Origens do Totalitarismo
Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
4. O Imperialismo Continental: Os Movimentos de Unificação
4.1 - Nacionalismo Tribal
Do mesmo modo como o imperialismo continental nasceu das ambições frustradas de países
que não participaram da súbita expansão dos anos 80 do século XIX, o tribalismo surgiu como o
nacionalismo daqueles povos que não haviam participado da emancipação nacional e não haviam alcançado a soberania de Estado
nação. Onde as duas frustrações existiam lado a lado — como ocorria em países multinacionais
como a Áustria-Hungria e a Rússia —, os movimentos de unificação étnica encontravam
naturalmente o solo mais fértil. Além disso, como a Monarquia Dual abrigava as nacionalidades
irredentistas eslavas e alemã, o pan-eslavismo e o pangermanismo concentraram-se desde o
início em sua destruição, e a Áustria-Hungria se tornou o real centro desses movimentos. Os
pan-eslavistas russos já em 1870 diziam que o melhor ponto de partida possível para um
império pan-eslavo seria a desintegração da Áustria,[20] e os pangermanistas austríacos eram tão
violentamente agressivos em relação ao seu próprio governo que até mesmo o Alldeutsche
Verband na Alemanha se queixava frequentemente dos "exageros" dos seus correligionários
austríacos.[21] O plano para a união econômica da Europa central sob a égide da Alemanha,
concebido pelos alemães, bem como todos os projetos semelhantes dos pangermanistas alemães
para criar um império continental, transformou-se subitamente, tão logo caiu nas mãos dos
pangermanistas austríacos, numa estrutura que viria a ser o "centro da vida alemã em toda a
terra, aliado a todos os outros Estados germânicos".[22]
É claro que as tendências expansionistas do pan-eslavismo eram tão embaraçosas para o czar
quanto eram para Bismarck os gratuitos protestos de lealdade ao Reich e a deslealdade à Áustria
dos pangermanistas austríacos.[23] Pois, por mais que fossem ocasionalmente exaltados os
sentimentos nacionais, ou por mais ridículas que se tornassem as alegações nacionalistas em
tempos de crise, permaneciam dentro de certos limites, uma vez que se cingiam a um território
nacional definido e eram controlados pelo orgulho num Estado nacional limitado, enquanto os
movimentos de unificação logo ultrapassavam esse limites.
Pode-se melhor avaliar a modernidade dos movimentos de unificação por sua posição
inteiramente nova em relação ao antissemitismo. As minorias reprimidas, como os eslavos na
Áustria e os poloneses na Rússia czarista, em virtude do antagonismo que as apartava dos seus
respectivos governos, estavam predispostas a descobrir as relações ocultas entre as comunidades
judaicas e os Es-tados-nações europeus, e essa descoberta podia facilmente levá-las à
hostilidade. Nos países em que o antagonismo ao Estado não era identificado com falta de
patriotismo, como na Polônia (então incorporada à Rússia), onde a deslealdade ao czar era
sinônimo de lealdade à nação polonesa, ou como na Áustria, onde a população de língua alemã
via em Bismarck sua grande figura nacional, o antissemitismo assumia formas mais violentas,
porque os judeus aparentavam ser não só agentes de uma máquina estatal opressora, mas de um
opressor estrangeiro. O papel fundamental do antissemitismo nos movimentos de unificação não
se justifica nem pela posição das minorias, nem pelas experiências específicas que Schoenerer,
o líder do pangermanismo austríaco, havia tido no início da sua carreira, quando, ainda membro
do Partido Liberal, viera a saber das ligações entre a monarquia dos Habsburgos e o domínio
dos Roths-child sobre a rede ferroviária da Áustria.[24] Isso não o teria levado a declarar que "nós,
os pangermanistas, consideramos o antissemitismo como o esteio de nossa ideologia
nacional",[25] como nenhum evento similar poderia ter induzido Rozanov, o escritor pan-eslavo
russo, a pretender que "não existe problema na vida russa no qual, como uma vírgula na frase,
não exista também a questão de como enfrentar o judeu".[26]
A chave do súbito aparecimento do antissemitismo como centro de todo um conceito de vida e
de mundo — em contraposição ao seu papel meramente político na França durante o Caso
Dreyfus, ou como mero instrumento de propaganda no movimento alemão de Stoecker — está
na natureza do tribalismo e não em fatos e circunstâncias políticas. A verdadeira importância do
antissemitismo dos movimentos de unificação étnica está nisto: o ódio aos judeus foi pela
primeira vez isolado de toda experiência real — política, social ou econômica —, seguindo
apenas a lógica peculiar de uma ideologia.
O nacionalismo tribal, a força motora do imperialismo continental, tinha pouco em comum com
o nacionalismo do Estado-nação ocidental plenamente desenvolvido. O Estado-nação, com a
sua reivindicação de representação popular e soberania nacional, tal como havia evoluído desde
a Revolução Francesa até o século XIX, resultava da combinação de dois fatores que, ainda
separados no século XVIII, permaneceram separados na Rússia e na Áustria-Hungria até 1919:
nacionalidade e Estado. As nações adentravam a história e se emancipavam quando os povos
adquiriam a consciência de serem entidades culturais e históricas e a de ser o seu território um
lar permanente marcado pela história comum, fruto do trabalho dos ancestrais, e cujo futuro dependeria do desenvolvimento de uma
civilização comum. Onde quer que surgissem, os Estados-nações cessavam quase que por
completo os movimentos migratórios; enquanto na Europa oriental e meridional, onde fracassou
a fundação de Estados-nações, isso ocorreu porque faltava ainda o apoio de classes rurais
firmemente enraizadas.[27]
Do ponto de vista sociológico, o Estado-nação era o corpo político das classes camponesas
europeias emancipadas — isto é, dos proprietários rurais — e é por isso que os exércitos
nacionais só puderam conservar sua posição permanente nesses Estados enquanto constituíam a
verdadeira representação da classe rural, ou seja, até o fim do século XIX. "O Exército", como
disse Marx, "era o ponto de honra dos fazendeiros: transformados em senhores, o Exército os
corporificava, defendendo no exterior sua propriedade recém-adquirida. (...) O uniforme era a
sua roupa de gala, a guerra era a sua poesia; o seu lote de terra era a pátria, e o patriotismo era a
forma ideal da propriedade."[28] O nacionalismo ocidental, que culminou no recrutamento geral,
foi produto de classes firmemente enraizadas e emancipadas.
Enquanto a consciência da nacionalidade é comparativamente recente, a estrutura do Estado é
fruto da secular evolução da monarquia e do despotismo esclarecido. Fosse sob forma de nova
república ou de monarquia constitucional reformada, o Estado herdou como função suprema a
proteção de todos os habitantes do seu território, independentemente de nacionalidade, e devia
agir como instituição legal suprema. A tragédia do Estado-nação surgiu quando a crescente
consciência nacional do povo interferiu com essas funções. Em nome da vontade do povo, o
Estado foi forçado a reconhecer como cidadãos somente os "nacionais", a conceder completos
direitos civis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito de
origem e fato de nascimento. Isso significa que o Estado foi parcialmente transformado de
instrumento da lei em instrumento da nação.
