terça-feira, 30 de setembro de 2025

MPB: Eu te amo

Tom Jobim - Chico Buarque & Telma Costa






Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

Composição: Antonio Carlos Jobim / Chico Buarque

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Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (4.1 - Nacionalismo Tribal)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

4. O Imperialismo Continental: Os Movimentos de Unificação
     4.1 - Nacionalismo Tribal
          Do mesmo modo como o imperialismo continental nasceu das ambições frustradas de países que não participaram da súbita expansão dos anos 80 do século XIX, o tribalismo surgiu como o nacionalismo daqueles povos que não haviam participado da emancipação nacional e não haviam alcançado a soberania de Estado nação. Onde as duas frustrações existiam lado a lado — como ocorria em países multinacionais como a Áustria-Hungria e a Rússia —, os movimentos de unificação étnica encontravam naturalmente o solo mais fértil. Além disso, como a Monarquia Dual abrigava as nacionalidades irredentistas eslavas e alemã, o pan-eslavismo e o pangermanismo concentraram-se desde o início em sua destruição, e a Áustria-Hungria se tornou o real centro desses movimentos. Os pan-eslavistas russos já em 1870 diziam que o melhor ponto de partida possível para um império pan-eslavo seria a desintegração da Áustria,[20] e os pangermanistas austríacos eram tão violentamente agressivos em relação ao seu próprio governo que até mesmo o Alldeutsche Verband na Alemanha se queixava frequentemente dos "exageros" dos seus correligionários austríacos.[21] O plano para a união econômica da Europa central sob a égide da Alemanha, concebido pelos alemães, bem como todos os projetos semelhantes dos pangermanistas alemães para criar um império continental, transformou-se subitamente, tão logo caiu nas mãos dos pangermanistas austríacos, numa estrutura que viria a ser o "centro da vida alemã em toda a terra, aliado a todos os outros Estados germânicos".[22]
     É claro que as tendências expansionistas do pan-eslavismo eram tão embaraçosas para o czar quanto eram para Bismarck os gratuitos protestos de lealdade ao Reich e a deslealdade à Áustria dos pangermanistas austríacos.[23] Pois, por mais que fossem ocasionalmente exaltados os sentimentos nacionais, ou por mais ridículas que se tornassem as alegações nacionalistas em tempos de crise, permaneciam dentro de certos limites, uma vez que se cingiam a um território nacional definido e eram controlados pelo orgulho num Estado nacional limitado, enquanto os movimentos de unificação logo ultrapassavam esse limites.
     Pode-se melhor avaliar a modernidade dos movimentos de unificação por sua posição inteiramente nova em relação ao antissemitismo. As minorias reprimidas, como os eslavos na Áustria e os poloneses na Rússia czarista, em virtude do antagonismo que as apartava dos seus respectivos governos, estavam predispostas a descobrir as relações ocultas entre as comunidades judaicas e os Es-tados-nações europeus, e essa descoberta podia facilmente levá-las à hostilidade. Nos países em que o antagonismo ao Estado não era identificado com falta de patriotismo, como na Polônia (então incorporada à Rússia), onde a deslealdade ao czar era sinônimo de lealdade à nação polonesa, ou como na Áustria, onde a população de língua alemã via em Bismarck sua grande figura nacional, o antissemitismo assumia formas mais violentas, porque os judeus aparentavam ser não só agentes de uma máquina estatal opressora, mas de um opressor estrangeiro. O papel fundamental do antissemitismo nos movimentos de unificação não se justifica nem pela posição das minorias, nem pelas experiências específicas que Schoenerer, o líder do pangermanismo austríaco, havia tido no início da sua carreira, quando, ainda membro do Partido Liberal, viera a saber das ligações entre a monarquia dos Habsburgos e o domínio dos Roths-child sobre a rede ferroviária da Áustria.[24] Isso não o teria levado a declarar que "nós, os pangermanistas, consideramos o antissemitismo como o esteio de nossa ideologia nacional",[25] como nenhum evento similar poderia ter induzido Rozanov, o escritor pan-eslavo russo, a pretender que "não existe problema na vida russa no qual, como uma vírgula na frase, não exista também a questão de como enfrentar o judeu".[26]
     A chave do súbito aparecimento do antissemitismo como centro de todo um conceito de vida e de mundo — em contraposição ao seu papel meramente político na França durante o Caso Dreyfus, ou como mero instrumento de propaganda no movimento alemão de Stoecker — está na natureza do tribalismo e não em fatos e circunstâncias políticas. A verdadeira importância do antissemitismo dos movimentos de unificação étnica está nisto: o ódio aos judeus foi pela primeira vez isolado de toda experiência real — política, social ou econômica —, seguindo apenas a lógica peculiar de uma ideologia.
     O nacionalismo tribal, a força motora do imperialismo continental, tinha pouco em comum com o nacionalismo do Estado-nação ocidental plenamente desenvolvido. O Estado-nação, com a sua reivindicação de representação popular e soberania nacional, tal como havia evoluído desde a Revolução Francesa até o século XIX, resultava da combinação de dois fatores que, ainda separados no século XVIII, permaneceram separados na Rússia e na Áustria-Hungria até 1919: nacionalidade e Estado. As nações adentravam a história e se emancipavam quando os povos adquiriam a consciência de serem entidades culturais e históricas e a de ser o seu território um lar permanente marcado pela história comum, fruto do trabalho dos ancestrais, e cujo futuro dependeria do desenvolvimento de uma civilização comum. Onde quer que surgissem, os Estados-nações cessavam quase que por completo os movimentos migratórios; enquanto na Europa oriental e meridional, onde fracassou a fundação de Estados-nações, isso ocorreu porque faltava ainda o apoio de classes rurais firmemente enraizadas.[27]
     Do ponto de vista sociológico, o Estado-nação era o corpo político das classes camponesas europeias emancipadas — isto é, dos proprietários rurais — e é por isso que os exércitos nacionais só puderam conservar sua posição permanente nesses Estados enquanto constituíam a verdadeira representação da classe rural, ou seja, até o fim do século XIX. "O Exército", como disse Marx, "era o ponto de honra dos fazendeiros: transformados em senhores, o Exército os corporificava, defendendo no exterior sua propriedade recém-adquirida. (...) O uniforme era a sua roupa de gala, a guerra era a sua poesia; o seu lote de terra era a pátria, e o patriotismo era a forma ideal da propriedade."[28] O nacionalismo ocidental, que culminou no recrutamento geral, foi produto de classes firmemente enraizadas e emancipadas.
     Enquanto a consciência da nacionalidade é comparativamente recente, a estrutura do Estado é fruto da secular evolução da monarquia e do despotismo esclarecido. Fosse sob forma de nova república ou de monarquia constitucional reformada, o Estado herdou como função suprema a proteção de todos os habitantes do seu território, independentemente de nacionalidade, e devia agir como instituição legal suprema. A tragédia do Estado-nação surgiu quando a crescente consciência nacional do povo interferiu com essas funções. Em nome da vontade do povo, o Estado foi forçado a reconhecer como cidadãos somente os "nacionais", a conceder completos direitos civis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito de origem e fato de nascimento. Isso significa que o Estado foi parcialmente transformado de instrumento da lei em instrumento da nação.
     A conquista do Estado pela nação[29] foi facilitada pela queda da monarquia absoluta e pelo subsequente surgimento de classes. O monarca absoluto devia servir aos interesses da nação como um todo e ser expoente e prova visível da existência de tal interesse comum. O despotismo esclarecido baseava-se no que disse Rohan: "Os reis comandam os povos e o interesse comanda os reis".[30] Abolidos os reis, esse interesse comum corria o perigo de ser substituído por um permanente conflito entre numerosos interesses de classes e por uma luta pelo controle da máquina estatal, ou seja, por uma guerra civil permanente. O único laço comum que restava aos cidadãos do Estado-nação, sem um monarca que simbolizasse a essência do grupo, era a origem comum. Assim, num século em que cada classe e cada segmento da população eram dominados por interesses próprios, o interesse da nação como um todo era supostamente garantido pela origem comum, que encontrou sua expressão sentimental no nacionalismo. O conflito latente entre o Estado e a nação veio à luz por ocasião do próprio nascimento do Estado-nação moderno, quando a Revolução Francesa, ao declarar os Direitos do Homem, expôs a exigência da soberania nacional. De uma só vez, os mesmos direitos essenciais eram reivindicados como herança inalienável de todos os seres humanos e como herança específica de nações específicas; a mesma nação era declarada, de uma só vez, sujeita a leis que emanariam supostamente dos Direitos do Homem, e soberana, isto é, independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a si própria.[31]  O resultado prático dessa contradição foi que, daí por diante, os direitos humanos passaram a ser protegidos e aplicados somente sob a forma de direitos nacionais, e a própria instituição do Estado, cuja tarefa suprema era a de proteger e garantir ao homem os seus direitos como homem, como cidadão — isto é, indivíduo — e como membro de grupo, perdeu a sua aparência legal e racional e podia agora ser interpretada pelos românticos como a nebulosa representação de uma "alma nacional" que, pelo próprio fato de existir, devia estar além e acima da lei. Consequentemente, a soberania nacional perdeu a sua conotação original de liberdade do povo e adquiriu uma aura pseudomística de arbitrariedade fora da lei. Em sua essência, o nacionalismo é a expressão dessa perversa transformação do Estado em instrumento da nação e da identificação do cidadão com o membro da nação. A relação entre o Estado e a sociedade foi determinada pela luta de classes, que havia suplantado a antiga ordem feudal. Permeou a sociedade um liberalismo individual que acreditava, erradamente, que o Estado governava meros indivíduos, quando na realidade governava classes, e que via no Estado uma espécie de entidade suprema, diante da qual todos os indivíduos tinham de curvar-se.
