O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
.
.
POR OCASIÃO DAS festividades do novo século houve um animado programa
de atos públicos, o mais memorável dos quais foi a primeira viagem em balão, fruto
da iniciativa inesgotável do doutor Juvenal Urbino. Metade da cidade se concentrou
na Praia do Arsenal para admirar a subida do enorme globo de tafetá com as cores
da bandeira, que carregou o primeiro correio aéreo a São João da Ciénaga, umas
trinta léguas ao nordeste em linha reta. O doutor Juvenal Urbino e a mulher, que
tinham conhecido a emoção do voo na Exposição Universal de Paris, foram os
primeiros a subir à barquinha de vime, com o engenheiro de voo e seis convidados
eminentes. Levavam uma carta do governador provincial às autoridades municipais
de São João da Ciénaga, na qual se estabelecia para a história que aquele era o
primeiro correio transportado pelos ares. Um cronista do Diário do Comércio
perguntou ao doutor Juvenal Urbino quais seriam suas últimas palavras caso
perecesse na aventura, e ele não demorou para pensar na resposta que havia de lhe
custar tantas injúrias:
— Na minha opinião — disse — o século XIX muda para todo o mundo, menos
para nós.
Perdido na cândida multidão que cantava o Hino Nacional enquanto o balão
ganhava altura, Florentino Ariza se sentiu de acordo com alguém que ouviu
comentar no tumulto que aquilo não era aventura própria para uma mulher, menos
ainda na idade de Fermina Daza. Mas não foi tão perigosa, afinal. Ou foi menos
perigosa do que deprimente. O balão chegou sem contratempos a seu destino,
depois de uma viagem tranquila por um céu de um azul inverossímil. Voaram bem,
muito baixo, com vento plácido e favorável, primeiro pelas encostas das cristas
nevadas, e em seguida sobre o vasto pélago da Ciénaga Grande.
Do alto do céu, como as via Deus, viram as ruínas da mui antiga e heroica cidade
de Cartagena das índias, a mais bela do mundo, abandonada por seus povoadores
devido ao medo pânico do cólera, depois de haver resistido a toda classe de assédios
de ingleses e tropelias de bucaneiros durante três séculos. Viram as muralhas
intactas, o capim nas ruas, as fortificações devoradas pelo amor-perfeito, os palácios
de mármore e altares de ouro com seus vice-reis apodrecidos de peste dentro das
armaduras.
Sobrevoaram as palafitas das Trojas de Cataca, pintadas de cores doidas, com
cercados de criar iguanas comestíveis, e pencas de balsâmicas e astromélias nos
jardins lacustres. Centenas de meninos nus se atiravam n'água alvoroçados pela
gritaria de todos, se atiravam pelas janelas, se atiravam do telhado das casas e das
canoas que conduziam com uma perícia assombrosa, e fisgavam a água como
savelhas para apanhar os volumes de roupa, os vidros de pastilhas para tosse, as
coisas de comer que a caridosa e formosa mulher do chapéu de plumas lhes
arremessava da barquinha do balão.
Sobrevoaram o oceano de sombras dos bananais, cujo silêncio se elevava até eles
como um vapor letal, e Fermina Daza se lembrou de si mesma aos três anos, aos
quatro talvez, passeando pela floresta sombria pela mão da mãe, que também era
quase uma menina no meio de outras mulheres vestidas de musselina, tal qual ela,
com sombrinhas brancas e chapéus de gaze. O engenheiro do balão, que ia
observando o mundo com uma luneta, disse: "Parecem mortos." Passou a luneta ao
doutor Juvenal Urbino, e este viu as carretas de bois entre as lavouras, as sebes ao
longo da linha do trem, os canais gelados, e onde quer que detivesse a vista deparou
com corpos humanos espalhados. Alguém disse que o cólera estava fazendo
estragos nos povoados da Ciénaga Grande. O doutor Urbino, enquanto falava, não
parou de olhar pela luneta.
— Pois deve ser uma modalidade muito especial do cólera — disse — porque cada
morto tem seu tiro de misericórdia na nuca.
