terça-feira, 8 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Os escritórios da C.F.C.

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Os escritórios da C.F.C. estavam desde sua fundação diante do cais fluvial, sem nada em comum com o porto dos transatlânticos no lado oposto da baía, nem com o atracadouro do mercado na baía das Animas. Era um edifício de madeira com telhado de zinco de duas águas, um único balcão grande com colunas na fachada e várias janelas com telas de arame nos quatro costados, das quais se viam completos os navios no cais como quadros pendurados na parede. Quando o construíram, os precursores alemães pintaram de vermelho o zinco dos telhados e de branco brilhante os tabiques de madeira, de maneira que o próprio edifício tinha algo de navio fluvial. Mais tarde pintaram-no todo de azul, e pelos tempos em que Florentino Ariza começou a trabalhar na empresa era um galpão poeirento sem cor definida, e nos telhados oxidados havia emendas de folhas de zinco novas sobre as folhas originais. Por trás do edifício, num pátio de caliça cercado de tela de galinheiro, havia dois armazéns amplos de construção mais recente, e no fundo havia um desaguadouro fechado, sujo e fedorento, onde apodreciam os despejos de meio século de navegação fluvial: escombros de navios históricos, desde os primitivos de uma só chaminé, inaugurados por Simão Bolívar, até alguns tão recentes que já tinham ventiladores elétricos nos camarotes. Tinham sido em sua maioria desmantelados para a utilização dos materiais em outros navios, mas muitos estavam em tão bom estado que parecia possível dar-lhes uma mão de pintura e botá-los para navegar, sem espantar as iguanas nem derrubar as árvores de grandes flores amarelas que os faziam mais nostálgicos.
      No andar de cima do edifício ficava a seção administrativa, em escritórios pequenos mas cômodos e bem aparelhados, como os camarotes dos navios, pois não tinham sido feitos por arquitetos civis e sim por engenheiros navais. No fim do corredor, como mais um empregado, despachava o tio Leão XII num escritório igual a todos, com a única diferença de que ele encontrava pela manhã em sua secretária um jarro de vidro com alguma espécie de flores de cheiro bom. No andar de baixo ficava a seção de passageiros, com uma sala de espera de bancos rústicos e um balcão para a emissão de passagens e o manuseio de bagagens. No fim de tudo ficava a confusa seção geral, cujo mero nome dava uma ideia do vago de seus atributos, e onde morriam de má morte os problemas que permaneciam por resolver no resto da empresa. Ali estava Leona Cassiani, perdida atrás de uma carteira escolar entre um montão de sacos de milho arrumados e papéis sem solução, no dia em que o tio Leão XII em pessoa foi ver que diabo lhe ocorreria para fazer com que a seção geral servisse para alguma coisa. Ao fim de três horas de perguntas, de suposições teóricas e averiguações concretas com todos os empregados em plenário, voltou ao seu escritório atormentado pela certeza de não haver encontrado nenhuma solução para tantos problemas, e sim o contrário: novos e variados problemas para solução nenhuma.
      No dia seguinte, quando Florentino Ariza entrou no seu escritório, encontrou um memorando de Leona Cassiani, com o pedido de que o estudasse e mostrasse em seguida a seu tio, se lhe parecesse pertinente. Era a única que não tinha dito uma palavra durante a inspeção da tarde anterior. Mantivera-se de propósito em sua digna condição de empregada por caridade, mas no memorando fazia notar que não o fizera por negligência e sim por respeito às hierarquias da seção. Era de uma simplicidade alarmante. Tio Leão XII propusera uma reorganização a fundo, mas Leona Cassiani pensava o contrário, pela lógica simples de que a seção geral não existia na realidade: era a lixeira dos problemas encrencados mas insignificantes que as outras seções passavam adiante. A solução, em consequência, era eliminar a seção geral, e devolver os problemas para serem resolvidos em suas seções de origem.
      Tio Leão XII não tinha a menor ideia de quem era Leona Cassiani nem recordava ter visto alguém que pudesse ser ela na reunião da tarde anterior, mas quando leu o memorando chamou-a ao seu escritório e conversou com ela a portas fechadas durante duas horas. Falaram um pouco de tudo, de acordo com o método que ele usava para conhecer as pessoas. O memorando era de simples senso comum, e a solução deu, com efeito, o resultado apetecido. Mas isso não importava para tio Leão XII: importava ela. O que mais lhe chamou a atenção foi que seus únicos estudos depois do primário tinham sido na Escola de Chapelaria. Além disso, estava aprendendo inglês em casa por um rápido método sem mestre, e há três meses tinha aulas noturnas de datilografia, um ofício moderno de grande futuro, como antes se dizia do telégrafo e se dissera antes das máquinas a vapor.
      Quando saiu da entrevista já tio Leão XII tinha começado a chamá-la como a chamaria sempre: xará Leona. Resolvera eliminar de uma penada a seção conflituosa e repartir os problemas de maneira a que fossem resolvidos pelos mesmos que os criavam, de acordo com a sugestão de Leona Cassiani, e inventara para ela um posto sem nome e sem funções específicas, que na prática era o de assistente pessoal sua. Essa tarde, depois do enterro sem flores da seção geral, tio Leão XII perguntou a Florentino Ariza de onde havia tirado Leona Cassiani, e ele respondeu com a verdade.

