terça-feira, 29 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Por isso mesmo não tinha resposta

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Por isso mesmo não tinha resposta. Tampouco Florentino Ariza tinha pensado no assunto até então, e resolveu correr o risco a fundo. Levou para casa uma das máquinas do escritório em meio às troças cordiais dos subalternos: "Louro velho não aprende a falar." Leona Cassiani, entusiasta de qualquer novidade, se ofereceu para lhe dar lições de datilografia a domicílio. Mas ele era contra os aprendizados metódicos desde que Lotário Thugut quis ensiná-lo a tocar violino por música, com a ameaça de que ia precisar pelo menos um ano para começar, cinco para ser aceitável numa orquestra profissional, e a vida inteira de seis horas diárias para tocar bem. Contudo, conseguiu que a mãe lhe comprasse um violino de cego, e com as cinco regras básicas dadas por Lotário Thugut se atreveu a tocar antes de um ano no coro da catedral, e a endereçar serenatas a Fermina Daza a partir do cemitério dos pobres e segundo a direção dos ventos. Se isto ocorrera aos seus vinte anos com algo tão difícil quanto o violino, não via por que não faria o mesmo aos setenta e seis com um instrumento de um dedo só como a máquina de escrever.
     Assim foi. Necessitou de três dias para aprender a posição das letras no teclado, outros seis para aprender a pensar ao mesmo tempo que escrevia, e outros três para terminar a primeira carta sem erros, depois de rasgar meia resma de papel. O cabeçalho foi solene: Senhora, e a assinou com a inicial de seu nome, como costumava fazer nas missivas perfumadas de sua juventude. Mandou-a pelo correio, num envelope com tarjas de luto como era de rigor numa carta para uma viúva recente, e sem o nome do remetente no dorso.
     Era uma carta de seis páginas que não tinha nada que ver com qualquer outra que jamais houvesse escrito. Não tinha nem o tom, nem o estilo, nem o sopro retórico dos primeiros anos do amor, e seu argumento era tão racional e bem medido que o perfume de uma gardênia teria sido um ex-abrupto. De certo modo, foi a aproximação mais acertada das cartas mercantis que nunca soube escrever. Anos depois, uma carta pessoal escrita por meios mecânicos ia ser considerada quase ofensiva, mas nesse tempo a máquina de escrever era ainda um animal de escritório, sem uma ética própria, cuja domesticação para usos privados não estava prevista nos manuais de urbanidade. Mais parecia um modernismo audaz, e assim terá entendido Fermina Daza, pois na segunda carta que escreveu a Florentino Ariza, depois de receber mais de cento e quarenta suas, começava se desculpando pelos defeitos de sua letra, por não dispor de meios de escrita mais adiantados do que a pena de aço.
     Florentino Ariza sequer mencionou a carta tremenda que ela havia mandado, tentando desde o princípio um método diferente de sedução, sem qualquer referência aos amores do passado, nem ao simples passado: água passada não move moinho. Era antes uma extensa meditação sobre a vida, com base nas suas ideias e experiências das relações entre homem e mulher, que um dia pensara em escrever como complemento do Secretário dos Namorados. Só que agora a envolveu num estilo patriarcal, de memórias de velho, para que não se notasse demais que na realidade era um documento de amor. Escreveu muitos rascunhos à moda antiga, que antes de serem lidos de cabeça fria já estavam ardendo na candeia. Sabia que qualquer descuido convencional, a menor ligeireza nostálgica podia revolver no coração dela ressaibos do passado, e embora previsse que ela devolveria cem cartas antes de ousar abrir a primeira, preferia que isso não acontecesse nem uma vez. Por isso planejou até o último pormenor como numa guerra final: tudo tinha que ser diferente para suscitar novas curiosidades, novas intrigas, novas esperanças, numa mulher que vivera em sua plenitude uma vida completa. Tinha que ser uma ilusão desatinada, capaz de lhe dar a coragem de jogar no lixo os preconceitos de uma classe que não tinha sido a sua original, mas acabara por ser mais que de outra qualquer. Tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo.
