ao sol de rachar em cadeiras de balanço de vime com os mesmos vestidos, os mesmos chapéus de plumas, as mesmas sombrinhas de renda com que tinham ido à missa solene, por temor de que os homens das praias vizinhas as seduzissem por baixo d'água. A realidade era que através da luneta não se podia ver mais nada, nem mais excitante do que se podia ver na rua, mas eram muitos os clientes que acudiam cada domingo para se disputarem o telescópio no puro deleite de provar os frutos insípidos do quintal alheio.
      Florentino Ariza era um deles, mais por tédio do que por prazer, mas não foi esse atrativo adicional que o tornou tão bom amigo do faroleiro. O motivo real foi que a partir do menosprezo de Fermina Daza, quando ele contraiu a febre dos amores dispersos na ânsia de substituí-la, só mesmo no farol viveu horas felizes e encontrou consolo para suas desditas. De tal forma que durante anos procurou convencer sua mãe, e mais tarde seu tio Leão XII, a ajudá-lo a comprar o farol. É que os faróis do Caribe eram então propriedade privada, e seus donos cobravam o direito de passagem até o porto segundo o tamanho dos navios. Florentino Ariza achava que era essa a única maneira honesta de fazer um bom negócio com a poesia, mas nem a mãe nem o tio achavam o mesmo, e quando ele pôde fazê-lo com recursos próprios os faróis já tinham passado à propriedade do estado.
     Nenhuma dessas ilusões foi vã, não obstante. A fábula do galeão, e em seguida a novidade do farol, foram aliviando para ele a ausência de Fermina Daza, e quando ele menos o pressentia chegou a notícia do regresso. Com efeito, depois de uma estada prolongada em Riohacha, Lorenzo Daza tinha resolvido voltar. Não era a época mais benigna do mar, devido aos alíseos de dezembro, e a goleta histórica, a única que se arriscava à travessia, podia amanhecer de volta ao porto de origem, arrastada por um vento contrário. Assim foi. Fermina Daza passara uma noite de agonia, vomitando bílis, amarrada ao beliche de um camarote que parecia uma privada de botequim, não só pela estreiteza opressiva como pela pestilência e o calor. O balanço era tão forte que várias vezes teve a impressão de que iam arrebentar as correias da cama, do convés lhe chegavam gritos doloridos que pareciam de naufrágio, e os roncos de tigre do pai no beliche contíguo eram um ingrediente a mais do terror. Pela primeira vez em quase três anos passou uma noite em claro sem pensar um instante em Florentino Ariza, enquanto que ele permaneceu insone na rede da loja de trás contando um a um os minutos eternos que faltavam para que ela voltasse. Ao amanhecer, o vento cessou de súbito e o mar se tornou plácido, e Fermina Daza percebeu que dormira apesar dos estragos do enjoo, porque a despertou o estrépito das correntes da âncora. Então se livrou das correias e olhou pela escotilha na ilusão de descobrir Florentino Ariza no tumulto do porto, mas o que viu foram os armazéns da alfândega entre as palmeiras douradas pelos primeiros sóis, e o molhe de barrotes apodrecidos de Riohacha, de onde a goleta zarpara a noite anterior.
     O resto do dia foi como uma alucinação, na mesma casa em que tinha estado até a véspera, recebendo as mesmas visitas que dela se haviam despedido, falando as mesmas coisas, e aturdida pela impressão de estar vivendo de novo um pedaço de vida já vivida. Era uma repetição tão fiel que Fermina Daza estremecia à simples idéia de que assim também tinha sido com a viagem da goleta, cuja simples lembrança lhe causava pavor. No entanto, a única alternativa de voltar para casa eram duas semanas em lombo de mula pelas cornijas da serra, e em condições ainda mais perigosas que da primeira vez, pois uma nova guerra civil iniciada no estado andino do Cauca já se ramificava pelas províncias do Caribe. Por isso, às oito da noite foi acompanhada outra vez até o porto pelo mesmo cortejo de parentes barulhentos, com as mesmas lágrimas de adeus e os mesmos volumes de pilhas de presentes de última hora que não cabiam nos camarotes. No momento de zarpar, os homens da família se despediram da goleta com uma salva de disparos para o ar, e Lorenzo Daza retribuiu do convés com os cinco tiros do seu revólver. A ansiedade de Fermina Daza se dissipou em breve, porque o vento foi favorável a noite inteira, e o mar tinha um cheiro de flores que a ajudou a dormir bem sem as correias de segurança. Sonhou que tornava a ver Florentino Ariza, e este despiu a cara que ela sempre tinha visto, porque na realidade era uma máscara, mas a cara real era idêntica. Levantou-se muito cedo, intrigada pelo enigma do sonho, e encontrou o pai tomando café com conhaque na cantina do capitão, com o olho torcido pelo álcool, mas sem o menor indício de preocupação pelo regresso.
      Estavam entrando no porto. A goleta deslizava em silêncio pelo labirinto de veleiros ancorados na enseada do mercado público, cuja pestilência se sentia a léguas de distância no mar, e a madrugada estava saturada de um chuvisco firme que em breve despencou num aguaceiro dos grandes. A postos no balcão da telegrafia, Florentino Ariza reconheceu a goleta quando atravessava a baía das Animas com as velas desanimadas pela chuva e ancorou diante do embarcadouro do mercado. Tinha esperado na véspera até as onze da manhã, quando soube por um telegrama casual do atraso da goleta devido aos ventos contrários, e voltara a esperar aquele dia desde as quatro da madrugada. Continuou esperando sem arredar a vista das chalupas que conduziam até a terra os escassos passageiros que resolviam desembarcar apesar da tempestade. Em sua maioria eles tinham que abandonar na metade do caminho a chalupa encalhada, e chegavam ao embarcadouro chapinhando no lodaçal. Às oito, depois de esperar em vão que estiasse, um carregador negro com água pela cintura recebeu Fermina Daza na amurada da goleta e a levou nos braços até a margem, mas estava tão ensopada que Florentino Ariza não conseguiu reconhecê-la.
     Ela própria não estava consciente do quanto amadurecera na viagem, até que entrou na casa fechada e empreendeu de pronto a tarefa heroica de torná-la de novo habitável, com a ajuda de Gala Placídia, a criada preta, que voltou à sua antiga senzala logo que lhe avisaram do regresso. Fermina Daza não era mais a filha única, ao mesmo tempo mimada e tiranizada pelo pai, e sim a dona e senhora de um império de poeira e teias de aranha que só podia ser recuperado graças à força de um amor invencível. Não se acovardou, pois sentia em si um sopro de levitação que lhe daria a força de mover o mundo. Na própria noite da volta, quando tomavam chocolate com bolinhos de queijo na grande mesa da cozinha, seu pai lhe delegou os poderes de governo da casa, e o fez com o formalismo de um ato sacramental.