     Parecia ser o desejo da nação que o Estado a protegesse das consequências de sua atomização social e, ao mesmo tempo, garantisse a possibilidade de permanecer nesse estado de atomização. Para poder enfrentar essa tarefa, o Estado teve de reforçar todas as antigas tendências de centralização, pois só uma administração fortemente centralizada, que monopolizasse todos os instrumentos de violência e possibilidades de poder, poderia contrabalançar as forças centrífugas constantemente geradas por uma sociedade dominada por classes. A essa altura, o nacionalismo tornou-se o precioso aglutinante que iria unir um Estado centralizado a uma sociedade atomizada e, realmente, demonstrou ser a única ligação operante e ativa entre os indivíduos formadores do Estado-nação.
     O nacionalismo sempre conservou essa íntima lealdade ao governo e nunca chegou a perder a sua função de manter um precário equilíbrio entre a nação e o Estado, de um lado, e entre os cidadãos de uma sociedade atomizada, do outro. Os cidadãos nativos de um Estado-nação frequentemente olhavam com desprezo os cidadãos naturalizados, aqueles que haviam recebido seus direitos por lei e não por nascimento, do Estado e não da nação; mas nunca chegaram ao extremo de propor a distinção pangermanista entre Staatsfremde, alienígenas do Estado, e Volksfremde, alienígenas da nação, que foi mais tarde incorporada à legislação nazista. Como o Estado permaneceu instituição legal mesmo em sua forma pervertida, a lei controlava o nacionalismo; e, como este havia surgido da identificação dos cidadãos com o seu território, era delineado por fronteiras definidas.
     Muito diferente foi a primeira reação nacional de povos cuja nacionalidade não havia ainda ultrapassado o estágio de mal definida consciência étnica, cujo idioma não havia ainda saído daquela fase de dialetos por que passaram todas as línguas europeias antes de se prestarem a fins literários, cuja classe camponesa não havia assentado raízes e não estava à beira da emancipação, e para os quais, consequentemente, a qualidade nacional parecia ser muito mais um sentimento privado e portátil, inerente à própria personalidade do indivíduo, do que uma questão do interesse público e da civilização.[32] Se tentavam igualar o orgulho nacional das nações do Ocidente, constatavam não ter país nem Estado — nem sequer realizações nacionais — e podiam apenas apontar para si mesmos, ou seja, para o seu idioma — como se a língua, em si, já fosse uma realização — ou para a sua alma — eslava, germânica ou sabe Deus o quê. No entanto, num século que ingenuamente julgava que todos os povos eram virtualmente nações, só isso restava aos povos oprimidos da Áustria-Hungria e da Rússia czarista, onde não existiam condições para a realização da trindade ocidental de povo-território-Estado, onde as fronteiras mudavam constantemente durante séculos e as populações permaneciam em movimento migratório mais ou menos contínuo. Essas massas não tinham a menor ideia do significado dos conceitos pátria e patriotismo, nem a mais vaga noção de responsabilidade comunitária limitada. Era este o problema do "cinturão de populações mistas" (Macartney) que, estendendo-se do Báltico ao Adriático, de Danzig a Trieste, encontrou a sua melhor expressão da Monarquia Dual.
     O nacionalismo tribal surgiu dessa atmosfera de desarraigamento. Alastrou-se não apenas entre os povos da Áustria-Hungria, mas também, embora em nível mais alto, entre os membros da infeliz intelligentsia da Rússia czarista. O desarraigamento foi a verdadeira fonte daquela "consciência tribal ampliada", que, na verdade, significava que os indivíduos desses povos não tinham um lar definido, mas sentiam-se em casa onde quer que vivessem outros membros de sua "tribo". "Somos diferentes", dizia Schoenerer, "(...) por «ão gravitarmos em direção a Viena, mas por gravitarmos para onde quer que vivam outros alemães." [33] O que caracterizou os movimentos de unificação étnica é que nunca tentaram ao menos alcançar a emancipação nacional mas, imediatamente, em seus sonhos de expansão, transcenderam os estreitos limites da comunidade nacional e proclamaram a comunidade de um povo que permaneceria como fator político ainda que os seus membro? estivessem espalhados por toda a terra. Do mesmo modo, e em contraste com os verdadeiros movimentos de libertação nacional de povos pequenos, que sempre começavam com uma exploração do passado nacional, não se detiveram para "explorar" o passado, mas projetaram a base de sua comunidade num futuro, em cuja direção o movimento deveria marchar.
     O nacionalismo tribal, alastrando-se entre todas as nacionalidades oprimidas da Europa oriental e meridional, assumiu novo aspecto organizacional — os movimentos de unificação — entre aqueles povos que dispunham, ao mesmo tempo, de alguma forma de país natal, como a Alemanha e a Rússia, e de grandes populações dispersas no exterior, como era o caso dos alemães e eslavos em outros países.[34] Em contraste com o imperialismo de ultramar, que se contentava com a relativa superioridade da missão nacional ou da tarefa do homem branco, os movimentos de unificação étnica partiam da reivindicação absoluta de escolha divina. Já se disse muitas vezes que o nacionalismo é um substituto emocional da religião, mas só o tribalismo dos movimentos de unificação étnica ofereceu nova teoria religiosa e novo conceito de santidade. A função e a posição religiosa do czar na Igreja greco-ortodoxa não seriam suficientes para levar os pan-eslavos russos a descobrir a natureza e a essência cristãs do povo russo, o qual, segundo Dostoiévski, era o próprio "são Cristóvão das nações" que levava Deus diretamente aos problemas deste mundo.[35] Foi devido às pretensões de serem os russos o "único povo divino dos tempos modernos"[36] que os pan eslavistas abandonaram suas antigas tendências liberais e, apesar da oposição e de certa perseguição do governo, tornaram-se fiéis defensores da Rússia Sagrada.
     Os pangermanistas austríacos formulavam reivindicações semelhantes quanto à divina escolha, embora, com igual passado liberal, permanecessem anticlericais e se tornassem anticristãos. Quando Hitler, discípulo confesso de Schoenerer, disse durante a Segunda Guerra Mundial: "Deus todo-poderoso construiu nossa nação. Ao defendermos sua existência, estamos defendendo o Seu trabalho",[37] a resposta que veio do outro lado, de um seguidor do pan eslavismo, foi no mesmo tom: "Os monstros alemães não são apenas nossos inimigos, são os inimigos de Deus".[38] Essas formulações não decorriam de necessidades propagandísticas do momento; esse fanatismo é algo mais que simples abuso de linguagem religiosa: por trás dele há uma infraestrutura teológica, responsável pelo ímpeto dos primeiros movimentos de unificação étnica, e que teve considerável influência na evolução dos modernos movimentos totalitários.
     Os movimentos de unificação étnica pregavam a origem divina dos seus próprios povos, em contraposição à fé judaico-cristã na origem divina do Homem. Segundo eles, o homem, por pertencer inevitavelmente a algum povo, só através desse povo podia receber sua qualidade divina. O indivíduo, portanto, só tem valor divino enquanto pertence ao povo escolhido, cuja origem é divina. Perde-a, quando decide mudar de nacionalidade, pois com este ato destrói todos os laços através dos quais fora dotado de origem divina, e cai num estado de apatria metafísica. Era dupla a vantagem política desse conceito. Fazia da nacionalidade uma qualidade permanente que já não era afetada pela história, não importando o que acontecesse a determinado povo — emigração, conquista ou dispersão. Mas de impacto ainda mais imediato era o fato de que, no contraste absoluto entre um povo de origem divina e todos os outros povos, desapareciam todas as diferenças entre os indivíduos desse povo — econômicas, sociais ou psicológicas. A origem divina transformava o povo numa massa uniforme "escolhida" de robôs arrogantes.[39]
     A inverdade dessa teoria é tão notável quanto a sua utilidade política. Deus não criou nem os homens — cuja origem é obviamente a procriação — nem os povos — que passaram a existir como resultado da organização humana em grupos sociais. Os homens são desiguais segundo sua origem natural, sua diferente organização e seu destino na história. Sua igualdade é apenas uma igualdade de direitos, isto é, uma igualdade de objetivo humano; contudo, atrás dessa igualdade de objetivo humano, existe, segundo a tradição judaico-cristã, uma outra igualdade, expressa no conceito de uma origem comum que está além da história humana, da natureza humana e dos objetivos humanos — a origem comum do Homem místico e inidentificável, o único que foi criado por Deus. Essa origem divina é o conceito metafísico no qual pode basear-se a igualdade de objetivo político, o objetivo de estabelecer a humanidade na terra. O positivismo e o progressismo do século XIX perverteram a finalidade dessa igualdade humana quando tentaram demonstrar o que não pode ser demonstrado, isto é, que os homens são iguais por natureza e diferem apenas pela história e pelas circunstâncias, de modo que podem ser igualados, não por direitos, mas por circunstâncias e pela educação. O nacionalismo e o seu conceito de "missão nacional" perverteram, por sua vez, o conceito nacional da humanidade como família de nações, transformando-a numa estrutura hierárquica onde as diferenças de história e de organização eram tidas como diferenças entre homens, resultantes de origem natural. O racismo, que negava a origem comum do homem e repudiava o objetivo comum de estabelecer a humanidade, introduziu o conceito da origem divina de um povo em contraste com todos os outros,, encobrindo assim com uma nuvem pseudomística de eternidade e finalidade o que era resultado temporário e mutável do engenho humano.
     É essa finalidade que age como denominador comum entre a filosofia dos movimentos de unificação étnica e os conceitos raciais, e explica sua afinidade intrínseca no que tange à teoria. Politicamente, não importa que Deus ou a natureza venham a constituir a origem de um povo; num caso ou no outro, por mais elevadas que sejam suas reivindicações, os povos se transformam em espécies animais, de modo que um russo parece tão diferente de um alemão quanto um lobo difere de uma raposa. Um "povo divino" -vive num mundo no qual é o perseguidor inato de todas as outras espécies mais fracas, ou a vítima inata de todas as outras espécies mais fortes. Só as regras do mundo animal podem aplicar-se aos seus destinos políticos.
     O tribalismo dos movimentos de unificação, com seu conceito da "origem divina" de um povo, deve parte da atração que exerceu ao desprezo com que via o individualismo liberal,[40] o ideal de humanidade e a dignidade do homem. Nenhuma igualdade subsiste quando o indivíduo deve o seu valor apenas ao fato de ter nascido russo ou alemão; mas fica em seu lugar uma nova coerência, um sentido de confiança mútua entre todos os membros do povo que, realmente, é capaz de aplacar as justificadas apreensões dos homens modernos quanto ao que lhes poderia acontecer se, como indivíduos isolados numa sociedade atomi-zada, não fossem protegidos pelo próprio número e pela imposição de uma coerência uniforme. Analogamente, o "cinturão de populações mistas", mais exposto que outras partes da Europa às tormentas da história e menos enraizado na tradição ocidental, sentiu, antes de outros povos europeus, o terror do ideal de humanidade e da fé judaico-cristã na origem comum do homem. Esses povos não alimentavam quaisquer ilusões quanto ao "nobre selvagem", pois conheciam bastante a potencialidade do mal sem precisarem pesquisar os hábitos dos canibais. Quanto mais um povo aprende a respeito de outro, menos quer reconhecê-lo como seu igual, e mais se afasta do ideal de humanidade.
