O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
.
.
continuando...
Por isso mesmo não tinha resposta. Tampouco Florentino Ariza tinha pensado
no assunto até então, e resolveu correr o risco a fundo. Levou para casa uma das
máquinas do escritório em meio às troças cordiais dos subalternos: "Louro velho
não aprende a falar." Leona Cassiani, entusiasta de qualquer novidade, se ofereceu
para lhe dar lições de datilografia a domicílio. Mas ele era contra os aprendizados
metódicos desde que Lotário Thugut quis ensiná-lo a tocar violino por música, com
a ameaça de que ia precisar pelo menos um ano para começar, cinco para ser
aceitável numa orquestra profissional, e a vida inteira de seis horas diárias para
tocar bem. Contudo, conseguiu que a mãe lhe comprasse um violino de cego, e com
as cinco regras básicas dadas por Lotário Thugut se atreveu a tocar antes de um ano
no coro da catedral, e a endereçar serenatas a Fermina Daza a partir do cemitério
dos pobres e segundo a direção dos ventos. Se isto ocorrera aos seus vinte anos com
algo tão difícil quanto o violino, não via por que não faria o mesmo aos setenta e
seis com um instrumento de um dedo só como a máquina de escrever.
Assim foi. Necessitou de três dias para aprender a posição das letras no teclado,
outros seis para aprender a pensar ao mesmo tempo que escrevia, e outros três para
terminar a primeira carta sem erros, depois de rasgar meia resma de papel. O
cabeçalho foi solene: Senhora, e a assinou com a inicial de seu nome, como
costumava fazer nas missivas perfumadas de sua juventude. Mandou-a pelo correio,
num envelope com tarjas de luto como era de rigor numa carta para uma viúva
recente, e sem o nome do remetente no dorso.
Era uma carta de seis páginas que não tinha nada que ver com qualquer outra
que jamais houvesse escrito. Não tinha nem o tom, nem o estilo, nem o sopro
retórico dos primeiros anos do amor, e seu argumento era tão racional e bem
medido que o perfume de uma gardênia teria sido um ex-abrupto. De certo modo,
foi a aproximação mais acertada das cartas mercantis que nunca soube escrever.
Anos depois, uma carta pessoal escrita por meios mecânicos ia ser considerada
quase ofensiva, mas nesse tempo a máquina de escrever era ainda um animal de
escritório, sem uma ética própria, cuja domesticação para usos privados não estava
prevista nos manuais de urbanidade. Mais parecia um modernismo audaz, e assim
terá entendido Fermina Daza, pois na segunda carta que escreveu a Florentino
Ariza, depois de receber mais de cento e quarenta suas, começava se desculpando
pelos defeitos de sua letra, por não dispor de meios de escrita mais adiantados do
que a pena de aço.
Florentino Ariza sequer mencionou a carta tremenda que ela havia mandado,
tentando desde o princípio um método diferente de sedução, sem qualquer
referência aos amores do passado, nem ao simples passado: água passada não move
moinho. Era antes uma extensa meditação sobre a vida, com base nas suas ideias e
experiências das relações entre homem e mulher, que um dia pensara em escrever
como complemento do Secretário dos Namorados. Só que agora a envolveu num
estilo patriarcal, de memórias de velho, para que não se notasse demais que na
realidade era um documento de amor. Escreveu muitos rascunhos à moda antiga,
que antes de serem lidos de cabeça fria já estavam ardendo na candeia. Sabia que
qualquer descuido convencional, a menor ligeireza nostálgica podia revolver no
coração dela ressaibos do passado, e embora previsse que ela devolveria cem cartas
antes de ousar abrir a primeira, preferia que isso não acontecesse nem uma vez. Por
isso planejou até o último pormenor como numa guerra final: tudo tinha que ser
diferente para suscitar novas curiosidades, novas intrigas, novas esperanças, numa
mulher que vivera em sua plenitude uma vida completa. Tinha que ser uma ilusão
desatinada, capaz de lhe dar a coragem de jogar no lixo os preconceitos de uma
classe que não tinha sido a sua original, mas acabara por ser mais que de outra
qualquer. Tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não
era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo.