 — Pois volte ao bonde e me traga todas as que encontrar como esta — disse o tio. — Com mais duas ou três assim botamos o seu galeão a flutuar.

      Florentino Ariza entendeu isso como uma piada típica de tio Leão XII, mas no dia seguinte se viu sem o carro que lhe haviam designado seis meses antes, e que agora lhe tiravam para que continuasse buscando talentos ocultos nos bondes. Leona Cassiani, por sua parte, perdeu em breve seus escrúpulos iniciais, e tirou de dentro de si tudo que tinha guardado com tanta astúcia nos primeiros três anos. Em três mais abarcara o controle de tudo, e nos quatro seguintes chegou às portas da secretaria geral, mas se negou a entrar porque estava apenas um escalão abaixo de Florentino Ariza. Até então tinha estado sob suas ordens, e queria continuar estando, embora a realidade fosse outra: o próprio Florentino Ariza não se dava conta de que era ele quem estava debaixo das ordens dela. Assim era: ele não fizera mais do que cumprir o que ela sugeria na Direção Geral para ajudá-lo a subir contra os ardis de seus inimigos ocultos.
      Leona Cassiani tinha um talento diabólico para manejar segredos, e sempre sabia estar onde devia no momento justo. Era dinâmica, silenciosa, de uma doçura sábia. Mas quando era indispensável, com a dor na alma, soltava as rédeas a um caráter de ferro maciço. Contudo, nunca o usou para si mesma. Seu único objetivo foi varrer a escada a qualquer preço, com sangue se não havia outro jeito, para que Florentino Ariza subisse até onde se havia proposto sem calcular muito bem a própria força. Ela teria feito o mesmo de qualquer maneira, é claro, por sua indomável vocação de poder, mas a verdade é que o fez de forma consciente e por pura gratidão. Era tal sua determinação que o próprio Florentino Ariza se perdeu em seus manejos, e num momento de pouca sorte procurou fechar-lhe o caminho pensando que ela procurava fechar o dele. Leona Cassiani colocou-o .em seu lugar.

 — Não se engane — disse. — Eu me afasto de tudo isso quando você quiser, mas pense bem antes.