     Teve o bom senso de não esperar uma resposta imediata, pois lhe bastava que a carta não fosse devolvida. Não foi, como não foi nenhuma das seguintes, e à medida que passavam os dias se acelerava sua ansiedade, pois quanto mais dias passavam sem devoluções mais aumentava a esperança de uma resposta. A frequência das cartas começou condicionada pela habilidade dos seus dedos: primeiro uma por semana, depois duas, e por fim uma diária. Alegrou-se com o progresso dos correios desde seus tempos de missivista, pois não teria corrido o risco de se deixar ver todos os dias na Agência Postal pondo uma carta para uma mesma pessoa, nem enviá-la por alguém que podia falar depois. Em compensação, nada mais fácil que mandar um empregado comprar os selos para todo um mês, e depois enfiar a carta numa das três caixas postais situadas na cidade velha. Em pouco tempo incorporou o rito à sua rotina: aproveitava as insônias para escrever, e no dia seguinte, a caminho do escritório, pedia ao chofer que parasse um minuto diante de uma caixa de esquina e ele mesmo saltava para depositar a carta. Nunca permitiu que o chofer o fizesse por ele, como pretendeu numa manhã de chuva, e às vezes tomava a precaução de não levar uma e sim várias cartas ao mesmo tempo para parecer mais natural. O chofer não sabia, é claro, que as cartas suplementares eram folhas em branco que Florentino Ariza dirigia a si mesmo, pois nunca mantivera correspondência privada com ninguém, salvo o informe de tutor que mandava no fim de cada mês aos pais de América Vicuña com suas impressões pessoais sobre a conduta, o ânimo e a saúde da menina, e a boa marcha dos seus estudos.
     Começou a numerar as cartas a partir do primeiro mês, e a encabeçá-las com um resumo das anteriores como os folhetins em série dos jornais, por temor de que Fermina Daza não notasse que tinham uma certa continuidade. Quando se tornaram diárias, além disso, trocou os envelopes de tarja de luto por envelopes brancos e amplos, o que acabou de lhes dar a impessoalidade cúmplice das cartas comerciais. Quando começou estava disposto a submeter sua paciência a uma prova maior, ao menos até não ter a evidência de que perdia o tempo com o único método diferente que pôde conceber. Esperou, com efeito, sem os desânimos de toda índole que lhe causavam as esperas da juventude, e sim com a teimosia de um ancião de cimento sem nada mais em que pensar, sem nada mais que fazer numa companhia fluvial que já então navegava sozinha com ventos favoráveis, e ainda por cima convencido de que estaria vivo e no pleno domínio de suas faculdades de homem no dia de amanhã, de mais tarde ou de sempre em que Fermina Daza se convencesse afinal de que suas ânsias de viúva solitária só tinham o remédio de arriar para ele suas pontes levadiças.
     Enquanto isso, continuou com sua vida regular. Prevendo uma resposta favorável, iniciou uma segunda renovação da casa para que fosse digna de quem teria podido considerar-se sua dona e senhora desde que foi comprada. Tornou a visitar Prudência Pitre várias vezes, como havia prometido, para demonstrar que a amava apesar dos estragos da idade, à luz do sol e com as portas abertas, e não apenas em suas noites de desamparo. Continuou passando pela casa de Andréia Varón quando encontrava apagada a luz do banheiro, e se embrutecendo com as loucuras de sua cama ainda que apenas para não perder a regularidade do amor, de acordo com outra superstição sua, nunca desmentida até então, de que o corpo continua enquanto a gente continue.
