O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Os escritórios da C.F.C. estavam desde sua fundação diante do cais fluvial, sem
nada em comum com o porto dos transatlânticos no lado oposto da baía, nem com o
atracadouro do mercado na baía das Animas. Era um edifício de madeira com
telhado de zinco de duas águas, um único balcão grande com colunas na fachada e
várias janelas com telas de arame nos quatro costados, das quais se viam completos
os navios no cais como quadros pendurados na parede. Quando o construíram, os
precursores alemães pintaram de vermelho o zinco dos telhados e de branco
brilhante os tabiques de madeira, de maneira que o próprio edifício tinha algo de
navio fluvial. Mais tarde pintaram-no todo de azul, e pelos tempos em que
Florentino Ariza começou a trabalhar na empresa era um galpão poeirento sem cor
definida, e nos telhados oxidados havia emendas de folhas de zinco novas sobre as
folhas originais. Por trás do edifício, num pátio de caliça cercado de tela de
galinheiro, havia dois armazéns amplos de construção mais recente, e no fundo
havia um desaguadouro fechado, sujo e fedorento, onde apodreciam os despejos de
meio século de navegação fluvial: escombros de navios históricos, desde os
primitivos de uma só chaminé, inaugurados por Simão Bolívar, até alguns tão
recentes que já tinham ventiladores elétricos nos camarotes. Tinham sido em sua
maioria desmantelados para a utilização dos materiais em outros navios, mas
muitos estavam em tão bom estado que parecia possível dar-lhes uma mão de
pintura e botá-los para navegar, sem espantar as iguanas nem derrubar as árvores
de grandes flores amarelas que os faziam mais nostálgicos.
No andar de cima do edifício ficava a seção administrativa, em escritórios
pequenos mas cômodos e bem aparelhados, como os camarotes dos navios, pois
não tinham sido feitos por arquitetos civis e sim por engenheiros navais. No fim do
corredor, como mais um empregado, despachava o tio Leão XII num escritório igual
a todos, com a única diferença de que ele encontrava pela manhã em sua secretária
um jarro de vidro com alguma espécie de flores de cheiro bom. No andar de baixo
ficava a seção de passageiros, com uma sala de espera de bancos rústicos e um
balcão para a emissão de passagens e o manuseio de bagagens. No fim de tudo
ficava a confusa seção geral, cujo mero nome dava uma ideia do vago de seus
atributos, e onde morriam de má morte os problemas que permaneciam por
resolver no resto da empresa. Ali estava Leona Cassiani, perdida atrás de uma
carteira escolar entre um montão de sacos de milho arrumados e papéis sem
solução, no dia em que o tio Leão XII em pessoa foi ver que diabo lhe ocorreria para
fazer com que a seção geral servisse para alguma coisa. Ao fim de três horas de
perguntas, de suposições teóricas e averiguações concretas com todos os
empregados em plenário, voltou ao seu escritório atormentado pela certeza de não
haver encontrado nenhuma solução para tantos problemas, e sim o contrário: novos
e variados problemas para solução nenhuma.
No dia seguinte, quando Florentino Ariza entrou no seu escritório, encontrou
um memorando de Leona Cassiani, com o pedido de que o estudasse e mostrasse
em seguida a seu tio, se lhe parecesse pertinente. Era a única que não tinha dito
uma palavra durante a inspeção da tarde anterior. Mantivera-se de propósito em
sua digna condição de empregada por caridade, mas no memorando fazia notar que
não o fizera por negligência e sim por respeito às hierarquias da seção. Era de uma
simplicidade alarmante. Tio Leão XII propusera uma reorganização a fundo, mas
Leona Cassiani pensava o contrário, pela lógica simples de que a seção geral não
existia na realidade: era a lixeira dos problemas encrencados mas insignificantes
que as outras seções passavam adiante. A solução, em consequência, era eliminar a
seção geral, e devolver os problemas para serem resolvidos em suas seções de
origem.