Pouco depois sobrevoaram um mar de espumas, e desceram sem novidade numa
grande praia ardente, cujo solo rachado de salitre queimava como fogo vivo. Lá
estavam as autoridades que só tinham como proteção contra o sol os guarda-chuvas
do dia-a-dia, as escolas primárias agitando bandeirolas ao compasso dos hinos, as
rainhas de beleza com flores esturricadas e coroas de papelão dourado, e gente da
plantação de mamão da próspera localidade de Gayra, naqueles tempos a melhor da
costa caribe. A única coisa que Fermina Daza queria era ver outra vez seu povoado
natal, para compará-lo com suas lembranças mais antigas, mas não houve
permissão para ninguém, devido aos riscos da peste. O doutor Juvenal Urbino
entregou a carta histórica, que logo se perdeu entre outros papéis e nunca mais se
soube dela, e a comitiva inteira quase morreu, asfixiada no torpor dos discursos.
Foram afinal levados em mulas até o embarcadouro de Pueblo Viejo, onde o
pântano se ligava ao mar, porque o engenheiro não conseguiu que o balão tornasse
a subir. Fermina Daza estava certa de que passara por ali com a mãe, muito menina,
numa carreta puxada por uma junta de bois. Já mais velha tinha contado isso ao
pai, que morreu teimando que não era possível essa lembrança.
— Eu me lembro muito bem da viagem, e foi assim — disse ele — mas sucedeu
pelo menos cinco anos antes de você nascer.
Os membros da expedição em balão voltaram três dias depois ao porto de
origem, avariados por uma noite ruim, de tempestade, e foram recebidos como
heróis. Perdido na multidão, é claro, estava Florentino Ariza, que reconheceu no
semblante de Fermina Daza as marcas do pavor. Contudo, na mesma tarde tornou a
vê-la numa exibição de ciclismo, também patrocinada pelo marido, e não tinha mais
nenhum vestígio de cansaço. Pilotava um velocípede insólito que mais parecia um
aparelho de circo, com uma roda dianteira muito alta sobre a qual ia sentada, e uma
posterior muito pequena que apenas lhe servia de apoio. Trajava bombachas de
sanefas coloridas que causaram escândalo entre as senhoras mais velhas e
desconcerto entre os cavalheiros, mas ninguém ficou indiferente à sua destreza.
Essa, e tantas outras ao longo de tantos anos, eram imagens efêmeras que
apareciam de repente a Florentino Ariza, sem quê nem por que, e tornavam a
desaparecer do mesmo modo deixando em seu coração uma trilha de ansiedade.
Mas marcavam a pauta de sua vida, pois ele tinha conhecido as sevícias do tempo
não tanto em sua própria carne como nas mudanças imperceptíveis que notava em
Fermina Daza cada vez que a via.
Certa noite entrou na Pousada do Sancho, um restaurante colonial de alto
coturno, e ocupou o canto mais afastado, como costumava fazer quando se sentava
sozinho para comer suas merendas de passarinho. De repente viu Fermina Daza no
grande espelho do fundo, sentada à mesa com o marido e outros dois casais, num
ângulo em que ele podia vê-la refletida em todo o seu esplendor. Estava indefesa,
conduzindo a conversação com uma graça e um riso que crepitavam como fogos de
artifício, e sua beleza ficava mais radiante debaixo dos enormes lustres de
pingentes: Alice tinha tornado a atravessar o espelho.
Florentino Ariza a observou à vontade e quase sem respirar, viu-a comer, viu-a
provar apenas o vinho, viu-a tagarelando com o quarto Sancho da estirpe, viveu com
ela um instante de sua vida sentado em sua mesa solitária, e durante mais de uma
hora flanou sem ser visto pelo recinto vedado de sua intimidade. Depois tomou
mais quatro xícaras de café para fazer tempo, até que a viu sair confundida com o
grupo. Passaram tão perto que ele distinguiu o cheiro dela entre as lufadas de
outros perfumes de suas acompanhantes.
A partir dessa noite, e durante quase um ano, manteve um assédio tenaz ao
proprietário da pousada, oferecendo-lhe o que quisesse, em dinheiro ou em favores,
para chegar ao que mais lhe apetecesse na vida, desde que lhe vendesse o espelho.
