quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Urbino compreendeu

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      O doutor Urbino compreendeu. "Sei", disse. "Está na moda." E se embarafustou pelo relato de seus novos e numerosos projetos, que havia de realizar como sempre sem subsídio oficial. Acentuou que era de cortar o coração a inferioridade dos espetáculos que era possível trazer agora diante dos esplêndidos do século anterior. Assim era: há um ano vendia assinaturas para trazer o trio Cortot-CasalsThibaud ao Teatro da Comédia, e não havia ninguém no governo que soubesse quem eram, enquanto para aquele mesmo mês estavam esgotados os lugares para a companhia de peças policiais Ramón Caralt, para a Companhia de Operetas e Zarzuelas de Manolo de Ia Presa, para os Santane-las, inefáveis transformistas mímico fantásticos que trocavam de roupa em cena aberta no instante de um relâmpago fosforescente, para Danyse d'Altaine, que se apresentava como antiga bailarina do Folies Bergère, e até para o abominável Ursus, um energúmeno basco que lutava corpo a corpo com um touro de tourada. No entanto, não era o caso de nos queixarmos, quando os próprios europeus davam uma vez mais o mau exemplo de uma guerra bárbara, quando nós começávamos a viver em paz depois de nove guerras civis em meio século, as quais bem contadas podiam ser uma só: sempre a mesma. O que mais chamou a atenção de Florentino Ariza naquele discurso cativante foi a possibilidade de retomar os Jogos Florais, a mais conhecida e duradoura das iniciativas que o doutor Juvenal Urbino concebera no passado. Teve que morder a língua para não contar que ele próprio fora participante assíduo daquele concurso anual que chegou a interessar poetas de grande nome, não só no resto do país como em outros do Caribe.
      Apenas começada a conversa, o vapor quente do ar esfriou de repente, e uma tempestade de ventos cruzados sacudiu portas e janelas com fortes estampidos, e o escritório rangeu até os alicerces feito um veleiro à deriva. O doutor Juvenal Urbino não pareceu reparar. Fez alguma referência casual aos ciclones lunáticos de junho, e de repente, sem que viesse ao caso, falou na esposa. Não só a tinha como sua colaboradora mais entusiasta, como era a própria alma de suas iniciativas. Disse: "Eu não seria ninguém sem ela." Florentino Ariza o escutou impassível, aprovando tudo com um movimento leve da cabeça, sem se atrever a dizer nada por medo de ser traído pela voz. No entanto, duas ou três frases mais lhe bastaram para compreender que o doutor Juvenal Urbino, em meio a tantos compromissos absorventes, ainda encontrava tempo para adorar a esposa quase tanto quanto ele, e essa verdade o aturdiu. Mas não pôde reagir como teria querido, porque o coração lhe pregou então uma dessas putas peças que só mesmo ao coração ocorrem: revelou-lhe que ele e aquele homem que considerara sempre como o inimigo pessoal eram vítimas de um mesmo destino e partilhavam o azar de uma paixão comum: dois animais de canga jungidos ao mesmo jugo. Pela primeira vez nos vinte e sete anos intermináveis que passava esperando, Florentino Ariza não pôde resistir à pontada de dor de que aquele homem admirável tivesse que morrer para que ele fosse feliz.
     O ciclone passou ao largo, mas suas lufadas destroçaram em quinze minutos os bairros dos pântanos e causaram estragos em metade da cidade. O doutor Juvenal Urbino, satisfeito uma vez mais com a generosidade do tio Leão XII, não esperou que amainasse por completo e carregou por distração o guarda-chuva pessoal que Florentino Ariza lhe emprestou para chegar ao carro. Mas ele não ligou. Ao contrário: alegrou-se de pensar no que Fermina Daza ia pensar quando soubesse quem era o dono do guarda-chuva. Sentia ainda a comoção da entrevista quando Leona Cassiani passou pelo seu escritório, e a ocasião lhe pareceu única para revelar o segredo sem mais rodeios, que era como arrebentar um cacho de furúnculos que não o deixava viver: agora ou nunca. Começou por lhe perguntar que achava do doutor Juvenal Urbino. Ela respondeu quase sem pensar: "É um homem que faz muitas coisas, demasiadas talvez, mas acho que ninguém sabe o que pensa." Depois refletiu, despedaçando a borracha do lápis com os dentes afiados e grandes, de negra grande, e afinal deu de ombros para liquidar um assunto que não a preocupava.

 — Vai ver que é por isso que faz tantas coisas — disse: — para não ter que pensar.

     Florentino Ariza tentou retê-la.

— O que me dói é que tem de morrer — disse.

— Todo mundo tem de morrer — disse ela.

— Sim — disse ele — mas este mais que todo mundo.