 — Entrego a você as chaves da sua própria vida — disse.

continua na página 076...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

Edgar Allan Poe - Contos: A Ilha da Fada

Edgar Allan Poe - Contos


A Ilha da Fada
Título original: The Island of the Fay
Publicado em 1841


      A música — diz Marmontel nesses Contos Morais que os nossos tradutores persistem em chamar Moral Tales, como que a zombar do seu espírito — é o único dom que provoca prazer por si só; todos os outros exigem testemunhas. Ele confunde aqui o prazer de ouvir sons agradáveis com a faculdade de os criar. Do mesmo modo que qualquer outro dom, a música não é capaz de dar um gozo completo se não houver uma segunda pessoa para apreciar a sua execução. E a faculdade de produzir efeitos que se gozem plenamente na solidão não lhe é particular; ela é comum a todos os outros dons. A ideia, que o contista não conseguiu conceber claramente, ou que, na sua expressão, sacrificou ao amor nacional do conceito é, sem dúvida, a ideia muito defensável de que a música do mais elevado estilo é a mais sentida quando estamos absolutamente sós. A proposição, sob esta forma, será admitida à primeira vista por aqueles que amam a lira por amor da lira e pelas suas vantagens espirituais.
      Mas há um prazer que está sempre ao alcance da humanidade decaída — e é talvez o único —, que deve ainda mais que a música à sensação acessória do isolamento. Refiro-me à felicidade que se experimenta na contemplação de um quadro da natureza.
     Na verdade, o homem que pretende contemplar de frente a glória de Deus na Terra deve contemplar essa glória na solidão. Para mim, pelo menos, a presença, não apenas da vida humana, mas da vida sob qualquer outra forma como a da dos seres verdejantes que crescem no solo e não têm voz, é um opróbrio para a paisagem; ela está em guerra com o génio do cenário. Sim, na verdade, eu gosto de contemplar os vales sombrios, as rochas pardacentas, as águas que sorriem silenciosamente, as florestas que suspiram em sono ansioso, e as montanhas orgulhosas e vigilantes que olham tudo do alto. Gosto de contemplar essas coisas pelo que elas são: membros gigantescos de um imenso todo, animado e sensível — um todo cujo forma (a da esfera) é a mais perfeita e a mais compreensível de todas as formas; cuja rota se faz na companhia de outros planetas; cuja serva dócil é a Lua; cujo senhor mediatizado é o Sol; cuja vida é a eternidade; cujo pensamento é o de um Deus, a fruição do qual é conhecimento; cujos destinos se perdem na imensidade; para quem nós somos uma noção correspondente à noção que temos dos animálculos que infestam o cérebro —, um ser que nós olhamos, consequentemente, como inanimado e puramente material — apreciação muito semelhante à que esses animálculos devem fazer de nós.
     Os nossos telescópios e as nossas investigações matemáticas confirmam nos totalmente — não obstante a hipocrisia da padralhada mais ignorante — que o espaço, e, por consequência, o volume, é uma consideração importante aos olhos do Omnipotente. Os círculos em que se movem as estrelas são os mais apropriados à evolução, sem conflito, do maior número de corpo» possível. As formas desses corpos são exatamente escolhidas para conterem, sob uma dada superfície, a maior quantidade possível de matéria; e as próprias superfícies estão dispostas de forma a receberem uma população mais numerosa da que poderiam conter se essas mesmas superfícies estivessem dispostas de outro modo. E do facto de o espaço ser infinito nenhum argumento se pode tirar contra esta ideia: que o volume tem um valor aos olhos de Deus, pois para preencher esse espaço pode haver um infinito de matéria. E como vemos claramente que dotar a matéria de vitalidade é um princípio — e mesmo, até onde nos é dado julgar, o princípio capital nas operações da Divindade —, será lógico supô-lo confinado na ordem da pequenez, onde ele se nos revela diariamente, e excluí-lo das regiões do grandioso? Como nós descobrimos círculos nos círculos, sempre e sem fim — todos, porém, evoluindo à volta de um centro infinitamente distante, que é a Divindade —, não poderemos supor, analogicamente e da mesma maneira, a vida na vida, a menor na maior, e todas; no Espírito divino? Em suma: nós erramos nesciamente por fatuidade, imaginando que o homem, nos seus destinos temporais ou futuros, é, perante o Universo, muito mais importante que o vasto lodo do vale que ele cultiva e que despreza, e a que recusa uma alma pela pouco profunda razão de que não a vê atuar.
     Estas ideias e outras análogas deram sempre às minhas meditações, no meio das montanhas e das florestas, junto dos rios e do oceano, uma cambiante que as pessoas vulgares não deixarão de apodar de fantástica. Os meus passeios errantes no meio de quadros deste género têm sido numerosos, singularmente curiosos, muitas vezes solitários; e o interesse com que eu vagueei por mais de um vale profundo e sombrio, ou contemplei o céu de muitos lagos límpidos, era grandemente aumentado pela ideia de que vagueava só, de que contemplava sozinho. Um francês tagarela, aludindo à bem conhecida obra de Zimmermann, disse: A solidão é uma bela coisa, mas é necessário alguém para nos dizer que a solidão é uma bela coisa. Como epigrama, é perfeito. Mas esse «é necessário»... Tal necessidade é coisa que não existe.
     Foi numa das minhas viagens solitárias, numa região longínqua — montanhas complicadas por montanhas, meandros de rios melancólicos, lagos sombrios adormecidos —, que se me deparou certo regatozito onde havia uma ilha. Cheguei ali subitamente num mês de junho, o mês da folhagem, e deitei-me no chão, sob os ramos de um arbusto odorífero que me era desconhecido, no intuito de repousar e, ao mesmo tempo, contemplar o quadro. Reconheci que só daquela maneira o poderia ver bem, tal era o seu ângulo de visão.
     De todos os lados, exceto a oeste, onde o sol mergulharia dentro em pouco, se erguiam as muralhas verdejantes da floresta. O riozinho, que fazia um cotovelo brusco, e assim se furtava subitamente à vista, parecia não conseguir escapar da sua prisão; dir-se-ia, porém, que ele era absorvido para leste pela densa verdura das árvores, e do lado oposto (assim me parecia, deitado e com o olhar voltado para o céu) caía no vale, sem transição e sem ruído, uma cascata maravilhosa de ouro e púrpura, provinda das fontes ocidentais do céu.
      Pouco mais ou menos ao centro da estreita perspectiva que o meu olhar visionário abrangia repousava no meio do solitário regato uma pequena ilha circular, magnificamente recoberta de tons verdejantes.

A margem e a sua imagem de tal modo se fundiam 
Que o todo parecia suspenso no ar.

     A água transparente assemelhava-se tanto a um espelho que era quase impossível adivinhar em que ponto do talude de esmeralda começava o seu domínio de cristal.
     A posição em que me encontrava permitia que eu abrangesse com um só olhar as duas extremidades, leste e este, da ilhota; e nos seus aspetos observei uma diferença singularmente nítida.
     A ocidente era tudo um radioso harém de belezas de jardim. Abrasado e avermelhado pelo olhar oblíquo do sol, sorria extaticamente em todas as flores. A relva era curta, elástica, odorífera e entremeada de belas cores. As árvores eram flexíveis, alegres, eretas, esbeltas e graciosas, orientais pela forma e pela folhagem, de casca polida, luzidia e versicolor. Dir-se-ia que circulava por toda a parte um sentimento profundo de vida e de alegria; e, embora do céu não soprasse a menor brisa, tudo, porém, parecia agitado por bandos de borboletas que se poderiam tomar, nas suas fugas graciosas em ziguezague, por tulipas aladas.
      O outro lado, o lado leste da ilha, estava submerso na mais negra sombra. Pairava sobre todas as coisas uma tristeza fúnebre, mas cheia de calma e beleza. As árvores tinham uma cor escura, as suas formas e as suas atitudes eram lúgubres; torciam-se como espectros tristes e solenes, evocando ideias de irremediável desgosto e morte prematura. A relva revestia-se da cor carregada do cipreste, e das suas hastes pendiam languidamente as pontas. Erguiam-se, dispersos, vários montículos disformes, baixos, estreitos, não muito compridos, com o aspecto de túmulos, mas que o não eram, embora acima deles e à sua volta medrassem a arruda e o alecrim. A sombra das árvores tombava pesadamente na água e parecia ali sepultar-se, impregnando de trevas as profundezas do elemento. Persuadia-me de que cada sombra, à medida que o Sol descia, se separava contrariada do tronco que lhe dera origem e era absorvida pelo regato, enquanto outras sombras nasciam a cada instante das árvores, tomando o lugar que pertencera às suas defuntas irmãs mais velhas.
      Esta ideia, desde que se me apoderou da imaginação, excitou-a fortemente e perdi-me logo em devaneios..

