O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
À sensação de estar sempre em casa alheia, acrescentaram-se duas desgraças
maiores. Uma era a dieta quase diária de berinjelas em todas as suas formas, que
dona Blanca se negava a variar em respeito ao marido morto, e que Fermina Daza
recusava comer. Detestava berinjelas desde menina, mesmo antes de tê-las
provado, por achar que tinham cor de veneno. Só que essa vez teve de admitir que
de todas as maneiras algo havia mudado para melhor em sua vida, já que aos cinco
anos tinha dito o mesmo à mesa, e o pai a obrigou a comer inteiro o ensopado
previsto para seis pessoas. Pensou que ia morrer, primeiro devido vômitos da
berinjela moída, e em seguida devido à caneca de óleo de rícino que a fizeram tomar
à força para curá-la do castigo. As duas coisas ficaram misturadas em sua memória
como um só purgante, tanto pelo gosto como pelo terror do veneno, e nos almoços
abomináveis do palácio do Marquês de Casalduero tinha que afastar a vista para
não enjoar em plena mesa com a náusea glacial do óleo de rícino.
A outra desgraça foi a harpa. Um dia, muito consciente do que queria dizer, dona
Blanca tinha dito: "Não creio em mulheres direitas que não saibam tocar piano." Foi
uma ordem que até o filho tratou de discutir, pois os melhores anos de sua infância
tinham transcorrido nas galeras das aulas de piano, embora já adulto se sentisse até
grato por elas. Não podia imaginar a mulher submetida à mesma sentença, aos
vinte e cinco anos e com um caráter como o seu. Mas a única concessão que obteve
da mãe foi que trocasse o piano pela harpa, com o argumento pueril de que era o
instrumento dos anjos. Por isso trouxeram de Vieña a harpa magnífica, que parecia
de ouro e soava como se fosse, e que foi uma das relíquias mais apreciadas do
Museu da Cidade, até que o consumiram as chamas com tudo que tinha dentro.
Fermina Daza se submeteu a essa sentença de luxo tratando de impedir o naufrágio
com um sacrifício final. Começou com um mestre de mestres que trouxeram para
isso da cidade de Mompox, e que morreu de repente aos quinze dias, e continuou
por vários anos com o músico principal do seminário, cujo hálito de coveiro
deformava os arpejos.
Ela própria se surpreendeu com sua obediência. Pois embora não o admitisse em
seu foro íntimo, nem nos pleitos surdos que tinha com o marido nas horas que
antes consagravam ao amor, enrolara-se mais depressa do que acreditava no
emaranhado de convenções e preconceitos do seu novo mundo. No início tinha uma
frase ritual para afirmar sua liberdade de critério: "À merda o leque que o tempo é
de brisa." Mas depois, zelosa dos seus privilégios bem conquistados, temerosa da
vergonha e do escárnio, se dispunha a suportar até a humilhação, na esperança de
que Deus se apiedasse por fim de dona Blanca, não se cansando de suplicar em suas
orações que lhe mandasse a morte.
O doutor Urbino justificava sua própria fraqueza com argumentos de crise, sem
sequer perguntar a si mesmo se não contrariavam sua igreja. Não admitia que os
conflitos com a esposa tivessem origem no ar rarefeito da casa, atribuindo-os à
natureza mesma do casamento: uma invenção absurda que só podia existir pela
graça infinita de Deus. Ia contra toda razão científica que duas pessoas apenas
conhecidas, sem parentesco nenhum entre si, com caracteres diferentes, com
culturas diferentes, e até com sexos diferentes, se vissem comprometidas de
repente a viver juntas, a dormir na mesma cama, a compartilhar dois destinos que
talvez estivessem determinados em sentidos divergentes. Dizia: "O problema do
casamento é que se acaba todas as noites depois de se fazer o amor, e é preciso
tornar a reconstruí-lo todas as manhãs antes do café." Pior ainda o deles, dizia,
surgido de duas classes antagônicas, e numa cidade que ainda continuava sonhando
com o regresso dos vice-reis. A única argamassa possível era algo tão improvável e
volúvel como o amor, se é que havia, e no caso deles não havia quando se casaram,
e o destino não fizera mais do que pô-los à frente da realidade quando estavam a
ponto de inventá-lo.
Esse era o estado de suas vidas na época da harpa. Tinham ficado para trás os
acasos deliciosos dela entrando enquanto ele tomava banho, e apesar das
discussões, das berinjelas venenosas, e apesar das irmãs dementes e da mãe que as
pariu, ele tinha ainda bastante amor para pedir a ela que o ensaboasse. Ela
começava a fazê-lo com as migalhas de amor que ainda sobravam da Europa, e os
dois iam se deixando trair pelas lembranças, abrandando sem querer, se querendo
sem dizer, e acabavam morrendo de amor no chão, besuntados de espumas
fragrantes, enquanto ouviam as criadas falando deles na lavanderia: "Se não têm
mais filhos é porque não trepam." De vez em quando, ao voltarem de uma festa
louca, a saudade agachada atrás da porta os derrubava de uma patada, e então
ocorria uma explosão maravilhosa na qual tudo era outra vez como antes, e durante
cinco minutos tornavam a ser os amantes desbragados da lua-de-mel.