     Florentino Ariza, que na Verdade não tinha pensado bem, pensou então o melhor que pôde, e lhe entregou suas armas. O certo é que em meio àquela guerra sórdida dentro de uma empresa em crise perpétua, em meio a seus desastres de falcoeiro sem sossego e à ilusão cada vez mais incerta de Fermina Daza, o impassível Florentino Ariza não tivera um instante de paz interior diante do espetáculo fascinante daquela negra brava besuntada de merda e de amor na febre da peleja. Tanto assim que muitas vezes lamentou em segredo que ela não tivesse sido na realidade o que ele acreditava que fosse na tarde em que a conheceu, para ter limpado o traseiro com seus princípios e ter feito o amor com ela ainda que pago com pepitas de ouro vivo. Pois Leona Cassiani continuava sendo igual à daquela tarde no bonde, com as mesmas roupas de roceira espaventosa, seus turbantes loucos, seus brincos e pulseiras de osso, seu maço de colares e seus anéis de pedras falsas em todos os dedos: uma leoa de rua. O muito pouco que os anos lhe haviam acrescentado por fora era para seu bem. Navegava numa maturidade esplêndida, seus encantos de mulher eram mais inquietantes, e seu ardoroso corpo de africana se ia fazendo mais denso com a madureza. Florentino Ariza não tinha tornado a se insinuar em dez anos, pagando assim a dura penitência do erro original, e ela o ajudara em tudo, menos nisso.
      Uma noite em que ficou trabalhando até muito tarde, como fazia com frequência depois da morte da mãe, Florentino Ariza já saía quando viu luz no escritório de Leona Cassiani. Abriu a porta sem bater, e ali estava: só no escritório, absorta, séria, com uns óculos novos que lhe davam um semblante acadêmico. Florentino Ariza constatou com um pavor ditoso que estavam os dois sós na casa, estavam os cais desertos, a cidade adormecida, a noite eterna no mar tenebroso, o bramido triste de um navio que ainda levaria mais de uma hora a chegar. Florentino Ariza se apoiou no guarda-chuva com as duas mãos, tal como havia feito na ruela do Candeeiro para lhe fechar o caminho, só que agora o fazia para não demonstrar a desarticulação dos joelhos.

 — Diga-me uma coisa, leoa de minh'alma — disse: — quando vamos sair disto?

      Ela tirou os óculos sem surpresa, com um domínio absoluto, e o deslumbrou com seu riso solar. Nunca o chamara de você.

 — Ai, Florentino Ariza — disse — estou há dez anos sentada aqui esperando que você me pergunte. Era tarde: a ocasião ia com ela no bonde de burro, tinha estado sempre com ela na mesma cadeira em que estava sentada, mas agora tinha ido para sempre. A verdade era que depois de tantas cachorradas subterrâneas que tinha feito por ele, depois de tanta sordidez suportada para ele, ela se adiantava na vida e estava muito para lá dos vinte anos de idade que ele tinha de vantagem: tinha envelhecido para ele. Ela o queria tanto que em vez de enganá-lo, preferiu continuar no seu amor por ele ainda que tivesse que fazê-lo saber disso de uma forma brutal.

 — Não — disse a ele. — Eu me sentiria como se estivesse indo para a cama com o filho que nunca tive.