A conquista do Estado pela nação[29] foi facilitada pela queda da monarquia absoluta e pelo
subsequente surgimento de classes. O monarca absoluto devia servir aos interesses da nação
como um todo e ser expoente e prova visível da existência de tal interesse comum. O
despotismo esclarecido baseava-se no que disse Rohan: "Os reis comandam os povos e o
interesse comanda os reis".[30] Abolidos os reis, esse interesse comum corria o perigo de ser
substituído por um permanente conflito entre numerosos interesses de classes e por uma luta
pelo controle da máquina estatal, ou seja, por uma guerra civil permanente. O único laço comum
que restava aos cidadãos do Estado-nação, sem um monarca que simbolizasse a essência do grupo, era a origem comum. Assim, num século em que cada classe e cada
segmento da população eram dominados por interesses próprios, o interesse da nação como um todo era
supostamente garantido pela origem comum, que encontrou sua expressão sentimental no nacionalismo.
O conflito latente entre o Estado e a nação veio à luz por ocasião do próprio nascimento do Estado-nação
moderno, quando a Revolução Francesa, ao declarar os Direitos do Homem, expôs a exigência da
soberania nacional. De uma só vez, os mesmos direitos essenciais eram reivindicados como herança
inalienável de todos os seres humanos e como herança específica de nações específicas; a mesma nação
era declarada, de uma só vez, sujeita a leis que emanariam supostamente dos Direitos do Homem, e
soberana, isto é, independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a si própria.[31] O resultado prático dessa contradição foi que, daí por diante, os direitos humanos passaram a ser
protegidos e aplicados somente sob a forma de direitos nacionais, e a própria instituição do Estado, cuja
tarefa suprema era a de proteger e garantir ao homem os seus direitos como homem, como cidadão — isto
é, indivíduo — e como membro de grupo, perdeu a sua aparência legal e racional e podia agora ser
interpretada pelos românticos como a nebulosa representação de uma "alma nacional" que, pelo próprio
fato de existir, devia estar além e acima da lei. Consequentemente, a soberania nacional perdeu a sua
conotação original de liberdade do povo e adquiriu uma aura pseudomística de arbitrariedade fora da lei.
Em sua essência, o nacionalismo é a expressão dessa perversa transformação do Estado em instrumento
da nação e da identificação do cidadão com o membro da nação. A relação entre o Estado e a sociedade
foi determinada pela luta de classes, que havia suplantado a antiga ordem feudal. Permeou a sociedade
um liberalismo individual que acreditava, erradamente, que o Estado governava meros indivíduos, quando
na realidade governava classes, e que via no Estado uma espécie de entidade suprema, diante da qual
todos os indivíduos tinham de curvar-se.
Parecia ser o desejo da nação que o Estado a protegesse das consequências de sua atomização social e, ao
mesmo tempo, garantisse a possibilidade de permanecer nesse estado de atomização. Para poder enfrentar
essa tarefa, o Estado teve de reforçar todas as antigas tendências de centralização, pois só uma
administração fortemente centralizada, que monopolizasse todos os instrumentos de violência e
possibilidades de poder, poderia contrabalançar as forças centrífugas constantemente geradas por uma
sociedade dominada por classes. A essa altura, o nacionalismo tornou-se o precioso aglutinante que iria
unir um Estado centralizado a uma sociedade atomizada e, realmente, demonstrou ser a única ligação
operante e ativa entre os indivíduos formadores do Estado-nação.
O nacionalismo sempre conservou essa íntima lealdade ao governo e nunca chegou a perder a sua função
de manter um precário equilíbrio entre a nação e o Estado, de um lado, e entre os cidadãos de uma
sociedade atomizada, do outro. Os cidadãos nativos de um Estado-nação frequentemente olhavam com
desprezo os cidadãos naturalizados, aqueles que haviam recebido seus direitos por lei e não por
nascimento, do Estado e não da nação; mas nunca chegaram ao extremo de propor a distinção
pangermanista entre Staatsfremde, alienígenas do Estado, e Volksfremde, alienígenas da nação, que foi
mais tarde incorporada à legislação nazista. Como o Estado permaneceu instituição legal mesmo em sua
forma pervertida, a lei controlava o nacionalismo; e, como este havia surgido da identificação dos
cidadãos com o seu território, era delineado por fronteiras definidas.
Muito diferente foi a primeira reação nacional de povos cuja nacionalidade não havia ainda ultrapassado o
estágio de mal definida consciência étnica, cujo idioma não havia ainda saído daquela fase de dialetos por
que passaram todas as línguas europeias antes de se prestarem a fins literários, cuja classe camponesa não
havia assentado raízes e não estava à beira da emancipação, e para os quais, consequentemente, a
qualidade nacional parecia ser muito mais um sentimento privado e portátil, inerente à própria
personalidade do indivíduo, do que uma questão do interesse público e da civilização.[32] Se tentavam
igualar o orgulho nacional das nações do Ocidente, constatavam não ter país nem Estado — nem sequer
realizações nacionais — e podiam apenas apontar para si mesmos, ou seja, para o seu idioma — como se
a língua, em si, já fosse uma realização — ou para a sua alma — eslava, germânica ou sabe Deus o quê.
No entanto, num século que ingenuamente julgava que todos os povos eram virtualmente nações, só isso
restava aos povos oprimidos da Áustria-Hungria e da Rússia czarista, onde não existiam condições para a
realização da trindade ocidental de povo-território-Estado, onde as fronteiras mudavam constantemente
durante séculos e as populações permaneciam em movimento migratório mais ou menos contínuo. Essas
massas não tinham a menor ideia do significado dos conceitos pátria e patriotismo, nem a mais vaga
noção de responsabilidade comunitária limitada. Era este o problema do "cinturão de populações mistas"
(Macartney) que, estendendo-se do Báltico ao Adriático, de Danzig a Trieste, encontrou a sua melhor
expressão da Monarquia Dual.
