O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Quando percebeu que tinha começado a amá-la, ela já estava na plenitude dos
quarenta, e ele ia fazer trinta. Chamava-se Sara Noriega, e tivera um quarto de hora
de celebridade na juventude, ao ganhar um concurso com um livro de versos sobre
o amor dos pobres, que nunca foi publicado. Era professora de Urbanidade e
Instrução Cívica em escolas oficiais, e vivia do seu ordenado numa casa alugada no
multicolorido conjunto da Passagem dos Noivos, no antigo bairro de Getsêmani.
Tivera vários amantes de ocasião, mas nenhum com ilusões matrimoniais, porque
era difícil que algum homem do seu meio e do seu tempo se casasse com uma
mulher com quem tivesse dormido. Tampouco ela tornou a alimentar essa ilusão
depois que seu primeiro noivo formal, a quem amou com a paixão quase demente
de que era capaz aos dezoito anos, escapou ao compromisso uma semana antes da
data prevista para as bodas, e a deixou perdida num limbo de noiva enganada. Ou de
solteira usada, como se dizia então. Contudo, aquela primeira experiência, ainda
que cruel e efêmera, não lhe deixou nenhum azedume, só a convicção deslumbrante
de que com casamento ou sem ele, sem Deus ou sem lei, não valia a pena viver se
não fosse para ter um homem na cama. O que mais Florentino Ariza apreciava nela
era que enquanto fazia o amor tinha que chuchar uma chupeta para alcançar a
glória plena. Chegaram a ter uma réstia de todos os tamanhos, formas e cores
encontradiços no mercado, e Sara Noriega pendurava as chupetas na cabeceira da
cama para encontrá-las às cegas nos momentos de extrema urgência.
Embora ela fosse tão livre quanto ele, e talvez não se opusesse a que suas
relações fossem públicas, Florentino Ariza as arrumou desde o princípio como
aventura clandestina. Esgueirava-se pela porta de serviço, quase sempre tarde da
noite, e escapava na ponta do pé pouco antes de raiar o dia. Tanto ela quanto ele
sabiam que numa moradia compartilhada e populosa como aquela, os vizinhos no
fim das contas deviam estar mais inteirados do que davam a entender. Mas ainda
que fosse uma simples fórmula, Florentino Ariza era assim, e assim seria com todas
até o fim da vida. Nunca cometeu um erro, nem com ela nem com qualquer outra,
nunca incorreu numa deslealdade. Não exagerava: só numa ocasião deixou um
rastro comprometedor ou prova escrita, o que teria podido custar-lhe a vida. Na
realidade, comportou-se sempre como se fosse o esposo eterno de Fermina Daza,
um esposo infiel mas tenaz, que lutava sem tréguas para se libertar da sua servidão,
mas sem causar o desgosto de uma traição.
Semelhante hermetismo não podia prosperar sem equívocos. A própria Trânsito
Ariza morreu convencida de que o filho concebido por amor e criado para o amor
estava imune a toda forma de amor devido a sua primeira adversidade juvenil.
Contudo, muitas pessoas menos benévolas que estiveram muito próximas dele, que
conheciam seu caráter misterioso e sua predileção por indumentárias místicas e
loções raras, partilhavam da suspeita de que ele não era imune ao amor, e sim à
mulher. Florentino Ariza sabia disto e nunca fez nada para desmenti-lo. Isso
tampouco preocupou Sara Noriega. Tal como as outras mulheres incontáveis que
amou, e mesmo as que lhe agradavam e o achavam agradável sem amá-lo, aceitou-o
como aquilo que era na realidade: um homem de passagem.
