quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: POR OCASIÃO DAS festividades

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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      POR OCASIÃO DAS festividades do novo século houve um animado programa de atos públicos, o mais memorável dos quais foi a primeira viagem em balão, fruto da iniciativa inesgotável do doutor Juvenal Urbino. Metade da cidade se concentrou na Praia do Arsenal para admirar a subida do enorme globo de tafetá com as cores da bandeira, que carregou o primeiro correio aéreo a São João da Ciénaga, umas trinta léguas ao nordeste em linha reta. O doutor Juvenal Urbino e a mulher, que tinham conhecido a emoção do voo na Exposição Universal de Paris, foram os primeiros a subir à barquinha de vime, com o engenheiro de voo e seis convidados eminentes. Levavam uma carta do governador provincial às autoridades municipais de São João da Ciénaga, na qual se estabelecia para a história que aquele era o primeiro correio transportado pelos ares. Um cronista do Diário do Comércio perguntou ao doutor Juvenal Urbino quais seriam suas últimas palavras caso perecesse na aventura, e ele não demorou para pensar na resposta que havia de lhe custar tantas injúrias:

 — Na minha opinião — disse — o século XIX muda para todo o mundo, menos para nós.

      Perdido na cândida multidão que cantava o Hino Nacional enquanto o balão ganhava altura, Florentino Ariza se sentiu de acordo com alguém que ouviu comentar no tumulto que aquilo não era aventura própria para uma mulher, menos ainda na idade de Fermina Daza. Mas não foi tão perigosa, afinal. Ou foi menos perigosa do que deprimente. O balão chegou sem contratempos a seu destino, depois de uma viagem tranquila por um céu de um azul inverossímil. Voaram bem, muito baixo, com vento plácido e favorável, primeiro pelas encostas das cristas nevadas, e em seguida sobre o vasto pélago da Ciénaga Grande.
     Do alto do céu, como as via Deus, viram as ruínas da mui antiga e heroica cidade de Cartagena das índias, a mais bela do mundo, abandonada por seus povoadores devido ao medo pânico do cólera, depois de haver resistido a toda classe de assédios de ingleses e tropelias de bucaneiros durante três séculos. Viram as muralhas intactas, o capim nas ruas, as fortificações devoradas pelo amor-perfeito, os palácios de mármore e altares de ouro com seus vice-reis apodrecidos de peste dentro das armaduras.
      Sobrevoaram as palafitas das Trojas de Cataca, pintadas de cores doidas, com cercados de criar iguanas comestíveis, e pencas de balsâmicas e astromélias nos jardins lacustres. Centenas de meninos nus se atiravam n'água alvoroçados pela gritaria de todos, se atiravam pelas janelas, se atiravam do telhado das casas e das canoas que conduziam com uma perícia assombrosa, e fisgavam a água como savelhas para apanhar os volumes de roupa, os vidros de pastilhas para tosse, as coisas de comer que a caridosa e formosa mulher do chapéu de plumas lhes arremessava da barquinha do balão.
      Sobrevoaram o oceano de sombras dos bananais, cujo silêncio se elevava até eles como um vapor letal, e Fermina Daza se lembrou de si mesma aos três anos, aos quatro talvez, passeando pela floresta sombria pela mão da mãe, que também era quase uma menina no meio de outras mulheres vestidas de musselina, tal qual ela, com sombrinhas brancas e chapéus de gaze. O engenheiro do balão, que ia observando o mundo com uma luneta, disse: "Parecem mortos." Passou a luneta ao doutor Juvenal Urbino, e este viu as carretas de bois entre as lavouras, as sebes ao longo da linha do trem, os canais gelados, e onde quer que detivesse a vista deparou com corpos humanos espalhados. Alguém disse que o cólera estava fazendo estragos nos povoados da Ciénaga Grande. O doutor Urbino, enquanto falava, não parou de olhar pela luneta.

 — Pois deve ser uma modalidade muito especial do cólera — disse — porque cada morto tem seu tiro de misericórdia na nuca.