Teve o bom senso de não esperar uma resposta imediata, pois lhe bastava que a
carta não fosse devolvida. Não foi, como não foi nenhuma das seguintes, e à medida
que passavam os dias se acelerava sua ansiedade, pois quanto mais dias passavam
sem devoluções mais aumentava a esperança de uma resposta. A frequência das
cartas começou condicionada pela habilidade dos seus dedos: primeiro uma por
semana, depois duas, e por fim uma diária. Alegrou-se com o progresso dos correios
desde seus tempos de missivista, pois não teria corrido o risco de se deixar ver todos
os dias na Agência Postal pondo uma carta para uma mesma pessoa, nem enviá-la
por alguém que podia falar depois. Em compensação, nada mais fácil que mandar
um empregado comprar os selos para todo um mês, e depois enfiar a carta numa
das três caixas postais situadas na cidade velha. Em pouco tempo incorporou o rito
à sua rotina: aproveitava as insônias para escrever, e no dia seguinte, a caminho do
escritório, pedia ao chofer que parasse um minuto diante de uma caixa de esquina e
ele mesmo saltava para depositar a carta. Nunca permitiu que o chofer o fizesse por
ele, como pretendeu numa manhã de chuva, e às vezes tomava a precaução de não
levar uma e sim várias cartas ao mesmo tempo para parecer mais natural. O chofer
não sabia, é claro, que as cartas suplementares eram folhas em branco que
Florentino Ariza dirigia a si mesmo, pois nunca mantivera correspondência privada
com ninguém, salvo o informe de tutor que mandava no fim de cada mês aos pais
de América Vicuña com suas impressões pessoais sobre a conduta, o ânimo e a
saúde da menina, e a boa marcha dos seus estudos.
Começou a numerar as cartas a partir do primeiro mês, e a encabeçá-las com um
resumo das anteriores como os folhetins em série dos jornais, por temor de que
Fermina Daza não notasse que tinham uma certa continuidade. Quando se
tornaram diárias, além disso, trocou os envelopes de tarja de luto por envelopes
brancos e amplos, o que acabou de lhes dar a impessoalidade cúmplice das cartas
comerciais. Quando começou estava disposto a submeter sua paciência a uma prova
maior, ao menos até não ter a evidência de que perdia o tempo com o único método
diferente que pôde conceber. Esperou, com efeito, sem os desânimos de toda índole
que lhe causavam as esperas da juventude, e sim com a teimosia de um ancião de
cimento sem nada mais em que pensar, sem nada mais que fazer numa companhia
fluvial que já então navegava sozinha com ventos favoráveis, e ainda por cima
convencido de que estaria vivo e no pleno domínio de suas faculdades de homem no
dia de amanhã, de mais tarde ou de sempre em que Fermina Daza se convencesse
afinal de que suas ânsias de viúva solitária só tinham o remédio de arriar para ele
suas pontes levadiças.
Enquanto isso, continuou com sua vida regular. Prevendo uma resposta
favorável, iniciou uma segunda renovação da casa para que fosse digna de quem
teria podido considerar-se sua dona e senhora desde que foi comprada. Tornou a
visitar Prudência Pitre várias vezes, como havia prometido, para demonstrar que a
amava apesar dos estragos da idade, à luz do sol e com as portas abertas, e não
apenas em suas noites de desamparo. Continuou passando pela casa de Andréia
Varón quando encontrava apagada a luz do banheiro, e se embrutecendo com as
loucuras de sua cama ainda que apenas para não perder a regularidade do amor, de
acordo com outra superstição sua, nunca desmentida até então, de que o corpo
continua enquanto a gente continue.