 « Se houve jamais ilha encantada — dizia eu para comigo —, é esta, com toda a certeza. É o ponto de encontro de algumas graciosas Fadas que sobreviveram à destruição da sua raça. E estes verdes túmulos serão os delas? Findarão elas a sua doce vida da mesma maneira que a humanidade? Ou não será, pelo contrário, a sua morte uma espécie de melancólico definhar? Entregarão elas a sua existência a Deus, pouco a pouco, exaurindo lentamente a sua substância até à morte, do mesmo modo que as árvores entregam as suas sombras uma após outra? Aquilo que a árvore que se exaure é para a água que lhe absorve a sombra, tornando-se mais negra com a presa que devora, não poderia a vida da Fada ser o mesmo para a Morte que a devora?»

     Enquanto assim devaneava, com os olhos semicerrados, e o Sol descia rapidamente para o seu leito, e turbilhões giravam a toda a volta da ilha, levando no seu seio grandes e luminosas escamas brancas, soltas dos troncos dos sicómoros — escamas que uma imaginação viva poderia, graças às suas variadas posições na água, converter naquilo que mais lhe agradasse —, enquanto eu assim devaneava, pareceu-me ver o vulto de uma dessas Fadas com que tinha sonhado destacar-se da parte luminosa e ocidental da ilha e avançar lentamente para as trevas. Mantinha-se ereta sobre uma canoa singularmente frágil, que ela movia com um remo fantástico. Enquanto esteve sob a influência dos últimos e belos raios do Sol, a sua atitude parecia revelar alegria, mas, assim que passou à região das sombras, a tristeza alterou-lhe as feições. Lentamente, foi deslizando, pouco a pouco, dando a volta à ilha, e reentrou na zona de luz.

 « O circuito que a Fada acaba de fazer — continuei eu, sempre a sonhar — é o ciclo de um breve ano da sua vida. Ela atravessou o seu inverno e o seu verão. Aproximou-se um ano da morte; eu bem vi que, quando ela entrava na obscuridade, a sua sombra se separava dela e era tragada pela água escura, tornando a sua negridão ainda mais profunda.»

     E o barquinho apareceu de novo com a Fada; de novo da luz para a escuridão, que se tornava mais densa de minuto a minuto, e novamente a sua sombra, destacando-se, caiu no ébano líquido e foi absorvida pelas trevas.
      Várias vezes ainda ela fez o circuito da ilha, enquanto o Sol se precipitava para o seu leito; e, de cada vez que ela emergia para a luz, mais tristeza havia na sua expressão e mais fraca, mais abatida e indistinta ela se mostrava; e de cada vez que passava à obscuridade, destacava-se dela um espectro mais escuro, que se submergia numa sombra mais profunda. Mas, por fim, quando o Sol desapareceu totalmente, a Fada — a pobre inconsolável! — agora simples fantasma de si própria, entrou com o seu barco na região do rio de ébano, — e se jamais de lá saiu não o posso dizer, pois as trevas tombaram sobre todas as coisas, e eu não tomei a ver a sua encantadora figura...
Fim

 continua na página 382...
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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Histórias da Meia-Noite: Aurora Sem Dia (III)

Aurora Sem Dia

Machado de Assis

Conto

AURORA SEM DIA


     Não foi preciso dizer-lho duas vezes. Dois dias depois, levou o ex-poeta ao seu protetor um artigo extenso e difuso, mas cheio de entusiasmo e fé. O advogado achou defeitos no trabalho; apontou-lhe demasias e nebulosidades, frouxidão de argumentos, mais ornamentação que solidez; todavia prometeu publicá-lo. Ou fosse porque lhe fizesse estas observações com muito jeito e benevolência, ou porque Luís Tinoco houvesse perdido alguma coisa da antiga suscetibilidade, ou porque a promessa da publicação lhe adoçasse o amargo da censura, ou por todas estas razões juntas, o certo é que ele ouviu com exemplar modéstia e alegria as palavras do protetor.

— Há de perder os defeitos com o tempo, disse este mostrando o artigo aos amigos. 