      Pouco depois sobrevoaram um mar de espumas, e desceram sem novidade numa grande praia ardente, cujo solo rachado de salitre queimava como fogo vivo. Lá estavam as autoridades que só tinham como proteção contra o sol os guarda-chuvas do dia-a-dia, as escolas primárias agitando bandeirolas ao compasso dos hinos, as rainhas de beleza com flores esturricadas e coroas de papelão dourado, e gente da plantação de mamão da próspera localidade de Gayra, naqueles tempos a melhor da costa caribe. A única coisa que Fermina Daza queria era ver outra vez seu povoado natal, para compará-lo com suas lembranças mais antigas, mas não houve permissão para ninguém, devido aos riscos da peste. O doutor Juvenal Urbino entregou a carta histórica, que logo se perdeu entre outros papéis e nunca mais se soube dela, e a comitiva inteira quase morreu, asfixiada no torpor dos discursos. Foram afinal levados em mulas até o embarcadouro de Pueblo Viejo, onde o pântano se ligava ao mar, porque o engenheiro não conseguiu que o balão tornasse a subir. Fermina Daza estava certa de que passara por ali com a mãe, muito menina, numa carreta puxada por uma junta de bois. Já mais velha tinha contado isso ao pai, que morreu teimando que não era possível essa lembrança.

— Eu me lembro muito bem da viagem, e foi assim — disse ele — mas sucedeu pelo menos cinco anos antes de você nascer.

