quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Aquela noite tirou o luto

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      Aquela noite tirou o luto, de um só golpe, sem passar pelo intervalo ocioso das blusas de florinhas cinzentas, e sua vida se encheu de canções de amor e trajes provocantes com araras e borboletas pintadas, e começou a repartir o corpo com todos aqueles que o pedissem. Derrotadas as tropas do general Gaitán Obeso, ao cabo de sessenta e três dias de sítio, reconstruiu a casa arrasada pelo canhoneio, e lhe pôs um formoso terraço marinho por cima dos cais, martelados em tempo de borrasca pela fúria assanhada da ressaca. Esse foi seu ninho de amor, como o chamava sem ironia, onde só recebeu quem lhe agradou, quando quis e como quis, e sem cobrar de ninguém um só vintém, por achar que eram os homens que lhe faziam o favor. Em casos muito especiais aceitava um presente, desde que não fosse de ouro, e era tão hábil em seus manejos que ninguém teria podido apresentar uma prova concludente de sua conduta imprópria. Só numa ocasião esteve à beira do escândalo público, quando correu o boato de que o arcebispo Dante de Luna não morrera por acidente ao comer um prato de cogumelos equivocado, mas que os comera de propósito, porque ela o ameaçara de se degolar se ele insistisse em seus assédios sacrílegos. Ninguém lhe perguntou se era verdade, nem lhe falou nisso, nem isso mudou nada em sua vida. Era, como dizia ela própria morrendo de rir, a única mulher livre da província.
      A viúva de Nazaret nunca faltou aos encontros ocasionais com Florentino Ariza, nem nos seus tempos mais atarefados, e nunca teve pretensões a amar e ser amada, embora sempre nutrisse a esperança de encontrar algo que fosse como o amor, mas sem os problemas do amor. Algumas vezes era ele quem ia à sua casa, e então gostavam de se empapar de espuma de salitre no terraço do mar, contemplando o amanhecer do mundo inteiro no horizonte. Ele se empenhou a fundo em ensinar a ela todas as safadezas que tinha visto outros fazerem pelos buracos nas paredes do hotel suspeito, assim como as fórmulas teóricas apregoadas por Lotário Thugut em suas noites de farra. Incitou-a a se deixar ver enquanto faziam o amor, a trocar a posição convencional do missionário pela da bicicleta de mar, ou do frango assado, ou do anjo esquartejado, e estiveram a pique de acabar com a vida ao se arrebentarem os punhos quando procuravam inventar algo diferente numa rede. Foram lições estéreis. Pois a verdade é que ela era uma aprendiz temerária, mas carecia do talento mínimo para a fornicação dirigida. Nunca entendeu os encantos da serenidade na cama, nem teve um instante de inspiração, e seus orgasmos eram inoportunos e epidérmicos: uma trepada triste. Florentino Ariza viveu muito tempo na ilusão de ser o único, e ela lhe dava o gosto de acreditar nisso, até que teve a má sorte de falar dormindo. Pouco a pouco, ouvindo-a dormir, ele foi recompondo aos pedaços a carta de navegação dos seus sonhos, e se meteu por entre as ilhas numerosas de sua vida secreta. Assim ficou informado de que ela não pretendia se casar com ele, mas se sentia ligada à sua vida pela gratidão imensa que lhe devia por tê-la pervertido. Muitas vezes disse a ele:

 — Adoro você porque você me tornou puta.

