O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Considerava uma sorte que em meio a tantos encontros de aventura, a única que
o fez provar uma gota de amargura foi a tortuosa Sara Noriega, que terminou seus
dias no manicômio da Divina Pastora, recitando versos senis de tão desaforada
obscenidade que foram forçados a isolá-la para que não acabasse de enlouquecer as
outras loucas. Contudo, quando recebeu completa a responsabilidade da C.F.C. já não
tinha muito tempo nem excesso de ânimo para tentar substituir Fermina Daza por
quem fosse: sabia que era insubstituível. Pouco a pouco tinha caído na rotina de
visitar as já estabelecidas, dormindo com elas enquanto servissem, enquanto fosse
possível, enquanto tivessem vida. No domingo de Pentecostes em que morreu
Juvenal Urbino, só lhe restava uma, uma só, com quatorze anos apenas feitos, e
com tudo que nenhuma outra tinha tido até então para torná-lo louco de amor.
Chamava-se América Vicuña. Tinha vindo dois anos antes da localidade
marítima de Porto Pai recomendada pela família a Florentino Ariza, seu
correspondente, com quem tinha um parentesco sanguíneo reconhecido. Vinha com
uma bolsa do governo para fazer os estudos de professora, trazendo seu petate e um
bauzinho de folha que parecia de boneca, e mal desceu do navio com seus botins
brancos e a trança dourada, ele teve o pressentimento atroz de que iam fazer juntos
a sesta de muitos domingos. Era ainda uma menina em todos os sentidos, com
aparelho nos dentes e raladuras de escola primária nos joelhos, mas ele vislumbrou
de pronto a classe de mulher que ia ser em breve, e a cultivou para si num lento ano
de sábados de circo, de domingos de parques com sorvetes, de tardes infantis com
que ganhou sua confiança, ganhou seu carinho, levando-a pela mão com uma suave
astúcia de avô bondoso até seu matadouro clandestino. Para ela foi imediato:
abriram-se as portas do céu. Explodiu numa eclosão floral que a deixou flutuando
num limbo de ventura, e foi um estímulo eficaz em seus estudos, pois se manteve
sempre no primeiro lugar da classe para não perder a saída do fim de semana. Para
ele foi o rincão mais abrigado na enseada da velhice. Depois de tantos anos de
amores calculados, o gosto desabrido da inocência tinha o encanto de uma
perversão renovadora.
Coincidiram. Ela se comportava como o que era, uma menina disposta a
descobrir a vida sob a guia de um homem venerável que não se espantava com
nada, e ele assumiu consciente o papel que mais tinha temido na vida: o de noivo
senil. Nunca a identificou com Fermina Daza, apesar de ser mais do que fácil a
parecença, não só pela idade, pelo uniforme escolar, pela trança, pelo andar
montanhês, como pelo caráter altivo e imprevisível. E mais: a ideia da substituição,
que tão aliciante tinha sido para sua mendicidade de amor, se apagou por completo.
Gostava dela pelo que era, e acabou amando-a pelo que era numa febre de delícias
crepusculares. Foi a única com quem tomou precauções drásticas contra uma
gravidez acidental. Depois de uma meia dúzia de encontros, não havia para ambos
sonho maior que as tardes dos domingos.
Posto que ele era a única pessoa autorizada a tirá-la do internato, ia buscá-la no
Hudson de seis cilindros da C.F.C., e às vezes arriavam a capota nas tardes sem sol
para passear pela praia, ele com o chapéu tétrico, ela morta de rir, segurando com as
duas mãos o gorro de marinheiro do uniforme escolar para que o vento não o
carregasse. Alguém lhe dissera que não andasse com seu protetor mais do que o
indispensável, que não comesse nada que ele tivesse provado nem ficasse muito
perto do seu hálito, porque a velhice era contagiosa. Mas ela não se importava.