     Os membros da expedição em balão voltaram três dias depois ao porto de origem, avariados por uma noite ruim, de tempestade, e foram recebidos como heróis. Perdido na multidão, é claro, estava Florentino Ariza, que reconheceu no semblante de Fermina Daza as marcas do pavor. Contudo, na mesma tarde tornou a vê-la numa exibição de ciclismo, também patrocinada pelo marido, e não tinha mais nenhum vestígio de cansaço. Pilotava um velocípede insólito que mais parecia um aparelho de circo, com uma roda dianteira muito alta sobre a qual ia sentada, e uma posterior muito pequena que apenas lhe servia de apoio. Trajava bombachas de sanefas coloridas que causaram escândalo entre as senhoras mais velhas e desconcerto entre os cavalheiros, mas ninguém ficou indiferente à sua destreza.
     Essa, e tantas outras ao longo de tantos anos, eram imagens efêmeras que apareciam de repente a Florentino Ariza, sem quê nem por que, e tornavam a desaparecer do mesmo modo deixando em seu coração uma trilha de ansiedade. Mas marcavam a pauta de sua vida, pois ele tinha conhecido as sevícias do tempo não tanto em sua própria carne como nas mudanças imperceptíveis que notava em Fermina Daza cada vez que a via.
     Certa noite entrou na Pousada do Sancho, um restaurante colonial de alto coturno, e ocupou o canto mais afastado, como costumava fazer quando se sentava sozinho para comer suas merendas de passarinho. De repente viu Fermina Daza no grande espelho do fundo, sentada à mesa com o marido e outros dois casais, num ângulo em que ele podia vê-la refletida em todo o seu esplendor. Estava indefesa, conduzindo a conversação com uma graça e um riso que crepitavam como fogos de artifício, e sua beleza ficava mais radiante debaixo dos enormes lustres de pingentes: Alice tinha tornado a atravessar o espelho.
      Florentino Ariza a observou à vontade e quase sem respirar, viu-a comer, viu-a provar apenas o vinho, viu-a tagarelando com o quarto Sancho da estirpe, viveu com ela um instante de sua vida sentado em sua mesa solitária, e durante mais de uma hora flanou sem ser visto pelo recinto vedado de sua intimidade. Depois tomou mais quatro xícaras de café para fazer tempo, até que a viu sair confundida com o grupo. Passaram tão perto que ele distinguiu o cheiro dela entre as lufadas de outros perfumes de suas acompanhantes.
     A partir dessa noite, e durante quase um ano, manteve um assédio tenaz ao proprietário da pousada, oferecendo-lhe o que quisesse, em dinheiro ou em favores, para chegar ao que mais lhe apetecesse na vida, desde que lhe vendesse o espelho. Não foi fácil, pois o velho Sancho acreditava na lenda de que aquela preciosa moldura talhada por ebanistas vienenses era gêmea de outra que pertencera a Maria Antonieta, e que desaparecera sem deixar rastro: duas joias únicas. Quando por fim cedeu, Florentino Ariza pendurou o espelho na sua casa, não pelos primores da moldura e sim pelo espaço interior, que tinha sido ocupado durante duas horas pela imagem amada.
     Quase só via Fermina Daza de braço dado com o marido, num concerto perfeito, movendo-se ambos num âmbito próprio, com uma assombrosa fluidez de siameses que só desafinava quando o cumprimentavam. Com efeito, o doutor Urbino lhe estreitava a mão com um afeto cálido, e até se permitia em certas ocasiões uma palmada no ombro. Ela, em compensação, o mantinha condenado ao regime impessoal dos formalismos, e nunca fez um mínimo gesto que o autorizasse a suspeitar que se lembrava dele em seus tempos de solteira. Viviam em dois mundos divergentes, mas enquanto ele fazia toda a espécie de esforços para reduzir a distância, ela nunca deu um único passo que não fosse em sentido contrário. Passou muito tempo antes que ele se atrevesse a pensar que aquela indiferença não passava de uma couraça contra o medo. Ocorreu-lhe de repente, no batismo do primeiro navio de água doce construído nos estaleiros locais, que foi também a primeira ocasião oficial em que Florentino Ariza representou tio Leão XII como primeiro vice-presidente da C.F.C. Esta coincidência revestiu o ato de uma solenidade especial, e não faltou ninguém que tivesse alguma significação na vida da cidade.
      Florentino Ariza se ocupava dos convidados no salão principal do navio, cheirando ainda a pintura recente e alcatrão derretido, quando uma salva de aplausos explodiu no cais e a banda atacou uma marcha triunfal. Teve que reprimir um estremecimento já quase tão antigo quanto ele próprio quando viu a formosa mulher dos seus sonhos no braço do marido, esplêndida em sua maturidade, desfilando como uma rainha de outros tempos entre a guarda de honra em uniforme de parada, debaixo de uma tempestade de serpentinas e pétalas naturais que lhe atiravam das janelas. Ambos respondiam com a mão às ovações, mas ela era tão deslumbrante que parecia ser a única no meio da multidão, vestida toda de um dourado imperial, dos sapatos de salto alto e das caudas de raposa no pescoço, até o chapéu-sino.
      Florentino Ariza os esperou na ponte, junto com as autoridades provinciais, em meio ao estrondo da música e dos foguetes e dos três bramidos intensos do navio que deixaram o cais empapado de vapor. Juvenal Urbino cumprimentou a fila de recepção com aquela naturalidade tão sua que fazia cada um pensar que era alvo de um afeto especial: primeiro o comandante do navio em uniforme de gala, depois o arcebispo, depois o governador com sua mulher e o prefeito com a sua, e depois o chefe militar da praça, que era um andino recém-chegado. Em seguida às autoridades estava Florentino Ariza, terno de lã escura, quase invisível entre tantos notáveis. Depois de cumprimentar o comandante da praça, Fermina pareceu vacilar diante da mão estendida de Florentino Ariza. O militar, disposto a apresentá-los, perguntou a ela se se conheciam. Ela não disse nem que sim nem que não, estendendo a mão a Florentino Ariza com um sorriso de salão. O mesmo acontecera em duas ocasiões do passado, e havia de acontecer outras vezes, e Florentino Ariza o aceitou sempre como um comportamento próprio do caráter de Fermina Daza. Mas aquela tarde perguntou a si mesmo com sua infinita capacidade de ilusão se uma indiferença tão encarniçada não seria um subterfúgio para dissimular um tormento de amor.

continua na página 169...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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