     O artigo foi publicado e Luís Tinoco recebeu alguns apertos de mão. Aquela doce e indefinível alegria que ele sentira quando estampou no Correio Mercantil os seus primeiros versos, voltou a experimentá-la agora, mas alegria complicada de uma virtuosa resolução: Luís Tinoco desde aquele dia sinceramente acreditou que tinha uma missão, que a natureza e o destino o haviam mandado à terra para endireitar os tortos políticos.
     Poucas pessoas se terão esquecido do período final da estreia política do ex-redator do Caramanchão Literário. Era assim:
     Releve o poder — hipócrita e sanhudo, — que eu lhe diga muito humildemente que não temo o desprezo nem o martírio. Moisés, conduzindo os hebreus à terra da promissão, não teve a fortuna de entrar nela: é o símbolo do escritor que leva os homens à regeneração moral e política, sem lhe transpor as portas de ouro. Que poderia eu temer? Prometeu atado ao Cáucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Cristo expirando na cruz, Savonarola indo ao suplício, John Brown esperneando na forca, são os grandes apóstolos da luz, o exemplo e o conforto dos que amam a verdade, o remorso dos tiranos, e o terremoto do despotismo.
     Luís Tinoco não parou nestas primícias. Aquela mesma fecundidade da estação literária veio a reproduzir-se na estação política; o protetor, entretanto, disse-lhe que era conveniente escrever menos e mais assentado. O ex-poeta não repeliu a advertência, e até lucrou com ela, produzindo alguns artigos menos desgrenhados no estilo e no pensamento. A erudição política de Luís Tinoco era nenhuma; o protetor emprestou-lhe alguns livros, que o ex-poeta aceitou com infinito prazer. Os leitores compreendem facilmente que o autor dos Goivos e Camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases, — sobretudo das frases sonoras — demorava-se nelas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.
     Algum tempo depois houve uma eleição primária. O publicista sentiu que havia em si um eleitor, e foi dizê-lo afoitamente ao advogado. O desejo não foi mal aceito; trabalharam-se as coisas de modo que Luís Tinoco teve o gosto de ser incluído numa chapa e a surpresa de ficar batido. Batê-lo foi possível ao governo; abatê-lo, não. O ex-poeta, ainda quente do combate, traduziu em largos e floreados períodos o desprezo que lhe inspirava aquela vitória dos adversários. A esse artigo responderam os amigos do governo com um, que terminava assim: “Até onde quererá ir, com semelhante descomedimento de linguagem, o pimpolho do ex deputado Z.?”
     Luís Tinoco quase morreu de júbilo ao receber em cheio aquela descarga ministerial. A imprensa adversa não o havia tratado até então com a consideração que ele desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido argumentos seus; mas faltava o melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe parecia ser o batismo de fogo naquela espécie de campanha. O advogado, lendo o ataque, disse ao ex-poeta que a sua posição era idêntica à do primeiro Pitt quando o ministro Walpole lhe respondeu chamando-lhe moço em plena Câmara dos Comuns, e que era necessário repelir no mesmo tom a ofensa ministerial. Luís Tinoco ignorava até aquela data a existência de Pitt e de Walpole; achou todavia muito engenhosa a comparação das duas situações, e com habilidade e cautela perguntou ao advogado se lhe podia emprestar o discurso do orador britânico “para refrescar a memória”. O advogado não tinha o discurso, mas deu-lhe ideia dele, quanto bastou para que Luís Tinoco fosse escrever um longo artigo acerca do que era e não era pimpolho.
     Entretanto, a luta eleitoral lhe descobrira um novo talento. Como fosse necessário arengar algumas vezes, fê-lo o pimpolho a grande aprazimento seu e no meio às palmas gerais. Luís Tinoco perguntou a si mesmo se lhe era lícito aspirar às honras da tribuna. A resposta foi afirmativa. Esta nova ambição era mais difícil de satisfazer; o ex-poeta o reconheceu, e armou se de paciência para esperar.
     Aqui há uma lacuna na vida de Luís Tinoco. Razões que a história não conservou levaram o jovem publicista à província natal do seu amigo e protetor, dois anos depois dos acontecimentos eleitorais. Não percamos tempo em conjecturar as causas desta viagem, nem as que ali o demoraram mais do que queria. Vamos já encontrá-lo alguns meses depois, colaborando num jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera tanta prova na capital. Recomendado pelo advogado aos seus amigos políticos e parentes, depressa criou Luís Tinoco um círculo de companheiros, e não tardou que assentasse em ali ficar algum tempo. O padrinho já estava morto; Luís Tinoco achava-se absolutamente sem família.
     A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrário, uma coisa avivava a outra. A ideia de possuir duas armas, brandi-las ao mesmo tempo, ameaçar e bater com ambas os adversários, tornou-se-lhe ideia crônica, presente, inextinguível. Não era a vaidade que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril. Luís Tinoco acreditava piamente que ele era um artigo do programa da Providência, e isso o sustinha e contentava. A sinceridade que nunca teve quando versificava os seus infortúnios entre suas palestras de rapazes, teve-a quando se enterrou a mais e mais na política. É claro que, se alguém lhe pusesse em dúvida o mérito político, feri-lo-ia do mesmo modo que os que lhe contestavam excelências literárias; mas não era só a vaidade que lhe ofendiam, era também, e muito mais, a fé — fé profunda e intolerante — que ele tinha de que o seu talento fazia parte da harmonia universal.
     Luís Tinoco mandava ao Dr. Lemos na corte todos os seus escritos da província, e contava-lhe singelamente as suas novas esperanças. Um dia noticiou-lhe que a sua eleição para a Assembleia Provincial era objeto de negociações que se lhe afiguravam propícias. O correio seguinte trouxe notícia de que a candidatura de Luís Tinoco entrara na ordem dos fatos consumados.
     A eleição fez-se e não deu pouco trabalho ao candidato fluminense, que à força de muita luta e muito empenho pôde ter a honra de ser incluído na lista dos vencedores. Quando lhe deram notícia da vitória, entoou a alma de Luís Tinoco um verdadeiro e solene Te Deum Laudamus. Um suspiro, o mais entranhado e desentranhado de quantos suspiros jamais soltaram homens, desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas e incertezas de longas e cruéis semanas. Estava enfim eleito! Ia subir o primeiro degrau do Capitólio.
     A noite foi mal dormida, como a da véspera da publicação do primeiro soneto, e entremeada de sonhos análogos à situação. Luís Tinoco via-se já troando na Assembleia Provincial, entre os aplausos de uns, as imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em toda a imprensa da província os mais calorosos aplausos à sua nova e original eloquência. Vinte exórdios fez o jovem deputado para o primeiro discurso, cujo assunto seria naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos períodos. Ele já estudava mentalmente os gestos, a atitude, todo o exterior da figura que ia honrar a sala dos representantes da província.
     Muitos grandes nomes da política haviam começado no parlamento provincial. Era verossímil, era indispensável até, para que ele cumprisse o mandato imperativo do destino, que saísse dali em pouco tempo para vir transpor a porta mais ampla da reapresentação nacional. O ex-poeta ocupava já no espírito uma das cadeiras da Cadeia Velha, e remirava-se na própria pessoa e no brilhante papel que teria de desempenhar. Via já diante de si a oposição ou o ministério estatelado no chão, com quatro ou cinco daqueles golpes que ele supunha saber dar como ninguém, e as gazetas a falarem, e o povo a ocupar-se dele, e o seu nome a repercutir em todos os ângulos do império, e uma pasta a cair-lhe nas mãos, ao mesmo tempo que o bastão do comando ministerial.
     Tudo isto, e muito mais imaginava o recente deputado, embrulhado nos lençóis, com a cabeça no travesseiro e o espírito a vagar por esse mundo fora, que é a coisa pior que pode acontecer a um corpo mortificado como estava o dele naquela ocasião.
     Não se demorou Luís Tinoco em escrever ao Dr. Lemos, e contar-lhe as suas esperanças e o programa que tencionava observar, desde que a fortuna lhe abria mais ampla estrada na vida pública. A carta tratava longamente do efeito provável da sua primeira oração, e terminava assim:

Qualquer que seja o posto a que eu suba; qualquer, entenda bem, ainda aquele que é o primeiro do país, abaixo do imperador (e creio que irei até lá), nunca me há de esquecer que ao senhor o devo, à animação que me dispensou, à recomendação que fez de mim. Parece-me que até hoje tenho correspondido à confiança dos meus amigos; espero continuar a merecê-la.

     Inauguraram-se enfim os trabalhos. Tão ansioso estava Luís Tinoco de falar que, logo nas primeiras sessões, a propósito de um projeto sobre a colocação de um chafariz, fez um discurso de duas horas em que demonstrou por A + B que a água era necessária ao homem. Mas a grande batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luís Tinoco fez um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os adversários, a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos na escala da gesticulação parlamentar; na província, pelo menos, ninguém tivera nunca a satisfação de contemplar aquele sacudir de cabeça, aquele arquear de braço, aquele apontar, alçar, cair e bater com a mão direita. 
     O estilo também não era vulgar. Nunca se falou de receita e despesa com maior luxo de imagens e figuras. A receita foi comparada ao orvalho que as flores recolhem durante a noite, a despesa à brisa da manhã que as sacode e lhes entorna um pouco do sereno vivificante. Um bom governo é apenas brisa; o presidente atual foi declarado siroco e pampeiro. Toda a maioria protestou solenemente contra essa qualificação injuriosa, ainda que poética. Um dos secretários confessou que nunca do Rio de Janeiro lhes fora uma aura mais refrigerante. 
     Infelizmente os adversários não dormiam. Um deles, apenas Luís Tinoco acabou o discurso entre alguns aplausos dos seus amigos, pediu a palavra e cravou longo tempo os olhos no orador estreante. Depois sacou do bolso um maço de jornais e um folheto, concertou a garganta e disse: 

— Mandaram-nos do Rio de Janeiro o nobre deputado que me precedeu nesta tribuna. Diziam que era uma ilustração fluminense, destinada a arrasar os talentos da província. Imediatamente, Sr. presidente, tratei de obter as obras do nobre deputado. 

Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Literário, folha redigida pelo meu adversário, e o volume dos Goivos e Camélias. Tenho lá em casa mais outras obras. Abramos os Goivos e Camélias. 

O SR. LUÍS TINOCO. — O nobre deputado está fora da ordem! (Apoiados).  

O orador: — Continuo, Sr. presidente; aqui tenho os Goivos e Camélias. Vejamos um goivo.  

A Ela.

Quem és tu que me atormentas 
Com teus prazenteiros sorrisos? 
Quem és tu que me apontas 
As portas dos paraísos? 

Imagem do céu és tu? 
És filha da divindade? 
Ou vens prender em teus cabelos 
A minha liberdade?

Vê V. Ex.ª, Sr. presidente, que já nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas as leis opressoras. A assembleia tem visto como ele trata as leis do metro. 

     Todo o resto do discurso foi assim. A minoria protestou, Luís Tinoco fez-se de todas as cores, e a sessão acabou em risada. No dia seguinte os jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao adversário deste o triunfo que lhe proporcionou mostrando à província “uma antiga e brilhante face do talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente riram dos versos, foram condenados com estas poucas linhas: “Há dias um deputado governista disse que a situação era uma caravana de homens honestos e bons. É caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus camelos”.
     Nem por isso Luís Tinoco ficou mais consolado. As cartas do deputado ao Dr. Lemos começaram a escassear, até que de todo cessaram de aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo dos quais o Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na província onde se achava Luís Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o ex-poeta, e pouco tempo gastou, recebendo logo um convite dele para ir a um estabelecimento rural onde se achava.