Acabou por aparecer em sua casa a qualquer hora, sobretudo nas manhãs de
domingo, que eram as mais pacatas. Ela abandonava o que estivesse fazendo, fosse
o que fosse, e se consagrava de corpo inteiro a fazê-lo feliz na enorme cama
enfeitada que esteve sempre à disposição dele, e na qual nunca permitiu a adoção
de formalismos litúrgicos. Florentino Ariza não compreendia como uma solteira
sem passado podia ser tão sábia em assuntos de homens, nem como podia manejar
seu doce corpo de delfina com tanta leveza e tanta ternura, como se se movesse por
baixo d'água. Ela se defendia dizendo que o amor, antes de mais nada, era um
talento natural. Dizia: "Ou se nasce sabendo ou não se sabe nunca." Florentino
Ariza se retorcia de ciúmes regressivos pensando que talvez ela fosse mais passeada
do que dizia ser, mas tinha que engolir as suspeitas inteiras porque também ele lhe
dizia, como dizia a todas, que ela fora sua única amante. Entre muitas outras coisas
que lhe apraziam menos, precisou resignar-se a ter na cama o gato furioso, cujas
garras eram embotadas por Sara Noriega para que não dilacerasse os dois a unhadas
enquanto faziam amor.
Contudo, quase tanto quanto gostava de folgar na cama até o esgotamento, ela
gostava de consagrar as fadigas do amor ao culto da poesia. Não só tinha uma
memória assombrosa para os versos sentimentais do seu tempo, cujas novidades se
vendiam em folhetos populares de dois centavos, como gravara com alfinetes na
parede os poemas de que gostava mais, para lê-los em voz alta a qualquer hora.
Tinha feito uma versão em endecassílabos pares dos textos de Urbanidade e
Instrução Cívica, como os que se usavam para a ortografia, mas não conseguiu a
aprovação oficial. Era tal seu arrebatamento declamatório que às vezes continuava
recitando aos gritos enquanto fazia amor, e Florentino Ariza tinha que pôr lhe a
chupeta na boca à viva força, como se fazia com as crianças para que parassem de
chorar.
Na plenitude de suas relações, Florentino Ariza se perguntara qual dos dois
estados seria o amor, o da cama turbulenta ou o das tardes aprazíveis dos domingos,
e Sara Noriega o tranquilizou com o argumento singelo de que tudo que fizessem
nus era amor. Disse: "Amor da alma da cintura para cima e amor do corpo da
cintura para baixo." Esta definição pareceu a Sara Noriega boa para um poema sobre
o amor dividido, que escreveram a quatro mãos, e que ela apresentou nos quintos
Jogos Florais, convencida de que ninguém participara até então com um poema tão
original. Mas tornou a perder.
Estava furibunda enquanto Florentino Ariza a acompanhava a casa. Por alguma
razão que não sabia explicar, tinha a convicção de que a manobra fora urdida contra
ela por Fermina Daza, para não premiar seu poema. Florentino Ariza não lhe
prestou atenção. Estava de um humor sombrio desde a entrega dos prêmios, pois há
muito tempo não via Fermina Daza e aquela noite teve a impressão de que sofrerá
uma mudança profunda: pela primeira vez notava-se a um simples olhar sua
condição de mãe. Não era novidade para ele, pois sabia que o filho já ia à escola.
Contudo, sua idade maternal não lhe parecera antes tão evidente quanto naquela
noite, tanto pelo diâmetro da cintura e seu andar um tanto incerto como pelas
hesitações de voz quando leu a lista dos prêmios.
Procurando documentar suas lembranças, tornou a folhear os álbuns dos Jogos
Florais enquanto Sara Noriega preparava algo de comer. Viu cromos de revistas,
postais amarelecidos dos que se vendiam como lembrança nos portais de loja, e foi
como uma reprise fantasmagórica da falácia de sua própria vida. Até então fora
sustentado pela ficção de que era o mundo que passava, os costumes, a moda: tudo
menos ela. Mas naquela noite viu pela primeira vez de forma consciente como a
vida de Fermina Daza estava passando, e como passava a sua própria, enquanto ele
nada fazia além de esperar. Nunca falara dela com ninguém, porque se sabia
incapaz de pronunciar o nome sem que se notasse a palidez dos seus lábios. Mas
esta noite, enquanto folheava os álbuns como em outras tantas noitadas de tédio
dominical, Sara Noriega teve um desses acertos casuais que eram de gelar o sangue.
— É uma puta — disse.