O nacionalismo tribal surgiu dessa atmosfera de desarraigamento. Alastrou-se não apenas entre os povos
da Áustria-Hungria, mas também, embora em nível mais alto, entre os membros da infeliz intelligentsia da Rússia czarista. O
desarraigamento foi a verdadeira fonte daquela "consciência tribal ampliada", que, na verdade,
significava que os indivíduos desses povos não tinham um lar definido, mas sentiam-se em casa
onde quer que vivessem outros membros de sua "tribo". "Somos diferentes", dizia Schoenerer,
"(...) por «ão gravitarmos em direção a Viena, mas por gravitarmos para onde quer que vivam
outros alemães." [33] O que caracterizou os movimentos de unificação étnica é que nunca tentaram
ao menos alcançar a emancipação nacional mas, imediatamente, em seus sonhos de expansão,
transcenderam os estreitos limites da comunidade nacional e proclamaram a comunidade de um
povo que permaneceria como fator político ainda que os seus membro? estivessem espalhados
por toda a terra. Do mesmo modo, e em contraste com os verdadeiros movimentos de libertação
nacional de povos pequenos, que sempre começavam com uma exploração do passado nacional,
não se detiveram para "explorar" o passado, mas projetaram a base de sua comunidade num
futuro, em cuja direção o movimento deveria marchar.
O nacionalismo tribal, alastrando-se entre todas as nacionalidades oprimidas da Europa oriental
e meridional, assumiu novo aspecto organizacional — os movimentos de unificação — entre
aqueles povos que dispunham, ao mesmo tempo, de alguma forma de país natal, como a
Alemanha e a Rússia, e de grandes populações dispersas no exterior, como era o caso dos
alemães e eslavos em outros países.[34] Em contraste com o imperialismo de ultramar, que se
contentava com a relativa superioridade da missão nacional ou da tarefa do homem branco, os
movimentos de unificação étnica partiam da reivindicação absoluta de escolha divina. Já se
disse muitas vezes que o nacionalismo é um substituto emocional da religião, mas só o
tribalismo dos movimentos de unificação étnica ofereceu nova teoria religiosa e novo conceito
de santidade. A função e a posição religiosa do czar na Igreja greco-ortodoxa não seriam
suficientes para levar os pan-eslavos russos a descobrir a natureza e a essência cristãs do povo
russo, o qual, segundo Dostoiévski, era o próprio "são Cristóvão das nações" que levava Deus
diretamente aos problemas deste mundo.[35] Foi devido às pretensões de serem os russos o "único povo divino dos tempos modernos"[36] que os pan
eslavistas abandonaram suas antigas tendências liberais e, apesar da oposição e de certa
perseguição do governo, tornaram-se fiéis defensores da Rússia Sagrada.
Os pangermanistas austríacos formulavam reivindicações semelhantes quanto à divina escolha,
embora, com igual passado liberal, permanecessem anticlericais e se tornassem anticristãos.
Quando Hitler, discípulo confesso de Schoenerer, disse durante a Segunda Guerra Mundial:
"Deus todo-poderoso construiu nossa nação. Ao defendermos sua existência, estamos
defendendo o Seu trabalho",[37] a resposta que veio do outro lado, de um seguidor do pan
eslavismo, foi no mesmo tom: "Os monstros alemães não são apenas nossos inimigos, são os
inimigos de Deus".[38] Essas formulações não decorriam de necessidades propagandísticas do
momento; esse fanatismo é algo mais que simples abuso de linguagem religiosa: por trás dele há
uma infraestrutura teológica, responsável pelo ímpeto dos primeiros movimentos de unificação
étnica, e que teve considerável influência na evolução dos modernos movimentos totalitários.
Os movimentos de unificação étnica pregavam a origem divina dos seus próprios povos, em
contraposição à fé judaico-cristã na origem divina do Homem. Segundo eles, o homem, por
pertencer inevitavelmente a algum povo, só através desse povo podia receber sua qualidade
divina. O indivíduo, portanto, só tem valor divino enquanto pertence ao povo escolhido, cuja
origem é divina. Perde-a, quando decide mudar de nacionalidade, pois com este ato destrói
todos os laços através dos quais fora dotado de origem divina, e cai num estado de apatria
metafísica. Era dupla a vantagem política desse conceito. Fazia da nacionalidade uma qualidade
permanente que já não era afetada pela história, não importando o que acontecesse a
determinado povo — emigração, conquista ou dispersão. Mas de impacto ainda mais imediato
era o fato de que, no contraste absoluto entre um povo de origem divina e todos os outros povos,
desapareciam todas as diferenças entre os indivíduos desse povo — econômicas, sociais ou
psicológicas. A origem divina transformava o povo numa massa uniforme "escolhida" de robôs
arrogantes.[39]
A inverdade dessa teoria é tão notável quanto a sua utilidade política. Deus não criou nem os
homens — cuja origem é obviamente a procriação — nem os povos — que passaram a existir como resultado da organização humana em grupos
sociais. Os homens são desiguais segundo sua origem natural, sua diferente organização e seu
destino na história. Sua igualdade é apenas uma igualdade de direitos, isto é, uma igualdade de
objetivo humano; contudo, atrás dessa igualdade de objetivo humano, existe, segundo a tradição
judaico-cristã, uma outra igualdade, expressa no conceito de uma origem comum que está além
da história humana, da natureza humana e dos objetivos humanos — a origem comum do
Homem místico e inidentificável, o único que foi criado por Deus. Essa origem divina é o
conceito metafísico no qual pode basear-se a igualdade de objetivo político, o objetivo de
estabelecer a humanidade na terra. O positivismo e o progressismo do século XIX perverteram a
finalidade dessa igualdade humana quando tentaram demonstrar o que não pode ser
demonstrado, isto é, que os homens são iguais por natureza e diferem apenas pela história e
pelas circunstâncias, de modo que podem ser igualados, não por direitos, mas por circunstâncias
e pela educação. O nacionalismo e o seu conceito de "missão nacional" perverteram, por sua
vez, o conceito nacional da humanidade como família de nações, transformando-a numa
estrutura hierárquica onde as diferenças de história e de organização eram tidas como diferenças
entre homens, resultantes de origem natural. O racismo, que negava a origem comum do homem
e repudiava o objetivo comum de estabelecer a humanidade, introduziu o conceito da origem
divina de um povo em contraste com todos os outros,, encobrindo assim com uma nuvem
pseudomística de eternidade e finalidade o que era resultado temporário e mutável do engenho
humano.
É essa finalidade que age como denominador comum entre a filosofia dos movimentos de
unificação étnica e os conceitos raciais, e explica sua afinidade intrínseca no que tange à teoria.
Politicamente, não importa que Deus ou a natureza venham a constituir a origem de um povo;
num caso ou no outro, por mais elevadas que sejam suas reivindicações, os povos se
transformam em espécies animais, de modo que um russo parece tão diferente de um alemão
quanto um lobo difere de uma raposa. Um "povo divino" -vive num mundo no qual é o
perseguidor inato de todas as outras espécies mais fracas, ou a vítima inata de todas as outras
espécies mais fortes. Só as regras do mundo animal podem aplicar-se aos seus destinos
políticos.
