O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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Foi a última vez que o viu. Com o tempo veio a saber que tio Leão XII, que era
uns dez anos mais moço, continuou levando o dinheiro a Trânsito Ariza, e foi quem
se ocupou dela quando Pio Quinto morreu de uma eólica mal tratada, sem deixar
nada escrito, e sem tempo para tomar qualquer providência em favor do filho único
— um filho da rua.
O drama de Florentino Ariza enquanto foi calígrafo da Companhia Fluvial do
Caribe era que não podia afastar seu lirismo porque não deixava de pensar em
Fermina Daza, e nunca aprendeu a escrever sem pensar nela. Depois, quando o
passaram a outros cargos, sobrava-lhe tanto amor por dentro que não sabia que
fazer com ele, e dava-o de presente aos enamorados implumes escrevendo para eles
cartas de amor gratuitas no Portal dos Escrivães. Para lá ia depois do trabalho.
Tirava a sobrecasaca com seus gestos discretos e a pendurava no espaldar da
cadeira, colocava os punhos postiços para não sujar a camisa, desabotoava o colete
para pensar melhor, e às vezes até muito tarde da noite reanimava os desvalidos
com umas cartas enlouquecedoras. De vez em quando encontrava uma pobre
mulher que tinha um problema com um filho, um veterano de guerra que insistia
em reclamar o pagamento de sua pensão, alguém que tivera algo roubado e queria
fazer queixa ao governo, mas por mais que se esmerasse não podia satisfazê-los,
porque a única coisa com que lograva convencer alguém eram as cartas de amor.
Nem mesmo fazia perguntas aos clientes novos, pois bastava ver o branco do olho
deles para ter noção do seu estado, e escrevia folha após folha de amores
desarvorados, mediante a fórmula infalível de escrever pensando sempre em
Fermina Daza, e nada mais do que nela. No fim do primeiro mês teve que
estabelecer uma ordem antecipada de reservas, para que não o submergissem as
ânsias dos enamorados.
Sua lembrança mais grata daquela época foi de uma mocinha muito tímida,
quase uma menina, que lhe pediu tremendo que escrevesse uma resposta a uma
carta irresistível que acabava de receber, e que Florentino Ariza reconheceu como
escrita por ele a tarde anterior. Respondeu-a num estilo diferente, de acordo com a
emoção e a idade da menina, e com uma letra que também parecesse dela, pois
sabia fingir uma escrita para cada ocasião segundo o caráter de cada qual. Escreveu
imaginando o que Fermina Daza teria respondido a ele se o amasse tanto quanto
aquela criatura desamparada amava seu pretendente. Dois dias depois, é claro, teve
que escrever também a réplica do noivo com a caligrafia, o estilo e a classe de amor
que lhe havia atribuído na primeira carta, e foi assim que acabou comprometido
numa correspondência febril consigo mesmo. Antes de um mês ambos, cada um por
seu lado, foram lhe agradecer o que ele próprio propusera na carta do noivo e aceito
com devoção na resposta da garota: iam se casar.
Só quando tiveram o primeiro filho descobriram, numa conversa casual, que as
cartas de ambos tinham sido escritas pelo mesmo escrivão, e pela primeira vez
foram juntos ao portal para designá-lo padrinho do menino. Florentino Ariza se
entusiasmou tanto com a prova prática dos seus sonhos que tirou tempo de onde
não tinha para escrever um Secretário dos Enamorados mais poético e amplo do
que aquele que até então se vendia por vinte centavos nos portais, e que meia
cidade conhecia de memória. Pôs em ordem as situações imagináveis em que
poderiam se encontrar Fermina Daza e ele, e para todas escreveu tantos modelos
quantas alternativas de ida e volta lhe pareceram possíveis. No fim teve umas mil
cartas em três tomos tão quadrados quanto o dicionário de Covarrubias, mas
nenhum impressor da cidade se arriscou a publicá-los, e acabaram em algum
desvão da casa, com outros papéis da casa, pois Trânsito Ariza se negou de plano a
desenterrar as botijas para malbaratar suas poupanças da vida inteira numa loucura
editorial. Anos depois, quando Florentino Ariza teve recursos próprios para publicar
o livro, foi-lhe duro admitir a realidade de que as cartas de amor já tinham passado
de moda.
