O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Foi a única coisa que acertou dizer, só para dizer alguma coisa.
Surpreendeu-se de ver quanto havia envelhecido desde que a vira pela última
vez, e sentiu que ela também o via assim. Mas se consolou pensando que um
momento depois, quando se repusessem do golpe inicial, iriam notando menos um
no outro os desgastes da vida, e tornariam a se ver tão jovens quanto tinham sido
um para o outro ao se conhecerem: quarenta anos atrás.
— Você está com cara de enterro — disse ela.
Assim era. Ela também estivera na janela desde as onze, como quase toda a
cidade, contemplando a passagem do cortejo mais concorrido e suntuoso que se vira
desde a morte do arcebispo De Luna. Acordara da sesta com trovões de artilharia
que faziam tremer a terra, com a discórdia das bandas militares, a desordem dos
cânticos fúnebres por cima do clamor dos sinos de todas as igrejas, que dobravam
sem pausas desde o dia anterior. Tinha visto da sacada os militares da cavalaria em
uniforme de parada, as comunidades religiosas, os colégios, as grandes limusines
negras da autoridade invisível, as carruagens de cavalos com morriões de plumas e
gualdrapas de ouro, o ataúde amarelo coberto com a bandeira na carreta de um
canhão histórico, e por último a fila das velhas vitórias descobertas que
continuavam a se manter vivas para carregar as coroas. Ainda nem haviam acabado
de passar diante do balcão de Prudência Pitre, pouco depois do meio-dia, quando
despencou o dilúvio, e o cortejo se dispersou às carreiras.
— Que maneira mais absurda de morrer — disse ela.
— A morte não tem noção do ridículo — disse ele, e acrescentou com pena: —
sobretudo em nossa idade.
Estavam sentados no terraço, frente ao mar aberto, vendo a lua com um halo
que ocupava metade do céu, vendo as luzes coloridas dos navios no horizonte,
gozando a brisa tíbia e perfumada depois da tempestade. Bebiam porto e comiam
conservas com o pão que Prudência Pitre cozia em casa e trazia em fatias da
cozinha. Tinham passado muitas noites como essa, depois que ela ficou viúva e sem
filhos aos trinta e cinco anos. Florentino Ariza a encontrou numa época em que
teria recebido qualquer homem que quisesse sua companhia, ainda que fosse um
operário horista, e conseguiram estabelecer uma relação mais séria e prolongada do
que parecia possível.
Embora nunca tivesse jamais insinuado tal coisa, ela teria vendido a alma ao
diabo para se casar com ele em segundas núpcias. Sabia que não era fácil submeter-se à sua mesquinharia, a suas necessidades de velho prematuro, à sua ordem de
maníaco, à sua ansiedade de pedir tudo sem dar nada de nada, mas em
compensação não havia homem que mais que ele se deixasse acompanhar, porque
não havia outro no mundo tão necessitado de amor. Tampouco havia outro tão
escorregadio, de modo que o amor não passou de onde sempre chegava com ele: até
onde não interferisse com sua determinação de se conservar livre para Fermina
Daza. Mesmo assim, prolongou-se por muitos anos, até mesmo depois de arrumar
ele as coisas para que Prudência Pitre casasse de novo, com um caixeiro viajante
que ficava três meses e viajava outros três, e com quem ela teve uma filha e quatro
filhos, um dos quais, segundo ela jurava, era de Florentino Ariza.
Conversaram sem se preocupar com a hora, porque ambos estavam
acostumados a compartilhar suas insônias de jovens, e tinham muito menos que
perder em suas insônias de velhos. Embora quase nunca passasse do segundo
cálice, Florentino Ariza não tinha recobrado o alento depois do terceiro. Suava em
bicas, e a Viúva de Dois lhe disse para tirar o paletó, o colete, as calças, que tirasse o
que quisesse, porque porra, no fim das contas se conheciam melhor nus do que
vestidos. Ele disse que tirava se ela também o fizesse, mas ela não quis: há tempos
se vira no espelho do guarda-roupa, e tinha compreendido na hora que não tinha
mais sentido deixar-se ver nua por ele ou por ninguém.
Florentino Ariza, num estado de exaltação que não tinha conseguido apaziguar
com quatro cálices de vinho do porto, continuou falando no passado, nas boas
lembranças do passado que eram seu tema único há tanto tempo, mas ansioso por
encontrar no passado um caminho secreto para desabafar. Pois disso é que sentia
falta: botar a alma pela boca. Quando percebeu os primeiros fulgores no horizonte
tentou uma aproximação enviesada. Perguntou, de um modo que parecia casual:
"Que faria você se alguém lhe propusesse casamento, assim como você está, viúva e
na sua idade?" Ela riu, com um enrugado riso de velha, e perguntou por sua vez:
— Você pergunta por causa da viúva de Urbino?