Mas à parte essas ocasiões raras, um dos dois estava sempre mais cansado que o
outro à hora de dormir. Ela se atrasava no banheiro enrolando seus cigarros de
papel perfumado, fumando sozinha, reincidindo em seus amores de consolação
como quando era jovem e livre em sua casa, dona única do seu corpo. Estava
sempre com dor de cabeça, ou fazia calor demais, sempre, ou fingia que estava
dormindo, ou tinha a regra de novo, a regra, sempre a regra. De tal forma que o
doutor Urbino se atrevera a dizer em classe, pelo exclusivo alívio de um desafogo
sem confissão, que depois de dez anos de casadas as mulheres tinham a regra até
três vezes por semana.
Desgraças chamando desgraças, Fermina Daza teve que afrontar no pior dos
seus anos o que aconteceria mais cedo ou mais tarde sem remédio: a verdade sobre
os negócios fabulosos e nunca conhecidos do pai. O governador provincial que
convocou Juvenal Urbino a seu gabinete para pô-lo ao corrente dos desmandos do
sogro resumiu-os numa frase: "Não há lei divina nem humana que esse sujeito não
tenha levado de roldão." Algumas de suas trapaças mais graves ele as fizera à
sombra do poder do genro, e teria sido difícil pensar que este e sua esposa não
estivessem ao corrente. Sabendo que a única reputação a proteger era a sua, por ser
a única que ficava de pé, o doutor Juvenal Urbino interpôs todo o peso de seu poder,
e conseguiu cobrir o escândalo com sua palavra de honra. E Lorenzo Daza saiu do
país no primeiro navio para não voltar nunca mais. Voltou à sua terra de origem
como se fosse uma dessas pequenas viagens feitas de vez em quando para enganar a
saudade, e no fundo dessa aparência havia algo de verdade: havia já algum tempo
subia aos navios de sua pátria apenas para tomar um copo d'água dos tanques
abastecidos nos mananciais de seu povoado natal Partiu sem dar o braço a torcer,
protestando inocência, e ainda tentando convencer o genro de que fora vítima de
uma conspiração política. Partiu chorando pela menina, como chamava Fermina
Daza desde que se casara, chorando pelo neto, pela terra em que se fizera rico e
livre, e onde conseguira a façanha de converter a filha numa dama requintada à
base de negócios turvos. Partiu envelhecido e doente, mas ainda viveu muito mais
do que qualquer de suas vítimas teria desejado. Fermina Daza não pôde reprimir
um suspiro de alívio quando recebeu a notícia da morte, e não pôs luto para evitar
perguntas, mas durante vários meses chorava com uma raiva surda sem saber por
que quando se trancava para fumar no banheiro, e é que chorava por ele.
O mais absurdo da situação é que nunca pareceram tão felizes em público como
naqueles anos de infortúnio. Pois na realidade foram os anos de suas vitórias
maiores sobre a hostilidade soterrada de um meio que não se resignava a admiti-los
como eram: diferentes e inovadores, e portanto transgressores da ordem
tradicional. Contudo, essa tinha sido a parte fácil para Fermina Daza. A vida
mundana, que tantas incertezas lhe trazia antes de conhecê-la, não passava de um
sistema de pactos atávicos, de cerimônias banais, de palavras previstas, com o qual
se entretinham uns aos outros na sociedade para não se assassinarem. O signo
dominante desse paraíso da frivolidade provinciana era o medo do desconhecido.
Ela o definira de um modo mais simples: "O problema da vida pública é aprender a
dominar o terror, o problema da vida conjugal é aprender a dominar o tédio." Tinha
feito a descoberta de repente com a nitidez de uma revelação no instante em que
entrou arrastando a interminável cauda de noiva no vasto salão do Clube Social,
rarefeito pelos vapores misturados de tantas flores, o brilho das valsas, o tumulto
de homens suarentos e mulheres trêmulas que a olhavam sem saber ainda como
iam conjurar aquela ameaça deslumbrante que lhes mandava o mundo exterior.
