segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Anos antes, na crise de uma doença perigosa

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Anos antes, na crise de uma doença perigosa, ele tinha falado na possibilidade de morrer, e ela lhe dera a mesma réplica brutal. O doutor Urbino a atribuiu à inclemência própria das mulheres, graças à qual é possível que a terra continue girando ao redor do sol, porque ignorava então que ela interpunha sempre uma barreira de raiva para que não lhe notassem o medo. E, nesse caso, o mais terrível de todos, que era o medo de ficar sem ele. Aquela noite, no entanto, lhe desejara a morte com todo o ímpeto de seu coração, e essa certeza o alarmou. Depois sentiu-a soluçar na escuridão, muito devagar, mordendo o travesseiro para que ele não percebesse. Isto acabou de confundi-lo, porque sabia que ela não chorava com facilidade por nenhuma dor do corpo ou da alma. Só chorava devido a uma raiva grande, mais ainda se esta se originava de algum modo em seu terror da culpa, e então quanto mais chorava com mais raiva ficava, porque não conseguia se perdoar pela fraqueza de chorar. Ele não se atreveu a consolá-la, sabendo que teria sido como consolar uma tigresa varada por uma lança, nem teve coragem para lhe dizer que os motivos do seu pranto tinham desaparecido essa tarde, e tinham sido arrancados pela raiz, e para sempre, até de sua memória.
     O cansaço o venceu por uns minutos. Quando acordou, ela acendera sua tênue lâmpada de cabeceira e continuava com os olhos abertos mas sem chorar. Algo definitivo tinha acontecido com ela enquanto ele dormia: os sedimentos acumulados no fundo da sua idade através de tantos anos tinham sido revolvidos pelo suplício do ciúme, e tinham vindo à tona, e a haviam envelhecido num instante. Impressionado por suas rugas instantâneas, seus lábios murchos, as cinzas do seu cabelo, ele se arriscou a dizer que ela tentasse dormir: passava das duas. Ela falou sem olhar para ele, mas já sem traço de raiva na voz, quase com mansidão.

 — Tenho o direito de saber quem é — disse. E então ele contou tudo, sentindo que tirava de cima de si o peso do mundo, porque estava convencido de que ela sabia e só lhe faltava confirmar os pormenores. Mas não era assim, é claro, de maneira que enquanto ele falava ela voltou a chorar, não com soluços tímidos como no começo, e sim com umas lágrimas soltas e salobras que lhe escorriam pelo rosto, è lhe ardiam na camisola e lhe inflamavam a vida, porque ele não tinha feito o que ela esperava com a alma por um fio, e era que ele negasse tudo até a morte, que se indignasse com a calúnia, que cagasse aos gritos nesta sociedade filha de mãe ordinária que não tinha o menor escrúpulo em pisotear a honra alheia, e que se mantivesse imperturbável mesmo diante de provas as mais demolidoras da sua deslealdade: como um homem. Depois, Quando ele contou que tinha estado à tarde com o confessor, teve medo de ficar cega de raiva. Desde o colégio tinha a convicção de que gente de igreja carecia de qualquer virtude inspirada por Deus. Esta era uma discrepância essencial na harmonia da casa, que tinham logrado contornar sem tropeços. Mas que o marido tivesse permitido que o confessor se imiscuísse a esse ponto numa intimidade que não era apenas dele, mas dela também, era coisa que ia mais longe do que tudo.

 — É como contar a um daqueles ambulantes dos portais — disse.

     Para ela era o fim. Tinha certeza de que sua honra andaria de boca em boca antes que o marido acabasse de cumprir a penitência, e o sentimento de humilhação que isso lhe causava era muito menos suportável do que a vergonha e a raiva e a injustiça da infidelidade. E o pior de tudo, porra: com uma preta. Ele corrigiu: "Mulata." Mas a essa altura toda precisão era de sobra: ela havia acabado.

— É a mesma praga — disse — e só agora eu entendo: era cheiro de preta.