     O único estorvo foi o estado de sua relação com América Vicuña. Tinha repetido ao chofer a ordem de apanhá-la aos sábados às dez da manhã no internato, mas não sabia o que fazer com ela durante o fim de semana. Pela primeira vez não se ocupou dela, e ela se ressentiu com a mudança. Ele a entregava às empregadas para que a levassem à sessão de cinema da tarde, aos coretos do parque infantil, às tômbolas de beneficência, ou inventava para ela programas dominicais com outras companheiras do colégio para não ter que levá-la ao paraíso escondido atrás de seus escritórios, onde ela queria voltar sempre desde que a levou pela primeira vez. Não percebia, nas nebulosas de sua nova ilusão, que as mulheres podem se tornar adultas em três dias, e eram três os anos que haviam passado desde que a recebera no motoveleiro de Porto Pai. Por muito que ele quisesse suavizá-la, a mudança para ela foi brutal, embora não concebesse o motivo. No dia em que ele disse na sorveteria que ia se casar, ela sofreu um impacto de pânico, mas achou que a possibilidade era tão absurda que a esqueceu por completo. Em breve compreendeu, porém, que ele se comportava como se fosse coisa certa, com evasivas sem explicação, não como se tivesse sessenta anos mais e sim menos que ela.
     Uma tarde de sábado, Florentino Ariza a encontrou escrevendo a máquina no seu quarto de dormir, e bastante bem, pois estudava datilografia no colégio. Tinha feito mais de meia página de escritura automática, mas em certos trechos era fácil separar uma frase reveladora de seu estado de ânimo. Florentino Ariza se inclinou sobre seu ombro para ler o que escrevia. Ela se perturbou com seu calor de homem, seu alento entrecortado, o perfume de sua roupa, que era o mesmo de seu travesseiro. Não era mais a menina recém-chegada que ele despia peça a peça com gracinhas de bebê: primeiro estes sapatinhos para o ursinho, depois esta blusinha para o cachorrinho, depois estas calcinhas de flores para o coelhinho, e agora um beijinho na pombinha linda do papai. Não: agora era uma mulher feita e direita e que gostava de tomar a iniciativa. Continuou escrevendo com um só dedo da mão direita, e com a esquerda pegou às apalpadelas a perna dele, tateou, encontrou, sentiu-o reviver, crescer, suspirar de ansiedade, e sua respiração de velho se tornou áspera e difícil. Ela o conhecia: a partir desse ponto ele ia perder o domínio, sua razão se desarticulava, ficava à sua mercê, e não encontraria os caminhos da volta sem antes chegar ao final. Ela o foi levando pela mão até a cama, como se fosse um pobre cego da rua, e o trinchou bocado a bocado com uma ternura maligna, pôs sal a seu gosto, pimenta de cheiro, um dente de alho, cebola picada, o suco de um limão, uma folha de louro, até que ele ficou temperado na travessa diante do forno pronto na temperatura exata. Não havia ninguém em casa. As criadas tinham saído, os pedreiros e carpinteiros da reconstrução não trabalhavam aos sábados: tinham o mundo inteiro para eles dois. Mas ele saiu do êxtase à beira do abismo, afastou a mão dela, se recompôs, disse com voz trêmula:

— Cuidado, não temos camisinhas.

     Ela ficou muito tempo deitada de costas na cama, pensando, e quando voltou ao internato, com uma hora de antecipação, tinha apurado o olfato e afiado as unhas para encontrar as marcas da lebre enfurnada que havia transtornado sua vida. Florentino Ariza, por sua vez, incorreu uma vez mais num erro de homem: achou que ela se convencera da inutilidade de seus propósitos e tinha resolvido esquecê-lo.
     Mergulhou em si mesmo. Ao fim de seis meses sem qualquer sinal, viu-se dando voltas na cama até romper o dia, perdido no deserto de uma insônia diferente. Pensava que Fermina Daza tinha aberto a primeira carta devido à sua aparência ingênua, tinha chegado até a inicial conhecida de outras cartas de outrora, e a jogara nas chamas do lixo sem se dar sequer o trabalho de rasgá-la. Teria bastado ver o envelope das seguintes para fazer o mesmo sem abri-las, e assim até o fim dos tempos, enquanto ele chegava ao término de suas meditações escritas. Não acreditava que existisse uma mulher capaz de resistir à curiosidade de meio ano de cartas cotidianas sem sequer saber de que cor era a tinta com que estavam escritas. Mas se uma existia, só podia ser ela. Florentino Ariza sentia que o tempo da velhice não era uma corrente horizontal mas uma cisterna sem fundo por onde se escoava a memória. Seu engenho se esgotava. Depois de rondar a quinta da Mangueira durante vários dias, compreendeu que com aquele método juvenil não conseguiria transpor as portas condenadas pelo luto. Certa manhã, procurando um número no catálogo telefônico, encontrou por acaso o dela. A campainha tocou muitas vezes, e por fim reconheceu a voz, séria e afônica: "Sim?" Desligou sem falar, mas a distância infinita daquela voz inatingível lhe abalou o espírito.