     A tendência para o isolamento tribal e para a ambição de raça dominante resultava em parte do sentimento instintivo de que o conceito de humanidade como ideal religioso ou humanístico implica a responsabilidade comum.[41] O encurtamento das distâncias geográficas transformava isso em realidade política de primeira grandeza.[42] E transformou em coisa do passado a discussão idealista sobre a humanidade e dignidade do homem, pelo simples fato de que todas essas ideias excelsas mas oníricas, com as suas tradições consagradas pelo tempo, perdiam repentina e assustadoramente o sentido de tempo. Nem mesmo a insistência sobre a natureza pecadora dos homens, naturalmente omitida da fraseologia dos representantes liberais da humanidade, bastava para a aceitação do fato de que a ideia de humanidade, despida de sentimentalismo, tem a gravíssima consequência de tornar os homens, de um modo ou de outro, responsáveis por todos os crimes cometidos pelos homens e eventualmente forçar todas as nações a responderem pelo mal cometido pelas outras.
     O tribalismo e o racismo são maneiras muito realistas — se bem que muito destrutivas — de fugir a essa situação de responsabilidade comum. Seu desarraigamento metafísico, que correspondia tão bem ao desarraigamento territorial das primeiras nacionalidades que vieram a seduzir, amoldava-se igualmente bem às necessidades das massas flutuantes das cidades modernas e foi, portanto, absorvido prontamente pelo totalitarismo. E até mesmo a fanática adoção do marxismo — a maior das doutrinas antinacionais — pelos bolchevistas foi depois contra-atacada pela propaganda pan-eslavista reintroduzida na União Soviética, tal o valor isolacionista dessas teorias.[43]
     É verdade que o sistema de governo na Ãustria-Hungria e na Rússia czarista, baseado na opressão de nacionalidades, servia como verdadeiro aprendizado de nacionalismo tribal. Na Rússia, essa opressão era monopolizada exclusivamente pela burocracia, que também oprimia o povo russo, de sorte que somente a intelligentsia russa veio a ser pan-eslavista. A Monarquia, pelo contrário, dominava as nacionalidades indóceis outorgando-lhes liberdade suficiente para que oprimissem outras nacionalidades, de modo que estas se transformaram na verdadeira base para a ideologia dos movimentos de unificação. O segredo da sobrevivência da casa dos Habsburgos no século XIX está no cuidadoso equilíbrio de uma máquina supranacional, proporcionado pelo mútuo antagonismo e pela exploração dos tchecos pelos alemães, dos eslovacos pelos húngaros, dos rutênios pelos poloneses, e assim por diante. Todos aceitavam com naturalidade o fato de que cada grupo poderia ser promovido a nação à custa dos outros grupos nacionais, e renunciaria com prazer à liberdade se a opressão viesse de um governo nacional próprio.
     Os dois movimentos unificadores [pan-eslavo e pangermânico] surgiram sem qualquer ajuda dos governos russo ou alemão. Isto não evitou que os seus adeptos austríacos se entregassem ao prazer da alta traição contra o governo de seu país. Foi a possibilidade de educar as massas no espírito da alta traição que deu aos movimentos austríacos de unificação étnica o considerável apoio popular que nunca tiveram na Alemanha e na Rússia propriamente ditas. Era muito mais fácil induzir o trabalhador alemão a atacar a burguesia alemã do que a atacar o governo, como era muito mais fácil na Rússia "levantar os camponeses contra os proprietários rurais do que contra o czar".[44] As diferenças entre as atitudes dos trabalhadores alemães e dos camponeses russos eram, sem dúvida, tremendas: os primeiros olhavam um monarca, embora não muito querido, como símbolo da unidade nacional, enquanto os últimos viam no governo o verdadeiro representante de Deus na terra. Essas diferenças, contudo, eram menos significativas do que o fato de que, nem na Rússia nem na Alemanha, o governo era tão fraco como na Áustria; nem sua autoridade havia caído em tal descrédito que os movimentos de unificação étnica pudessem capitalizar politicamente a agitação revolucionária. Somente na Áustria o ímpeto revolucionário encontrou essa válvula de escape natural nos movimentos de unificação. O expediente de divide et impera, não muito habilmente conduzido pelo governo, pouco contribuiu para diminuir as tendências centrífugas dos sentimentos nacionais, mas criou complexos de superioridade e levou a uma atmosfera geral de deslealdade. A hostilidade do Estado como instituição é parte das teorias de todos os movimentos de unificação étnica. Já se disse, com razão, que a oposição dos eslavófilos ao Estado é "inteiramente diferente de tudo que é encontrável na atitude do sistema do nacionalismo oficial".[45] O Estado, por sua própria natureza, era declarado estranho ao povo. Assim, a superioridade eslava, segundo se pensava, jazia na indiferença com que o povo russo via o Estado, no fato de o povo se manter como um corpus separatum do seu próprio governo. É isso o que os eslavófilos queriam dizer quando chamaram o povo russo de "povo sem Estado". Mas isso também possibilitou a esses "liberais" reconciliarem-se com o despotismo, pois o fato de o povo não "interferir com o poder estatal", isto é, com o absolutismo desse poder,[46] estava de acordo com a exigência do despotismo. Os pangermanistas, politicamente mais articulados, sempre insistiam na prioridade do interesse nacional sobre o interesse do Estado[47] e geralmente argumentavam que "a política mundial transcende a estrutura do Estado", que o único fator permanente no decorrer da história era o povo e não o Estado, e que, portanto, as necessidades nacionais, mudando com as circunstâncias, deviam sempre determinar os atos políticos do Estado.[48] Mas o que na Alemanha e na Rússia não passou de frases altissonantes até o fim da Primeira Guerra Mundial tornou-se real e efetivo na Monarquia Dual cuja decadência gerou um permanente desprezo pelo governo.
     Seria erro grave presumir que os líderes dos movimentos de unificação eram reacionários ou "contrarrevolucionários". Embora não estivessem, via de regra, muito interessados em questões sociais, nunca cometeram o equívoco de se aliar à exploração capitalista; a maioria havia pertencido, e alguns continuavam a pertencer, a partidos liberais e progressistas. De certo modo, é fato que a Liga Pangermânica "concretizou uma verdadeira tentativa de controle popular no campo da política estrangeira. Acreditava firmemente na eficiência de uma opinião pública forte, voltada para a nação (...) para ditar a política nacional pela força da exigência popular".[49]  Mas a ralé, que se agrupava nos movimentos de unificação inspirados por ideologias raciais, não era a mesma massa cujas ações revolucionárias haviam levado à criação do governo constitucional e cujos verdadeiros representantes, àquela altura, só se podiam encontrar nos movimentos trabalhistas; essa ralé, com a sua "consciência tribal ampliada" e com a sua notável falta de patriotismo, se assemelhava mais a uma "raça".
     Em contraste com o pangermanismo, o pan-eslavismo foi formado pela intelligentsia russa, à qual impregnou totalmente. Muito menos desenvolvido como organização e muito menos consistente em sua programação política, manteve por um tempo surpreendentemente longo um nível muito alto de sofisticação literária e especulação filosófica. Enquanto Rozanov analisava as misteriosas diferenças entre a força sexual de judeus e cristãos e chegava à surpreendente conclusão de que os judeus estão "unidos a essa força, enquanto os cristãos estão separados dela",[50] o líder os pangermanistas da Áustria descobria as maneiras de "atrair o interesse do homem do povo através de músicas de propaganda, cartões-postais, canecas de cerveja, bengalas e caixas de fósforos".[51] Mas finalmente as filosofias de "Schelling e Hegel foram abandonadas e a ciência natural foi convocada a fornecer a munição teórica" também aos pan eslavistas.[52]
     O pangermanismo, fundado por um só homem, Georg von Schoenerer, e apoiado principalmente pelos estudantes austro-alemães, empregou desde o início uma linguagem extraordinariamente vulgar, destinada a atrair camadas sociais mais vastas e diferentes. Consequentemente, Schoenerer foi também "o primeiro a perceber as possibilidades do anti semitismo como instrumento para forçar a direção da política externa e destruir (...) a estrutura interna do Estado".[53] Algumas das razões pelas quais o povo judeu se prestava a essa finalidade são óbvias: sua posição muito proeminente em relação à monarquia dos Habsburgos, aliada ao fato de que, num país multinacional, era mais fácil reconhecê-los como nacionalidade à parte do que nos Estados-nações, cujos cidadãos, pelo menos teoricamente, tinham origem homogênea. Isso, contudo, embora explique a violência do antissemitismo austríaco e revele a sagacidade política de Schoenerer na exploração da questão, não ajuda a compreender o papel ideológico central que o anti-semitismo desempenhou em ambos os movimentos.
     A "consciência tribal ampliada" como motor emocional dos movimentos de unificação já era madura quando o antissemitismo tornou-se questão central e centralizadora. O pan-eslavismo, com a sua tradição mais duradoura e mais respeitável de especulação filosófica, e com a sua ineficácia política mais notável, só virou antissemita nas últimas décadas do século XIX; Schoenerer, o pangermanista, já havia anunciado abertamente sua hostilidade às instituições estatais quando muitos judeus ainda eram membros do seu partido.[54] Na Alemanha, onde o movimento de Stoecker havia demonstrado a utilidade do antissemitismo como arma de propaganda política, a Liga Pangermância teve, de início, certa tendência antissemita, mas, antes de 1918, nunca chegou a excluir os seus membros judeus.[55] A ocasional antipatia dos eslavófilos pelos judeus transformou-se em antissemitismo no seio de toda a intelligentsia russa quando, após o assassínio do czar em 1881, uma onda de pogroms organizados pelo governo focalizou a atenção pública na questão judaica.