      Isto foi numa segunda-feira. Na sexta às sete da noite, Fermina Daza embarcou no naviozinho regular de São João da Ciénaga, levando só um baú, em companhia da afilhada e com o rosto coberto por uma mantilha para evitar perguntas e evitar que fossem feitas ao marido. O doutor Juvenal Urbino não foi ao porto, por acordo de ambos, depois de uma exaustiva conversa de três dias, na qual decidiram que ela fosse para a fazenda da prima Hildebranda Sánchez, na povoação de Flores de Maria, com tempo bastante para refletirem antes de tomar uma resolução final. Os filhos a aceitaram, sem conhecer os motivos, como uma viagem muitas vezes adiada que eles próprios desejavam há algum tempo. O doutor Urbino arrumou tudo de forma a que ninguém no seu mundinho pérfido pudesse fazer especulações maliciosas, e o fez tão bem que se Florentino Ariza não encontrou nenhuma pista do desaparecimento de Fermina Daza foi porque na realidade não havia, e não porque lhe faltassem meios de averiguação. O marido não tinha dúvida de que ela voltaria a casa logo que a raiva passasse. Mas ela partiu segura de que a raiva não passaria nunca.
     Contudo, em breve ia constatar que essa determinação exagerada não era tanto fruto do ressentimento como da saudade. Depois da viagem de lua-de-mel tinha voltado várias vezes à Europa, apesar dos dez dias de mar, e sempre o fizera com tempo de sobra para ser feliz. Conhecia o mundo, aprendera a viver e a pensar de outro modo, mas nunca tinha voltado a São João da Ciénaga depois do frustrado voo em balão. O regresso à província da prima Hildebranda tinha para ela algo de redenção, ainda que tardia. Não passou a pensar assim a partir do seu desastre matrimonial: vinha de muito antes. A verdade é que a simples ideia de resgatar suas querências de adolescente a consolava da desdita. 
      Quando desembarcou com a afilhada em São João da Ciénaga, apelou para suas grandes reservas de caráter e reconheceu a cidade contra todas as advertências. O chefe civil e militar da praça, a quem ia recomendada, convidou-a a uma volta na vitória oficial à espera do trem de São Pedro Alexandrino, aonde ela queria ir para comprovar o que lhe haviam dito, que a cama em que morreu o Libertador era pequena como a de um menino. Então Fermina Daza tornou a ver seu povoado grande no pleno marasmo das duas da tarde. Tornou a ver as ruas que mais pareciam charcos cobertos de limo, e tornou a ver as mansões dos portugueses com seus escudos heráldicos talhados no pórtico e gelosias de bronze nas janelas, em cujos salões umbrosos se repetiam sem compaixão os mesmos exercícios de piano titubeantes e tristes, que sua mãe recém-casada tinha finado às meninas das casas ricas. Viu a praça deserta uma árvore nas brasas da caliça, a fileira de coches de fúnebres com os cavalos dormindo em pé, o trem amarelo de São Pedro Alexandrino, e na esquina da igreja velha viu a casa maior, a mais bela, com um corredor de arcadas de pedra esverdeada e um portão de mosteiro, e a janela do quarto onde ia nascer Álvaro muitos anos depois, quando ela não tivesse mais memória para se lembrar. Pensou na tia Escolástica, que continuava buscando sem esperança por céus e terras, e pensando nela se viu pensando em Florentino Ariza, com sua roupa de literato e seu livro de versos embaixo das amendoeiras da pracinha, coisa que poucas vezes lhe acontecia quando evocava seus anos ingratos do colégio. Depois de muitas voltas não conseguiu reconhecer a antiga casa familiar, pois onde supunha que estava só havia um cercado de porcos, e na curva da esquina a rua dos bordéis, com putas do mundo inteiro fazendo a sesta nos portais, pois o correio podia passar com alguma coisa para elas. Não era seu povoado.
     Desde o princípio do passeio, Fermina Daza tapara a metade do rosto com a mantilha, não por medo de ser reconhecida onde ninguém podia conhecê-la, e sim devido à vista dos mortos que inchavam ao sol em todos os cantos, da estação do trem até o cemitério. O chefe civil e militar da praça lhe disse: "É o cólera.' Ela sabia, porque tinha visto os coágulos brancos na boca dos cadáveres mirrados, mas notou que nenhum tinha o tiro de misericórdia na nuca, como na época do balão.