Ambos se mostravam indiferentes ao que se pudesse pensar deles, porque o
parentesco era bem conhecido, e além disso suas idades extremas os punham a
salvo de qualquer suspicácia.
Acabavam de fazer amor domingo de Pentecostes, às quatro da tarde, quando
começaram os dobres. Florentino Ariza teve que dominar o sobressalto do coração.
Na sua juventude, o ritual dos dobres estava incluído no preço dos funerais, e só era
negado aos de escassa solenidade. Mas depois de nossa última guerra, na ponte dos
dois séculos, o regime conservador consolidou seus costumes coloniais, e as
pompas fúnebres se tornaram tão dispendiosas que só os mais ricos podiam pagar.
Quando morreu o arcebispo Dante de Luna, os sinos de toda a província dobraram
durante nove dias com suas noites, e foi tal o tormento público que o sucessor
eliminou dos funerais o requisito dos dobres, e os deixou reservados aos mortos
mais ilustres. Por isso quando Florentino Ariza ouviu dobres na catedral às quatro
da tarde de um domingo de Pentecostes, sentiu-se visitado por um fantasma de
suas mocidades perdidas. Nunca imaginou que fossem os dobres por que tanto
havia anelado durante tantos e tantos anos, a partir do domingo em que viu
Fermina Daza grávida de seis meses, à saída da missa solene.
— Porra — disse na penumbra. — Tem que ser um tubarão dos graúdos para que
dobrem por ele na catedral.
América Vicuña, nua em pêlo, acabou de despertar.
— Deve ser por causa do Pentecostes — disse.
Florentino Ariza não era nem de longe perito em negócios de igreja, nem voltara
à missa desde que tocava violino no coro com um alemão que lhe ensinou além
disso a ciência do telégrafo, e de cujo destino não se teve nunca uma notícia certa.
Mas sabia sem dúvida que os sinos não dobravam pelo Pentecostes. Havia um luto
na cidade, sem dúvida, e ele sabia. Uma comissão de refugiados do Caribe estivera
em sua casa aquela manhã com a informação de que Jeremiah de Saint-Amour
amanhecera morto em seu estúdio de fotógrafo. Embora Florentino Ariza não fosse
seu amigo próximo, era de muitos outros refugiados que o convidavam a seus atos
públicos, e sobretudo a seus enterros. Mas estava certo de que os sinos não
dobravam por Jeremiah de Saint-Amour, que era um incrédulo militante e um
anarquista empedernido, e que além disso tinha morrido por sua própria mão.
— Não — disse — dobres assim só podem ser de governador para cima.
América Vicuña, com o pálido corpo atirado pelas raias de luz das persianas mal
fechadas, não tinha idade para pensar na morte. Tinham feito amor depois do
almoço e estavam deitados na vazante da sesta, ambos nus sob o ventilador de pás,
cujo zumbido não chegava a ocultar a crepitação de granizo dos urubus andando no
teto de zinco aquecido. Florentino Ariza a amava como amara tantas outras
mulheres casuais em sua longa vida, mas a esta amava com mais angústia que a
outra qualquer porque tinha a certeza de estar morto de velho quando ela
terminasse a escola superior.
O quarto parecia mais um camarote de navio, com as paredes de ripas de
madeira muitas vezes pintadas por cima da pintura anterior, como os navios, mas o
calor era mais intenso que o dos camarotes dos navios do rio às quatro da tarde,
mesmo com o ventilador elétrico pendurado sobre a cama, devido à reverberação do
telhado metálico. Não era um quarto de dormir formal e sim um camarote de terra
firme mandado construir por Florentino Ariza atrás dos seus escritórios da C.F.C.,
sem propósitos ou pretextos além dos de dispor de uma boa guarida para seus
amores de velho. Nos dias comuns era difícil dormir ali com os gritos dos
estivadores e o estrondo das gruas do porto fluvial, e os bramidos enormes dos
navios no cais. No entanto, para a menina era um paraíso domingueiro.