     Schoenerer, que descobriu o antissemitismo na mesma época, provavelmente percebeu suas possibilidades quase por acaso: como o que desejava acima de tudo era destruir o império dos Habsburgos, não era difícil calcular o efeito da exclusão de uma nacionalidade da estrutura estatal, que se apoiava numa multitude de nacionalidades. Toda a textura dessa constituição peculiar e o precário equilíbrio de sua burocracia podiam ser destruídos se os movimentos populares sabotassem a moderada opressão sob a qual todas as nacionalidades tinham certa igualdade. Essa finalidade poderia ter sido igualmente atingida pelo furioso ódio que os pangermanistas sentiam com relação às nacionalidades eslavas, ódio que, arraigado antes que o movimento se tornasse antissemita, era também aprovado por seus membros judeus. O que tornou o antissemitismo dos movimentos de unificação étnica tão eficaz, a ponto de ter sobrevivido ao declínio da propaganda antissemita durante a enganadora calma que precedeu a deflagração da Primeira Guerra Mundial, foi a sua fusão com o nacionalismo tribal da Europa oriental. Pois havia uma afinidade inerente entre as teorias daqueles movimentos a respeito dos povos e a existência sem raízes do povo judeu. Os judeus pareciam ser o único exemplo perfeito de um povo no sentido tribal; sua organização tornou-se modelo que os movimentos de unificação procuravam copiar; sua sobrevivência e suposta força pareciam a melhor prova da correção das teorias raciais.
     Se outras nacionalidades na Monarquia Dual tinham apenas débeis raízes no solo e pouca noção do significado de um território comum, os judeus eram o exemplo de um povo que, sem país de qualquer espécie, havia podido manter sua identidade no decorrer dos séculos e, portanto, podia ser citado como prova de que não havia necessidade de território para que se constituísse uma nacionalidade.[56] Se os movimentos de unificação étnica insistiam na importância secundária do Estado e na suprema importância do povo, organizado em vários países e não necessariamente representado por instituições visíveis, os judeus eram o modelo perfeito de uma nação sem Estado e sem essas instituições.[57] Se as nacionalidades tribais apontavam para si mesmas como o centro de seu orgulho nacional, independentemente de realizações históricas e de participação em acontecimentos registrados, se acreditavam que alguma qualidade inerente misteriosa, psicológica ou física; fazia delas a encarnação, não da Alemanha, mas do germanismo, não da Rússia, mas da alma russa, sentiam de alguma forma, mesmo que não soubessem expressá-lo, que a "judeidade" dos judeus assimilados correspondia exatamente ao mesmo tipo de encarnação individual e pessoal do judaísmo, e que o orgulho peculiar dos judeus secularizados, que não haviam desistido de sua antiga qualidade de "escolhidos", realmente significava que acreditavam ser diferentes e melhores pelo simples fato de terem nascido judeus, independentemente das realizações e tradição judaicas.
     É bem verdade que essa atitude judaica — esse tipo judaico de nacionalismo tribal, por assim dizer — fora resultado da posição anormal dos judeus nos Estados modernos, fora do âmbito da sociedade e da nação. Mas a posição daqueles grupos étnicos flutuantes, que só tomaram consciência de sua nacionalidade através do exemplo de outras nações ocidentais e, mais tarde, a posição das massas desarraigadas das grandes cidades, que o racismo mobilizou com tanta eficácia, eram semelhantes em muitos aspectos. Também se situavam fora do âmbito social e também estavam fora do corpo político do Estado-nação, que parecia ser a única organização política satisfatória para um povo. Logo reconheceram nos judeus os seus concorrentes mais felizes, mais protegidos pela sorte, pois, em sua opinião, os judeus haviam encontrado um meio de constituir uma sociedade própria que, precisamente por não ter representação visível nem escoadouro político normal, podia vir a substituir a nação.
     Mas o que arrastou os judeus para o centro dessas ideologias racistas, mais que qualquer outro fato, foi a pretensão judaica ser de um povo eleito — único obstáculo sério à igual pretensão que emanava dos movimentos de unificação étnica. Não importava que o conceito judaico nada tivesse em comum com as teorias tribais acerca da origem divina de um povo. A ralé não estava muito interessada nessas sutilezas de correção histórica, e mal percebia a diferença que havia entre uma histórica missão judaica de realizar o estabelecimento da humanidade na terra e a sua própria "missão" de dominar todos os outros povos da terra. Mas os líderes dos movimentos sabiam muito bem que os judeus haviam dividido o mundo — exatamente como eles o preconizavam — em duas partes: eles próprios e todos os outros.[58] Nessa dicotomia, os judeus surgiam mais uma vez como os concorrentes mais afortunados, que haviam herdado algo e eram reconhecidos por algo que os gentios tinham de construir a partir do nada.[59]
     Ê um "truísmo", que não se tornou mais verdadeiro com a repetição, que o anti-semitismo seja apenas uma forma de inveja. Mas, no tocante à escolha dos judeus ele é bastante verdadeiro. Sempre que um povo é apartado da ação e da realização, sempre que esses laços naturais com o mundo comum são rompidos ou não existem por um motivo ou outro, ele tende a voltar-se para dentro de si mesmo, em sua elementaridade nua e natural, e a alegar divindade e uma missão de redimir a terra. Quando isso acontece na civilização ocidental, tal povo encontra a antiga pretensão dos judeus a barrar-lhe o caminho messiânico. Foi isso que perceberam os porta-vozes dos movimentos de unificação étnica, e é por isso que se incomodaram tão pouco com a questão realista de saber se o problema judeu, em termos de números e de poder, era suficientemente importante para fazer do ódio aos judeus o esteio de suas ideologias. Do mesmo modo como o seu próprio orgulho nacional independia de qualquer realização, também o seu ódio pelos judeus independia de qualquer coisa que os judeus houvessem feito, de bom ou de mau. Nesse ponto, todos os movimentos de unificação concordavam plenamente, embora nenhum deles soubesse como utilizar esse esteio ideológico para fins de organização política.
     A defasagem entre a formulação da ideologia dos movimentos e a possibilidade de sua aplicação séria na política é demonstrada pelo fato de que os "Protocolos dos sábios do Sião" — forjados por volta de 1900 por agentes da polícia secreta russa em Paris, mediante sugestão de Pobiedonostzev, conselheiro político de Nicolau II e o único pan-eslavista a galgar uma posição influente — ficaram como um panfleto semi esquecido até 1919, quando iniciaram sua marcha verdadeiramente triunfal em todos os países e idiomas europeus;[60] trinta anos mais tarde, sua circulação só era inferior à do Mein Kampf de Hitler. Nem o falsificador nem o seu patrão sabiam que viria um tempo em que a polícia seria realmente a instituição central de uma sociedade, e toda a força do país se organizaria de acordo com os princípios, supostamente judeus, expostos nos Protocolos. Talvez tenha sido Stalin o primeiro a descobrir todo o potencial de domínio da polícia; certamente foi Hitler quem, mais sagaz que o seu pai espiritual Schoenerer, soube como usar o princípio hierárquico do racismo; como explorar a afirmação antissemita da existência de um povo que era "o pior de todos" a fim de organizar devidamente "o melhor de todos", ficando entre estes dois extremos todos os outros povos conquistados e oprimidos; como generalizar o complexo de superioridade dos movimentos de unificação de modo que cada povo, com a necessária exceção dos judeus, pudesse olhar com desprezo aquele povo que era ainda pior que ele próprio.
     Foram necessárias mais algumas décadas de caos encoberto e de franco desespero, antes que muitas pessoas confessassem alegremente que iriam realizar justamente aquilo que, segundo pensavam, somente os judeus em seu diabolismo inato tinham conseguido fazer até então. De qualquer forma, os líderes dos movimentos de unificação, embora já tivessem uma vaga noção da questão social, foram muito unilaterais em sua ênfase na política externa — e não conseguiram ver que o antissemitismo poderia constituir o necessário elo de ligação entre os métodos domésticos e externos; não sabiam ainda como estabelecer uma "comunidade popular", isto é, uma horda completamente desarraigada e racialmente doutrinada. O fato de que o fanatismo dos movimentos de unificação étnica tenha escolhido os judeus para seu centro ideológico, que foi o começo do fim das comunidades judaicas europeias, constitui uma das mais lógicas e mais amargas vinganças de toda a história. Porque há certa dose de verdade nas afirmações "esclarecidas", desde Voltaire até Renan e Taine, de que o conceito de escolha divina dos judeus, o modo como identificavam a religião com a nacionalidade, sua reivindicação de uma posição absoluta na história e uma relação especial com Deus trouxeram para a civilização ocidental, por um lado, um elemento de fanatismo até então desconhecido (e que foi herdado pelo cristianismo em sua pretensão de posse exclusiva da Verdade) e, por outro lado, um elemento de orgulho tão perigosamente próximo da perversão racial.[61]
     Politicamente, não teve a menor importância o fato de que o judaísmo e a devoção judaica, ainda intacta, houvessem sido sempre isentos da imanência direta da Divindade, e até hostis a esse conceito. Porque o nacionalismo tribal é a perversão da religião que fez com que Deus escolhesse uma nação entre as demais; e, somente porque esse velho mito e o único povo sobrevivente da Antiguidade tinham raízes profundas na civilização ocidental, o líder da moderna ralé podia, com certa plausibilidade e imprudência, trazer Deus para a luta mesquinha entre os povos e pedir o Seu consentimento para outra eleição, que ele, líder, em nome dos potencialmente elegíveis, já havia manipulado.[62] O ódio dos racistas aos judeus advinha da supersticiosa apreensão de que Deus poderia ter realmente escolhido os judeus e não a eles, de que a divina providência realmente houvesse concedido o sucesso aos judeus. Havia um certo ressentimento indeciso contra um povo que, ao que se receava, tinha recebido uma garantia racionalmente incompreensível de que surgiria finalmente, e a despeito de todas as aparências, como vencedor final na história do mundo.
     Pois, para a mentalidade da ralé, o conceito judeu de uma missão divina de realizar o reino de Deus só podia ser entendido em termos vulgares de sucesso e fracasso. O temor e o ódio eram alimentados e, até certo ponto, racionalizados pelo fato de que o cristianismo, religião de origem judaica, já havia conquistado a humanidade ocidental. Levados por suas próprias superstições ridículas, os líderes dos movimentos de unificação descobriram aquela pequena mola oculta na mecânica da devoção judaica que possibilitava uma completa reversão e perversão, de modo que a escolha já não correspondia mais ao mito da realização final do ideal de uma humanidade comum — mas da sua destruição final.