O tribalismo dos movimentos de unificação, com seu conceito da "origem divina" de um povo,
deve parte da atração que exerceu ao desprezo com que via o individualismo liberal,[40] o ideal de
humanidade e a dignidade do homem. Nenhuma igualdade subsiste quando o indivíduo deve o
seu valor apenas ao fato de ter nascido russo ou alemão; mas fica em seu lugar uma nova
coerência, um sentido de confiança mútua entre todos os membros do povo que, realmente, é
capaz de aplacar as justificadas apreensões dos homens modernos quanto ao que lhes poderia acontecer se, como indivíduos isolados numa sociedade atomi-zada, não
fossem protegidos pelo próprio número e pela imposição de uma coerência uniforme.
Analogamente, o "cinturão de populações mistas", mais exposto que outras partes da Europa às
tormentas da história e menos enraizado na tradição ocidental, sentiu, antes de outros povos
europeus, o terror do ideal de humanidade e da fé judaico-cristã na origem comum do homem.
Esses povos não alimentavam quaisquer ilusões quanto ao "nobre selvagem", pois conheciam
bastante a potencialidade do mal sem precisarem pesquisar os hábitos dos canibais. Quanto mais
um povo aprende a respeito de outro, menos quer reconhecê-lo como seu igual, e mais se afasta
do ideal de humanidade.
A tendência para o isolamento tribal e para a ambição de raça dominante resultava em parte do
sentimento instintivo de que o conceito de humanidade como ideal religioso ou humanístico
implica a responsabilidade comum.[41] O encurtamento das distâncias geográficas transformava
isso em realidade política de primeira grandeza.[42] E transformou em coisa do passado a
discussão idealista sobre a humanidade e dignidade do homem, pelo simples fato de que todas
essas ideias excelsas mas oníricas, com as suas tradições consagradas pelo tempo, perdiam
repentina e assustadoramente o sentido de tempo. Nem mesmo a insistência sobre a natureza
pecadora dos homens, naturalmente omitida da fraseologia dos representantes liberais da
humanidade, bastava para a aceitação do fato de que a ideia de humanidade, despida de
sentimentalismo, tem a gravíssima consequência de tornar os homens, de um modo ou de outro,
responsáveis por todos os crimes cometidos pelos homens e eventualmente forçar todas as
nações a responderem pelo mal cometido pelas outras.
O tribalismo e o racismo são maneiras muito realistas — se bem que muito destrutivas — de
fugir a essa situação de responsabilidade comum. Seu desarraigamento metafísico, que
correspondia tão bem ao desarraigamento territorial das primeiras nacionalidades que vieram a
seduzir, amoldava-se igualmente bem às necessidades das massas flutuantes das cidades
modernas e foi, portanto, absorvido prontamente pelo totalitarismo. E até mesmo a fanática
adoção do marxismo — a maior das doutrinas antinacionais — pelos bolchevistas foi depois contra-atacada pela propaganda pan-eslavista reintroduzida na União
Soviética, tal o valor isolacionista dessas teorias.[43]
É verdade que o sistema de governo na Ãustria-Hungria e na Rússia czarista, baseado na
opressão de nacionalidades, servia como verdadeiro aprendizado de nacionalismo tribal. Na
Rússia, essa opressão era monopolizada exclusivamente pela burocracia, que também oprimia o
povo russo, de sorte que somente a intelligentsia russa veio a ser pan-eslavista. A Monarquia,
pelo contrário, dominava as nacionalidades indóceis outorgando-lhes liberdade suficiente para
que oprimissem outras nacionalidades, de modo que estas se transformaram na verdadeira base
para a ideologia dos movimentos de unificação. O segredo da sobrevivência da casa dos
Habsburgos no século XIX está no cuidadoso equilíbrio de uma máquina supranacional,
proporcionado pelo mútuo antagonismo e pela exploração dos tchecos pelos alemães, dos
eslovacos pelos húngaros, dos rutênios pelos poloneses, e assim por diante. Todos aceitavam
com naturalidade o fato de que cada grupo poderia ser promovido a nação à custa dos outros
grupos nacionais, e renunciaria com prazer à liberdade se a opressão viesse de um governo
nacional próprio.
Os dois movimentos unificadores [pan-eslavo e pangermânico] surgiram sem qualquer ajuda
dos governos russo ou alemão. Isto não evitou que os seus adeptos austríacos se entregassem ao
prazer da alta traição contra o governo de seu país. Foi a possibilidade de educar as massas no
espírito da alta traição que deu aos movimentos austríacos de unificação étnica o considerável
apoio popular que nunca tiveram na Alemanha e na Rússia propriamente ditas. Era muito mais
fácil induzir o trabalhador alemão a atacar a burguesia alemã do que a atacar o governo, como
era muito mais fácil na Rússia "levantar os camponeses contra os proprietários rurais do que
contra o czar".[44] As diferenças entre as atitudes dos trabalhadores alemães e dos camponeses
russos eram, sem dúvida, tremendas: os primeiros olhavam um monarca, embora não muito
querido, como símbolo da unidade nacional, enquanto os últimos viam no governo o verdadeiro
representante de Deus na terra. Essas diferenças, contudo, eram menos significativas do que o
fato de que, nem na Rússia nem na Alemanha, o governo era tão fraco como na Áustria; nem
sua autoridade havia caído em tal descrédito que os movimentos de unificação étnica pudessem
capitalizar politicamente a agitação revolucionária. Somente na Áustria o ímpeto revolucionário
encontrou essa válvula de escape natural nos movimentos de unificação. O expediente de divide
et impera, não muito habilmente conduzido pelo governo, pouco contribuiu para diminuir as tendências centrífugas dos sentimentos nacionais, mas criou
complexos de superioridade e levou a uma atmosfera geral de deslealdade.
A hostilidade do Estado como instituição é parte das teorias de todos os movimentos de
unificação étnica. Já se disse, com razão, que a oposição dos eslavófilos ao Estado é
"inteiramente diferente de tudo que é encontrável na atitude do sistema do nacionalismo
oficial".[45] O Estado, por sua própria natureza, era declarado estranho ao povo. Assim, a
superioridade eslava, segundo se pensava, jazia na indiferença com que o povo russo via o
Estado, no fato de o povo se manter como um corpus separatum do seu próprio governo. É isso
o que os eslavófilos queriam dizer quando chamaram o povo russo de "povo sem Estado". Mas
isso também possibilitou a esses "liberais" reconciliarem-se com o despotismo, pois o fato de o
povo não "interferir com o poder estatal", isto é, com o absolutismo desse poder,[46] estava de
acordo com a exigência do despotismo. Os pangermanistas, politicamente mais articulados,
sempre insistiam na prioridade do interesse nacional sobre o interesse do Estado[47] e geralmente
argumentavam que "a política mundial transcende a estrutura do Estado", que o único fator
permanente no decorrer da história era o povo e não o Estado, e que, portanto, as necessidades
nacionais, mudando com as circunstâncias, deviam sempre determinar os atos políticos do
Estado.[48] Mas o que na Alemanha e na Rússia não passou de frases altissonantes até o fim da
Primeira Guerra Mundial tornou-se real e efetivo na Monarquia Dual cuja decadência gerou um
permanente desprezo pelo governo.