No dia de Pentecostes pensavam estar juntos até que ela tivesse que voltar ao
internato, cinco minutos antes do ângeius, mas os dobres fizeram Florentino Ariza
lembrar
sua promessa de assistir ao enterro de Jeremiah de Saint-Amour, e se vestiu
mais depressa que de costume. Antes, como sempre, teceu para a menina a trança
solitária que ele mesmo desfazia antes de fazer amor, e a pôs em cima da mesa para
amarrar o laço dos sapatos do uniforme, que ela sempre dava mal. Ele a ajudava
sem malícia e ela o ajudava a ajudá-la como se fosse um dever: ambos haviam
perdido consciência de suas idades desde os primeiros encontros, e se tratavam com
a confiança de dois esposos que já tinham ocultado um do outro tantas coisas na
vida que não tinham mais quase nada a se dizer.
Os escritórios estavam fechados e às escuras devido ao dia feriado, e no cais
deserto só havia um navio com as caldeiras apagadas. O bochorno anunciava
chuvas, as primeiras do ano, mas a transparência do ar e o silêncio dominical do
porto pareciam de um mês benigno. Visto dali era mais cru o mundo do que na
penumbra do camarote, e doíam mais os dobres ainda que não se soubesse por
quem eram. Florentino Ariza e a menina desceram ao pátio de salitre que tinha
servido de porto negreiro aos espanhóis e onde havia ainda restos dos instrumentos
de pesagem e outros ferros carcomidos do comércio de escravos. O automóvel os
esperava à sombra dos armazéns, e só acordaram o chofer adormecido sobre o
volante quando se haviam instalado nos assentos. O automóvel deu a volta por trás
dos armazéns cercados com arame de galinheiro, atravessou o espaço do antigo
mercado da baía das Animas onde havia marmanjos quase nus jogando bola, e saiu
do porto fluvial entre uma poeirada ardente. Florentino Ariza tinha certeza de que
as homenagens fúnebres não podiam ser por Jeremiah de Saint-Amour, mas a
insistência dos dobres o fez duvidar. Pôs a mão no ombro do chofer e perguntou
gritando no ouvido dele por quem dobravam os sinos.
— É por aquele médico da pastora de cabras — disse o chofer. — Como se
chama?
Florentino não precisou pensar para saber de quem falava. No entanto, quando o
chofer contou como tinha morrido, a ilusão instantânea se desvaneceu, porque não
lhe pareceu verossímil. Nada parece tanto com uma pessoa quanto a forma de sua
morte, e nenhuma podia parecer menos que esta com o homem que ele imaginava.
Mas era ele mesmo, ainda que parecesse absurdo: o médico mais velho e mais
qualificado da cidade, e um dos seus homens insignes por outros muitos méritos,
tinha morrido com a espinha dorsal despedaçada, aos oitenta e um anos de idade,
ao cair de um galho de mangueira quando procurava pegar um louro.
Tudo que Florentino Ariza fizera desde que Fermina Daza se casou fundava-se
na esperança desta notícia. Contudo, chegada a hora, não se sentiu sacudido pela
comoção de triunfo que tantas vezes previra em suas insônias mas por um golpe de
terror: a lucidez fantástica de que ele podia ser o morto por quem tocavam os sinos.
Sentada a seu lado no automóvel que rodava aos saltos pelas ruas de pedras,
América Vicuña se assustou com a palidez dele e perguntou o que era. Florentino
Ariza pegou a mão dela com a sua mão gelada.
— Ai, minha menina — suspirou — eu precisaria de outros cinquenta anos para
contar a você.
Esqueceu o enterro de Jeremiah de Saint-Amour. Deixou a menina na porta do
internato com a promessa apressada de que voltaria para apanhá-la no sábado
seguinte, e mandou que o chofer o levasse à casa do doutor Juvenal Urbino.