Parte II Imperialismo (4.1 - Nacionalismo Tribal)
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[20] Durante a Guerra da Criméia (1853-6), Michael Pagodin, folclorista e filólogo russo, escreveu uma carta ao czar na qual chamava os povos eslavos de únicos fortes e fiéis aliados da Rússia (Staehlin, op. cit., p. 35); pouco depois, o general Nikolai Muravyev Amursky, "um dos grandes construtores de império da Rússia", fazia votos pela "liberação dos eslavos da Turquia e da Áustria" (Hans Kohn, op. cit.); e já em 1870 surgia um panfleto militar que exigia "a destruição da Áustria como condição necessária para uma federação pan-eslava" (ver Staehlin, op. cit., p. 282). 
[21] Ver Otto Bonhard, op. cit., pp. 58 ss., e Hugo Grell, Der alldeutsche Verban, seine Geschichte, seine Bestrebungen, seine Erfolge [A Liga Pangermânica, sua história, seus sucessos], Alldeutsche Flugschriften, n? 8.
[22] Segundo o programa pangermanista austríaco de 1913, citado por Eduard Pichl, Georg Schoenerer, 1938, 6 vols., VI, 375.
[23] Enquanto Schoenerer, com a sua admiração por Bismarck, declarou em 1876 que "a Áustria como grande potência deve deixar de existir" (Pichl, op. cit., I, 90), Bismarck achava e dizia aos seus admiradores austríacos que "uma Áustria poderosa é uma necessidade vital para a Alemanha". VerF. A. Neuschafer, Georg Rittervon Schoenerer (tese), Hamburgo, 1935. A atitude do czar em relação ao pan-eslavismo era muito mais ambígua, porque o pan eslavismo tinha uma concepção de Estado que incluía forte apoio popular ao governo despótico. Contudo, mesmo em circunstâncias tão tentadoras, o czar não apoiou a exigências expansionista dos eslavófilos e dos seus sucessores. Ver Staehlin, op. cit., pp. 30 ss.
[24] Ver o capítulo 2.
[25] Pichl, op. cit.,l, 26.
[26] Vassilif Rozanov, Fallen leaves, 1929, pp. 163-4.
[27] Ver C. A. Macartney, National states and national minorities, Londres, 1935, pp. 432 ss.
[28] Karl Marx, O ISBrumário de Luís Bonaparte.
[29] Ver J. T. Delos, La nation, Montreal, 1944, importante estudo sobre o assunto.
[30] Ver o duque de Rohan, DeVintérêt desprinces et états de Ia chrétienté, 1638, dedicado ao cardeal Richelieu.
[31] Uma das mais esclarecedoras discussões do princípio da soberania é ainda Jean Bodin, Six livres de Ia republique, 1576. Para um bom relato e discussão das principais teorias de Bodin, ver George H. Sabine, A history qfpolitical theory, 1937.
[32] Interessante nesse contexto são as proposições socialista de Karl Renner e Otto Bauer, na Áustria, de separar a nacionalidade inteiramente de sua base territorial e torná-la uma espécie de status pessoal; isso, naturalmente, correspondia a uma situação em que grupos étnicos se disseminavam por todo o império sem perder suas características nacionais. Ver Otto Bauer, Die Natio-nalitàtenfrage und die osterreichische Sozialdemokratie [A questão nacional e a social-democracia austríaca], Viena, 1907, quanto ao princípio pessoal (em oposição ao territorial) da nacionalidade (pp. 332 ss, 353 ss). "O princípio pessoal deseja organizar as nações não como entidades territoriais, mas como meras associações de pessoas."
[33] Picbl, op.cit., 1,152.
[34] Somente nessas condições é que surgia um movimento de unificação étnica, completamente organizado. O panlatinismo foi a denominação errada de certas tentativas frustradas das nações latinas de entrarem em alguma aliança contra o perigo alemão, e o messianismo polonês nunca exigiu outra coisa senão o que foi no passado território dominado pela Polônia. Ver também Deckert, op. cit., que disse em 1914: "o panlatinismo tem declinado cada vez mais, e o nacionalismo e a consciência estatal têm se tornado mais fortes e conservado um potencial maior aqui do que em qualquer outra parte da Europa" (p. 7).
[35] Nicolas Berdyaev, The origin of Russian communism, 1937, p. 102. K. S. Aksakov chamava o povo russo de "único povo cristão na terra" em 1855 (ver Hans Ehrenberg e N. V. Bubnoff, Oestliches Christentum [Cristandade oriental], parte I, pp. 92 ss), e o poeta Tyutchev dizia, na mesma época, que "o povo russo é cristão não apenas pela ortodoxia de sua fé, mas também por algo mais íntimo. É cristão por aquela capacidade de renúncia e sacrifício que é o fundamento de sua natureza moral". Citado por Hans Kohn, op. cit.
[36] Segundo Chaadayev, cujas Cartas filosóficas 1829-1831 constituem a primeira tentativa sistemática de apresentar a história do mundo evoluindo ao redor do povo russo como seu centro. Ver Ehrenberg, op. cit., I, 5ss.
[37] Discurso de 30 de janeiro de 1945. New York Times, 31 de janeiro de 1945.
[38] Palavras de Lucas, arcebispo de Tambov, citadas no Jornal do Patriarcado de Moscou, n? 2,1944.
[39]  Isso já era reconhecido pelo jesuíta russo, príncipe Ivan S. Gagarin, em seu panfleto La Russie sera-t-elle catholique? (1856), no qual atacava os eslavófilos porque "querem estabelecer a mais completa uniformidade religiosa, política e nacional. Em sua política exterior, querem fundir todos os cristãos ortodoxos, de qualquer nacionalidade, e todos os eslavos de qualquer nacionalidade, num grande império eslavo e ortodoxo". (Citado por Hans Kohn, op. cit.)
[40] "Todos reconhecerão que o homem não tem outro destino neste mundo senão trabalhar pela destruição de sua personalidade e sua substituição por uma existência social e impessoal." Chaadayev, op. cit., p. 60.
[41] O seguinte trecho de Frymann, op. cit., p. 186, é característico: "Conhecemos o nosso próprio povo, suas qualidades e seus defeitos — não conhecemos a humanidade, e nos recusamos a ter alguma preocupação ou entusiasmo por ela. Onde começa e onde termina aquilo a que devemos amar porque pertence à humanidade (...)? O camponês russo do mir [comuna], decadente e semi-animalesco, o negro da África, o mestiço do Sudoeste Africano ou os insuportáveis judeus da Galícia e da Romênia são todos membros da humanidade? (...) É possível crer na solidariedade dos povos germânicos — e não importa para nós quem estiver fora dessa esfera".
[42]  Foi esse encurtamento das distâncias geográficas que Friedrich Naumann expressou em Central Europe: "Ainda está longe o dia em que haverá 'um só rebanho e um só pastor', mas já se foi o tempo em que um sem-número de pastores, maiores ou menores, dirigiam os seus rebanhos livremente pelos pastos da Europa. O espírito da indústria em larga escala e da organização supranacional tomou conta da política. As pessoas pensam, como disse certa vez Cecil Rhodes, 'em termos de continentes'". Estas poucas frases foram citadas em inúmeros artigos e panfletos da época.
[43]  Muito interessantes a esse respeito são as teorias genéticas da Rússia soviética que surgiram na década dos 50. A herança de caracteres adquiridos significa claramente que as populações que vivem sob condições desfavoráveis transferem a seus descendentes uma hereditariedade inferior, e vice-versa. "Em uma palavra, teríamos raças dominantes e dominadas inatas." Ver H. S. Muller, "The soviet master race theory", em New Leader, 30 de junho de 1949.
[44] G. Fedotov, "Rússia and Freedom", em The Review of Politics, vol. VIII, n? 1, janeiro de 1946. Trata-se de verdadeira obra-prima em matéria de trabalho histórico; dá um resumo de toda a história da Rússia.
[45] N. Berdyaev, op. cit., p. 29.
[46] K. S. Aksakov, em Ehrenberg, op. cit., p. 97.
[47] Ver, por exemplo, a queixa de Schoenerer de que o "Verfassungspartei" [partido da situação] austríaco ainda subordinava os interesses nacionais aos interesses do Estado (Pichl, op. cit., I, 151). Ver também os trechos característicos do Judas KampfundNiederlageinDeutschland, 1937, pp. 39ss do pangermanista conde E. Reventlow. O autor via no nazismo a realização do pangermanismo, dada a sua recusa de "idolatrar" o Estado, considerado apenas como uma das funções da vida do povo.
[48] Ernst Hasse, Deutsche Weltpolitik [A política mundial alemã], 1897, Alldeutsche Flug-schriften, n? 5, e Deutsche Politik, vol. I: Das deutsche Reich ais Nationalstaat [O Reich alemão como Estado nacional], 1905, p. 50. (49) Wertheimer, op. cit., p. 209.
[49] Wertheimer, op. cit., p. 209.
[50] Rozanov, op. cit., pp. 56-7.
[51] Oscar Karbach, op. cit.
[52] Louis Levine, Pan-Slavism and European politics, Nova York, 1914, descreve essa transformação dos eslavófilos antigos.
[53] Oscar Karbach, op. cit.
[54] O Programa de Linz, que ficou sendo o programa dos pangermanistas da Áustria, foi originalmente redigido sem o parágrafo sobre os judeus; havia até três judeus no comitê que o esboçou em 1882. O parágrafo sobre os judeus foi acrescentado em 1885. Ver Oscar Karbach, op. cit.
[55] Otto Bonhard, op. cit., p. 45.
[56] Como o foi pelo socialista Otto Bauer, op. cit., p. 373, que certamente não era antissemita.
[57] Muito elucidativo quanto à auto-interpretação judaica é o ensaio de A. S. Steinberg, "Die weltanschaulichen Voraussetzungen der jüdischen Geschichtsschreibung" [Os pressupostos ideológicos da escrita histórica judaica], em Dubnow Festschrífi, 1930: "Se um homem (...) se convence do conceito da vida conforme é expresso na história judaica (...) então a questão do Estado perde o seu significado, sem que importe como se venha a defini-lo".
[58] A similaridade que existe entre esses conceitos pode ser vista na seguinte coincidência, à qual se poderiam ajuntar muitos outros exemplos: Steinberg, op. cit., diz dos judeus: a sua história ocorre fora de todas as leis históricas comuns; Chaadayev chama os russos de povo-exceção. Berdyaev disse claramente (op. cit., p. 135): "O messianismo russo é semelhante ao messianismo judaico".
[59] Ver o antissemita E. Reventlow, op. cit., mas também o filósofo russo filo semita Vladimir Slovyov, O judaísmo e a questão cristã (1884): entre as duas nações religiosas, os russos e os poloneses, a história introduziu um terceiro povo religioso, os judeus. Ver Ehrenberg, op. cit., p. 314ss. Ver também Cleinow, op. cit., pp. 44ss.
[60] Ver John S. Curtiss, Theprotocols of Zion, Nova York, 1942.
[61] Ver Berdyaev, op. cit., p. 5: "A religião e a nacionalidade desenvolveram-se juntas no reino moscovita, como ocorreu na consciência do antigo povo hebreu. E, do mesmo modo como a consciência messiânica era um atributo do judaísmo, foi também um atributo da ortodoxia russa".
[62] Um fantástico exemplo de toda essa loucura é a seguinte passagem de Léon Bloy — que, felizmente, não é típica do nacionalismo francês: "A França está colocada tão acima das outras nações que todas elas, não importa quais sejam, devem sentir-se honradas se tiverem a permissão de comer as migalhas dos seus cães. Se a França for feliz, então o resto do mundo pode dar-se por satisfeito, mesmo que tenha de pagar pela felicidade da França com a escravidão e a destruição. Mas, se a França sofrer, então o próprio Deus, o terrível Deus, sofre também. (...) Isto é tão absoluto e inevitável como o segredo da predestinação". Citado por R. Nadolny, Germanisie rungoder5/avíííeru/i^?[Germanizaçao ou eslavização?], 1928, p. 55.