     Ela não entendeu nada: tornou a dar de ombros sem falar, e foi embora. Então Florentino Ariza soube que em alguma noite incerta do futuro, num leito feliz com Fermina Daza, ia contar-lhe que não revelara o segredo de seu amor nem mesmo à única pessoa que conquistara o direito de sabê-lo. Não: não havia de revelá-lo nunca, nem à própria Leona Cassiani, não porque não quisesse abrir para ela o cofre onde o guardara tão bem ao longo de meia vida, mas porque só então percebeu que tinha perdido a chave.
      Não era isso, contudo, o mais perturbador daquela tarde. Ficava-lhe a saudade dos seus tempos de moço, a lembrança vivida dos Jogos Florais, cujo estrondo repercutia cada 15 de abril no âmbito das Antilhas. Ele foi sempre um dos seus protagonistas, mas sempre, como em quase tudo, um protagonista secreto. Participara várias vezes desde o concurso inaugural, e nunca obtivera nem a última menção. Mas não lhe importava, pois não concorria pela ambição do prêmio e sim porque o certame tinha para ele uma atração adicional: Fermina Daza foi a encarregada de abrir os envelopes lacrados e proclamar o nome dos vencedores na primeira sessão, e desde então ficou estabelecido que continuasse a fazê-lo nos anos seguintes.
     Escondido na penumbra das poltronas, com uma camélia viva pulsando na botoeira da lapela com a força da sua ansiedade, Florentino Ariza viu Fermina Daza abrindo os três envelopes lacrados no palco do antigo Teatro Nacional, na noite do primeiro concurso. A si mesmo perguntou o que ia suceder no coração dela quando descobrisse que era ele o ganhador da Orquídea de Ouro. Tinha certeza de que ela reconheceria a letra, e que naquele instante havia de evocar as tardes de bordados debaixo das amendoeiras da pracinha, o odor das gardênias murchas nas cartas, a valsa confidencial da deusa coroada nas madrugadas de vento. Não aconteceu. Pior ainda: a Orquídea de Ouro, o galardão mais cobiçado da poesia nacional, foi concedida a um imigrante chinês. O escândalo público que a decisão insólita provocou pôs em dúvida a seriedade do certame. Mas a sentença foi justa e a unanimidade do júri tinha sua justificação na excelência do soneto.
     Ninguém acreditou que o autor fosse o chinês premiado. Chegara em fins do século anterior fugindo ao flagelo de febre amarela que assolou o Panamá durante a construção da estrada de ferro dos dois oceanos, junto com muitos outros que aqui ficaram até morrer, vivendo em chinês, proliferando em chinês, e tão parecidos uns com os outros que não havia quem os distinguisse. De início não passavam de dez, alguns com as mulheres e os filhos e os cachorros de comer, mas em poucos anos inundaram quatro vielas dos arrabaldes do porto com novos chineses intempestivos que entravam no país sem deixar rastro nos registros alfandegários. Alguns dos jovens se converteram em patriarcas veneráveis com tanta precipitação que ninguém explicava como tinham tido tempo de envelhecer. A intuição popular dividiu-os em duas classes: os chineses maus e os chineses bons. Os maus eram os das estalagens lúgubres do porto, onde tanto se comia como um rei ou se morria de repente na mesa diante de um prato de rato com girassóis, e das quais se suspeitava que não passavam de biombos do comércio de brancas e do tráfico de tudo. Os bons eram os chineses das lavanderias, herdeiros de uma ciência sagrada, que devolviam as camisas mais limpas do que se fossem novas, com colarinhos e punhos feito hóstias recém engomadas. Foi um desses chineses bons que derrotou nos Jogos Florais setenta e dois rivais bem apetrechados.
      Ninguém entendeu o nome quando Fermina Daza o leu espantada. Não só por ser um nome insólito, como porque de toda maneira ninguém sabia de ciência certa como se chamavam os chineses. Mas não havia muito que pensar, porque o chinês premiado surgiu do fundo da plateia com esse sorriso celestial que têm os chineses quando chegam cedo em casa. Tinha ido tão seguro da vitória que vestia para receber o prêmio a camisola de seda amarela dos ritos da primavera. Recebeu a Orquídea de Ouro de dezoito quilates, e a beijou de ventura em meio às troças estrondosas dos incrédulos. Não se alterou. Esperou no centro da cena, imperturbável como o apóstolo de uma Divina Providência menos dramática do que a nossa, e no primeiro silêncio leu o poema premiado. Ninguém o entendeu. Mas quando passou o novo bombardeio de vaias, Fermina Daza leu-o de novo, impassível, com sua afônica voz insinuante, e o assombro se impôs desde o primeiro verso. Era um soneto da mais pura estirpe parnasiana, perfeito, atravessado por uma brisa de inspiração que delatava a cumplicidade de alguma mão de mestre. A única explicação plausível era que algum poeta dos grandes tivesse concebido aquela troça para zombar dos Jogos Florais, e que o chinês se prestara a ela com a determinação de guardar segredo até a morte. O Diário do Comércio, nosso jornal tradicional, tratou de remendar o prestígio cívico com um ensaio erudito e mais para indigesto sobre a antiguidade e a influência cultural dos chineses no Caribe, e seu merecido direito de participar nos Jogos Florais. Quem escreveu o ensaio não duvidava de que o autor do soneto fosse na realidade quem dizia ser e o justificava sem rodeios desde o título: Todos os chineses são poetas. Os promotores da conjura, se houve, apodreceram em seus sepulcros com o segredo. De sua parte, o chinês premiado morreu sem confissão numa idade oriental, e foi enterrado com a Orquídea de Ouro dentro do ataúde, mas com a amargura de não ter conseguido em vida a única coisa a que aspirava, que era seu crédito de poeta. Por motivo da morte se evocou na imprensa o incidente esquecido dos Jogos Florais, se reproduziu o soneto com uma vinheta modernista de donzelas r urgi d as com cornucópias de ouro, e os deuses custódios da poesia se valeram da ocasião para pôr as coisas em seu lugar: o soneto pareceu tão ruim à nova geração que já ninguém pôs em dúvida que na realidade fora escrito pelo chinês morto.
      Florentino Ariza associou sempre aquele escândalo à lembrança de uma desconhecida opulenta que se sentava ao seu lado. Reparara nela no princípio do ato, mas depois a esquecera no susto da espera. Ela lhe chamou a atenção por sua brancura de nácar, sua fragrância de gorda feliz, seu grande peito de soprano coroado por uma magnólia artificial. Usava um vestido de veludo preto muito apertado, tão preto quanto os olhos ansiosos e cálidos, e tinha o cabelo mais preto ainda, estirado na nuca com uma travessa de cigana. Usava brincos pendentes, colar do mesmo estilo e anéis iguais em vários dedos, todos de placas brilhantes, e um sinal pintado a lápis na face direita. Na confusão dos aplausos finais, olhou Florentino Ariza com uma aflição sincera.