      Florentino Ariza guardou em si o espinho de que não tivesse sido sua a última palavra. Pensava que quando uma mulher diz que não, está esperando que insistam com ela antes de tomar a decisão final, mas com ela era diferente: não podia brincar com o risco de se equivocar uma segunda vez. Retirou-se de boa vontade, e mesmo com uma certa graça que não lhe era fácil manter. A partir dessa noite, qualquer sombra que pudesse haver entre eles se dissipou sem ressentimento, e Florentino Ariza compreendeu por fim que se pode ser amigo de uma mulher sem ir para a cama com ela.
      Leona Cassiani foi o único ser humano a quem Florentino Ariza esteve tentado a revelar o segredo de Fermina Daza. As poucas pessoas que o conheciam começavam a esquecê-lo por motivo de força maior. Três delas o haviam levado consigo para o túmulo sem dúvida nenhuma: sua mãe, que desde muito antes de morrer já o havia apagado da memória; Gala Placídia, morta de boa velhice a serviço da que lhe foi quase uma filha; e a inesquecível Escolástica Daza, a que lhe havia levado dentro de um livro de missa a primeira carta de amor que recebeu na vida, e que não podia mais estar viva depois de tantos anos. Lorenzo Daza, de quem não se sabia então se vivia ou estava morto, podia tê-lo revelado à irmã Franca de Ia Luz procurando evitar a expulsão, mas era pouco provável que o houvessem divulgado. Restava contar onze telegrafistas da província longínqua de Hildebranda Sánchez, que tinham manipulado telegramas com seus nomes completos e endereços exatos, e ainda Hildebranda Sánchez e sua corte de primas indômitas.
      O que Florentino Ariza ignorava era que o doutor Juvenal Urbino devia ser incluído na conta. Hildebranda Sánchez lhe havia revelado o segredo em algumas de suas tantas visitas dos primeiros anos. Mas o fez de forma tão casual e num momento tão inoportuno que, ao contrário do que ela pensou, não entrou por um ouvido do doutor Urbino e saiu pelo outro, pois não entrou por ouvido nenhum. Hildebranda, na verdade, tinha mencionado Florentino Ariza como um dos poetas escondidos que segundo ela tinham possibilidades de ganhar os Jogos Florais. O doutor Urbino teve de fazer um esforço para se lembrar quem era, e ela lhe disse sem que fosse indispensável mas sem um pingo de malícia que ele fora o único noivo que Fermina Daza tinha tido antes de se casar. Falou convencida de que se tratara de algo tão inocente e efêmero que era mais comovente do que outra coisa qualquer. O doutor Urbino respondeu sem olhá-la: "Não sabia que esse sujeito era poeta." E o apagou da memória no mesmo instante, entre outras coisas porque sua profissão o acostumara a um manejo ético do esquecimento.
     Florentino Ariza observou que os depositários do segredo, com exceção de sua mãe, pertenciam ao mundo de Fermina Daza. No seu estava só ele, só com o peso esmagador de uma carga que muitas vezes necessitara compartilhar, mas ninguém até então lhe merecera tanta confiança. Leona Cassiani era a única possível, e ele só estava esperando a maneira e a ocasião. Nisto pensava na tarde de bochorno estivai em que o doutor Juvenal Urbino subiu as escadas empinadas da C.F.C., fazendo uma pausa em cada degrau para sobreviver ao calor das três, e apareceu arquejante no escritório de Florentino Ariza empapado de suor até nas calças, e disse com o último alento: "Acho que vem para cima de nós um ciclone." Florentino Ariza o vira ali muitas vezes, em busca do tio Leão XII, mas nunca tivera como agora a impressão tão nítida de que aquela aparição indesejável tinha algo a ver com sua vida.
     Era a época em que também o doutor Juvenal Urbino tinha superado os escolhos da profissão, e andava quase de porta em porta feito um mendigo de chapéu na mão, buscando contribuições para suas promoções artísticas. Um dos seus contribuintes mais assíduos e pródigos foi sempre tio Leão XII, que naquele justo momento começara a fazer sua sesta diária de dez minutos, sentado na poltrona de molas da mesa de trabalho. Florentino Ariza pediu ao doutor Juvenal Urbino o favor de esperar em seu escritório, contíguo ao do tio Leão XII e que de certa forma lhe servia de sala de espera.
     Em diversas ocasiões se haviam visto, mas nunca tinham estado assim, frente a frente, e Florentino Ariza padeceu mais uma vez a náusea de se sentir inferior. Foram dez minutos eternos, durante os quais se levantou três vezes na esperança de que o tio tivesse acordado antes do tempo, e tomou uma garrafa térmica inteira de café puro. O doutor Urbino não aceitou nem uma xícara. Disse: "Café é veneno." E continuou encadeando um tema ao outro sem sequer se preocupar em ser escutado. Florentino Ariza não podia suportar sua distinção natural, a fluidez e precisão de suas palavras, seu hálito recôndito de cânfora, seu encanto pessoal, a maneira tão fácil e elegante com que conseguia que mesmo as frases mais frívolas, só porque ele as dizia, parecessem essenciais. De repente, o médico mudou de tema de um modo abrupto.

 — Gosta de música?

      Pegou-o de surpresa. Na realidade, Florentino Ariza assistia a quantos concertos ou representações de ópera houvesse na cidade, mas não se sentia capaz de manter uma conversação crítica ou bem informada. Tinha um xodó pela música da moda, sobretudo as valsas sentimentais, cuja afinidade com as que ele mesmo compunha quando adolescente, ou com seus versos secretos, não era possível negar. Bastava ouvi-las uma vez de passagem para que logo não houvesse força de Deus que lhe tirasse da cabeça o fio da melodia durante noites inteiras. Mas isso não seria uma resposta séria para uma pergunta tão séria de um especialista.

 — Gosto de Gardel — disse.

continua na página 143...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Os escritórios da C.F.C.
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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