 — É verdade — disse o oficial. — Também Deus melhora seus métodos.

      A distância entre São João da Ciénaga e o antigo engenho de São Pedro Alexandrino era de apenas nove léguas, mas o trem amarelo se arrastava o dia inteiro, porque o maquinista era amigo dos passageiros habituais e estes lhe pediam o favor de parar de tempos em tempos para estirar as pernas andando pelos prados de golfe da companhia bananeira, e os homens tomavam banho nus nos rios diáfanos e gelados que se precipitavam da serra, e quando sentiam fome desciam para ordenhar as vacas soltas no pasto. Fermina Daza chegou aterrorizada, e apenas se concedeu tempo para admirar os tamarineiros homéricos em que o Libertador pendurava sua rede de moribundo, e para comprovar que a cama em que morreu, tal como lhe haviam dito, não só era pequena para um homem de tanta glória, como inclusive para um setemesinho. Contudo, outro visitante que parecia saber tudo disse que a cama era uma relíquia falsa, pois a verdade é que tinham deixado o Pai da Pátria morrer atirado pelos cantos. Fermina Daza ficou tão deprimida com o que viu e ouviu desde que saíra de casa que durante o resto da viagem não se deixou envolver por lembranças da viagem anterior, como sonhara fazer, evitando ao contrário passar pelos povoados de suas saudades. Desta forma os preservou e se preservou a si mesma da desilusão. Ouvia os acordeões nos atalhos por onde escapava ao desencanto, ouvia os gritos das rinhas de galo, as salvas de pólvora que tanto podiam ser de guerra como de pândega, e quando não havia meio de não atravessar o povoado, tapava o rosto com a mantilha para continuar a evocá-lo como era antes.
     Uma noite, depois de muito se esquivar ao passado, chegou à fazenda da prima Hildebranda, e quando a viu esperando na porta esteve a ponto de desfalecer: era como se ver a si mesma no espelho da verdade. Estava gorda e decrépita, e carregada de filhos indômitos que não eram do homem que continuava amando sem esperanças e sim de um militar em uso de boa reforma com quem se casara por despeito e que a amou com loucura. Mas por dentro do corpo devastado continuava a mesma. Fermina Daza se recuperou da impressão com poucos dias de campo e boas recordações, mas só saiu da fazenda para ir à missa aos domingos com os netos de suas travessas cúmplices de antanho, rapagões em cavalos magníficos, e moças belas e bem vestidas, como as mães na mesma idade, que saíam de pé nas carretas de boi, cantando em coro, até a igreja da missão no fundo do vale. Só passou pelo povoado de Flores de Maria, onde não estivera na viagem anterior, porque não imaginou que pudesse gostar dele, mas ao conhecê-lo ficou fascinada. Sua desgraça, ou a do povoado, foi que depois jamais conseguiu relembrá-lo como era na realidade, e sim como o imaginava antes de conhecê-lo.
     O doutor Juvenal Urbino tomou a decisão de ir ao encontro dela depois de receber o informe do bispo de Riohacha. Sua conclusão foi que a demora da esposa não se devia ao fato de que não queria voltar e sim que não sabia como contornar o orgulho. Por isso partiu sem avisá-la, depois de uma troca de cartas com Hildebranda, das quais concluiu com clareza que as saudades da esposa se haviam invertido: agora só pensava em sua casa. Fermina Daza estava na cozinha às onze da manhã, preparando berinjelas recheadas, quando ouviu o grito dos peões, os relinchos, os disparos para o ar, e depois os passos resolutos no saguão, e a voz do homem:

 — Mais vale chegar a tempo do que ser convidado.

continua na página 190...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Anos antes, na crise de uma doença perigosa
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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