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Minha cólera passara)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

continuando...

     Apesar de tudo, bem diversas nisto daquilo que eu pudera sentir diante dos espinheiros alvares ou degustando uma madeleine, as histórias que ouvira na casa da duquesa eram-me estranhas. Tendo penetrado no instante em mim, que só fisicamente era possuído por elas, ter-se ia que (de natureza social e não individual) estavam impacientes por sair, me agitava no carro, como uma pitonisa. Esperava um novo jantar em que pudesse tornar-me uma espécie de príncipe X, da Sra. de Guermantes, recontá-las. Enquanto esperava, elas faziam trepidar meus lábios, que balbuciavam, e em vão tentava recobrar meu espírito vertiginosamente arrastado por uma força centrífuga. Foi assim, com a febril impaciência não carregar por mais tempo o seu peso, solitário num carro, onde ali compensava a falta de conversação falando em voz bem alta, que toquei campainha da porta do Sr. de Charlus, e foi em longos monólogos comigo mesmo, onde repetia me tudo o que iria lhe contar e já não pensava no que podia ele ter a me dizer, que passei o tempo todo que permanecendo num salão aonde me conduzira um lacaio, e que, de qualquer modo, estava agitado demais para observar. Sentia uma tal necessidade de que o Sr. Charlus escutasse os relatos que eu ardia por lhe contar, que fiquei cruelmente decepcionado ao pensar que o dono da casa talvez dormisse e que me seria necessário voltar a cozer no meu quarto minha embriaguez de palavras. Com efeito, acabava de verificar que fazia vinte e cinco minutos que ali estava, que talvez me houvessem esquecido naquele salão, do qual, não obstante a longa espera, podia pelo menos dizer que era imenso, verdoengo, com alguns retratos. A necessidade de falar não impede apenas de escutar, mas de ver; e, nesse caso, a ausência de toda descrição do meio exterior já é uma descrição de um estado interno. Ia sair do salão para tentar chamar alguém e, se não encontrasse pessoa alguma, refazer o caminho até as antecâmaras e mandar que me abrissem a porta, quando, no momento mesmo em que acabara de me erguer e dar alguns passos no chão de mosaico, surgiu um lacaio com ar preocupado: 

- O Sr. barão teve encontros até agora – disse-me - Ainda há várias pessoas que o aguardam. Vou fazer todo o possível para que receba o senhor. Já mandei telefonar duas vezes ao secretário. 
- Não, não se incomode, tinha um encontro com o Sr. barão, mas já é muito tarde e, desde que está ocupado esta noite, voltarei outro dia. 
- Oh! não se vá senhor! - exclamou o criado. - O senhor barão poderia ficar descontente. Vou tentar de novo.  

     Lembrei-me do que ouvira contar acerca dos criados do Sr. de Charlus e de seu devotamento ao patrão. Não se podia dizer dele exatamente como o príncipe de Conti, que procurava agradar tanto ao criado como ao ministro, mas de tal modo soubera fazer das menores coisas que pedia uma espécie de favor que, à noite, reunidos os criados a seu redor a uma respeitosa distância, depois de havê-los percorrido com o olhar, dizia: "Coignet, o castiçal!" ou: "Ducret, a camisa!", e era com resmungos de inveja que os outros se retiravam, enciumados daquele que acabava de ser distinguido pelo patrão. Até dois deles, que se detestavam, cuidavam cada qual de retirar o favor ao outro, indo sob o pretexto mais absurdo, dar recados ao barão, se este subira mais cedo, na esperança de ser incumbido aquela noite de levar o castiçal ou a camisa de dormir. Se o barão dirigia diretamente a palavra a um deles sobre qualquer coisa que não se relacionasse com o serviço, mais ainda, se, durante o inverno, no jardim, sabendo que um dos cocheiros estava gripado, lhe dizia ao cabo de dez minutos: "Cubra-se!", os outros ficavam quinze dias sem falar ao doente, por ciúme, devido à graça que lhe fora concedida.
     Ainda esperei dez minutos e, depois de me pedirem que não demorasse muito porque o Sr. barão, cansado, precisara mandar embora diversas pessoas importantes, que haviam marcado encontro há longo tempo introduziram-me à sua presença. Tal encenação em torno ao Sr. de Charlus, me parecia ter muito menos grandeza que a simplicidade de seu irmão Guermantes, mas a porta já estava aberta, e eu acabava de ver o barão de chambre chinês, colo desnudo, estendido num canapé. Impressionou-me, no mesmo instante a vista de uma cartola huit-reflets sobre uma cadeira, e uma peliça, como se o barão tivesse acabado de chegar. O lacaio se retirou. Julguei que o Sr. de Charlus viesse ao meu encontro. Sem fazer um; movimento, fixou em mim o olhar implacável. Aproximei-me dele e o cumprimentei não me estendeu a mão, não me correspondeu, nem me disse que pegasse uma cadeira. Ao fim de um momento perguntei-lhe, como se faria um médico mal-educado, se era necessário que eu ficasse de pé. Falei sem má intenção, mas o ar de cólera fria do Sr. de Charlus pareceu agravar-se mais ainda. Eu ignorava, aliás, que na sua casa de campo, no castelo de Charlus, ele tinha o hábito de, após o jantar de tanto que gostava de se fazer de rei; instalar-se numa poltrona no fumoir, deixando os convidados de pé a seu redor. Pedia o fogo a um, a outro oferecia um charuto e após alguns instantes, dizia: 

- Mas d'Argencourt, sente-se, pegue uma cadeira meu caro, etc. -, tendo feito questão de prolongar o tempo deles em pé apenas para lhes mostrar que era dele que emanava a permissão de se sentarem. - Sente-se na poltrona Luís XIV - respondeu-me com ar imperioso e mais para me obrigar a afastar-me dele que como um convite para que me sentasse. Peguei uma poltrona que não se achava distante. - Ah! Eis o que o senhor chama uma poltrona Luís XIV! Vejo que é um rapaz instruído exclamou com escárnio.

     Eu estava de tal modo estupefato que não me mexi, nem para ir embora, como deveria, nem para mudar de assento como ele desejava. 

- Senhor - disse-me ele, pesando todas as palavras e fazendo preceder as mais impertinentes de um duplo par de consoantes a entrevista que condescendi em lhe dar, a instâncias de uma pessoa quer deseja ou não ser nomeada, há de marcar coisa melhor; talvez forçasse um pouco o sentido dos vocábulos, o que não se deve fazer, mesmo que ignore o seu valor, e pelo simples respeito por si mesmo, ao lhe dizer que sentirei simpatia pelo senhor. Entretanto, creio que "benevolência", no seu sentido mais eficazmente protetor, não excederia nem o que eu sentia nem o que me propunha a manifestar. - Desde meu regresso a Paris, eu lhe fizera saber: mesmo em Balbec, que o senhor podia contar comigo. - Eu, que me lembrava com que despropósito o Sr. de Charlus se separara de mim em Balbec esbocei um gesto de recusa. - Como? - gritou ele encolerizado (e na verdade o seu rosto convulso e branco diferia tanto de sua fisionomia ordinária como o mar, quando, numa manhã de tempestade, percebemos, em vez da sorridente superfície habitual, mil serpentes de baba e de espuma) - O senhor afirma que não recebeu minha mensagem (quase uma declaração) para ter de se lembrar de mim? Que havia como decoração em torno ao livro que lhe fiz chegar às mãos? 
- Uns entrelaçamentos historiados muito bonitos - disse-lhe. 
- Ah! - respondeu ele com ar de desprezo - os jovens franceses conhecem pouco as obras primas de nosso país. Que se diria de um jovem berlinense que não conhecesse A Valquíria? Aliás, é preciso que o senhor tenha mesmo olhos de não ver, pois me disse que havia passado duas horas diante dessa obra-prima. Vejo que não é maior conhecedor de flores que de estilos; não proteste quanto aos estilos - gritou ele num tom de raiva extremamente agudo -, o senhor nem sequer sabe sobre o que está sentado, oferece ao seu traseiro um banquinho de estilo Diretório por uma bergere Luís XIV. Qualquer dia há de tomar os joelhos da Sra. de Villeparisis por um lavabo e nem se sabe o que fará neles. Da mesma forma, o senhor nem mesmo reconheceu na encadernação do livro de Bergotte o dintel de miosótis da igreja de Balbec. Existiria um modo mais límpido de lhe dizer: "Não se esqueça de mim"?