Enquanto ele dava os primeiros passos na Companhia Fluvial do Caribe e
escrevia cartas grátis no Portal dos Escrivães, os amigos de Florentino Ariza tinham
a certeza de que o perdiam pouco a pouco, sem retorno. Assim era. Ao voltar da
viagem pelo rio ainda via alguns deles na esperança de atenuar as lembranças de
Fermina Daza, jogava bilhar com eles, foi aos últimos bailes, prestava-se aos azares
de ser rifado entre as moças, prestava-se a tudo que lhe parecesse bom para voltar a
ser o que tinha sido. Depois, quando tio Leão XII o acreditou como empregado,
jogava dominó com os companheiros de escritório no Clube do Comércio, e estes
começaram a reconhecê-lo como um dos seus, pois agora ele só lhes falava da
empresa de navegação, que nunca mencionava pelo nome completo e sim pelas
iniciais: a CF.C Mudou até seus hábitos de comer. De indiferente e irregular que
tinha sido até então à mesa, tornou-se regular e austero até o fim dos seus dias:
uma xícara grande de café puro pela manhã, uma posta de peixe cozido com arroz
branco ao almoço, e uma xícara de café com leite com um pedaço de queijo antes de
dormir. Tomava café puro a qualquer hora, em qualquer lugar e em qualquer
circunstância, e até trinta xicrinhas por dia: uma infusão que mais parecia petróleo
cru, que preferia preparar ele mesmo e que sempre tinha numa garrafa térmica ao
alcance da mão. Era outro, a despeito do seu propósito firme e seus esforços
ansiosos de continuar sendo o mesmo que tinha sido antes do tropeção mortal do
amor.
A verdade é que jamais tornaria a ser. Recuperar Fermina Daza foi o objetivo
único de sua vida, e estava tão certo de atingi-lo mais cedo ou mais tarde que
convenceu Trânsito Ariza a prosseguir na restauração da casa para que estivesse em
condições de recebê-la a qualquer momento em que ocorresse o milagre. Ao
contrário de sua reação diante da proposta editorial do Secretário dos Enamorados,
Trânsito Ariza foi então muito mais longe: comprou a casa à vista e empreendeu a
renovação completa. Fizeram uma sala de recepção do que tinha sido a alcova,
construíram no sobrado um quarto de dormir para os esposos e outro para os filhos
que iam ter, ambos muito amplos e bem iluminados, e no espace da antiga feitoria
de tabaco fizeram um extenso jardim de toda classe de rosas, no qual Florentino
Ariza em pessoa consagrou seus ócios do amanhecer. A única coisa que ficou
intacta, como um testemunho de gratidão pelo passado, foi a loja do armarinho. A
parte de trás, onde dormia Florentino Ariza, foi deixada como sempre estivera, com
a rede pendurada e a grande mesa de escrever atulhada de livros em desordem, mas
ele se mudou para o quarto previsto como alcova matrimonial no andar de cima.
Era o quarto mais amplo e fresco da casa, e tinha um terraço interno onde era
agradável estar à noite na brisa do mar e no vapor dos rosais, mas era também o que
correspondia melhor ao rigor trapista de Florentino Ariza. As paredes eram lisas e
ásperas, de cal viva, e só tinha como móveis um leito de presidiário, uma mesinha
de cabeceira com uma vela num gargalo de garrafa, um guarda-roupa antigo e um
gomil d'água em seu prato, ao lado da bacia.
Os trabalhos duraram quase três anos, e coincidiram com um restabelecimento
momentâneo da cidade, devido ao auge da navegação fluvial e ao comércio de
passagem, os mesmos fatores que tinham sustentado sua grandeza durante a
Colônia e a tinham convertido durante mais de dois séculos em porta da América.
Mas também foi essa a época em que Trânsito Ariza manifestou os primeiros
sintomas de sua enfermidade sem remédio. Suas clientes de sempre vinham cada
vez mais velhas ao armarinho, mais pálidas e fugidias, e ela não as reconhecia
depois de ter tratado com elas durante meia vida, ou confundia os assuntos de umas
com os de outras. O que era muito grave em negócios como o seu, nos quais não se
assinavam papéis para proteger a honra, a própria e a alheia, e a palavra de honra
era dada e aceita como garantia bastante. A princípio pareceu que estava ficando
surda, mas em breve ficou evidente que era sua memória que ia escorrendo pelas
goteiras. De modo que liquidou o negócio de penhor, e com o tesouro das botijas
chegou a terminar e mobiliar a casa, e ainda lhe sobraram muitas das joias antigas
mais prezadas da cidade, pois os donos não tiveram recursos para resgatá-las.