     Naqueles dias Leona Cassiani celebrou seu aniversário e convidou a sua casa um pequeno número de amigos. Ele estava distraído e entornou o molho da galinha. Ela limpou sua lapela molhando no copo d'água a ponta do guardanapo, que em seguida colocou nele feito um babador para evitar acidente maior: ficou feito um bebê velho. Notou que várias vezes durante a refeição tirou os óculos para enxugá-los no lenço, porque seus olhos choravam. À hora do café dormiu com a xícara na mão, e ela tratou de pegá-la sem o acordar, mas ele reagiu envergonhado: "Eu só estava descansando a vista." Leona Cassiani foi se deitar espantada de ver como já se notava a velhice dele.
     No primeiro aniversário da morte de Juvenal Urbino, a família enviou cartões de convite para uma missa comemorativa na catedral. Nessa altura, Florentino Ariza tinha mandado a carta número cento e trinta e dois sem receber de resposta qualquer sinal, o que o impeliu à decisão audaz de ir à missa embora não tivesse sido convidado. Foi um acontecimento social mais faustoso que comovente. Os assentos das primeiras filas, reservados com caráter vitalício e hereditário, tinham no espaldar uma placa de cobre com o nome do dono. Florentino Ariza chegou entre os primeiros convidados para se sentar num lugar por onde Fermina Daza não pudesse passar sem vê-lo. Pensou que os melhores seriam os da nave central, em seguida aos assentos reservados, mas era tamanha a afluência que nem ali encontrou lugar vago, e teve que sentar-se na nave dos parentes pobres. Dali viu entrar Fermina Daza pelo braço do filho, vestida de veludo preto até os punhos, sem nenhum adereço, com uma fileira contínua de botões do pescoço à ponta dos pés, como uma sotaina de bispo, e um leve xale de renda castelhana em lugar do chapéu de véu das outras viúvas, e mesmo de muitas senhoras que gostariam de ser. O rosto descoberto tinha um resplendor de alabastro, os olhos lanceolados viviam com a vida própria debaixo dos enormes lustres da nave central, e andava tão direita, tão altiva, tão dona de si, que não parecia mais velha que o filho. Florentino Ariza, de pé, apoiou a ponta dos dedos no espaldar do assento até que a vertigem passou ao largo, porque sentiu que ele e ela não estavam a sete passos de distância e sim em duas eras distintas.
     Fermina Daza suportou a cerimônia no genuflexório familiar diante do altar-mor, de pé todo o tempo, na mesma postura com que assistia à ópera. Mas no final rompeu as normas da liturgia, e não ficou no seu lugar para receber a renovação das condolências, de acordo com os usos vigentes, abrindo caminho para agradecer a cada um dos convidados: um gesto inovador que estava muito de acordo com seu modo de ser. Cumprimentando uns e outros chegou aos bancos dos parentes pobres, e afinal olhou à sua volta para se certificar de que não faltava cumprimentar mais nenhum conhecido. Florentino Ariza sentiu então que um vento sobrenatural o arrancava de seu centro: ela o havia visto. Fermina Daza, com efeito, se afastou de seus acompanhantes com a naturalidade com que fazia tudo em sociedade, estendeu-lhe a mão, e lhe disse com um sorriso muito doce:

— Obrigada por ter vindo.

continua na página 223...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Por isso mesmo não tinha resposta
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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