O único estorvo foi o estado de sua relação com América Vicuña. Tinha repetido
ao chofer a ordem de apanhá-la aos sábados às dez da manhã no internato, mas não
sabia o que fazer com ela durante o fim de semana. Pela primeira vez não se ocupou
dela, e ela se ressentiu com a mudança. Ele a entregava às empregadas para que a
levassem à sessão de cinema da tarde, aos coretos do parque infantil, às tômbolas
de beneficência, ou inventava para ela programas dominicais com outras
companheiras do colégio para não ter que levá-la ao paraíso escondido atrás de seus
escritórios, onde ela queria voltar sempre desde que a levou pela primeira vez. Não
percebia, nas nebulosas de sua nova ilusão, que as mulheres podem se tornar
adultas em três dias, e eram três os anos que haviam passado desde que a recebera
no motoveleiro de Porto Pai. Por muito que ele quisesse suavizá-la, a mudança para
ela foi brutal, embora não concebesse o motivo. No dia em que ele disse na
sorveteria que ia se casar, ela sofreu um impacto de pânico, mas achou que a
possibilidade era tão absurda que a esqueceu por completo. Em breve
compreendeu, porém, que ele se comportava como se fosse coisa certa, com
evasivas sem explicação, não como se tivesse sessenta anos mais e sim menos que
ela.
Uma tarde de sábado, Florentino Ariza a encontrou escrevendo a máquina no
seu quarto de dormir, e bastante bem, pois estudava datilografia no colégio. Tinha
feito mais de meia página de escritura automática, mas em certos trechos era fácil
separar uma frase reveladora de seu estado de ânimo. Florentino Ariza se inclinou
sobre seu ombro para ler o que escrevia. Ela se perturbou com seu calor de homem,
seu alento entrecortado, o perfume de sua roupa, que era o mesmo de seu
travesseiro. Não era mais a menina recém-chegada que ele despia peça a peça com
gracinhas de bebê: primeiro estes sapatinhos para o ursinho, depois esta blusinha
para o cachorrinho, depois estas calcinhas de flores para o coelhinho, e agora um
beijinho na pombinha linda do papai. Não: agora era uma mulher feita e direita e
que gostava de tomar a iniciativa. Continuou escrevendo com um só dedo da mão
direita, e com a esquerda pegou às apalpadelas a perna dele, tateou, encontrou,
sentiu-o reviver, crescer, suspirar de ansiedade, e sua respiração de velho se tornou
áspera e difícil. Ela o conhecia: a partir desse ponto ele ia perder o domínio, sua
razão se desarticulava, ficava à sua mercê, e não encontraria os caminhos da volta
sem antes chegar ao final. Ela o foi levando pela mão até a cama, como se fosse um
pobre cego da rua, e o trinchou bocado a bocado com uma ternura maligna, pôs sal a
seu gosto, pimenta de cheiro, um dente de alho, cebola picada, o suco de um limão,
uma folha de louro, até que ele ficou temperado na travessa diante do forno pronto
na temperatura exata. Não havia ninguém em casa. As criadas tinham saído, os
pedreiros e carpinteiros da reconstrução não trabalhavam aos sábados: tinham o
mundo inteiro para eles dois. Mas ele saiu do êxtase à beira do abismo, afastou a
mão dela, se recompôs, disse com voz trêmula:
— Cuidado, não temos camisinhas.
Ela ficou muito tempo deitada de costas na cama, pensando, e quando voltou ao
internato, com uma hora de antecipação, tinha apurado o olfato e afiado as unhas
para encontrar as marcas da lebre enfurnada que havia transtornado sua vida.
Florentino Ariza, por sua vez, incorreu uma vez mais num erro de homem: achou
que ela se convencera da inutilidade de seus propósitos e tinha resolvido esquecê-lo.
Mergulhou em si mesmo. Ao fim de seis meses sem qualquer sinal, viu-se dando
voltas na cama até romper o dia, perdido no deserto de uma insônia diferente.
Pensava que Fermina Daza tinha aberto a primeira carta devido à sua aparência
ingênua, tinha chegado até a inicial conhecida de outras cartas de outrora, e a jogara
nas chamas do lixo sem se dar sequer o trabalho de rasgá-la. Teria bastado ver o
envelope das seguintes para fazer o mesmo sem abri-las, e assim até o fim dos
tempos, enquanto ele chegava ao término de suas meditações escritas. Não
acreditava que existisse uma mulher capaz de resistir à curiosidade de meio ano de
cartas cotidianas sem sequer saber de que cor era a tinta com que estavam escritas.