Tio Leão XII não tinha a menor ideia de quem era Leona Cassiani nem recordava
ter visto alguém que pudesse ser ela na reunião da tarde anterior, mas quando leu o
memorando chamou-a ao seu escritório e conversou com ela a portas fechadas
durante duas horas. Falaram um pouco de tudo, de acordo com o método que ele
usava para conhecer as pessoas. O memorando era de simples senso comum, e a
solução deu, com efeito, o resultado apetecido. Mas isso não importava para tio
Leão XII: importava ela. O que mais lhe chamou a atenção foi que seus únicos
estudos depois do primário tinham sido na Escola de Chapelaria. Além disso, estava
aprendendo inglês em casa por um rápido método sem mestre, e há três meses
tinha aulas noturnas de datilografia, um ofício moderno de grande futuro, como
antes se dizia do telégrafo e se dissera antes das máquinas a vapor.
Quando saiu da entrevista já tio Leão XII tinha começado a chamá-la como a
chamaria sempre: xará Leona. Resolvera eliminar de uma penada a seção
conflituosa e repartir os problemas de maneira a que fossem resolvidos pelos
mesmos que os criavam, de acordo com a sugestão de Leona Cassiani, e inventara
para ela um posto sem nome e sem funções específicas, que na prática era o de
assistente pessoal sua. Essa tarde, depois do enterro sem flores da seção geral, tio
Leão XII perguntou a Florentino Ariza de onde havia tirado Leona Cassiani, e ele
respondeu com a verdade.
— Pois volte ao bonde e me traga todas as que encontrar como esta — disse o tio.
— Com mais duas ou três assim botamos o seu galeão a flutuar.
Florentino Ariza entendeu isso como uma piada típica de tio Leão XII, mas no
dia seguinte se viu sem o carro que lhe haviam designado seis meses antes, e que
agora lhe tiravam para que continuasse buscando talentos ocultos nos bondes.
Leona Cassiani, por sua parte, perdeu em breve seus escrúpulos iniciais, e tirou de
dentro de si tudo que tinha guardado com tanta astúcia nos primeiros três anos. Em
três mais abarcara o controle de tudo, e nos quatro seguintes chegou às portas da
secretaria geral, mas se negou a entrar porque estava apenas um escalão abaixo de
Florentino Ariza. Até então tinha estado sob suas ordens, e queria continuar
estando, embora a realidade fosse outra: o próprio Florentino Ariza não se dava
conta de que era ele quem estava debaixo das ordens dela. Assim era: ele não fizera
mais do que cumprir o que ela sugeria na Direção Geral para ajudá-lo a subir contra
os ardis de seus inimigos ocultos.
Leona Cassiani tinha um talento diabólico para manejar segredos, e sempre
sabia estar onde devia no momento justo. Era dinâmica, silenciosa, de uma doçura
sábia. Mas quando era indispensável, com a dor na alma, soltava as rédeas a um
caráter de ferro maciço. Contudo, nunca o usou para si mesma. Seu único objetivo
foi varrer a escada a qualquer preço, com sangue se não havia outro jeito, para que
Florentino Ariza subisse até onde se havia proposto sem calcular muito bem a
própria força. Ela teria feito o mesmo de qualquer maneira, é claro, por sua
indomável vocação de poder, mas a verdade é que o fez de forma consciente e por
pura gratidão. Era tal sua determinação que o próprio Florentino Ariza se perdeu
em seus manejos, e num momento de pouca sorte procurou fechar-lhe o caminho
pensando que ela procurava fechar o dele. Leona Cassiani colocou-o .em seu lugar.
— Não se engane — disse. — Eu me afasto de tudo isso quando você quiser, mas
pense bem antes.
Florentino Ariza, que na Verdade não tinha pensado bem, pensou então o
melhor que pôde, e lhe entregou suas armas. O certo é que em meio àquela guerra
sórdida dentro de uma empresa em crise perpétua, em meio a seus desastres de
falcoeiro sem sossego e à ilusão cada vez mais incerta de Fermina Daza, o
impassível Florentino Ariza não tivera um instante de paz interior diante do
espetáculo fascinante daquela negra brava besuntada de merda e de amor na febre
da peleja. Tanto assim que muitas vezes lamentou em segredo que ela não tivesse
sido na realidade o que ele acreditava que fosse na tarde em que a conheceu, para
ter limpado o traseiro com seus princípios e ter feito o amor com ela ainda que pago
com pepitas de ouro vivo. Pois Leona Cassiani continuava sendo igual à daquela
tarde no bonde, com as mesmas roupas de roceira espaventosa, seus turbantes
loucos, seus brincos e pulseiras de osso, seu maço de colares e seus anéis de pedras
falsas em todos os dedos: uma leoa de rua. O muito pouco que os anos lhe haviam
acrescentado por fora era para seu bem. Navegava numa maturidade esplêndida,
seus encantos de mulher eram mais inquietantes, e seu ardoroso corpo de africana
se ia fazendo mais denso com a madureza. Florentino Ariza não tinha tornado a se
insinuar em dez anos, pagando assim a dura penitência do erro original, e ela o
ajudara em tudo, menos nisso.