     Eu encarava o Sr. de Charlus. Certamente, sua cabeça magnífica, e que repugnava, levava contudo vantagem sobre a de todos os seus; dir-se-ia um Apolo envelhecido; porém uma escuma olivácea, hepática, parecia estar a ponto de escorrer de sua boca ruim. Quanto à inteligência, não se podia negar que a sua, por um vasto ângulo de compasso, abarcava muitas coisas que estariam para sempre desconhecidas do duque de Guermantes. Mas, por mais que algumas belas palavras colorissem todos os seus ódios, sentia-se que, ainda que em seu discurso houvesse ora orgulho ofendido, ora um amor decepcionado, ou um rancor, sadismo, impertinência, uma idéia fixa, aquele homem era capaz de assassinar e de provar, à força de lógica e de hábeis palavras, que tivera razão em fazê-lo e nem por isso era menos superior em cem côvados ao seu irmão, à sua cunhada, etc., etc...

- Assim como em As Lanças de Velásquez - continuou ele -, o vencedor avança na direção do mais humilde, como deve fazê-lo todo indivíduo nobre, visto que eu era tudo e o senhor não era nada, fui eu que dei os primeiros passos na sua direção. O senhor respondeu bobamente ao que não me cabia denominar grandeza. Mas não me deixei desanimar. Nossa religião prega a paciência. A que tive para com o senhor me será creditada, espero como igualmente o ter apenas sorrido daquilo que poderia ser tachado de impertinência, se estivesse a seu alcance ser impertinente com alguém que o ultrapassa de tantos côvados; mas enfim, senhor, já não se trata mais disso. Submeti-o à prova que o único homem eminente do nosso mundo chama, com espírito, prova da excessiva amabilidade e declara de direito ser a mais terrível de todas, a única em condições de separar o joio do trigo. Eu lhe censuraria somente o tê-la suportado sem pois os que triunfam dela são muito raros. Mas pelo menos, e essa conclusão que pretendo tirar das últimas palavras que havemos de tratar aqui na Terra, julgo estar ao abrigo de seus intentos caluniadores.

     Até então, não havia imaginado que a cólera do Sr. de Charlus pudesse ter sido causada por alguma frase desabonadora que lhe houvesse repetido. Interroguei minha memória; não falara dele a ninguém. O malvado a construíra com todas as letras. Garanti ao Sr. de Charlus absolutamente não dissera coisa alguma a seu respeito. 

- Não creio ter podido aborrecê-lo ao dizer à Sra. de Guermantes que era ligado ao senhor.

     Ele sorriu com desdém, fez altear-se a voz aos mais extremos registros e de lá ferindo com doçura a nota mais aguda e insolente: 

- Oh, senhor falou com extrema lentidão e em tom natural, como que se encantando, de passagem, com as estranhezas dessa graça - descendente -, acho que o senhor prejudica a si mesmo ao se acusar ter dito que possuímos "ligações". Não espero uma grande exatidão de alguém que facilmente tomaria um móvel de Chippendale por uma cadeira rococó, mas enfim não penso - acrescentou com afagos vocais à voz, mais maliciosos e que faziam flutuar em seus lábios até mesmo urgir um sorriso encantador -, não penso que o senhor tenha dito, nem julgado; que éramos ligados! Quanto ao fato de se ter gabado de ter sido apresentado à mim, de ter conversado comigo, de me conhecer um pouco, de ter obtido, quase sem solicitação, a possibilidade de um dia ser meu protegido; acredito pelo contrário, muito natural e inteligente que o tenha feito. A enorme diferença de idade que existe entre nós permite-me reconhecer, sem ridicularizar que essa apresentação, essas conversas, esse vago princípio de relação sejam para o senhor, não me cabe dizer uma honra, mas enfim, pelo menos uma vantagem, e que julgo foi tolice de sua parte não o tê-la divulgado, mas sim não ter sabido conservá-la. Acrescentarei até disse ele, pensando bruscamente, e por um instante, da cólera altaneira a uma doçura de tal modo repassada de tristeza que pensei fosse começar a chorar - que quando deixou sem resposta a proposição que lhe havia feito em Paris, me pareceu de tal forma inaudito da parte do senhor, pessoa que se afigurava de boa educação e de boa família burguesa (apenas neste aditivo a sua voz teve um pequeno assobio de impaciência), que tive a ingenuidade de acreditar em todas as historietas que não ocorrem nunca, nas quadras extraviadas, nos erros de endereço. Reconhecia ser de minha parte uma grande ingenuidade, porém São Boaventura preferia crer que pudesse voar a que um religioso mentisse. Enfim, tudo isso acabou, a coisa não o satisfez, não se fala mais no assunto. Unicamente, parece-me que o senhor poderia ter-me escrito (e havia mesmo um tom de choro em sua voz), nem que fosse apenas em consideração à minha idade. Eu imaginara, em relação ao senhor, coisas infinitamente sedutoras, que evitara lhe contar. O senhor preferiu recusar sem saber, é problema seu. Mas, como lhe digo, sempre se pode escrever. Eu, em seu lugar, e mesmo no meu, o teria feito. Por causa disso, prefiro o meu lugar ao seu, e digo por causa disso porque acredito que todos os lugares são iguais, e sinto mais simpatia por um operário inteligente do que por muitos duques. Mas posso dizer que prefiro o meu lugar porque na minha vida inteira, que já principia a ser bastante longa, sei que jamais fiz o que o senhor fez. (Sua cabeça estava virada para a sombra, eu não podia ver se de seus olhos escorriam lágrimas, como a sua voz dava a entender.) Dizia-lhe que dei cem passos em sua direção o que teve por efeito que o senhor desse duzentos para trás. Agora é a minha vez de me afastar e nós não nos conheceremos mais. Não guardei o seu nome, e sim o seu caso, para que, nos dias em que for tentado a crer que os homens têm coração, cortesia ou simplesmente a inteligência de não deixar escapar uma oportunidade sem igual, eu me lembre que isto será situá-los muito alto. Não, que o senhor tenha dito que me conhecia quando isso era verdadeiro pois agora vai deixar de sê-lo só posso achar que seja natural e o tenho por homenagem, ou seja, por agradável. Infelizmente, noutro local e em circunstâncias diversas, o senhor teve palavras bem diferentes. 
- Senhor, juro-lhe que não disse nada que pudesse ofendê-lo. 
- E quem disse que me senti ofendido? - gritou ele com fúria, erguendo-se violentamente no canapé onde até então permanecera imóvel, enquanto, ao passo que se crispavam as lívidas serpentes escumosas de seu rosto, sua voz tornava-se alternadamente aguda e grave como uma borrasca desencadeada e ensurdecedora. A força com que de hábito falava, e que fazia os desconhecidos se virarem na rua, estava centuplicada como o é de um forte se, ao invés de ser tocado ao piano, é executado pela orquestra e cada vez mais se transforma em fortíssimo. O Sr. de Charlus uivava. - Pensa que está em condições de me ofender? Por acaso não sabe com quem está falando? Julga que a saliva envenenada de quinhentos sujeitinhos seus amigos, empilhados uns sobre os outros, conseguiria babar sequer sobre meus augustos artelhos?

     Desde um momento, ao desejo de convencer o Sr. Charlus de que jamais dissera nem ouvira dizer mal dele, havia sucedido uma raiva louca, provocada pelas palavras que lhe ditava apenas, segundo achava, o seu imenso orgulho. Talvez fossem elas, aliás, ao menos em parte, o efeito desse orgulho. Quase tudo o mais provinha de um sentimento que eu ignorava e ao qual, portanto, não tinha culpa de não atribuir seu respeitável papel. Poderia ao menos, à falta do sentimento desconhecido, mesclar de orgulho, se me lembrasse das palavras da Sra. de Guermantes, um tom de loucura. Mas naquele momento, a idéia de loucura nem sequer me apareceu ao espírito. Segundo achava, não havia nele mais que orgulho, e em apenas furor. Este furor (no momento em que o Sr. de Charlus deixou de uivar para falar de seus augustos artelhos, com uma majestade acompanhada de um esgar, uma expressão de vômito pelo nojo que lhe causavam obscuros blasfemadores), este furor não se conteve mais. Com um movimento impulsivo, eu quis quebrar alguma coisa, e, como um resto de discernimento me fazia respeitar um homem tão mais velho que eu, e devido à sua dignidade artística, as porcelanas alemãs colocadas a seu redor, precipitei-me para a cartola nova do barão, atirei-a ao assoalho, pisoteei encarnicei-me em rebentá-la totalmente, arranquei-lhe o forro, rasguei a aba, sem escutar as vociferações do Sr. de Charlus que continuavam, atravessando a peça para ir embora, abri a porta. Para meu grande espanto, a cada lado desta, se mantinham dois lacaios que se afastaram devagar para dar a impressão de que ali se achavam unicamente de passagem de serviço. (Mais tarde soube seus nomes, um se chamava Burnier e o Charmel.) Não me enganei um só instante com a explicação que seu ar despreocupado parecia me propor. Era inverossímil; três outras me pararam menos: uma, que o barão recebia, por vezes, hóspedes contra quem poderia necessitar de auxílio (mas por quê?), julgando necessário ter posto de socorro por perto; a outra, que, atraídos pela curiosidade, tinha-se posto à escuta, não imaginando que eu saísse tão depressa; a terceira que toda a cena que me fizera o Sr. de Charlus fora preparada e representada, e ele próprio lhes pedira que escutassem, por amor ao espetáculo, junto a um erudito de que todos tirariam proveito. Minha cólera não acalmara a do barão; mas a minha saída do que pareceu causar-lhe viva dor. Chamou-me, mandou me chamar e, afinal, esquecendo que um momento antes, ao falar de "seus augustos artelhos acreditara me fazer o testemunho de sua própria deificação, correu as pressas, alcançou-me no vestíbulo e barrou-me a porta. 