Seria erro grave presumir que os líderes dos movimentos de unificação eram reacionários ou
"contrarrevolucionários". Embora não estivessem, via de regra, muito interessados em questões
sociais, nunca cometeram o equívoco de se aliar à exploração capitalista; a maioria havia
pertencido, e alguns continuavam a pertencer, a partidos liberais e progressistas. De certo modo,
é fato que a Liga Pangermânica "concretizou uma verdadeira tentativa de controle popular no
campo da política estrangeira. Acreditava firmemente na eficiência de uma opinião pública
forte, voltada para a nação (...) para ditar a política nacional pela força da exigência popular".[49] Mas a ralé, que se agrupava nos movimentos de unificação inspirados por ideologias raciais, não
era a mesma massa cujas ações revolucionárias haviam levado à criação do governo constitucional e cujos
verdadeiros representantes, àquela altura, só se podiam encontrar nos movimentos trabalhistas;
essa ralé, com a sua "consciência tribal ampliada" e com a sua notável falta de patriotismo, se
assemelhava mais a uma "raça".
Em contraste com o pangermanismo, o pan-eslavismo foi formado pela intelligentsia russa, à
qual impregnou totalmente. Muito menos desenvolvido como organização e muito menos
consistente em sua programação política, manteve por um tempo surpreendentemente longo um
nível muito alto de sofisticação literária e especulação filosófica. Enquanto Rozanov analisava
as misteriosas diferenças entre a força sexual de judeus e cristãos e chegava à surpreendente
conclusão de que os judeus estão "unidos a essa força, enquanto os cristãos estão separados
dela",[50] o líder os pangermanistas da Áustria descobria as maneiras de "atrair o interesse do
homem do povo através de músicas de propaganda, cartões-postais, canecas de cerveja,
bengalas e caixas de fósforos".[51] Mas finalmente as filosofias de "Schelling e Hegel foram
abandonadas e a ciência natural foi convocada a fornecer a munição teórica" também aos pan
eslavistas.[52]
O pangermanismo, fundado por um só homem, Georg von Schoenerer, e apoiado
principalmente pelos estudantes austro-alemães, empregou desde o início uma linguagem
extraordinariamente vulgar, destinada a atrair camadas sociais mais vastas e diferentes.
Consequentemente, Schoenerer foi também "o primeiro a perceber as possibilidades do anti
semitismo como instrumento para forçar a direção da política externa e destruir (...) a estrutura
interna do Estado".[53] Algumas das razões pelas quais o povo judeu se prestava a essa finalidade
são óbvias: sua posição muito proeminente em relação à monarquia dos Habsburgos, aliada ao
fato de que, num país multinacional, era mais fácil reconhecê-los como nacionalidade à parte do
que nos Estados-nações, cujos cidadãos, pelo menos teoricamente, tinham origem homogênea.
Isso, contudo, embora explique a violência do antissemitismo austríaco e revele a sagacidade
política de Schoenerer na exploração da questão, não ajuda a compreender o papel ideológico
central que o anti-semitismo desempenhou em ambos os movimentos.
A "consciência tribal ampliada" como motor emocional dos movimentos de unificação já era
madura quando o antissemitismo tornou-se questão central e centralizadora. O pan-eslavismo,
com a sua tradição mais duradoura e mais respeitável de especulação filosófica, e com a sua
ineficácia política mais notável, só virou antissemita nas últimas décadas do século XIX;
Schoenerer, o pangermanista, já havia anunciado abertamente sua hostilidade às instituições estatais quando
muitos judeus ainda eram membros do seu partido.[54] Na Alemanha, onde o movimento de
Stoecker havia demonstrado a utilidade do antissemitismo como arma de propaganda política, a
Liga Pangermância teve, de início, certa tendência antissemita, mas, antes de 1918, nunca
chegou a excluir os seus membros judeus.[55] A ocasional antipatia dos eslavófilos pelos judeus
transformou-se em antissemitismo no seio de toda a intelligentsia russa quando, após o
assassínio do czar em 1881, uma onda de pogroms organizados pelo governo focalizou a
atenção pública na questão judaica.
Schoenerer, que descobriu o antissemitismo na mesma época, provavelmente percebeu suas
possibilidades quase por acaso: como o que desejava acima de tudo era destruir o império dos
Habsburgos, não era difícil calcular o efeito da exclusão de uma nacionalidade da estrutura
estatal, que se apoiava numa multitude de nacionalidades. Toda a textura dessa constituição
peculiar e o precário equilíbrio de sua burocracia podiam ser destruídos se os movimentos
populares sabotassem a moderada opressão sob a qual todas as nacionalidades tinham certa
igualdade. Essa finalidade poderia ter sido igualmente atingida pelo furioso ódio que os
pangermanistas sentiam com relação às nacionalidades eslavas, ódio que, arraigado antes que o
movimento se tornasse antissemita, era também aprovado por seus membros judeus.
O que tornou o antissemitismo dos movimentos de unificação étnica tão eficaz, a ponto de ter
sobrevivido ao declínio da propaganda antissemita durante a enganadora calma que precedeu a
deflagração da Primeira Guerra Mundial, foi a sua fusão com o nacionalismo tribal da Europa
oriental. Pois havia uma afinidade inerente entre as teorias daqueles movimentos a respeito dos
povos e a existência sem raízes do povo judeu. Os judeus pareciam ser o único exemplo perfeito
de um povo no sentido tribal; sua organização tornou-se modelo que os movimentos de
unificação procuravam copiar; sua sobrevivência e suposta força pareciam a melhor prova da
correção das teorias raciais.
Se outras nacionalidades na Monarquia Dual tinham apenas débeis raízes no solo e pouca noção
do significado de um território comum, os judeus eram o exemplo de um povo que, sem país de
qualquer espécie, havia podido manter sua identidade no decorrer dos séculos e, portanto, podia
ser citado como prova de que não havia necessidade de território para que se constituísse uma
nacionalidade.[56] Se os movimentos de unificação étnica insistiam na importância secundária do
Estado e na suprema importância do povo, organizado em vários países e não necessariamente
representado por instituições visíveis, os judeus eram o modelo perfeito de uma nação sem Estado e sem essas instituições.[57] Se as nacionalidades tribais
apontavam para si mesmas como o centro de seu orgulho nacional, independentemente de realizações
históricas e de participação em acontecimentos registrados, se acreditavam que alguma qualidade inerente
misteriosa, psicológica ou física; fazia delas a encarnação, não da Alemanha, mas do germanismo, não da
Rússia, mas da alma russa, sentiam de alguma forma, mesmo que não soubessem expressá-lo, que a
"judeidade" dos judeus assimilados correspondia exatamente ao mesmo tipo de encarnação individual e
pessoal do judaísmo, e que o orgulho peculiar dos judeus secularizados, que não haviam desistido de sua
antiga qualidade de "escolhidos", realmente significava que acreditavam ser diferentes e melhores pelo
simples fato de terem nascido judeus, independentemente das realizações e tradição judaicas.