Florentino Ariza esquecia sempre quando menos devia que as mulheres pensam
mais no sentido oculto das perguntas que nas próprias perguntas, e Prudência Pitre
mais que qualquer outra. Presa de um pavor súbito devido à sua pontaria de
arrepiar, barafustou pela porta falsa: "Pergunto por sua causa." Ela tornou a rir: "Vá
zombar da puta da sua mãe, que em paz descanse." Depois instou com ele para que
dissesse o que queria dizer, porque sabia que nem ele nem nenhum*outro homem a
teria despertado às três da madrugada, e depois de tantos anos sem vê-la, só para
beber vinho do porto e comer pão caseiro com conservas. Disse: "Isso a gente só faz
quando procura alguém com quem chorar." Florentino Ariza bateu em retirada.
— Por uma vez você se engana — disse. — Até que esta noite minhas razões são
mais para cantar.
— Então cantemos — disse ela.
Começou a entoar com muito boa voz a canção da moda: Ramona, os sinos
plangem para o céu. Foi o final da noite, pois ele não se atreveu a jogar jogos
proibidos com uma mulher que lhe dera demasiadas provas de conhecer o outro
lado da lua. Saiu para uma cidade diferente, rarefeita pelas últimas dálias de junho,
e para uma rua de sua juventude por onde desfilavam as viúvas de trevas da missa
das cinco. Mas então foi ele e não elas quem mudou de calçada para que não lhe
vissem as lágrimas que não podia mais reprimir, não desde a meia-noite, como ele
acreditava, porque estas eram outras: as que trazia atravessadas na garganta há
cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias.
Tinha perdido a conta do seu tempo, quando acordou sem saber onde diante de
um vendaval deslumbrante. A voz de América Vicuña jogando bola no jardim com
as empregadas colocou-o na realidade: estava na cama da mãe, cuja alcova
conservava intacta, e onde costumava dormir para se sentir menos só nas poucas
ocasiões em que a solidão o inquietava. Diante da cama estava o grande espelho da
Pousada do Sancho, e a ele bastava acordar para ver Fermina Daza refletida no
fundo. Soube que era sábado, porque era o dia em que o chofer apanhava no
internato América Vicuña, e a levava a sua casa. Percebeu que tinha dormido sem
saber, sonhando que não podia dormir, com um sono perturbado pela cara de raiva
de Fermina Daza. Tomou banho pensando qual devia ser o passo seguinte, vestiu-se
bem devagar com suas melhores roupas, perfumou-se e engomou o bigode branco
de pontas afiadas, e ao sair do quarto viu do corredor do segundo andar a bela
criatura de uniforme, que agarrava a bola no ar com a graça que tantos sábados o
fizera estremecer, mas que essa manhã não lhe causou a menor perturbação.
Chamou-a com um gesto para sair, e antes de entrar no automóvel lhe disse sem
necessidade: "Hoje não vamos fazer coisinhas." Levou-a à Sorveteria Americana,
apinhada a essa hora de pais tomando sorvete com os filhos debaixo dos
ventiladores de pá pendurados do teto baixo. América Vicuña pediu um sorvete de
vários andares, cada um de uma cor diferente numa taça gigantesca, que era seu
predileto e o mais vendido porque exalava uma fumaçada mágica. Florentino Ariza
tomou um café puro, olhando a menina sem falar, enquanto ela tomava o sorvete
com uma colher de cabo bem comprido para chegar ao fundo da taça. Sem deixar de
olhá-la, disse de repente:
— Vou me casar.
Ela o olhou nos olhos com um lampejo de incerteza, mantendo a colher no ar,
mas logo se refez e sorriu.
— Está brincando — disse. — Os velhinhos não se casam.
Essa tarde deixou-a no internato à hora do ângelus, debaixo de um aguaceiro
obstinado, depois de terem visto juntos os títeres do parque, de terem almoçado nas
barracas de peixe frito do cais, de terem visto as feras enjauladas de um circo que
acabava de chegar, de comprar nos portais toda classe de doces para levar para o
internato, e de terem percorrido a cidade várias vezes no automóvel de capota
arriada para que ela fosse se acostumando à ideia de que ele era seu tutor, e não
mais seu amante. No domingo mandou o automóvel para ver se ela queria passear
com as amigas, mas não a quis ver, porque a partir da semana anterior passara a ter
noção plena da idade de ambos. Essa noite tomou a decisão de escrever & Fermina
Daza uma carta de desculpas, embora fosse só para não capitular, mas deixou-a para
o dia seguinte. Segunda-feira, ao fim de três semanas exatas de paixão, entrou em
casa ensopado de chuva, e encontrou a carta dela.