Uma noite em que ficou trabalhando até muito tarde, como fazia com frequência
depois da morte da mãe, Florentino Ariza já saía quando viu luz no escritório de
Leona Cassiani. Abriu a porta sem bater, e ali estava: só no escritório, absorta, séria,
com uns óculos novos que lhe davam um semblante acadêmico. Florentino Ariza
constatou com um pavor ditoso que estavam os dois sós na casa, estavam os cais
desertos, a cidade adormecida, a noite eterna no mar tenebroso, o bramido triste de
um navio que ainda levaria mais de uma hora a chegar. Florentino Ariza se apoiou
no guarda-chuva com as duas mãos, tal como havia feito na ruela do Candeeiro para
lhe fechar o caminho, só que agora o fazia para não demonstrar a desarticulação dos
joelhos.
— Diga-me uma coisa, leoa de minh'alma — disse: — quando vamos sair disto?
Ela tirou os óculos sem surpresa, com um domínio absoluto, e o deslumbrou
com seu riso solar. Nunca o chamara de você.
— Ai, Florentino Ariza — disse — estou há dez anos sentada aqui esperando que
você me pergunte. Era tarde: a ocasião ia com ela no bonde de burro, tinha estado
sempre com ela na mesma cadeira em que estava sentada, mas agora tinha ido para
sempre. A verdade era que depois de tantas cachorradas subterrâneas que tinha
feito por ele, depois de tanta sordidez suportada para ele, ela se adiantava na vida e
estava muito para lá dos vinte anos de idade que ele tinha de vantagem: tinha
envelhecido para ele. Ela o queria tanto que em vez de enganá-lo, preferiu continuar
no seu amor por ele ainda que tivesse que fazê-lo saber disso de uma forma brutal.
— Não — disse a ele. — Eu me sentiria como se estivesse indo para a cama com o
filho que nunca tive.
Florentino Ariza guardou em si o espinho de que não tivesse sido sua a última
palavra. Pensava que quando uma mulher diz que não, está esperando que insistam
com ela antes de tomar a decisão final, mas com ela era diferente: não podia brincar
com o risco de se equivocar uma segunda vez. Retirou-se de boa vontade, e mesmo
com uma certa graça que não lhe era fácil manter. A partir dessa noite, qualquer
sombra que pudesse haver entre eles se dissipou sem ressentimento, e Florentino
Ariza compreendeu por fim que se pode ser amigo de uma mulher sem ir para a
cama com ela.
Leona Cassiani foi o único ser humano a quem Florentino Ariza esteve tentado a
revelar o segredo de Fermina Daza. As poucas pessoas que o conheciam começavam
a esquecê-lo por motivo de força maior. Três delas o haviam levado consigo para o
túmulo sem dúvida nenhuma: sua mãe, que desde muito antes de morrer já o havia
apagado da memória; Gala Placídia, morta de boa velhice a serviço da que lhe foi
quase uma filha; e a inesquecível Escolástica Daza, a que lhe havia levado dentro de
um livro de missa a primeira carta de amor que recebeu na vida, e que não podia
mais estar viva depois de tantos anos. Lorenzo Daza, de quem não se sabia então se
vivia ou estava morto, podia tê-lo revelado à irmã Franca de Ia Luz procurando
evitar a expulsão, mas era pouco provável que o houvessem divulgado. Restava
contar onze telegrafistas da província longínqua de Hildebranda Sánchez, que
tinham manipulado telegramas com seus nomes completos e endereços exatos, e
ainda Hildebranda Sánchez e sua corte de primas indômitas.