Encontrou um tumulto de automóveis e carros de aluguel nas ruas contíguas, e
uma multidão de curiosos diante da casa. Os convidados do doutor Lácides Olivella,
que tinham recebido a má notícia no apogeu da festa, chegavam em tropel. Não era
fácil alguém se mexer dentro da casa por causa da multidão, mas Florentino Ariza
conseguiu abrir caminho até o quarto principal, se pôs na ponta dos pés para olhar
por cima dos grupos que bloqueavam a porta, e viu Juvenal Urbino na cama
matrimonial como tinha querido ver desde que ouviu falar nele pela primeira vez,
chafurdando na indignidade da morte. O carpinteiro acabava de lhe tomar as
medidas para o caixão. A seu lado, ainda com o mesmo vestido de avó recém-casada
que tinha posto para a festa, Fermina Daza estava absorta e melancólica.
Florentino Ariza tinha prefigurado aquele momento nos mais ínfimos detalhes
desde os dias de juventude em que se consagrou por completo à causa desse amor
temerário. Por ela ganhara nome e fortuna sem reparar demais nos métodos, por
ela cuidara de sua saúde e sua aparência pessoal com um rigor que não parecia
muito varonil a outros homens do seu tempo, e esperara aquele dia como ninguém
teria esperado nada nem ninguém neste mundo: sem um instante de desalento. A
comprovação de que a morte interviera por fim a seu favor infundiu-lhe a coragem
de que necessitava para reiterar a Fermina Daza, em sua primeira noite de viúva, o
juramento de sua fidelidade eterna e seu amor para sempre.
Não negava à sua consciência que tinha sido um ato irrefletido, sem o menor
sentido do como e do quando, e apressado pelo medo de que a ocasião não se
repetisse jamais. Ele o teria preferido e inclusive o havia imaginado muitas vezes de
um modo menos brutal, mas a sorte não tinha deixado escolha. Saíra da casa do
luto com a dor de deixar a viúva no mesmo estado de comoção em que estava ele,
mas nada teria podido fazer para impedi-lo, porque sentia que aquela noite bárbara
estava escrita desde sempre no destino de ambos.
Não voltou a dormir uma noite completa nas duas semanas seguintes.
Perguntava-se desesperado onde estaria Fermina Daza sem ele, que estaria
pensando, que ia fazer nos anos que lhe ficavam para viver com a carga de
assombro que ele deixara em suas mãos. Sofreu uma crise de prisão de ventre que
lhe deixou a barriga como um tambor, e teve que recorrer a paliativos menos
indulgentes que as lavagens. Seus achaques de velho, que ele suportava melhor que
seus contemporâneos porque os conhecia desde moço, atacaram-no todos ao
mesmo tempo. Quarta-feira apareceu no escritório depois de uma semana de faltas,
e Leona Cassiani se assustou ao vê-lo em semelhante estado de palidez e
abatimento. Mas ele a tranqüilizou: era uma vez mais a insônia, como sempre, e
tornou a morder a língua para que a verdade não saísse pelas tantas goteiras que
tinha no coração. A chuva não lhe deu uma trégua de sol para pensar. Passou outra
semana irreal, sem poder se concentrar em nada, comendo mal e dormindo pior,
procurando perceber sinais cifrados que lhe indicassem o caminho da salvação. Mas
a partir da sexta-feira foi invadido por uma placidez sem motivo que interpretou
como anúncio de que nada de novo ia suceder, de que tudo que fizera na vida tinha
sido inútil e não tinha como continuar: era o final. Segunda-feira, no entanto, ao
chegar a sua casa da Rua das Janelas, deparou com uma carta que boiava na água
empoçada dentro do saguão, e reconheceu de pronto no envelope molhado a
caligrafia imperiosa que tantas mudanças da vida não tinham conseguido mudar, e
até julgou perceber o perfume noturno das gardênias murchas, porque o coração já
lhe dissera tudo desde o primeiro assombro: era a carta que tinha esperado, sem um
instante de sossego, durante mais de meio século.
continua na página 209...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Considerava uma sorte
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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