Florentino Ariza tinha que atender então a demasiados compromissos ao mesmo
tempo, mas nunca lhe fraquejou o ânimo para fomentar seus negócios de caçador
furtivo. Depois da experiência errática com a viúva de Nazaret, que lhe abriu o
caminho dos amores rueiros, continuou caçando as passarinhas órfãs da noite
durante vários anos, ainda na ilusão de encontrar alívio para a dor que era Fermina
Daza. Mas depois não sabia mais dizer se seu costume de fornicar sem esperanças
era uma necessidade da consciência ou simples vício do corpo. Ia cada vez menos ao
hotel suspeito, não só porque seus interesses tomavam outros rumos, como
também por não gostar de ser visto ali em andanças diferentes das tão domésticas e
castas que já eram conhecidas a seu respeito. No entanto, em três casos de aperto
apelou para o recurso fácil de uma época que não tinha vivido: fantasiava de
homens as amigas temerosas de serem reconhecidas, e entravam juntos no hotel
com fumaças de pândegos tresnoitados. Não faltou quem reparasse em pelo menos
duas das ocasiões em que ele e o suposto acompanhante não iam ao bar e sim ao
quarto, e a reputação já bastante alquebrada de Florentino Ariza sofreu o golpe de
misericórdia. Afinal deixou de ir, e as pouquíssimas vezes em que ainda o fez não
eram para que ele pusesse em dia os atrasos, e sim pelo contrário: buscando um
refúgio para se recompor dos excessos.
Não era para menos. Nem bem tinha saído do escritório, por volta das cinco da
tarde, e já andava em suas volatarias de gavião frangueiro. No princípio se
conformava com o que a noite lhe oferecia. Recolhia criadas nos parques, negras no
mercado, morenas nas praias, gringas nos navios de Nova Orleans. Levava-as aos
diques, onde metade da cidade fazia o mesmo desde o pôr-do-sol, levava-as para
onde podia, e às vezes onde não podia, pois não foram poucas as ocasiões em que
teve que se meter às carreiras num saguão escuro e fazer o que fosse possível, do
jeito possível, atrás da porta.
A torre do farol foi sempre um refúgio afortunado que ele evocava com saudade
quando já tinha tudo resolvido nos albores da velhice, porque era um lugar bom
para ser feliz, sobretudo de noite, e achava que algo dos seus amores daquela época
chegava aos navegantes a cada volta do feixe de luz. De maneira que continuou indo
lá, mais do que a qualquer outra parte, enquanto seu amigo faroleiro o recebia
encantado, com uma cara de bobo que era o melhor atestado de discrição para as
passarinhas assustadas. Havia uma casa embaixo, junto ao estrondo das ondas
estourando contra os alcantis, onde o amor era mais intenso, porque tinha alguma
coisa de naufrágio. Mas Florentino Ariza preferia a torre da luz depois de cair a
noite, porque se divisava a cidade inteira e a esteira de luzes dos pescadores do mar,
e mesmo dos pântanos distantes.
Vinham dessa época suas teorias um tanto simplistas sobre a relação entre o
físico das mulheres e suas aptidões para o amor. Desconfiava do tipo sensual, as
que pareciam capazes de comer cru um jacaré-açu, e que costumavam ser as mais
passivas na cama. Seu tipo era o contrário: essas rãzinhas sumidas, que ninguém se
dava ao trabalho de olhar duas vezes na rua, que pareciam reduzidas a nada quando
tiravam a roupa, que davam pena porque seus ossos rangiam ao primeiro impacto, e
que no entanto podiam deixar pronto para a lata do lixo o maior dos gargantas.
Tinha tomado notas dessas observações prematuras com a intenção de escrever um
suplemento prático do Secretário dos Enamorados, mas o projeto sofreu a mesma
sorte do anterior depois que Ausência Santander o revirou pelo direito e o avesso
com sua sabedoria de cachorro velho, o aparou de cabeça, levantou e abaixou, pariu
o como novo, fez em tiras seus virtuosismos teóricos, e lhe ensinou a única coisa
que tinha que aprender para o amor: que à vida ninguém ensina.
Ausência Santander tinha tido um casamento convencional durante vinte anos,
do qual lhe ficaram três filhos que por sua vez tinham casado e tido filhos, de modo
que ela se prezava de ser a avó com a melhor cama da cidade. Nunca ficou claro se
foi ela que abandonou o marido, ou se foi este que a abandonou, ou se ambos se
abandonaram ao mesmo tempo quando ele foi morar com sua amante de sempre, e
ela se sentiu livre para receber em pleno dia pela porta principal Rosendo de La
Rosa, comandante de navio fluvial, a quem recebera de noite muitas vezes pela
porta traseira. Foi ele mesmo, sem pensar duas vezes, quem levou lá Florentino
Ariza.