 — Acredite que sinto muito — disse.

      Florentino Ariza se impressionou, não pelas condolências que na realidade merecia e sim pelo assombro de que alguém conhecesse seu segredo. Ela esclareceu: "Percebi pela maneira como tremia a flor da sua lapela enquanto se abriam os envelopes." Mostrou-lhe a magnólia de pelúcia que tinha na mão, e lhe abriu o coração:

 — Eu por isso tirei a minha — disse.

      Estava a ponto de chorar devido à derrota, mas Florentino Ariza lhe mudou o ânimo com seu instinto de caçador noturno.

— Vamos a algum lugar para chorar juntos — disse.

     Acompanhou-a à casa dela. Já na porta, e em vista de ser quase meia-noite e não haver ninguém na rua, convenceu-a a convidá-lo para um conhaque enquanto viam os álbuns de recortes e fotografias de mais de dez anos de acontecimentos públicos, que ela dizia ter. O truque já então era velho, mas dessa vez foi involuntário, porque ela é que falara nos álbuns enquanto caminhavam depois de deixar o Teatro Nacional. Entraram. A primeira coisa que observou Florentino Ariza ao chegar à sala foi que a porta do único quarto estava aberta, e que a cama era vasta e suntuosa, com uma colcha de brocado e cabeceira de ramagens de bronze. Esta visão o perturbou. Ela deve ter percebido, pois se adiantou pela sala e fechou a porta do quarto. Convidou-o em seguida a se sentar num canapé de cretone florido onde dormia um gato, e colocou na mesa de centro sua coleção de álbuns. Florentino Ariza começou a folheá-los sem pressa, pensando mais nos passos seguintes do que no que via, e de repente levantou o rosto e viu que os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Aconselhou-a a chorar quanto quisesse, sem pudor, pois nada aliviava como o pranto, mas sugeriu que afrouxasse o corpinho para chorar. Apressou-se a ajudá-la, porque o corpinho se ajustava à força nas costas com uma grande costura de cordões cruzados. Não precisou acabar, pois o corpinho acabou de se soltar pela pura pressão interna, e a tetaria astronômica respirou a seu bel-prazer.
      Florentino Ariza, que nunca perdera o susto da primeira vez, mesmo nas ocasiões mais fáceis, arriscou-se a uma carícia epidérmica no pescoço com a ponta dos dedos, e ela se retorceu com um gemido de menina que consente sem deixar de chorar. Então ele a beijou no mesmo lugar, como fizera com os dedos, e não pôde fazê-lo uma segunda vez porque ela se voltou para ele com todo o seu corpo monumental, ávido e quente, e ambos rolaram pelo chão abraçados. O gato acordou no sofá com um guincho, e saltou para cima deles. Eles se buscaram às tontas como novatos apressados e se encontraram de qualquer jeito, se revirando sobre os álbuns desfolhados, vestidos, ensopados de suor, e mais inclinados a evitar as unhadas furiosas do gato com o desastre de amor que estavam cometendo. Mas a partir da noite seguinte, com as feridas ainda sangrando, continuaram a fazê-lo por vários anos.

continua na página 147...
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O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Urbino compreendeu
O Amor nos Tempos de Cólera: Quando percebeu
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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