     Dito de outra maneira, não lhe faltava razão. Florentino Ariza a despojara da virgindade de um casamento convencional, mais perniciosa do que a virgindade congênita e a abstinência da viuvez. Ele lhe ensinara que nada do que se faça na cama é imoral se contribui para perpetuar o amor. E algo que havia de ser desde então a razão de sua vida: convenceu-a de que a gente vem ao mundo com as trepadas contadas, e as que não se usam por qualquer motivo, próprio ou alheio, voluntário ou forçado, se perdem para sempre. O mérito dela foi tomá-lo ao pé da letra. Contudo, porque acreditava conhecê-la melhor do que ninguém, Florentino Ariza não compreendia por que era tão solicitada uma mulher de recursos tão pueris, que além disso não parava de falar na cama das saudades do esposo morto. A única explicação que lhe ocorreu, e que ninguém pôde desmentir, foi que à viúva de Nazaret sobrava em ternura o que faltava em artes marciais. Começaram a se ver com menos frequência à medida que ela alargava seus domínios, e à medida que ele explorava os seus tratando de encontrar alívio para seus velhos padecimentos em outros corações desarvorados, e por fim se esqueceram sem dor.
      Foi o primeiro amor de cama de Florentino Ariza. Mas em lugar de fazer com ela uma união estável, como sonhava sua mãe, aproveitavam-no ambos para se lançarem à vida. Florentino Ariza desenvolveu métodos que pareciam inverossímeis num homem como ele, taciturno e macilento, e além disso vestido feito um ancião de tempos idos. Não obstante, tinha duas vantagens a seu favor. Uma era um olho certeiro para identificar de imediato a mulher que o esperava, ainda que no meio de uma multidão, e mesmo assim a cortejava com cautela, pois sabia que nada causava mais vergonha nem era mais humilhante do que uma negativa. A outra vantagem é que elas o identificavam de imediato como um solitário carente de amor, um indigente das ruas com uma humildade de cão batido que as submetia sem condições, sem pedir nada, sem nada esperar dele, exceto a tranquilidade de consciência de lhe haverem feito um favor. Eram suas únicas armas, e com elas travou batalhas históricas mas em segredo absoluto, que foi registrando com um rigor de notário num caderno cifrado, colocado entre muitos outros com um título que dizia tudo: Elas. A primeira anotação foi feita com a viúva de Nazaret. Cinquenta anos mais tarde, quando Fermina Daza ficou livre de sua sentença sacramentai, tinha uns vinte e cinco cadernos com seiscentos e vinte e dois registros de amores continuados, à parte as aventuras fugazes que não mereceram uma nota de caridade que fosse.
     O próprio Florentino Ariza estava convencido, ao fim de seis meses de amores descomedidos com a viúva de Nazaret, de que conseguira sobreviver ao tormento de Fermina Daza. Não só acreditou como comentou várias vezes o fato com Trânsito Ariza durante os quase dois anos que durou a viagem de núpcias, e continuou acreditando com uma sensação de libertação sem fronteiras até o domingo de sua má estrela em que a viu de chofre sem qualquer aviso do coração, quando saía da missa solene pelo braço do marido e assediada pela curiosidade e as lisonjas do seu novo mundo. As mesmas damas de alta linhagem que no princípio a menosprezavam e zombavam dela por ser uma adventícia sem nome se esmeravam para que ela se sentisse uma delas, enquanto se embriagavam com seu encanto.* Assumira com tanta naturalidade sua condição de esposa mundana que Florentino Ariza precisou de um instante de reflexão para reconhecê-la. Era outra: a compostura de pessoa adulta, os botins altos, o chapéu de velilho com a pena colorida de algum pássaro oriental, tudo nela era correto e fácil, como se tudo tivesse sido seu desde sua origem. Achou-a mais bela e viçosa do que nunca, mas irrecuperável, como nunca, embora não tenha compreendido a razão até notar a curva do seu ventre debaixo da túnica de seda: estava grávida de seis meses. Entretanto, o que mais o impressionou foi que ela e o marido formavam um par admirável, e ambos manejavam o mundo cora tanta fluidez que pareciam flutuar acima dos escolhos da realidade. Florentino Ariza não sentiu ciúme nem raiva, e sim um grande desprezo por si mesmo. Sentiu-se pobre, feio, inferior, e não só indigno dela como de qualquer outra mulher sobre a terra.
      Lá estava ela de volta. Regressava sem nenhum motivo para se arrepender da guinada que tinha dado era sua vida. Pelo contrário: cada vez teve menos, sobretudo depois de sobreviver aos íngremes primeiros anos. Mais meritório ainda no caso dela, que chegara à noite de núpcias ainda nas brumas da inocência. Tinha começado a perdê-la no curso de sua viagem pela província da prima Hildebranda. Em Valledupar compreendeu enfim por que os gaios corriam atrás das galinhas, presenciou a cerimônia brutal dos burros, viu nascerem os bezerros, e ouviu as primas dizerem com naturalidade quais os casais da família que continuavam a fazer amor, e quais e quando e por que tinham deixado de fazê-lo embora continuassem morando juntos. Foi então que se iniciou nos amores solitários, com a rara sensação de estar descobrindo algo que seus instintos tinham sempre sabido, primeiro na cama, com a respiração amordaçada para não se delatar no quarto compartilhado com meia dúzia de primas, e depois a duas mãos, largada à vontade no chão do banheiro, com o cabelo solto e fumando seus primeiros cigarros de tropeiro. Sempre o fez com umas dúvidas de consciência que só conseguiu superar depois de casada, e sempre num segredo absoluto, enquanto as primas alardeavam entre si não só a quantidade de vezes num dia, como inclusive a forma e o tamanho dos orgasmos. No entanto, apesar da bruxaria daqueles ritos iniciais, continuou carregando a convicção de que a perda da virgindade era um sacrifício sangrento.