Levou-o para almoçar. Levou além dele um garrafão de aguardente caseira e os
ingredientes de melhor qualidade para uma panelada épica, como só era possível
com galinhas de quintal, carne de osso mole, porco de monturo e os legumes e
hortaliças dos povoados do rio. No entanto, Florentino Ariza não se mostrou
entusiasmado desde o primeiro momento com as excelências da cozinha, nem com
a exuberância da dona, e sim com a beleza da casa. Gostou da casa em si mesma,
luminosa e fresca, com quatro janelas grandes abertas ao mar, e no fundo a vista
completa da cidade antiga. Gostou da quantidade e esplendor das coisas, que davam
à sala um aspecto confuso e ao mesmo tempo rigoroso, com toda classe de primores
artesanais que o comandante Rosendo de Ia Rosa tinha ido trazendo de cada viagem
até que não havia mais lugar para um que fosse. No terraço do mar, parada em seu
aro privado, havia uma cacatua da Malásia com uma plumagem de uma brancura
inverossímil e uma quietude pensativa que dava muito que pensar: o bicho mais
formoso que Florentino Ariza jamais vira. O comandante Rosendo de Ia Rosa se
entusiasmou com o entusiasmo do convidado, e lhe contou em detalhe a história de
cada coisa. Enquanto isso, bebia aguardente a goles curtos mas sem trégua. Parecia
de cimento armado: enorme, peludo de corpo inteiro com exceção da cabeça, com
um bigode de vasta broxa e uma voz de cabrestante que só a ele podia pertencer, e
de uma gentileza requintada. Mas não havia corpo capaz de resistir ao seu modo de
beber. Antes de se sentar à mesa tinha acabado com metade do garrafão, e caiu de
bruços em cima da bandeja de copos e garrafas com um lento estrépito de
demolição. Ausência Santander precisou pedir a ajuda de Florentino Ariza para
arrastar até a cama o corpo inerte de baleia encalhada, e para despi-lo adormecido.
Em seguida, num clarão de inspiração que os dois agradeceram à conjunção de seus
astros, se despiram ambos no quarto do lado sem se porem de acordo, sem sequer
uma sugestão, sem uma proposta, e continuaram se despindo sempre que podiam
durante mais de sete anos, quando o comandante estava de viagem. Não havia
riscos de surpresas, porque ele tinha o costume de bom navegante de avisar sua
chegada ao porto com a sereia do navio, mesmo de madrugada, primeiro com três
bramidos grandes para a esposa e seus nove filhos, e depois com dois entrecortados
e melancólicos para a amante.
Ausência Santander tinha quase cinquenta anos, e se notava, mas tinha também
um instinto tão pessoal para o amor que não havia teorias artesanais nem
científicas capazes de amortecê-lo. Florentino Ariza sabia pelos itinerários dos
navios quando podia visitá-la, e sempre ia sem se anunciar na hora que quisesse do
dia ou da noite, e não houve uma só vez em que ela não o estivesse esperando.
Abria a porta como a mãe a criou até os sete anos: nua em pelo, mas com um laço
de organdi na cabeça. Não deixava que ele desse um passo mais antes de lhe tirar a
roupa, pois sempre achou que dava azar ter um homem vestido dentro de casa. Isto
foi causa de discórdia constante com o comandante Rosendo de Ia Rosa, porque ele
tinha a superstição de que fumar nu era de mau agouro, e às vezes preferia atrasar o
amor do que apagar seu infalível charuto cubano. Em compensação, Florentino
Ariza era muito dado aos encantos da nudez, e ela tirava a roupa dele com invariável
deleite mal a porta se fechava, sem lhe dar sequer tempo de cumprimentá-la, nem
de tirar o chapéu ou os óculos, beijando-o e deixando-se beijar com beijos
desenfreados, e soltando-lhe os botões de baixo para cima, primeiro os da braguilha,
um por um depois de cada beijo, depois a fivela do cinto, e por último o colete e a
camisa, até deixá-lo como um peixe que se fende ao meio. Depois o sentava na sala
e lhe tirava as botas, puxava-lhe a calça pelos pernis para que saísse ao mesmo
tempo que as ceroulas, e por último desprendia as ligas de elástico da barriga da
perna e lhe tirava as meias. Florentino Ariza parava então de beijá-la e de se deixar
beijar para fazer a única coisa que lhe competia naquela cerimônia pontual: soltava
o relógio de corrente da botoeira do colete e tirava os óculos, e enfiava ambos nas
botas para ter certeza de não esquecê-los. Sempre tomava essa precaução, sempre,
sem falta, quando se desnudava em casa alheia.
continua na página 133...
Leia também:
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
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