Disse de passagem, vendo uma gravura de Fermina Daza fantasiada de pantera
negra num baile de máscaras, e não teve que especificar ninguém para que
Florentino Ariza soubesse de quem falava. Temendo alguma revelação que o fosse
perturbar pelo resto da vida, avançou uma defesa cautelosa. Alegou que só conhecia
Fermina Daza de longe, que nunca tinham passado dos cumprimentos formais e
não tinha notícia nenhuma de sua intimidade, mas cava como certo que era uma
mulher admirável, surgida do nada e enaltecida por seus próprios méritos.
— Por obra e graça de um casamento, de interesse com um homem que não ama
— interrompeu Sara Noriega. — É a maneira mais baixa de ser puta.
Com menos crueza mas igual rigidez moral, a mãe tinha dito o mesmo a
Florentino Ariza procurando consolá-lo de suas desventuras. Perturbado até o
tutano dos ossos, não achou uma resposta oportuna para a inclemência de Sara
Noriega, e tratou de se esquivar ao tema. Mas Sara Noriega não deixou, até que
acabasse de desabafar contra Fermina Daza. Por um golpe de intuição que não teria
podido explicar, estava convencida de que ela fora autora da conspiração para lhe
escamotear o prêmio. Não havia nenhuma razão para isso: não se conheciam, não
se tinham visto nunca, e Fermina Daza não tinha nada a ver com as decisões do
concurso, embora estivesse ao corrente dos seus segredos. Sara Noriega disse de um
modo terminante: "Nós mulheres somos adivinhas." E pôs fim à discussão.
A partir desse momento, Florentino Ariza a viu com outros olhos. Também para
ela passavam os anos. Sua natureza feraz murchava sem glória, seu amor perdurava
em soluços, e suas pálpebras começavam a mostrar a sombra das velhas tristezas.
Era uma flor de ontem. Além disso, na fúria da derrota perdera a conta dos
conhaques. Não estava em uma boa noite: enquanto comiam o arroz de coco
requentado, procurou estabelecer qual tinha sido a contribuição de cada um no
poema derrotado, para saber quantas pétalas da Orquídea de Ouro teriam
correspondido a cada qual. Não era a primeira vez que se entretinham em torneios
bizantinos, mas ele aproveitou a ocasião para se vingar do golpe recente e se
enredaram numa discussão mesquinha que revolveu em ambos os rancores de
quase cinco anos de amor dividido.
Quando faltavam dez minutos para as doze, Sara Noriega trepou numa cadeira
para dar corda no relógio de pêndulo, e o colocou de memória na hora certa, talvez
querendo dizer sem dizê-lo que era hora de ir embora. Florentino Ariza sentiu então
a urgência de cortar pela raiz aquela relação sem amor, e buscou a ocasião de tomar
ele a iniciativa: como faria sempre. Rogando a Deus que Sara Noriega o convidasse
a ficar na cama dela de modo que ele pudesse dizer que não, que estava tudo
acabado entre eles, pediu-lhe que se sentasse ao seu lado quando acabou de dar
corda no relógio. Mas ela preferiu manter-se à distância na poltrona das visitas.
Florentino Ariza lhe estendeu então o dedo empapado de conhaque para que ela o
chupasse, como gostava de fazer nos preâmbulos do amor de outra época. Ela o
afastou.
— Agora não — disse. — Estou esperando alguém.
Desde que foi repudiado por Fermina Daza, Florentino Ariza aprendera a ficar
sempre com a última palavra. Em circunstâncias menos penosas teria persistido
nos assédios a Sara Noriega, certo de terminar a noite rolando com ela na cama,
pois estava convencido de que uma mulher que vai para a cama com um homem
uma vez continuará indo para a cama com ele cada vez que ele queira, desde que
saiba enternecê-la a cada vez. Tinha suportado tudo em nome dessa convicção,
tinha passado por cima de tudo mesmo nos negócios mais sujos do amor, com o fim
de não conceder a nenhuma mulher nascida de mulher a oportunidade da última
palavra. Mas aquela noite se sentiu tão humilhado que tomou o conhaque de um
trago, fazendo todo o possível para que transparecesse seu rancor, e foi embora sem
se despedir. Não tornaram a se ver.
continua na página 151...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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