     De maneira que sua festa de bodas, uma das mais ruidosas de fins do século passado, transcorreu para ela nas vésperas do horror. A angústia da lua-de-mel afetou-a muito mais do que o escândalo social do seu casamento com um galã como não havia dois naqueles anos. Logo que começaram a correr os proclamas na missa solene da catedral, Fermina Daza voltou a receber cartas anônimas, algumas com ameaças de morte, mas mal passava os olhos nelas, pois todo o medo de que era capaz estava ocupado pela iminência da violação. Era o modo correto de tratar os missivistas anônimos, embora ela não o fizesse de propósito, numa classe acostumada, pelas reviravoltas históricas, a curvar a cabeça diante dos fatos consumados. Por isso tudo quanto lhe era contrário ia ficando a seu favor à medida que a boda se tornava irrevogável. Ela notava isso nas mudanças graduais do cortejo de mulheres lívidas. degradadas pelo artritismo e os ressentimentos, que um dia se convenciam de que eram vãs suas intrigas e apareciam sem se anunciar na pracinha dos Evangelhos como se estivessem em casa, carregadas de receitas de cozinha e de presentes augurais. Trânsito Ariza conhecia aquele mundo, embora só dessa vez o sofresse na própria carne, e sabia que suas clientes apareciam na véspera das festas grandes pedindo-lhe o favor de desenterrar as botijas e emprestar as joias empenhadas, só por vinte e quatro horas, mediante o pagamento de um juro adicional. Há muito tempo não acontecia como dessa vez, quando as botijas ficaram vazias para que as senhoras de extensos sobrenomes abandonassem seus santuários de sombras para aparecerem radiantes, com suas próprias jóias tomadas de empréstimo, numa boda como não se viu outra de tanto esplendor no resto do século, e cuja glória final foi a de ostentar como padrinho o doutor Rafael Núfiez, três vezes presidente da república, filósofo, poeta e autor da letra do Hino Nacional, como se podia ver desde então em alguns dicionários recentes. Fermina Daza chegou ao altar-mor da catedral pelo braço do pai, a quem o traje de cerimônia conferiu por um dia um ar equívoco de respeitabilidade. Casou-se para sempre perante o altar-mor da catedral numa missa concelebrada por três bispos, às onze da manhã da sexta-feira de glória da Santíssima Trindade, e sem um pensamento de caridade para Florentino Ariza, que a essa hora delirava de febre, morrendo por ela, à intempérie num navio que não havia de levá-lo ao esquecimento. Durante a cerimônia, e depois na festa, manteve um sorriso que parecia fixado com alvaiade, uma expressão sem alma que alguns interpretaram como o sorriso de zombaria da vitória, mas que na realidade era um pobre recurso para dissimular seu terror de virgem recém-casada.
      Por sorte, as circunstâncias imprevistas, junto com a compreensão do marido, resolveram suas três primeiras noites sem dor. Foi providencial. O navio da Compagnie Générale Transatlantique, com o itinerário transtornado pelo mau tempo do Caribe, anunciou com apenas três dias de antecipação que avançava a partida vinte e quatro horas, de modo que não zarparia para La Rochelle no dia seguinte à boda, como estava previsto há seis meses, e sim na mesma noite. Ninguém acreditou que aquela alteração não fosse mais uma das tantas surpresas elegantes da boda, pois a festa acabou depois da meia-noite a bordo do transatlântico iluminado, com uma orquestra de Vieña que estreava naquela viagem as valsas mais recentes de Johann Strauss. De modo que os vários padrinhos ensopados de champanha foram arrastados para terra pelas esposas atribuladas, quando já andavam perguntando aos camareiros se não haveria camarotes disponíveis para que continuasse o pagode até Paris. Os últimos a desembarcar viram Lorenzo Daza diante das tavernas do porto, sentado no chão em plena rua e com a roupa de cerimônia em farrapos. Chorava à goela solta, como choram os árabes seus mortos, sentado num fio de águas podres que bem podia ter sido um charco de lágrimas.
     Nem na primeira noite de mar ruim, nem nas seguintes de navegação aprazível, nem nunca em sua mui longa vida matrimonial aconteceram os atos de barbárie que temia Fermina Daza. A primeira, apesar do tamanho do navio e dos luxos do camarote, foi uma repetição horrível da goleta de Riohacha, e o marido foi um médico serviçal que não dormiu um instante para confortá-la, que era a única coisa que um médico demasiado eminente sabia fazer contra o enjoo. Mas a borrasca amainou no terceiro dia, passado o porto da Güayra, e então já tinham estado juntos tanto tempo e conversado tanto que se sentiam amigos antigos. A quarta noite, quando ambos retomaram a vida habitual, o doutor Juvenal Urbino se surpreendeu com o fato de sua jovem esposa não rezar antes de dormir. Ela foi sincera: a duplicidade das freiras provocara nela uma resistência aos ritos, mas sua fé estava intacta, e aprendera a mantê-la em silêncio. Disse: "Prefiro me entender direto com Deus." Ele compreendeu suas razões, e desde então cada um praticou à sua maneira a mesma religião. Tinham tido um noivado breve, mas bastante informal para a época, pois o doutor Urbino a visitava em sua casa, sem vigilância, todos os dias ao entardecer. Ela não teria permitido que ele lhe tocasse nem na ponta dos dedos antes da bênção episcopal, mas tampouco ele tentara. Foi na primeira noite de bom mar, já na cama mas ainda vestidos, que ele iniciou as primeiras carícias, e o fez com tanto cuidado que a ela pareceu natural a sugestão de que vestisse a camisola. Foi trocar de roupa no banheiro, mas antes apagou as luzes do camarote, e quando saiu com o camisolão calafetou com panos as fendas da porta, para deixar a cama em escuridão absoluta. Enquanto agia, falou de bom humor:

— O que é que você quer, doutor? É a primeira vez que durmo com um desconhecido.

continua na página 118...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Aquela noite tirou o luto
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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