— Há de me chamar ingrato, não? disse Luís Tinoco, apenas viu assomar à porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir vê-lo daqui a um ano; e se lhe não escrevi... Mas que tem, doutor? está espantado? 

     O Dr. Lemos estava efetivamente pasmado a olhar para a figura de Luís Tinoco. Era aquele o poeta dos Goivos e Camélias, o eloquente deputado, o fogoso publicista? O que ele tinha diante de si era um honrado e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor vestígio das atitudes melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno, — uma transformação, uma criatura muito outra e muito melhor.
     Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.

— Tudo lhe explicarei, doutor, mas há de ser depois de ter examinado a minha casa e a minha roça, depois de lhe apresentar minha mulher e meus filhos...

— Casado? 

— Há vinte meses. 

— E não me disse nada! 

— Ia este ano à corte e esperava surpreendê-lo... Que duas criancinhas as minhas... lindas como dois anjos. Saem à mãe, que é a flor da província. Oxalá se pareçam também com ela nas qualidades de dona de casa; que atividade! que economia!... 

     Feita a apresentação, beijadas as crianças, examinado tudo, Luís Tinoco declarou ao Dr. Lemos que definitivamente deixara a política. 

— De vez? 

— De vez. 

— Mas que motivo? desgostos, naturalmente. 

— Não; descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia leram-me na assembléia alguns versos meus. Reconheci então quanto eram pífios os tais versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a mesma lástima e igual arrependimento para as minhas obras políticas, arrepiei carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais. 

— Pois teve ânimo?... 

— Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com poucos anos mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a boca, que as moscas andam no ar. 
Fim 