Acabava de fazer vinte e um anos e mal tinha saído de casa para ir ao colégio, mas
lhe bastou um olhar circular para compreender que seus adversários não estavam
dominados pelo ódio e sim paralisados pelo medo. Em vez de assustá-los, como
estava ela assustada, fez a caridade de os ajudar a conhecê-la. Ninguém foi diferente
daquilo que ela queria que fosse, como lhe ocorria com as cidades, que não lhe
pareciam melhores nem piores, e sim como as construía em seu coração. De Paris,
apesar da chuva perpétua, dos lojistas sórdidos e da grosseria homérica dos
cocheiros, ela havia de se lembrar sempre como a cidade mais formosa do mundo,
não porque na realidade fosse ou deixasse de ser, e sim porque ficara vinculada à
saudade de seus anos mais felizes. O doutor Urbino, de sua parte, se impôs com
armas iguais às que usavam contra ele, só que manejadas com mais inteligência, e
com uma solenidade calculada. Nada acontecia sem eles: os passeios cívicos, os
Jogos Florais, as manifestações artísticas, as tômbolas de caridade, os atos
patrióticos, a primeira viagem em balão. Ninguém poderia imaginar, em seus anos
de desgraças, que pudesse haver alguém mais feliz do que eles nem um casamento
tão harmônico quanto o seu.
A casa abandonada pelo pai deu a Fermina Daza um refúgio próprio contra a
asfixia do palácio familiar. Logo que escapava à vista pública, ia às escondidas à
praça dos Evangelhos, e lá recebia as amigas novas e algumas antigas do colégio ou
das aulas de pintura: um substituto inocente da infidelidade. Vivia horas aprazíveis
de mãe solteira com o muito que ainda lhe restava das lembranças de menina.
Tornou a comprar os corvos perfumados, recolheu gatos da rua e os colocou aos
cuidados de Gala Placídia, já velha e um tanto entrevada pelo reumatismo, mas
ainda com ânimo para ressuscitar a casa. Tornou a abrir o quarto de costura onde
Florentino Ariza a viu pela primeira vez, onde o doutor Juvenal Urbino a fez
mostrar a língua para lhe conhecer o coração e o converteu num santuário do
passado. Uma tarde de inverno foi fechar a sacada antes que desabasse a
tempestade, e viu Florentino Ariza em seu banco debaixo das amendoeiras da
pracinha, com o traje do pai diminuído para ele e o livro aberto no colo, mas não o
viu como então o via por acaso de vez em quando, e sim na idade com que lhe ficou
na memória. Sentiu o temor de que aquela visão fosse um aviso da morte, e teve
pena. Atreveu-se a dizer a si mesma que talvez tivesse sido feliz com ele, só com ele
naquela casa que ela reformara para ele com tanto amor quanto ele havia
reformado a sua para ela, e a mera suposição a assustou, porque a fez perceber os
extremos de desdita a que havia chegado. Então apelou para suas últimas forças e
obrigou o marido a discutir sem evasivas, a lhe fazer frente, a brigar com ela, a
chorarem juntos de raiva pela perda do paraíso, até que ouvissem cantar os últimos
gaios, e a luz se fez pelos beirais do palácio, e se acendeu o sol, e o marido
inflamado de tanto falar, esgotado de não dormir, com o coração fortalecido de
tanto chorar, apertou os cordões das botas, apertou o cinto, apertou tudo o que
ainda lhe restava de homem, e lhe disse que sim, meu amor, que iam buscar o amor
que havia fugido deles na Europa: amanhã mesmo e para sempre. Foi uma decisão
tão correta que acertou com o Banco do Tesouro, seu administrador universal, a
liquidação imediata da vasta fortuna familiar, dispersa desde as origens em toda
classe de negócios, investimentos e papéis sagrados e lentos, e da qual ele só sabia
como ciência certa que não era tão desmedida como dizia a lenda: apenas o justo
para não ter que pensar nela. O que fosse, convertido em ouro registrado, devia ser
transferido pouco a pouco para seus bancos no exterior, até que não restasse mais a
ele e sua mulher nesta pátria inclemente nem um palmo de terra onde cair mortos.
Pois Florentino Ariza existia, na realidade, ao contrário do que ela se propusera
crer. Estava no cais do transatlântico da França quando ela chegou com o marido e
o filho no landô dos cavalos de ouro, e os viu descer como tantas vezes vira nos atos
públicos: perfeitos. Iam com o filho, educado de uma forma que já permitia saber
como seria adulto: tal como foi. Juvenal Urbino saudou Florentino Ariza com um
chapéu alegre: "Vamos à conquista de Flandres." Fermina Daza fez uma inclinação
de cabeça, e Florentino Ariza se descobriu, com uma reverência ligeira, e ela
reparou nele sem um gesto de compaixão pelos estragos prematuros de sua calvície.
Era ele, tal como ela o via: a sombra de alguém que jamais conheceu.
Florentino Ariza também não estava em seu melhor momento. Ao trabalho cada
dia mais intenso, a seus caprichos de caçador furtivo, à mole calma dos anos,
acrescentara-se a crise final de Trânsito Ariza, cuja memória acabara sem
lembranças: quase em branco. Até o ponto em que às vezes se voltava para ele, o via
lendo na cadeira de braços de sempre, e lhe perguntava espantada: "E você é filho
de quem?" Ele respondia sempre a verdade, mas ela tornava a interromper.
— E me diga uma coisa, filho — perguntava: — quem sou eu?
continua na página 160...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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