Não foi fácil, pois o velho Sancho acreditava na lenda de que aquela preciosa
moldura talhada por ebanistas vienenses era gêmea de outra que pertencera a
Maria Antonieta, e que desaparecera sem deixar rastro: duas joias únicas. Quando
por fim cedeu, Florentino Ariza pendurou o espelho na sua casa, não pelos primores
da moldura e sim pelo espaço interior, que tinha sido ocupado durante duas horas
pela imagem amada.
Quase só via Fermina Daza de braço dado com o marido, num concerto perfeito,
movendo-se ambos num âmbito próprio, com uma assombrosa fluidez de siameses
que só desafinava quando o cumprimentavam. Com efeito, o doutor Urbino lhe
estreitava a mão com um afeto cálido, e até se permitia em certas ocasiões uma
palmada no ombro. Ela, em compensação, o mantinha condenado ao regime
impessoal dos formalismos, e nunca fez um mínimo gesto que o autorizasse a
suspeitar que se lembrava dele em seus tempos de solteira. Viviam em dois mundos
divergentes, mas enquanto ele fazia toda a espécie de esforços para reduzir a
distância, ela nunca deu um único passo que não fosse em sentido contrário.
Passou muito tempo antes que ele se atrevesse a pensar que aquela indiferença não
passava de uma couraça contra o medo. Ocorreu-lhe de repente, no batismo do
primeiro navio de água doce construído nos estaleiros locais, que foi também a
primeira ocasião oficial em que Florentino Ariza representou tio Leão XII como
primeiro vice-presidente da C.F.C. Esta coincidência revestiu o ato de uma
solenidade especial, e não faltou ninguém que tivesse alguma significação na vida
da cidade.
Florentino Ariza se ocupava dos convidados no salão principal do navio,
cheirando ainda a pintura recente e alcatrão derretido, quando uma salva de
aplausos explodiu no cais e a banda atacou uma marcha triunfal. Teve que reprimir
um estremecimento já quase tão antigo quanto ele próprio quando viu a formosa
mulher dos seus sonhos no braço do marido, esplêndida em sua maturidade,
desfilando como uma rainha de outros tempos entre a guarda de honra em
uniforme de parada, debaixo de uma tempestade de serpentinas e pétalas naturais
que lhe atiravam das janelas. Ambos respondiam com a mão às ovações, mas ela era
tão deslumbrante que parecia ser a única no meio da multidão, vestida toda de um
dourado imperial, dos sapatos de salto alto e das caudas de raposa no pescoço, até o
chapéu-sino.
Florentino Ariza os esperou na ponte, junto com as autoridades provinciais, em
meio ao estrondo da música e dos foguetes e dos três bramidos intensos do navio
que deixaram o cais empapado de vapor. Juvenal Urbino cumprimentou a fila de
recepção com aquela naturalidade tão sua que fazia cada um pensar que era alvo de
um afeto especial: primeiro o comandante do navio em uniforme de gala, depois o
arcebispo, depois o governador com sua mulher e o prefeito com a sua, e depois o
chefe militar da praça, que era um andino recém-chegado. Em seguida às
autoridades estava Florentino Ariza, terno de lã escura, quase invisível entre tantos
notáveis. Depois de cumprimentar o comandante da praça, Fermina pareceu vacilar
diante da mão estendida de Florentino Ariza. O militar, disposto a apresentá-los,
perguntou a ela se se conheciam. Ela não disse nem que sim nem que não,
estendendo a mão a Florentino Ariza com um sorriso de salão. O mesmo acontecera
em duas ocasiões do passado, e havia de acontecer outras vezes, e Florentino Ariza
o aceitou sempre como um comportamento próprio do caráter de Fermina Daza.
Mas aquela tarde perguntou a si mesmo com sua infinita capacidade de ilusão se
uma indiferença tão encarniçada não seria um subterfúgio para dissimular um
tormento de amor.
continua na página 169...
Leia também:
________________
Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: POR OCASIÃO DAS festividades
O Amor nos Tempos de Cólera: A simples ideia lhe alvoroçou
_______________
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Nenhum comentário:
Postar um comentário