É bem verdade que essa atitude judaica — esse tipo judaico de nacionalismo tribal, por assim dizer —
fora resultado da posição anormal dos judeus nos Estados modernos, fora do âmbito da sociedade e da
nação. Mas a posição daqueles grupos étnicos flutuantes, que só tomaram consciência de sua
nacionalidade através do exemplo de outras nações ocidentais e, mais tarde, a posição das massas
desarraigadas das grandes cidades, que o racismo mobilizou com tanta eficácia, eram semelhantes em
muitos aspectos. Também se situavam fora do âmbito social e também estavam fora do corpo político do
Estado-nação, que parecia ser a única organização política satisfatória para um povo. Logo reconheceram
nos judeus os seus concorrentes mais felizes, mais protegidos pela sorte, pois, em sua opinião, os judeus
haviam encontrado um meio de constituir uma sociedade própria que, precisamente por não ter
representação visível nem escoadouro político normal, podia vir a substituir a nação.
Mas o que arrastou os judeus para o centro dessas ideologias racistas, mais que qualquer outro fato, foi a
pretensão judaica ser de um povo eleito — único obstáculo sério à igual pretensão que emanava dos
movimentos de unificação étnica. Não importava que o conceito judaico nada tivesse em comum com as
teorias tribais acerca da origem divina de um povo. A ralé não estava muito interessada nessas sutilezas
de correção histórica, e mal percebia a diferença que havia entre uma histórica missão judaica de realizar
o estabelecimento da humanidade na terra e a sua própria "missão" de dominar todos os outros povos da
terra. Mas os líderes dos movimentos sabiam muito bem que os judeus haviam dividido o mundo —
exatamente como eles o preconizavam — em duas partes: eles próprios e todos os outros.[58] Nessa
dicotomia, os judeus surgiam mais uma vez como os concorrentes mais afortunados, que haviam herdado algo e eram
reconhecidos por algo que os gentios tinham de construir a partir do nada.[59]
Ê um "truísmo", que não se tornou mais verdadeiro com a repetição, que o anti-semitismo seja apenas
uma forma de inveja. Mas, no tocante à escolha dos judeus ele é bastante verdadeiro. Sempre que um
povo é apartado da ação e da realização, sempre que esses laços naturais com o mundo comum são
rompidos ou não existem por um motivo ou outro, ele tende a voltar-se para dentro de si mesmo, em sua
elementaridade nua e natural, e a alegar divindade e uma missão de redimir a terra. Quando isso acontece
na civilização ocidental, tal povo encontra a antiga pretensão dos judeus a barrar-lhe o caminho
messiânico. Foi isso que perceberam os porta-vozes dos movimentos de unificação étnica, e é por isso
que se incomodaram tão pouco com a questão realista de saber se o problema judeu, em termos de
números e de poder, era suficientemente importante para fazer do ódio aos judeus o esteio de suas
ideologias. Do mesmo modo como o seu próprio orgulho nacional independia de qualquer realização,
também o seu ódio pelos judeus independia de qualquer coisa que os judeus houvessem feito, de bom ou
de mau. Nesse ponto, todos os movimentos de unificação concordavam plenamente, embora nenhum
deles soubesse como utilizar esse esteio ideológico para fins de organização política.
A defasagem entre a formulação da ideologia dos movimentos e a possibilidade de sua aplicação séria na
política é demonstrada pelo fato de que os "Protocolos dos sábios do Sião" — forjados por volta de 1900
por agentes da polícia secreta russa em Paris, mediante sugestão de Pobiedonostzev, conselheiro político
de Nicolau II e o único pan-eslavista a galgar uma posição influente — ficaram como um panfleto semi
esquecido até 1919, quando iniciaram sua marcha verdadeiramente triunfal em todos os países e idiomas
europeus;[60] trinta anos mais tarde, sua circulação só era inferior à do Mein Kampf de Hitler. Nem o
falsificador nem o seu patrão sabiam que viria um tempo em que a polícia seria realmente a instituição
central de uma sociedade, e toda a força do país se organizaria de acordo com os princípios, supostamente
judeus, expostos nos Protocolos. Talvez tenha sido Stalin o primeiro a descobrir todo o potencial de
domínio da polícia; certamente foi Hitler quem, mais sagaz que o seu pai espiritual Schoenerer, soube
como usar o princípio hierárquico do racismo; como explorar a afirmação antissemita da existência de um
povo que era "o pior de todos" a fim de organizar devidamente "o melhor de todos", ficando entre estes
dois extremos todos os outros povos conquistados e oprimidos; como generalizar o complexo de superioridade dos movimentos de unificação de modo que cada povo, com a
necessária exceção dos judeus, pudesse olhar com desprezo aquele povo que era ainda pior que ele
próprio.
Foram necessárias mais algumas décadas de caos encoberto e de franco desespero, antes que muitas
pessoas confessassem alegremente que iriam realizar justamente aquilo que, segundo pensavam, somente
os judeus em seu diabolismo inato tinham conseguido fazer até então. De qualquer forma, os líderes dos
movimentos de unificação, embora já tivessem uma vaga noção da questão social, foram muito unilaterais
em sua ênfase na política externa — e não conseguiram ver que o antissemitismo poderia constituir o
necessário elo de ligação entre os métodos domésticos e externos; não sabiam ainda como estabelecer
uma "comunidade popular", isto é, uma horda completamente desarraigada e racialmente doutrinada.
O fato de que o fanatismo dos movimentos de unificação étnica tenha escolhido os judeus para seu centro
ideológico, que foi o começo do fim das comunidades judaicas europeias, constitui uma das mais lógicas
e mais amargas vinganças de toda a história. Porque há certa dose de verdade nas afirmações
"esclarecidas", desde Voltaire até Renan e Taine, de que o conceito de escolha divina dos judeus, o modo
como identificavam a religião com a nacionalidade, sua reivindicação de uma posição absoluta na história
e uma relação especial com Deus trouxeram para a civilização ocidental, por um lado, um elemento de
fanatismo até então desconhecido (e que foi herdado pelo cristianismo em sua pretensão de posse
exclusiva da Verdade) e, por outro lado, um elemento de orgulho tão perigosamente próximo da
perversão racial.[61]
Politicamente, não teve a menor importância o fato de que o judaísmo e a devoção judaica, ainda intacta,
houvessem sido sempre isentos da imanência direta da Divindade, e até hostis a esse conceito. Porque o
nacionalismo tribal é a perversão da religião que fez com que Deus escolhesse uma nação entre as
demais; e, somente porque esse velho mito e o único povo sobrevivente da Antiguidade tinham raízes
profundas na civilização ocidental, o líder da moderna ralé podia, com certa plausibilidade e imprudência,
trazer Deus para a luta mesquinha entre os povos e pedir o Seu consentimento para outra eleição, que ele,
líder, em nome dos potencialmente elegíveis, já havia manipulado.[62] O ódio dos racistas aos judeus
advinha da supersticiosa apreensão de que Deus poderia ter realmente escolhido os judeus e não a eles, de que a divina providência realmente houvesse
concedido o sucesso aos judeus. Havia um certo ressentimento indeciso contra um povo que, ao que se
receava, tinha recebido uma garantia racionalmente incompreensível de que surgiria finalmente, e a
despeito de todas as aparências, como vencedor final na história do mundo.