continua na página 83...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873  

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Então ficou sabendo

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

      Então ficou sabendo. Antes de empreender a viagem Lorenzo Daza tinha cometido o erro de anunciá-la pelo telégrafo a seu cunhado Lisímaco Sánchez, e este por sua vez mandara a notícia a sua vasta e complicada parentela, disseminada em numerosos povoados e caminhos da província. De maneira que Florentino Ariza pôde não só averiguar o itinerário completo como estabelecer uma grande irmandade de telegrafistas para seguir o rastro de Fermina Daza até a última rancharia do Cabo da Vela. Isto lhe permitiu manter com ela uma comunicação intensa desde que chegou a Valledupar, onde ficou três meses, até o fim da viagem em Riohacha, ano e meio depois, quando Lorenzo Daza aceitou como fato que a filha havia afinal esquecido, e resolveu voltar para casa. Talvez ele mesmo não estivesse consciente de quanto relaxara sua vigilância, distraído como estava com os agrados dos parentes políticos, que depois de tantos anos haviam abdicado de seus preconceitos tribais, admitindo-o de coração aberto como um dos seus. Embora não tivesse esse propósito, a visita foi uma reconciliação tardia. Com efeito, a família de Fermina Sánchez se opusera a todo custo a que ela se casasse com um imigrante sem origem, falador e bruto, que estava sempre de passagem em todos os lugares, com um negócio de mulas xucras que parecia demasiado simples para ser limpo. Lorenzo Daza se empenhava a fundo, porque sua pretendida era a mais apreciada de uma família típica da região: uma cáfila intrincada de mulheres corajosas e homens de coração terno e gatilho fácil, perturbados até a demência pelo sentido da honra. Contudo, Fermina Sánchez se sentou em seu capricho com a determinação cega dos amores contrariados, e se casou com ele a despeito da família, com tanta pressa e tantos mistérios que dava a impressão de fazê-lo menos por amor do que para cobrir com um manto sacramentai algum descuido prematuro.
      Vinte e cinco anos depois, Lorenzo Daza não se dava conta de que sua intransigência com os amoricos da filha era uma repetição viciosa de sua própria história, e se lamentava de sua desgraça perante os mesmos cunhados que se haviam oposto a ele como estes se haviam lamentado outrora perante os seus. Mas o tempo que ele perdia em lamentações, sua filha o ganhava nos amores. Enquanto ele andava castrando bezerros e amansando mulas nas terras felizes dos cunhados, ela passeava à rédea solta num tropel de primas comandadas por Hildebranda Sánchez, a mais bela e prestimosa, cuja paixão sem futuro por um homem vinte anos mais velho, casado e com filhos, se conformava com olhares furtivos.
      Depois da prolongada estada em Valledupar prosseguiram viagem pelas quebradas da serra, através de campinas floridas e mesetas de sonho, e em todos os povoados foram recebidos como no primeiro, com músicas e petardos, e com novas primas confabuladas e mensagens pontuais nas agências telegráficas. Em breve Fermina Daza viu que a tarde de sua chegada a Valledupar não tinha sido extraordinária e sim que naquela província feraz todos os dias da semana eram vividos como se fossem de festa. Os visitantes dormiam onde os apanhasse a noite e comiam onde a fome os achava, pois eram casas de portas abertas onde sempre havia uma rede pendurada e um cozido de três carnes fervendo no fogão, para o caso de alguém chegar antes do seu telegrama de aviso, como em geral acontecia. Hildebranda Sánchez acompanhou a prima o resto da viagem, guiando-a com pulso alegre através dos carrascais do sangue até suas fontes de origem. Fermina Daza se reconheceu, se sentiu senhora de si mesma pela primeira vez, se sentiu acompanhada e protegida, os pulmões cheios de um ar de liberdade que lhe restituiu o sossego e a vontade de viver. Nos seus últimos anos ainda evocava aquela viagem, cada vez mais recente na memória, com a lucidez perversa da nostalgia.
     Uma noite voltou do passeio diário aturdida pela revelação de que não só se podia ser feliz sem amor como também contra o amor. A revelação a alarmou, porque uma de suas primas tinha surpreendido uma conversa dos pais com Lorenzo Daza na qual este tinha sugerido a ideia de concertar o casamento da filha com o herdeiro único da fortuna fabulosa de Cleofás Moscote, Fermina Daza o conhecia. Vira-o caracolando pelas praças seus cavalos perfeitos, com jaezes tão ricos que pareciam paramentos de missa, e era elegante e destro, e tinha umas pestanas de sonhador que faziam suspirar as próprias pedras, mas ela o comparou à lembrança que tinha de Florentino Ariza sentado embaixo das amendoeiras da pracinha, pobre e escaveirado, com o livro de versos no colo, e não encontrou sombra de dúvida no seu coração.
      Naqueles dias, Hildebranda Sánchez andava delirando de ilusões depois de visitar uma pitonisa cuja clarividência a havia assombrado. Preocupada com as intenções do pai, Fermina Daza também foi consultá-la. As cartas do baralho lhe anunciaram que não havia em seu futuro nenhum obstáculo a um casamento longo e feliz, e o prognóstico lhe devolveu o ânimo, pois não concebia que um destino tão venturoso pudesse ser com homem que não fosse o que amava. Exaltada por essa certeza, assumiu o comando do seu arbítrio. E por isso a correspondência telegráfica com Florentino Ariza deixou de ser um concerto de intenções e promessas ilusórias, tornando-se metódica e prática, e mais intensa do que nunca. Marcaram datas, estabeleceram meios e modos, empenharam suas vidas na determinação comum de se casarem sem consultar ninguém, onde fosse e como fosse, logo que se reencontrassem. Fermina Daza considerava tão severo este compromisso que a noite em que seu pai lhe deu permissão para que assistisse a seu primeiro baile de adultos, na aldeia de Fonseca, a ela não pareceu decente aceitar sem o consentimento de seu prometido. Florentino Ariza estava aquela noite no hotel suspeito, jogando baralho com Lotário Thugut, quando lhe avisaram da chegada de mensagem telegráfica urgente.
     Era o telegrafista de Fonseca que havia conjugado sete postos intermediários para que Fermina Daza pedisse licença para ir ao baile. Obteve-a, mas não se conformou com a simples resposta afirmativa, pedindo prova de que na realidade era Florentino Ariza quem estava operando o manipulador no outro extremo da linha. Mais atônito do que lisonjeado, ele compôs uma frase de identificação: Diga lhe que eu juro pela deusa coroada. Fermina Daza reconheceu o santo e senha, e ficou no seu primeiro baile de gente grande até as sete da manhã, quando teve de trocar de roupa às carreiras para não chegar tarde à missa. Nessas alturas, tinha no fundo do baú mais cartas e telegramas do que os que o pai lhe tirara, e já se comportava com atitudes de mulher casada. Lorenzo Daza interpretou aquelas mudanças no seu modo de ser como prova de que a distância e o tempo a haviam curado das fantasias juvenis, mas nunca lhe apresentou o projeto do casamento combinado. As relações dos dois ficaram fluidas, dentro das reservas formais que ela lhe havia imposto desde a expulsão da tia Escolástica, o que lhes permitiu uma convivência tão cômoda que ninguém teria duvidado que se alicerçava no carinho.
     Foi nessa época que Florentino Ariza resolveu lhe contar nas cartas que se empenhava em resgatar para ela o tesouro do galeão submerso. Era coisa certa, como tinha sentido num sopro de inspiração, uma tarde luminosa em que o mar parecia calçado de alumínio, tal a quantidade de peixes postos a boiar por plantas narcóticas usadas pelos pescadores. Todas as aves do céu se haviam alvoroçado com a matança, e os pescadores precisavam afugentá-las com os remos para que não lhes disputassem os frutos daquele milagre proibido. O emprego do barbasco, que apenas adormecia os peixes, estava interditado por lei desde os tempos da Colônia, mas continuou sendo prática comum em pleno dia entre os pescadores do Caribe, até que foi substituído pela dinamite. Uma das diversões de Florentino Ariza, enquanto durou a viagem de Fermina Daza, era ver do cais como os pescadores carregavam as canoas com redes inchadas de peixes adormecidos. Ao mesmo tempo, uma malta de meninos que nadavam como tubarões pedia aos curiosos que atirassem moedas para que as fossem fisgar no fundo da água. Eram os mesmos que nadavam com igual propósito ao encontro dos transatlânticos, e sobre os quais se haviam escrito tantos relatos de viagem nos Estados Unidos e na Europa, pela sua mestria na arte de nadar debaixo d'água. Florentino Ariza os conhecia da vida inteira, de antes de conhecer o amor, mas nunca lhe havia ocorrido que talvez fossem capazes de pôr à tona a fortuna do galeão. Ocorreu-lhe essa tarde, e do domingo seguinte até o regresso de Fermina Daza, quase um ano depois, teve um motivo adicional de delírio.
     Euclides, um dos meninos nadadores, se animou tanto quanto ele com a ideia de uma exploração submarina, depois de uma conversa de não mais de dez minutos. Florentino Ariza não lhe revelou o verdadeiro objeto do empreendimento, mas se informou a fundo sobre suas habilidades de mergulho e navegação. Perguntou-lhe se conseguia descer sem ar a vinte metros de profundidade, e Euclides disse que sim. Perguntou se estava em condições de levar sozinho uma canoa de pescador pelo mar alto em plena borrasca, sem instrumentos além do próprio instinto, e Euclides disse que sim. Perguntou se seria capaz de localizar um lugar exato dezesseis milhas marítimas a noroeste da ilha maior do arquipélago de Sotavento, e Euclides disse que sim. Perguntou se era capaz de navegar à noite orientando-se pelas estrelas, e Euclides disse que sim. Perguntou se estava disposto a fazê-lo recebendo a mesma diária que lhe pagavam os pescadores para ajudá-los a pescar, e Euclides disse que sim, mas com uma sobretaxa de cinco réis aos domingos. Perguntou se sabia se defender dos tubarões, e Euclides disse que sim, pois tinha artes mágicas de afugentá-los. Perguntou se era capaz de guardar um segredo ainda que o pusessem nas máquinas de tormentos do palácio da Inquisição, e Euclides disse que sim, pois não dizia que não a nada, e sabia dizer sim com tanta convicção que não havia jeito de duvidar dele. No fim, fez as contas das despesas: o aluguel da canoa, o aluguel dos remos, o aluguel de instrumentos de pesca para que ninguém desconfiasse da verdadeira intenção das excursões. Era ainda preciso levar comida, um garrafão de água doce, uma lamparina, um maço de velas de sebo e um chifre de caçador para pedir auxílio em caso de emergência.
      Tinha uns doze anos, e era ligeiro e astuto, e falava sem parar e tinha um corpo de enguia que parecia feito para que ele se esgueirasse por qualquer escotilha. A vida ao ar livre lhe havia curtido tanto a pele que era impossível imaginar sua cor original, o que tornava mais radiantes seus grandes olhos amarelos. Florentino Ariza resolveu de pronto que era o cúmplice perfeito para uma aventura de semelhantes possibilidades, e a atacaram sem mais delongas no domingo seguinte.
      Zarparam do porto dos pescadores ao amanhecer, bem providos e melhor dispostos. Euclides quase nu, só com a tanga que vestia sempre, e Florentino Ariza com a sobrecasaca, o chapéu de trevas, as botinas de verniz e o laço de poeta no pescoço, e um livro para se entreter na travessia até as ilhas. Desde o primeiro domingo viu que Euclides era de fato perito navegante e bom mergulhador, e que tinha uma prática assombrosa da natureza do mar e da sucata da baía. Podia contar com mínimos pormenores a história de cada casco velho de navio roído de oxido, sabia a idade de cada boia, a origem de qualquer escombro, o número de elos da corrente com que os espanhóis fechavam a entrada da baía. Temendo que soubesse também qual o propósito de sua expedição, Florentino Ariza lhe fez algumas perguntas insidiosas, comprovando que Euclides não tinha a menor suspeita acerca do galeão afundado.
      Ao ouvir pela primeira vez a história do tesouro no hotel, Florentino Ariza se informara o mais possível sobre a crônica dos galeões. Ficou sabendo que o San José não estava só em seu leito de corais. Era a nave capitania da Frota de Terra Firme, e chegara aqui depois de maio de 1708, procedente da feira legendária de Portobello, no Panamá, onde carregara parte de sua fortuna: trezentos baús com prata do Peru e Veracruz, e cento e dez baús de pérolas juntadas e contadas na ilha de Contadora. Durante o longo mês em que aqui permaneceu, de dias e noites de festas populares, puseram a bordo o resto do tesouro destinado a tirar da pobreza o reino da Espanha: cento e dezesseis baús de esmeraldas de Muzo e Somondoco, e trinta milhões de moedas de ouro.
     A Frota de Terra Firme estava integrada por nada menos que doze embarcações de diferentes tamanhos, e zarpou deste porto comboiada por uma esquadra francesa, muito bem armada, que mesmo assim não pôde salvar a expedição diante dos canhonaços certeiros da esquadra inglesa, sob as ordens do comandante Carlos Wager, que a esperou no arquipélago de Sotavento, à saída da baía. De modo que o San José não era a única nave afundada, embora não houvesse certeza documental de quantas haviam sucumbido e quantas escapado ao fogo dos ingleses. Do que não havia dúvida era que a nave capitania fora das primeiras a ir a pique, com a tripulação completa e o comandante imóvel em seu castelo de proa, e que levava a carga principal.

continua na página 071...
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Leia também:

 Amor nos Tempos de Cólera: Então ficou sabendo
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

domingo, 15 de setembro de 2024

Conto: Uma Esperança

Clarice Lispector 


têm dias que só queremos sentar e ouvir as palavras da Clarice enquanto pensamos na vida com esperança... acariciando a alma


na voz de Aracy Balabanian






     Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.
     Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! e na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.

     Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

    Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

    Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
    Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que trás sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

    O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
    Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. 
    Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.   