Eram oito da noite. As duas criadas estavam deitadas,
e tinham deixado no corredor a única luz permanente que permitia a Florentino
Ariza chegar até o quarto de dormir. Sabia que seu jantar esturricado e insípido
estava na mesa da sala de jantar, mas o pouco de fome que tinha depois de tantos
dias comendo de qualquer maneira se esvaiu com a comoção da carta. Teve trabalho
em acender a luz geral do quarto de tanto que lhe tremiam as mãos. Pôs a carta
molhada em cima da cama, acendeu a lâmpada da mesa de cabeceira, e com a
pretensa calma que era recurso muito seu para se aquietar, tirou o paletó empapado
e o colocou no espaldar da cadeira, tirou o colete e o pôs muito bem dobrado em
cima do paletó, tirou a fita de seda preta e o colarinho de celuloide que já tinha
saído de moda no mundo, desabotoou a camisa até a cintura e desafivelou o cinto
para respirar melhor, e por último tirou o chapéu que pôs para secar junto à janela.
De repente estremeceu porque não soube onde estava a carta, e era tal seu
nervosismo que se surpreendeu quando a encontrou, pois não lembrava de tê-la
colocado em cima da cama. Antes de abri-la secou o envelope com um lenço,
tomando o cuidado de não borrar a tinta com que seu nome estava escrito, e
enquanto o fazia se deu conta de que aquele segredo não era mais compartilhado
por duas pessoas, e sim três, pelo menos, pois quem quer que houvesse trazido a
carta teria reparado que a viúva de Urbino tinha escrito a alguém de fora do seu
mundo apenas três semanas depois de morto o marido, com tanta premência que
não mandara a carta pelo correio, e com tanto sigilo que dera ordens para que não
fosse entregue em mãos e sim enfiada por baixo da porta como um bilhete
anônimo. Não precisou rasgar o envelope, pois a cola se dissolvera com a água, mas
a carta estava seca: três páginas densas, sem cabeçalhos, e assinadas com as iniciais
do nome de casada.
Leu-a uma vez com toda a pressa sentado na cama, mais intrigado pelo tom que
pelo conteúdo, e antes de passar à segunda página já sabia que era justo a carta de
impropérios que esperava receber. Colocou-a aberta na zona luminosa do abajur,
tirou os sapatos e as meias molhadas, apagou junto à porta a luz do teto, e afinal
colocou a bigodeira de camurça e se deitou sem tirar as calças e a camisa, com a
cabeça apoiada em dois travesseirões que usava como espaldar para ler. Assim releu
a carta, agora letra por letra, esquadrinhando cada letra para que nenhuma de suas
intenções ocultas ficasse por desentranhar, e a leu depois quatro vezes mais, até
ficar tão saturado que as palavras escritas começaram a perder o sentido. Por último
guardou-a sem o envelope na gaveta da mesa de cabeceira, se deitou de costas com
as mãos entrelaçadas na nuca, e ficou durante quatro horas com a vista imóvel no
espaço do espelho onde ela estivera, sem pestanejar, mal respirando, mais morto
que um morto. À meia-noite em ponto foi à cozinha, preparou e levou para o quarto
uma garrafa térmica de café espesso como petróleo cru, atirou a dentadura postiça
no copo d'água boricada que estava sempre pronto para isto na mesa de cabeceira,
tornou a deitar na mesma posição de mármore jacente com variações instantâneas
de tempos em tempos para tomar um sorvo de café, até que a arrumadeira entrou
às seis com outra garrafa térmica cheia.
A essa hora, Florentino Ariza já sabia qual ia ser cada um dos seus passos
seguintes. Na realidade não lhe doeram os insultos nem se preocupou em aclarar as
imputações injustas, que podiam ter sido piores conhecendo-se o caráter de
Fermina Daza e a gravidade do motivo. A única coisa que lhe interessou foi que a
carta em si mesma lhe dava a oportunidade e reconhecia seu direito de resposta.
Mais ainda: exigia. Desta forma a vida estava agora no limite onde tinha querido
levá-la. Tudo mais dependia dele, e tinha a convicção firme de que seu inferno
privado de mais de meio século lhe propunha ainda muitas provações mortais que
ele estava disposto a afrontar com mais ardor e mais dor e mais amor que todas as
anteriores, porque seriam as últimas.
Cinco dias depois de receber a carta de Fermina Daza, quando chegou aos seus
escritórios, sentiu que flutuava no vácuo abrupto e incomum das máquinas de
escrever, cujo ruído de chuva tinha acabado por se notar menos que seu silêncio.
Era uma pausa. Quando o ruído recomeçou, Florentino Ariza assomou à sala de
Leona Cassiani e a contemplou sentada diante de sua máquina pessoal, que
obedecia à ponta dos seus dedos como um instrumento humano. Ela se sentiu
observada, e olhou para a porta com seu terrível sorriso solar, mas não deixou de
escrever até o final do parágrafo.
— Diga-me uma coisa, leoa de minh'alma — perguntou Florentino Ariza: — como
se sentiria você se recebesse uma carta de amor escrita nesse traste?
O gesto dela, que já não se espantava com nada, foi de surpresa legítima.
— Ora essa! — exclamou. — Juro que nunca pensei no assunto.
continua na página 213...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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