Mas se uma existia, só podia ser ela. Florentino Ariza sentia que o tempo da velhice
não era uma corrente horizontal mas uma cisterna sem fundo por onde se escoava a
memória. Seu engenho se esgotava. Depois de rondar a quinta da Mangueira
durante vários dias, compreendeu que com aquele método juvenil não conseguiria
transpor as portas condenadas pelo luto. Certa manhã, procurando um número no
catálogo telefônico, encontrou por acaso o dela. A campainha tocou muitas vezes, e
por fim reconheceu a voz, séria e afônica: "Sim?" Desligou sem falar, mas a
distância infinita daquela voz inatingível lhe abalou o espírito.
Naqueles dias Leona Cassiani celebrou seu aniversário e convidou a sua casa um
pequeno número de amigos. Ele estava distraído e entornou o molho da galinha.
Ela limpou sua lapela molhando no copo d'água a ponta do guardanapo, que em
seguida colocou nele feito um babador para evitar acidente maior: ficou feito um
bebê velho. Notou que várias vezes durante a refeição tirou os óculos para enxugá-los no lenço, porque seus olhos choravam. À hora do café dormiu com a xícara na
mão, e ela tratou de pegá-la sem o acordar, mas ele reagiu envergonhado: "Eu só
estava descansando a vista." Leona Cassiani foi se deitar espantada de ver como já
se notava a velhice dele.
No primeiro aniversário da morte de Juvenal Urbino, a família enviou cartões de
convite para uma missa comemorativa na catedral. Nessa altura, Florentino Ariza
tinha mandado a carta número cento e trinta e dois sem receber de resposta
qualquer sinal, o que o impeliu à decisão audaz de ir à missa embora não tivesse
sido convidado. Foi um acontecimento social mais faustoso que comovente. Os
assentos das primeiras filas, reservados com caráter vitalício e hereditário, tinham
no espaldar uma placa de cobre com o nome do dono. Florentino Ariza chegou entre
os primeiros convidados para se sentar num lugar por onde Fermina Daza não
pudesse passar sem vê-lo. Pensou que os melhores seriam os da nave central, em
seguida aos assentos reservados, mas era tamanha a afluência que nem ali
encontrou lugar vago, e teve que sentar-se na nave dos parentes pobres. Dali viu
entrar Fermina Daza pelo braço do filho, vestida de veludo preto até os punhos, sem
nenhum adereço, com uma fileira contínua de botões do pescoço à ponta dos pés,
como uma sotaina de bispo, e um leve xale de renda castelhana em lugar do chapéu
de véu das outras viúvas, e mesmo de muitas senhoras que gostariam de ser. O
rosto descoberto tinha um resplendor de alabastro, os olhos lanceolados viviam
com a vida própria debaixo dos enormes lustres da nave central, e andava tão
direita, tão altiva, tão dona de si, que não parecia mais velha que o filho. Florentino
Ariza, de pé, apoiou a ponta dos dedos no espaldar do assento até que a vertigem
passou ao largo, porque sentiu que ele e ela não estavam a sete passos de distância
e sim em duas eras distintas.
Fermina Daza suportou a cerimônia no genuflexório familiar diante do altar-mor, de pé todo o tempo, na mesma postura com que assistia à ópera. Mas no final
rompeu as normas da liturgia, e não ficou no seu lugar para receber a renovação das
condolências, de acordo com os usos vigentes, abrindo caminho para agradecer a
cada um dos convidados: um gesto inovador que estava muito de acordo com seu
modo de ser. Cumprimentando uns e outros chegou aos bancos dos parentes
pobres, e afinal olhou à sua volta para se certificar de que não faltava cumprimentar
mais nenhum conhecido. Florentino Ariza sentiu então que um vento sobrenatural
o arrancava de seu centro: ela o havia visto. Fermina Daza, com efeito, se afastou de
seus acompanhantes com a naturalidade com que fazia tudo em sociedade,
estendeu-lhe a mão, e lhe disse com um sorriso muito doce:
— Obrigada por ter vindo.
continua na página 223...
________________
Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Por isso mesmo não tinha resposta
_______________
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Nenhum comentário:
Postar um comentário