- Vamos, não se faça de criança, volte por um minuto; quem muito ama, bem diga, e, se o castiguei muito, foi porque o amo de fato. -

     Minha cólera passara, deixei seguir o verbo "castigar" e acompanhei o barão que, chamando um lacaio, mandou, sem nenhum amor-próprio, que levasse os pedaços da cartola destruída e a substituíssem por outra. 

- Se quiser me dizer, senhor, quem me caluniou perfidamente - disse eu ao Sr. de Charlus- ficarei para sabê-lo e confundir o impostor. 
- Quem? Não o sabe? Não guarda lembrança do que fala? Pensa que as pessoas que me prestam o serviço de me advertir dessas coisas não começam por me pedir segredo? E julga que vou faltar ao que prometi? 
- Senhor, é impossível dizer-me? - perguntei, buscando uma última vez em minha cabeça (onde não encontrava ninguém) a pessoa a quem pudera ter falado do Sr. de Charlus. 
- O senhor não me ouviu falar que prometi manter segredo a quem me informou? - disse me com voz estridente. - Vejo que, ao gosto pelas conversas abjetas, o senhor junta o das insistências vãs. Deveria ter pelo menos a inteligência de aproveitar esta última entrevista, e falar para dizer algo que não seja exatamente nada. 
- Senhor - respondi afastando-me -, insulta-me; estou desarmado, visto que tem várias vezes a minha idade, a partida não é igual; por outro lado, não posso convencê-lo, jurei-lhe que não disse nada. 
- Então estou mentindo! - exclamou ele num tom terrível, e dando um tamanho salto que se achou de pé a dois passos de mim. 
- Enganaram-no.

     Então, com voz suave, afetuosa, melancólica, como naquelas sinfonias que executam sem interrupção entre os diversos trechos, e onde um gracioso scherzo amável, idílico, sucede aos trovões do primeiro trecho: 

- É bem possível - disse. - Em princípio, uma frase repetida raramente é verdadeira. Sua é a culpa, se não tendo aproveitado as ocasiões de me visitar que eu lhe havia oferecido, o senhor não pode fornecer-me, com essas palavras francas e diárias que criam a confiança, o preservativo único e soberano contra uma palavra que o apresentasse como um traidor. Em todo caso, verdadeira ou falsa, a frase realizou sua obra. Já não posso me livrar da impressão que ela me causou. Não posso nem dizer que aquele que ama bastante castiga muito, pois castiguei-o muito, mas já não o estimo. -

     Dizendo tais palavras, ele me forçara a sentar de novo e tocara a campainha. Um novo lacaio entrou. 

- Traga bebidas, e diga que mandem preparar o cupê, -

     Observei que não tinha sede, que era bem tarde e que aliás possuía um carro. 

- Provavelmente, pegaram-no e o mandaram de volta - disse ele -; não se preocupe. Mandei preparar para que o levem... Se receia, que seja muito tarde... poderia lhe dar um quarto aqui...

     Disse que minha mãe estaria inquieta. 

- Ah, sim, verdadeira ou falsa, a frase realizou a sua obra. Minha simpatia um tanto prematura florescera cedo e, como aquelas macieiras de que o senhor falava poeticamente em Balbec não pôde resistir à primeira geada. -

     Se a simpatia do Sr. de Charlus fora destruída, no entanto, ele não poderia agir de outra maneira, visto que sempre dizendo que estávamos brigados, fazia-me ficar, beber, convidava-me para dormir na casa e ia mandar-me levar à minha. Dava a impressão até de que receava o instante de me deixar e achar-se a sós, esse tipo de temor um tanto ansioso que sua cunhada e prima Guermantes me parecia sentir, uma hora atrás quando quis forçar-me a permanecer ainda um pouco com uma espécie de igual queda passageira por mim, do mesmo esforço para prolongar um minuto. 

- Infelizmente - prosseguiu ele -, não possuo o dom de fazer reflorir o que uma vez foi destruído. Minha simpatia pelo senhor está morta. Nada pode ressuscitá-la. Creio não ser indigno de me confessar o lamento. Sempre me sinto um pouco feito o Booz de Victor Hugo: de viúvo, sou só e sobre mim a noite desce.

     Voltei a atravessar com ele o grande salão verdoengo. Disse-lhe, bem ao acaso, o quanto o achava bonito seus móveis. 

- Não é mesmo? Respondi 
- É necessário amar alguma coisa. O madeiramento é de Bagard. E bonito mesmo, veja o senhor, é que foi feito para combinar com as cadeiras de Beauvais e os consolos. Repare, estes repetem o mesmo tema decorativo do madeiramento. Só existiam dois lugares onde ocorria o mesmo: Louvre e a casa do Sr. d'Hinnisdal. Mas naturalmente, quando decidi morar nesta rua, encontrou-se um velho palácio Chimay que ninguém tinha visto, pois aqui estava somente para mim. Em suma, está muito bem. Poderia talvez ser melhor, mas enfim não está mal. Há coisas bonitas não? O retrato de meus tios, o rei da Polônia e o rei da Inglaterra, de Mignard. Mas o que estou lhe dizendo? O senhor o sabe tão bem quanto eu, pois esteve esperando neste salão. Não? Ah, é que o levaram para o salão azul - disse ele com um ar seja de impertinência devido à minha falta de curiosidade, seja de superioridade pessoal e por não ter indagado porque havia feito esperar. - Olhe, neste gabinete há todos os chapéus usados por Madame Élisabeth, pela princesa de Lamballe e pela Rainha. Não lhe interessa, dir-se-ia que o senhor nem está vendo. Talvez esteja sofrendo de uma afecção do nervo óptico. Se gosta mais desse tipo de Natureza, eis um arco-íris de Turner que principia a brilhar entre esses dois Rebrancits, como sinal de nossa reconciliação. Ouça: Beethoven se junta.

     E, de fato, distinguiam-se os primeiros acordes da terceira parte da sinfonia Pastoral, "A alegria após a tempestade", executados por músicos junto de nós, sem dúvida no andar de cima. Perguntei ingenuamente se por acaso tocavam aquilo e quem eram os músicos. 

- Bem, não se sabe. Não se sabe nunca. São músicos invisíveis. Lindo, não? - disse-me num tom levemente impertinente e que, entretanto, lembrava um pouco a influência e o acento de Swann. - Mas o senhor importa-se com isso como um peixe com uma maçã. Deseja voltar para casa, arriscando-se a faltar com o respeito a Beethoven e a mim. Ergue contra si mesmo o julgamento e a condenação - acrescentou num tom afetuoso e triste, ao chegar o momento da minha partida. - Desculpar-me-á por não acompanhá-lo como as boas maneiras me obrigariam a fazer disse-me. - Desejoso de não mais revê-lo, pouco me importa passar cinco minutos mais com o senhor. Todavia, estou cansado e tenho muito que fazer. - No entanto, reparando que o tempo estava bom: - Muito bem! Sim, vou subir ao carro. Está fazendo um luar magnífico, que irei contemplar no Bois depois de o ter deixado em casa. Como! O senhor não sabe se barbear, mesmo numa noite em que janta na cidade ainda mostra alguns pelos - comentou, segurando-me o queixo entre dois dedos, por assim dizer magnetizados, que, depois de resistirem por um momento, subiram até as minhas orelhas como os dedos de um cabeleireiro. - Ah, seria agradável olhar este "luar azul" no Bois com alguém como o senhor falou-me com uma súbita doçura como que involuntária; e, depois, com ar triste: - Pois ainda assim o senhor é gentil, poderia sê-lo mais que ninguém - acrescentou, tocando-me paternalmente o ombro. - Outrora, devo dizer que o achava bem insignificante. -

     Eu deveria pensar que ele me considerava como tal, ainda hoje. Bastava lembrar-me da raiva com que me falara há meia hora apenas. Apesar disso, tinha a impressão de que ele estava sendo sincero naquele momento, que seu bom coração triunfava do que eu supunha ser um estado quase delirante de suscetibilidade e orgulho. O carro estava à nossa frente, e ele ainda encompridava a conversa. 

- Vamos - disse de repente -; suba. Em cinco minutos iremos até sua casa. E lhe darei uma boa-noite que cortará rente e para sempre as nossas relações. Já que devemos nos separar de uma vez por todas, é preferível que o façamos como na música, num acorde perfeito. -

     Apesar dessas afirmações solenes de que não nos veríamos nunca mais, eu teria jurado que o Sr. de Charlus, desgostoso por não ter sabido controlar-se há pouco, temendo me haver magoado, não se aborreceria se me revisse mais uma vez. Não me enganava, pois, ao cabo de um momento: 

- Ora, ora! Pois não é que ia me esquecendo do principal? - disse ele. - Em memória da senhora sua avó, mandei encadernar para o senhor uma curiosa edição da Sra. de Sévigné. Eis o que vai impedir este nosso encontro de ser o último. É preciso que a gente se console, dizendo que raramente se liquidam num dia os assuntos complicados. Veja quanto tempo durou o Congresso de Viena. 
- Mas eu poderia mandar buscá-lo sem o incomodar - respondi atenciosamente. 
- Queira calar-se, bobinho - retrucou encolerizado-; e não tinha o ar grotesco de considerar como coisa de pouca monta a honra de ser provavelmente (não digo certamente, pois será talvez um lacaio que - entregará os volumes) recebido por mim. - Recobrou-se: - Não queria, deixá-lo com tais palavras. Nada de dissonância; antes o silêncio eterno do acorde dominante! - Era por causa dos próprios nervos que parecia temer o regresso imediatamente após as ásperas palavras de briga. - Não quer vir até o Bois - me disse, num tom antes afirmativo que interrogativo segundo me pareceu, não porque não quisesse me convidar, mas por recear que seu amor-próprio sofresse uma recusa. - Muito bem, então - disse, alongando o assunto - é o momento em que, segundo Whistler, os burgueses voltam para casa (talvez quisesse ferir meu amor-próprio) e é quando convém começar a olhar. Mas o senhor nem sabe mesmo quem é Whistler. -

continua na página 250...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Minha cólera passara)
Volume 7