O que Florentino Ariza ignorava era que o doutor Juvenal Urbino devia ser
incluído na conta. Hildebranda Sánchez lhe havia revelado o segredo em algumas de
suas tantas visitas dos primeiros anos. Mas o fez de forma tão casual e num
momento tão inoportuno que, ao contrário do que ela pensou, não entrou por um
ouvido do doutor Urbino e saiu pelo outro, pois não entrou por ouvido nenhum.
Hildebranda, na verdade, tinha mencionado Florentino Ariza como um dos poetas
escondidos que segundo ela tinham possibilidades de ganhar os Jogos Florais. O
doutor Urbino teve de fazer um esforço para se lembrar quem era, e ela lhe disse
sem que fosse indispensável mas sem um pingo de malícia que ele fora o único
noivo que Fermina Daza tinha tido antes de se casar. Falou convencida de que se
tratara de algo tão inocente e efêmero que era mais comovente do que outra coisa
qualquer. O doutor Urbino respondeu sem olhá-la: "Não sabia que esse sujeito era
poeta." E o apagou da memória no mesmo instante, entre outras coisas porque sua
profissão o acostumara a um manejo ético do esquecimento.
Florentino Ariza observou que os depositários do segredo, com exceção de sua
mãe, pertenciam ao mundo de Fermina Daza. No seu estava só ele, só com o peso
esmagador de uma carga que muitas vezes necessitara compartilhar, mas ninguém
até então lhe merecera tanta confiança. Leona Cassiani era a única possível, e ele só
estava esperando a maneira e a ocasião. Nisto pensava na tarde de bochorno estivai
em que o doutor Juvenal Urbino subiu as escadas empinadas da C.F.C., fazendo
uma pausa em cada degrau para sobreviver ao calor das três, e apareceu arquejante
no escritório de Florentino Ariza empapado de suor até nas calças, e disse com o
último alento: "Acho que vem para cima de nós um ciclone." Florentino Ariza o vira
ali muitas vezes, em busca do tio Leão XII, mas nunca tivera como agora a
impressão tão nítida de que aquela aparição indesejável tinha algo a ver com sua
vida.
Era a época em que também o doutor Juvenal Urbino tinha superado os
escolhos da profissão, e andava quase de porta em porta feito um mendigo de
chapéu na mão, buscando contribuições para suas promoções artísticas. Um dos
seus contribuintes mais assíduos e pródigos foi sempre tio Leão XII, que naquele
justo momento começara a fazer sua sesta diária de dez minutos, sentado na
poltrona de molas da mesa de trabalho. Florentino Ariza pediu ao doutor Juvenal
Urbino o favor de esperar em seu escritório, contíguo ao do tio Leão XII e que de
certa forma lhe servia de sala de espera.
Em diversas ocasiões se haviam visto, mas nunca tinham estado assim, frente a
frente, e Florentino Ariza padeceu mais uma vez a náusea de se sentir inferior.
Foram dez minutos eternos, durante os quais se levantou três vezes na esperança
de que o tio tivesse acordado antes do tempo, e tomou uma garrafa térmica inteira
de café puro. O doutor Urbino não aceitou nem uma xícara. Disse: "Café é veneno."
E continuou encadeando um tema ao outro sem sequer se preocupar em ser
escutado. Florentino Ariza não podia suportar sua distinção natural, a fluidez e
precisão de suas palavras, seu hálito recôndito de cânfora, seu encanto pessoal, a
maneira tão fácil e elegante com que conseguia que mesmo as frases mais frívolas,
só porque ele as dizia, parecessem essenciais. De repente, o médico mudou de tema
de um modo abrupto.
— Gosta de música?
Pegou-o de surpresa. Na realidade, Florentino Ariza assistia a quantos concertos
ou representações de ópera houvesse na cidade, mas não se sentia capaz de manter
uma conversação crítica ou bem informada. Tinha um xodó pela música da moda,
sobretudo as valsas sentimentais, cuja afinidade com as que ele mesmo compunha
quando adolescente, ou com seus versos secretos, não era possível negar. Bastava
ouvi-las uma vez de passagem para que logo não houvesse força de Deus que lhe
tirasse da cabeça o fio da melodia durante noites inteiras. Mas isso não seria uma
resposta séria para uma pergunta tão séria de um especialista.
— Gosto de Gardel — disse.
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Os escritórios da C.F.C.
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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