Pois, para a mentalidade da ralé, o conceito judeu de uma missão divina de realizar o reino de Deus só
podia ser entendido em termos vulgares de sucesso e fracasso. O temor e o ódio eram alimentados e, até
certo ponto, racionalizados pelo fato de que o cristianismo, religião de origem judaica, já havia
conquistado a humanidade ocidental. Levados por suas próprias superstições ridículas, os líderes dos
movimentos de unificação descobriram aquela pequena mola oculta na mecânica da devoção judaica que
possibilitava uma completa reversão e perversão, de modo que a escolha já não correspondia mais ao mito
da realização final do ideal de uma humanidade comum — mas da sua destruição final.
continua página 258...
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Parte II Imperialismo (4.1 - Nacionalismo Tribal)
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[20] Durante a Guerra da Criméia (1853-6), Michael Pagodin, folclorista e filólogo russo, escreveu uma carta ao czar
na qual chamava os povos eslavos de únicos fortes e fiéis aliados da Rússia (Staehlin, op. cit., p. 35); pouco depois, o
general Nikolai Muravyev Amursky, "um dos grandes construtores de império da Rússia", fazia votos pela "liberação
dos eslavos da Turquia e da Áustria" (Hans Kohn, op. cit.); e já em 1870 surgia um panfleto militar que exigia "a
destruição da Áustria como condição necessária para uma federação pan-eslava" (ver Staehlin, op. cit., p. 282).
[21] Ver Otto Bonhard, op. cit., pp. 58 ss., e Hugo Grell, Der alldeutsche Verban, seine Geschichte, seine Bestrebungen, seine Erfolge [A Liga Pangermânica, sua história, seus sucessos], Alldeutsche Flugschriften, n? 8.
[22] Segundo o programa pangermanista austríaco de 1913, citado por Eduard Pichl, Georg Schoenerer, 1938, 6
vols., VI, 375.
[23] Enquanto Schoenerer, com a sua admiração por Bismarck, declarou em 1876 que "a Áustria como grande
potência deve deixar de existir" (Pichl, op. cit., I, 90), Bismarck achava e dizia aos seus admiradores austríacos que
"uma Áustria poderosa é uma necessidade vital para a Alemanha". VerF. A. Neuschafer, Georg Rittervon Schoenerer
(tese), Hamburgo, 1935. A atitude do czar em relação ao pan-eslavismo era muito mais ambígua, porque o pan
eslavismo tinha uma concepção de Estado que incluía forte apoio popular ao governo despótico. Contudo, mesmo em
circunstâncias tão tentadoras, o czar não apoiou a exigências expansionista dos eslavófilos e dos seus sucessores. Ver
Staehlin, op. cit., pp. 30 ss.
[24] Ver o capítulo 2.
[25] Pichl, op. cit.,l, 26.
[26] Vassilif Rozanov, Fallen leaves, 1929, pp. 163-4.
[27] Ver C. A. Macartney, National states and national minorities, Londres, 1935, pp. 432 ss.
[28] Karl Marx, O ISBrumário de Luís Bonaparte.
[29] Ver J. T. Delos, La nation, Montreal, 1944, importante estudo sobre o assunto.
[30] Ver o duque de Rohan, DeVintérêt desprinces et états de Ia chrétienté, 1638, dedicado ao cardeal Richelieu.
[31] Uma das mais esclarecedoras discussões do princípio da soberania é ainda Jean Bodin, Six livres de Ia
republique, 1576. Para um bom relato e discussão das principais teorias de Bodin, ver George H. Sabine, A history
qfpolitical theory, 1937.
[32] Interessante nesse contexto são as proposições socialista de Karl Renner e Otto Bauer, na Áustria, de separar a
nacionalidade inteiramente de sua base territorial e torná-la uma espécie de status pessoal; isso, naturalmente,
correspondia a uma situação em que grupos étnicos se disseminavam por todo o império sem perder suas
características nacionais. Ver Otto Bauer, Die Natio-nalitàtenfrage und die osterreichische Sozialdemokratie [A
questão nacional e a social-democracia austríaca], Viena, 1907, quanto ao princípio pessoal (em oposição ao
territorial) da nacionalidade (pp. 332 ss, 353 ss). "O princípio pessoal deseja organizar as nações não como entidades
territoriais, mas como meras associações de pessoas."
[33] Picbl, op.cit., 1,152.
[34] Somente nessas condições é que surgia um movimento de unificação étnica, completamente organizado. O
panlatinismo foi a denominação errada de certas tentativas frustradas das nações latinas de entrarem em alguma
aliança contra o perigo alemão, e o messianismo polonês nunca exigiu outra coisa senão o que foi no passado
território dominado pela Polônia. Ver também Deckert, op. cit., que disse em 1914: "o panlatinismo tem declinado
cada vez mais, e o nacionalismo e a consciência estatal têm se tornado mais fortes e conservado um potencial maior
aqui do que em qualquer outra parte da Europa" (p. 7).
[35] Nicolas Berdyaev, The origin of Russian communism, 1937, p. 102. K. S. Aksakov chamava o povo russo de
"único povo cristão na terra" em 1855 (ver Hans Ehrenberg e N. V. Bubnoff, Oestliches Christentum [Cristandade
oriental], parte I, pp. 92 ss), e o poeta Tyutchev dizia, na mesma época, que "o povo russo é cristão não apenas pela
ortodoxia de sua fé, mas também por algo mais íntimo. É cristão por aquela capacidade de renúncia e sacrifício que é
o fundamento de sua natureza moral". Citado por Hans Kohn, op. cit.
[36] Segundo Chaadayev, cujas Cartas filosóficas 1829-1831 constituem a primeira tentativa sistemática de
apresentar a história do mundo evoluindo ao redor do povo russo como seu centro. Ver Ehrenberg, op. cit., I, 5ss.
[37] Discurso de 30 de janeiro de 1945. New York Times, 31 de janeiro de 1945.
[38] Palavras de Lucas, arcebispo de Tambov, citadas no Jornal do Patriarcado de Moscou, n? 2,1944.