Sebo Itinerante

Café, Jazz, Bom dia... ah essas queimadas

Manhãs aconchegantes de final de inverno

Jazz suave e Bossa Nova para relaxamento e muita fumaça


a fumaça
dança com as páginas
não cessam de queimar
as palavras
cafés

matas

matos

esses foguistas não escutam jazz

ou os bichos 

sertanejo, talvez

duvido 

provoco 

ah, esse jazz

ecoa o seu lamento 

respiro 

cof
e me inspiro
uso mais letras

elas sofrem 

elas brilham na chama voraz
no meu refúgio
de sonhos sem queimadas
uso sabores e notas e amor
ah eterno fervor
 café jazz e um bom livro
em todas as mãos
cada linha uma nova canção

sem fumaça das queimadas insanas

ideolólicas 

o fogo desinformado
queima num mundo doente

a vida em agonia

o poder sedento

a ganância

nenhuma lição

depois da inundação 







The Jazz Groove


sábado, 14 de setembro de 2024

O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (12)

Simone de Beauvoir


02. A Experiência Vivida



O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



SEGUNDA PARTE

SITUAÇÃO
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CAPÍTULO I
A   MULHER CASADA

continuando...

     Muitas vezes, por moralidade, hipocrisia, orgulho, timidez, a mulher obstina-se em sua mentira. "Muitas vezes, uma aversão pelo marido querido não foi percebida durante toda uma vida: chamam-na melancolia ou lhe dão qualquer outro nome", escreve Chardonne (Cf. Eve). Mas não é por não ser nomeada, que a hostilidade deixa de ser vivida. Imprime-se, com maior ou menor violência, pelo esforço que faz a mulher para recusar o domínio do esposo. Depois da lua de mel e do período de desatino que muitas vezes se lhe segue, ela tenta reconquistar a autonomia. Não é empresa fácil. Por ser amiúde mais idoso do que ela, por possuir em todo caso um prestígio viril, por ser por lei o "chefe da família", o marido detém uma superioridade moral e social; muitas vezes possui também, pelo menos aparentemente, uma superioridade intelectual. Tem sobre a mulher a vantagem da cultura ou pelo menos da formação profissional; desde a adolescência interessa-se pelos negócios do mundo; são seus negócios; conhece um pouco de direito, está a par da política, pertence a um partido, a um sindicato, a associações; trabalhador, cidadão, seu pensamento está empenhado na ação; enfrenta a prova da realidade contra a qual não se pode trapacear: isso equivale a dizer que o homem médio tem a técnica do raciocínio o gosto dos fatos e da experiência, certo senso crítico; é o de que ainda carecem numerosas jovens; mesmo se leram, assistiram a conferências, se se dedicaram por distração a alguma arte, seus conhecimentos acumulados mais ou menos ao acaso não constituem uma cultura; não é em consequência de um vício cerebral que raciocinam mal: é porque a prática não as obrigou a fazê-lo bem. Para elas, o pensamento é antes um jogo do que um instrumento; mesmo inteligentes, sensíveis, sinceras, elas não sabem, por falta de técnica intelectual, demonstrar suas opiniões, tirar as consequências que comportem. É por esse lado que um marido — mesmo mais medíocre — as dominará facilmente: saberá provar que tem razão ainda que não tendo. Nas mãos de um homem, a lógica é muitas vezes violência. Chardonne descreveu em Epithalame essa forma matreira de opressão. Mais idoso, mais culto e mais instruído do que Berthe, Albert vale-se da superioridade para negar qualquer valor às opiniões da mulher, quando não as partilha; prova-lhe infatigavelmente que tem razão; ela por seu lado obstina-se e recusa-se a outorgar qual quer conteúdo aos raciocínios do marido: ele aferra-se igual mente a suas ideias, eis tudo. Assim se agrava entre eles um mal-entendido sério. Ele não procura compreender sentimentos, reações que ela não sabe justificar habilmente mas que têm nela raízes profundas; ela não compreende o que pode haver de vivo sob a lógica pedante com que o marido a esmaga. Ele chega a irritar-se com uma ignorância que, entretanto, ela nunca lhe dissimulou e faz-lhe, como para desafiá-la, perguntas de astronomia; no entanto, sente-se lisonjeado por lhe orientar as leituras, por encontrar nela um auditor que domina sem dificuldade. Em uma luta em que a insuficiência intelectual a condena a ser sempre vencida, a jovem esposa não apela senão para o silêncio, ou as lágrimas, ou a violência: 

Com o cérebro ensurdecido, abatido pelos choques, Berthe não podia mais pensar quando ouvia alguma voz sincopada e estridente e Albert continuava a envolvê-la num zunido imperioso para estonteá-la, feri-la no desatino de seu espirito humilhado. . . Ela sentia-se vencida, desamparada ante as asperezas de uma argumentação inconcebível e para se livrar desse injusto poder gritou: Deixa-me em paz! Tais palavras pareciam-lhe fracas demais; deparou com um frasco de cristal na penteadeira e subitamente atirou-o em Albert... 

     Por vezes a mulher procura lutar. Mas, amiúde, ela aceita por bem ou por mal, como a Nora de A Casa das Bonecas [1] que o homem pense por ela; ele é que será a consciência do casal. Por timidez, inabilidade, preguiça, ela deixa ao homem o cuida do de forjar as opiniões que lhes serão comuns acerca de todos os assuntos gerais e abstratos. Uma mulher inteligente, culta, independente mas que admirara durante quinze anos um marido que julgava superior, dizia-me transtornada, depois da morte dele, que se vira, obrigada a decidir ela própria de suas convicções e de sua conduta: tenta ainda adivinhar o que ele teria pensado em cada circunstância. O marido compraz-se geralmente nesse papel de mentor e chefe [2]. Ao fim de um dia em que conhece dificuldades em suas relações com iguais, em que tem de submeter-se a superiores, ele gosta de se sentir um superior absoluto e oferecer verdades incontestadas [3]. Narra os acontecimentos do dia, dá razão a si mesmo contra seus adversários, feliz por encontrar na esposa um duplo que o confirma a si próprio; comenta o jornal e as notícias políticas, de bom grado lê em voz alta para a mulher, a fim de que a relação dela com a cultura não seja autônoma. Para ampliar sua autoridade, exagera com prazer a incapacidade feminina; ela aceita mais ou menos docilmente esse papel de subordinada. Sabe-se com que prazer espantado mulheres que lamentam sinceramente a ausência do marido descobrem em si mesmas, nessa oportunidade, possibilidades insuspeitadas; gerem os negócios, educam os filhos, decidem, administram sem qualquer auxílio. Sofrem quando a volta do marido as relega novamente à incompetência.
     0 casamento incita o homem a um imperialismo caprichoso: a tentação de dominar é a mais universal, a mais irresistível que existe; entregar o filho à mãe, entregar a mulher ao marido é cultivar a tirania na terra; muitas vezes não basta ao esposo ser aprovado, admirado, aconselhar, guiar: ele ordena, representa o papel de soberano. Todos os rancores acumulados em sua infância, durante sua vida, acumulados quotidianamente entre os outros homens cuja existência o freia e fere, ele descarrega em casa, acenando para a mulher com sua autoridade; mima a violência, a força, a intransigência: dá ordens com voz severa, ou grita, bate na mesa; essa comédia é para a mulher uma realidade quotidiana. Ele se acha tão convencido de seus direitos que a menor autonomia conservada pela mulher lhe parece uma rebeldia; gostaria de impedi-la de respirar sem ele. Ela, entre tanto, revolta-se. Mesmo se começou reconhecendo o prestígio viril, seu deslumbramento dissipa-se depressa. O filho percebe um dia que o pai não é senão um indivíduo contingente; a es posa descobre logo que não tem diante de si a grande figura do suserano, do chefe, do senhor e sim um homem; não vê nenhuma razão para se escravizar; a seus olhos ele não representa senão um ingrato e injusto dever. Por vezes, a mulher se submete com uma complacência masoquista; assume um papel de vítima e sua resignação não passa de uma censura silenciosa; mas muitas vezes, também, ela luta abertamente contra seu senhor, e por seu turno esforça-se por tiranizá-lo.
     O homem é ingênuo quando imagina que submeterá facilmente a mulher a suas vontades e a "formará" como quiser. "A mulher é o que dela faz o marido", diz Balzac; mas diz o contrário algumas páginas adiante. No terreno da abstração e da lógica, a mulher resigna-se amiúde a aceitar a autoridade masculina; mas quando se trata de ideias, de hábitos que a interessam realmente, ela lhe opõe uma tenacidade matreira. A influência da infância e da juventude é muito mais profunda nela do que no homem, pelo fato de que ela permanece mais encerrada em sua história individual. Do que adquiriu nesses períodos, não se desfaz nunca, o mais das vezes. 0 marido imporá à mulher uma opinião política, não lhe modificará as convicções religiosas, não lhe abalará as superstições: é o que verifica Jean Barois que imaginava conquistar uma in fluência real sobre a pequena devota que associou a sua vida. Diz, acabrunhado: "Um cérebro de menina cristalizado à sombra de uma cidade provinciana: todas as afirmações da tolice ignorante: não se arranca essa crosta". A despeito das opiniões aceitas, a despeito dos princípios que repete como um papagaio, a mulher conserva sua visão pessoal do mundo. Essa resistência pode torná-la incapaz de compreender um marido mais inteligente do que ela; ou, ao contrário, ela o erguerá acima da seriedade masculina, como acontece com as heroínas de Stendhal ou Ibsen. Por vezes — ou porque ele a tenha desiludido sexual mente, ou, ao contrário, porque a domine e ela queira vingar-se, — a mulher deliberadamente apega-se por hostilidade ao homem, a valores que não são os dele; apoia-se na autoridade da mãe, do pai, de um irmão, de qualquer personalidade masculina que se lhe afigure "superior", de um confessor, de uma irmã de caridade, tão-somente para o enfrentar. Ou, sem lhe opor nada de positivo, ela se esforça por contradizê-lo sistematicamente, atacá-lo, magoá-lo; esforça-se por inculcar-lhe um complexo de inferioridade. Naturalmente, tendo as capacidades necessárias, com prazer-se-á em deslumbrar o marido, em lhe impor seus palpites, suas opiniões, suas diretrizes; apossar-se-á de toda a autoridade moral. Nos casos em que lhe for impossível contestar a supremacia espiritual do marido, tentará conseguir seu revide no terreno sexual. Ou recusa-se a ele, como Mme Michelet, de quem Halévy nos diz:

Queria dominar em tudo; na cama, porquanto era forçoso suportá-lo e à mesa de trabalho. Era a mesa que ela visava e Michelet a vedou enquanto ela vedava a cama. Durante muitos meses o casal foi casto. Finalmente, Michelet teve a cama e Athénais Mialaret logo depois teve a mesa: nascera escritora e era em verdade seu lugar... 

     Ou ela se retesa nos braços masculinos e lhe inflige a afronta da frigidez; ou mostra-se caprichosa, coquete, impondo-lhe uma atitude de suplicante; flerta, provoca ciúmes, engana-o: de uma maneira ou de outra tenta humilhá-lo em sua virilidade. Se a prudência a impede de ir até o fim, encerra ela, pelo menos orgulhosamente em seu coração, o segredo de sua frieza altiva. Confia-o, por vezes, a um diário, de preferência a suas amigas: numerosas mulheres casadas divertem-se em se contar mutuamente "truques" de que se valem para fingir experimentar um prazer que pretendem não sentir; riem-se ferozmente da vaidosa ingenuidade de suas vítimas; tais confidencias talvez sejam igualmente uma comédia: entre a frigidez e a vontade de frigidez, a fronteira não é muito precisa. Em todo caso, elas se imaginam insensíveis e assim satisfazem seu ressentimento. Há mulheres — as que se as semelham à fêmea do louva-a-deus — que querem triunfar tanto à noite como de dia: são frias no amor, desdenhosas nas conversas, tirânicas nas condutas. Assim é que — segundo o testemunho de Mabel Dodge — Frieda se conduzia com Lawrence. Não podendo negar a superioridade intelectual dele, pretendia impor-lhe sua própria visão do mundo, em que só os valores sexuais contavam.

Ele tinha de encarar a vida através dela e era o papel dela vê-la do ponto de vista do sexo. Era deste ponto de vista que ela se colocava para aceitar ou condenar a vida. 

     Ela declarou um dia a Mabel Dodge:

É preciso que ele receba tudo de mim. Quando eu não estou presente ele não sente nada; nada, e é de mim que recebe seus livros, continuou ela com ostentação. Ninguém o sabe. Fiz páginas inteiras desses livros para ele.

     Entretanto, Frieda tem necessidade premente de provar a si mesma que ela lhe é necessária; exige que ele se ocupe dela incessantemente: se não o faz espontaneamente, força-o a fazê-lo:

Frieda muito conscienciosamente aplicava-se a nunca permitir que suas relações com Lawrence se desenvolvessem na calma que se estabelece geralmente entre casados. Logo que o sentia entregar-se ao hábito, lançava-lhe uma bomba. Fazia de modo que ele não a esquecesse nunca. Essa necessidade de uma atenção perpétua. .. a arma de que a gente se serve contra um inimigo. Frieda sabia feri-lo nos lugares sensíveis. . . à noite até o insulto. Se durante o dia não lhe dava atenção, ela ia à noite até o insulto.

     A vida conjugal tornara-se para eles uma série de cenas indefinidamente recomeçadas e nas quais nenhum deles queria ceder, dando à menor altercação o aspecto titânico de um duelo entre o Homem e a Mulher.

continua página 226...
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[1] "Quando estava em casa de meu pai, ele dizia-me todas as suas maneiras de ver e eu tinha então as mesmas; e se tinha outras, escondia-as, pois ele não teria gostado disso. . . passei para as tuas. . . Das 'mãos de papai Tudo arranjavas como querias e eu tive o mesmo gosto ou fingi tê-lo; não sei bem; creio que houve as duas coisas, ora uma, ora outra. Meu pai e tu prejudicaram-me muito. É culpa vossa, se não fui capaz de nada."
[2] Helmer diz a Nora: "Acreditas que me sejas menos cara porque não sabes agir com tua própria cabeça? Não, não; basta que te apoies em mim; eu te aconselharei, eu te dirigirei. Não seria um homem, se essa incapacidade feminina, precisamente, não te tornasse duplamente sedutora a meus olhos... Descansa bem e sossega: tenho asas bastante grandes para te proteger. . . Há para o homem uma doçura e uma satisfação indizíveis na plena consciência de ter perdoado a mulher. . . Ela torna-se assim, a um tempo, sua mulher e sua filha. É o que serás para mim doravante, pequeno ser desesperado e desnorteado. Não te preocupes com nada, Nora; fala-me tão somente com o coração na mão e eu serei ao mesmo tempo tua vontade e tua consciência".
[3] Cf. Lawrence, Fantasia do Inconsciente: "Você deve lutar para que sua mulher veja em você um homem de verdade, um pioneiro de verdade. Ninguém é homem, se a mulher nele não vê um pioneiro... E deve lutar duramente para que sua mulher submeta, ao seu, o objetivo dela. . . Que vida maravilhosa então! Que delícia voltar à noite para junto dela e encontrá-la ansiosa à sua espera! Que doçura voltar para casa e sentar-se ao lado dela. . . Como a gente se sente rico e pleno com todo o labor do dia nos rins pelo caminho da volta. . . Experimenta-se uma gratidão insondável pela mulher que ama, que acredita na tarefa da gente". 


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O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (12)
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.

Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"