[39] Isso já era reconhecido pelo jesuíta russo, príncipe Ivan S. Gagarin, em seu panfleto La Russie sera-t-elle
catholique? (1856), no qual atacava os eslavófilos porque "querem estabelecer a mais completa uniformidade
religiosa, política e nacional. Em sua política exterior, querem fundir todos os cristãos ortodoxos, de qualquer
nacionalidade, e todos os eslavos de qualquer nacionalidade, num grande império eslavo e ortodoxo". (Citado por
Hans Kohn, op. cit.)
[40] "Todos reconhecerão que o homem não tem outro destino neste mundo senão trabalhar pela destruição de sua
personalidade e sua substituição por uma existência social e impessoal." Chaadayev, op. cit., p. 60.
[41] O seguinte trecho de Frymann, op. cit., p. 186, é característico: "Conhecemos o nosso próprio povo, suas
qualidades e seus defeitos — não conhecemos a humanidade, e nos recusamos a ter alguma preocupação ou
entusiasmo por ela. Onde começa e onde termina aquilo a que devemos amar porque pertence à humanidade (...)? O
camponês russo do mir [comuna], decadente e semi-animalesco, o negro da África, o mestiço do Sudoeste Africano
ou os insuportáveis judeus da Galícia e da Romênia são todos membros da humanidade? (...) É possível crer na
solidariedade dos povos germânicos — e não importa para nós quem estiver fora dessa esfera".
[42] Foi esse encurtamento das distâncias geográficas que Friedrich Naumann expressou em Central Europe: "Ainda
está longe o dia em que haverá 'um só rebanho e um só pastor', mas já se foi o tempo em que um sem-número de
pastores, maiores ou menores, dirigiam os seus rebanhos livremente pelos pastos da Europa. O espírito da indústria
em larga escala e da organização supranacional tomou conta da política. As pessoas pensam, como disse certa vez
Cecil Rhodes, 'em termos de continentes'". Estas poucas frases foram citadas em inúmeros artigos e panfletos da
época.
[43] Muito interessantes a esse respeito são as teorias genéticas da Rússia soviética que surgiram na década dos 50.
A herança de caracteres adquiridos significa claramente que as populações que vivem sob condições desfavoráveis
transferem a seus descendentes uma hereditariedade inferior, e vice-versa. "Em uma palavra, teríamos raças
dominantes e dominadas inatas." Ver H. S. Muller, "The soviet master race theory", em New Leader, 30 de junho de
1949.
[44] G. Fedotov, "Rússia and Freedom", em The Review of Politics, vol. VIII, n? 1, janeiro de 1946. Trata-se de
verdadeira obra-prima em matéria de trabalho histórico; dá um resumo de toda a história da Rússia.
[45] N. Berdyaev, op. cit., p. 29.
[46] K. S. Aksakov, em Ehrenberg, op. cit., p. 97.
[47] Ver, por exemplo, a queixa de Schoenerer de que o "Verfassungspartei" [partido da situação] austríaco ainda
subordinava os interesses nacionais aos interesses do Estado (Pichl, op. cit., I, 151). Ver também os trechos
característicos do Judas KampfundNiederlageinDeutschland, 1937, pp. 39ss do pangermanista conde E. Reventlow.
O autor via no nazismo a realização do pangermanismo, dada a sua recusa de "idolatrar" o Estado, considerado
apenas como uma das funções da vida do povo.
[48] Ernst Hasse, Deutsche Weltpolitik [A política mundial alemã], 1897, Alldeutsche Flug-schriften, n? 5, e
Deutsche Politik, vol. I: Das deutsche Reich ais Nationalstaat [O Reich alemão como Estado nacional], 1905, p. 50.
(49) Wertheimer, op. cit., p. 209.
[49] Wertheimer, op. cit., p. 209.
[50] Rozanov, op. cit., pp. 56-7.
[51] Oscar Karbach, op. cit.
[52] Louis Levine, Pan-Slavism and European politics, Nova York, 1914, descreve essa transformação dos
eslavófilos antigos.
[53] Oscar Karbach, op. cit.
[54] O Programa de Linz, que ficou sendo o programa dos pangermanistas da Áustria, foi originalmente redigido
sem o parágrafo sobre os judeus; havia até três judeus no comitê que o esboçou em 1882. O parágrafo sobre os judeus
foi acrescentado em 1885. Ver Oscar Karbach, op. cit.
[55] Otto Bonhard, op. cit., p. 45.
[56] Como o foi pelo socialista Otto Bauer, op. cit., p. 373, que certamente não era antissemita.
[57] Muito elucidativo quanto à auto-interpretação judaica é o ensaio de A. S. Steinberg, "Die weltanschaulichen
Voraussetzungen der jüdischen Geschichtsschreibung" [Os pressupostos ideológicos da escrita histórica judaica], em
Dubnow Festschrífi, 1930: "Se um homem (...) se convence do conceito da vida conforme é expresso na história
judaica (...) então a questão do Estado perde o seu significado, sem que importe como se venha a defini-lo".
[58] A similaridade que existe entre esses conceitos pode ser vista na seguinte coincidência, à qual se poderiam
ajuntar muitos outros exemplos: Steinberg, op. cit., diz dos judeus: a sua história ocorre fora de todas as leis históricas
comuns; Chaadayev chama os russos de povo-exceção. Berdyaev disse claramente (op. cit., p. 135): "O messianismo russo é semelhante ao messianismo judaico".
[59] Ver o antissemita E. Reventlow, op. cit., mas também o filósofo russo filo semita Vladimir Slovyov, O
judaísmo e a questão cristã (1884): entre as duas nações religiosas, os russos e os poloneses, a história introduziu um
terceiro povo religioso, os judeus. Ver Ehrenberg, op. cit., p. 314ss. Ver também Cleinow, op. cit., pp. 44ss.
[60] Ver John S. Curtiss, Theprotocols of Zion, Nova York, 1942.
[61] Ver Berdyaev, op. cit., p. 5: "A religião e a nacionalidade desenvolveram-se juntas no reino moscovita, como
ocorreu na consciência do antigo povo hebreu. E, do mesmo modo como a consciência messiânica era um atributo do
judaísmo, foi também um atributo da ortodoxia russa".
[62] Um fantástico exemplo de toda essa loucura é a seguinte passagem de Léon Bloy — que, felizmente, não é
típica do nacionalismo francês: "A França está colocada tão acima das outras nações que todas elas, não importa
quais sejam, devem sentir-se honradas se tiverem a permissão de comer as migalhas dos seus cães. Se a França for
feliz, então o resto do mundo pode dar-se por satisfeito, mesmo que tenha de pagar pela felicidade da França com a
escravidão e a destruição. Mas, se a França sofrer, então o próprio Deus, o terrível Deus, sofre também. (...) Isto é tão
absoluto e inevitável como o segredo da predestinação". Citado por R. Nadolny, Germanisie
rungoder5/avíííeru/i^?[Germanizaçao ou eslavização?], 1928, p. 55.