sábado, 19 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: A verdade

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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      A verdade é que o olfato não lhe servia só para lavar a roupa ou para achar crianças perdidas: era seu sentido de orientação em todas as ordens da vida, e sobretudo da vida social. Juvenal Urbino tinha observado isto ao longo do seu casamento, sobretudo no princípio, quando ela era uma adventícia ao ambiente predisposto contra ela há trezentos anos, e mesmo assim bracejava entre frondes de corais afiados sem tropeçar em ninguém, com um domínio do mundo que só podia ser um instinto sobrenatural. Essa faculdade temível, que tanto podia ter origem numa sabedoria milenar quanto num coração de pedra, teve sua hora de desgraça num mau domingo antes da missa, quando Fermina Daza por pura rotina aspirou fundo a roupa que o marido tinha usado a tarde anterior, e padeceu a sensação perturbadora de ter tido na cama um outro homem.
      Aspirou primeiro o paletó e o colete enquanto tirava da botoeira o relógio de corrente e dos bolsos a lapiseira e a carteira e umas poucas moedas soltas e ia pondo tudo sobre a penteadeira, e depois aspirou a camisa pespontada enquanto tirava o prendedor de gravata e as abotoaduras de topázio dos punhos e o botão de ouro do colarinho postiço, e depois aspirou as calças enquanto tirava o chaveiro de onze chaves e o canivete de madrepérola, e aspirou afinal a ceroula e as meias e o lenço de linho com seu monograma bordado. Não havia a menor sombra de dúvida: em cada uma das peças havia um cheiro que não aparecera nelas em tantos anos de vida em comum, um cheiro impossível de definir, porque não era de flores nem de essências artificiais, e sim de algo próprio à natureza humana. Não disse nada, nem passou a encontrar o cheiro todos os dias, mas já não farejava a roupa do marido com a curiosidade de saber se era o caso de mandar lavar e sim com uma ansiedade insuportável que lhe ia roendo as entranhas.
     Fermina Daza não soube onde situar o cheiro da roupa dentro da rotina do marido. Não podia ser entre a aula matinal e o almoço, pois supunha que nenhuma mulher em seu pleno juízo ia fazer um amor apressado a semelhantes horas, menos ainda com uma visita, enquanto dependia ainda de varrer a casa, fazer as camas, ir ao mercado, preparar o almoço, e talvez com a angústia de que chegasse da escola antes da hora um dos filhos escalavrado por uma pedrada e a encontrasse nua às onze da manhã no quarto por arrumar, e para cúmulo de horrores com um médico em cima. Sabia, por outro lado, que o doutor Juvenal Urbino só fazia amor de noite, de preferência na escuridão absoluta, e em último caso antes do café da manhã ao trinar dos primeiros pássaros. Depois dessa hora, dizia, era maior o trabalho de tirar a roupa e vesti-la de novo do que o prazer de um amor de galo. De maneira que a contaminação da roupa só podia ocorrer em alguma das visitas médicas, ou em qualquer momento escamoteado a suas noites de xadrez e cinema. Isso era difícil de esclarecer, porque ao contrário de tantas amigas suas, Fermina Daza era demasiado orgulhosa para espionar o marido, ou pedir a alguém que o fizesse por ela. O horário das visitas, que parecia o mais apropriado para a infidelidade, era além disso o mais fácil de vigiar, porque o doutor Juvenal Urbino tinha sempre consigo uma relação minuciosa de cada um dos clientes, inclusive com a posição dos honorários, a partir da primeira visita e até que os despedia deste mundo com uma cruz final e uma frase pelo bem-estar de sua alma.
      No fim de três semanas, Fermina Daza não encontrara o cheiro na roupa durante vários dias, tornara a encontrá-lo de novo quando menos esperava, e depois o encontrara mais descarnado que nunca durante vários dias consecutivos, embora um deles tivesse sido um domingo de festa familiar no qual ela e ele não se haviam separado um instante que fosse. Uma tarde se encontrou no gabinete do marido, contra seu costume e até contra seus desejos, como se não fosse ela e sim uma outra que estivesse fazendo algo que não faria jamais, decifrando com uma primorosa lupa de Bengala as intricadas notas de visitas dos últimos meses. Era a primeira vez que entrava sozinha nesse gabinete saturado de vapores de creosoto, atulhado de livros encadernados em peles de animais ignotos, de esmaecidas gravuras de grupos escolares, de pergaminhos honoríficos, de astrolábios e punhais de fantasia colecionados durante anos. Um santuário secreto que considerara sempre como a única parte da vida privada do marido à qual não tinha acesso por não estar incluída no amor, e por isso as poucas vezes em que estivera ali tinham sido com ele, sempre para assuntos fugazes. Não se sentia no direito de entrar sozinha, menos ainda para escrutínios que não lhe pareciam decentes. Mas ali estava. Queria encontrar a verdade, e a buscava com ânsias apenas comparáveis ao terrível temor de encontrá-la, impelida por uma ventania incontrolável mais imperiosa que sua altivez congênita, ainda mais imperiosa que sua dignidade: um suplício fascinante.
      Não pôde tirar nada a limpo, porque os pacientes do marido, salvo os amigos comuns, eram também parte do seu domínio estanque, pessoas sem identidade que não se conheciam pela cara e sim pelas dores, não pela cor dos olhos ou as evasivas do coração, e sim pelo tamanho do fígado, o sarro na língua, os grumos na urina, as alucinações nas noites de febre. Pessoas que acreditavam no seu marido, que acreditavam viver graças a ele quando na realidade viviam para ele e acabavam reduzidas a uma frase escrita por ele do próprio punho e letra no pé do expediente médico: Tranquilo, Deus está te esperando na porta. Fermina Daza abandonou o escritório ao fim de duas horas com a sensação de se haver deixado tentar pela indecência.
     Atiçada pela fantasia, começou a descobrir as mudanças operadas no marido. Achava-o evasivo, inapetente na mesa e na cama, propenso à exasperação e às réplicas irônicas, e quando estava em casa. já não era o homem tranquilo de antes e sim um leão enjaulado. Pela primeira vez desde que se haviam casado vigiou seus atrasos, controlou-os aos minutos, e lhe pregava mentiras para extrair verdades, sentindo-se porém ferida de morte quando ele caía em contradição. Uma noite acordou sobressaltada por um estado fantasmagórico, e era que o marido a olhava na escuridão com olhos que lhe pareceram carregados de ódio. Sofrerá um arrepio semelhante na flor da juventude, quando via Florentino Ariza aos pés da cama, só que sua aparição não era de ódio e sim de amor. Além disso, desta vez não se tratava de fantasia: o marido estava acordado às duas da madrugada, e se aprumara na cama para olhá-la adormecida, mas quando ela perguntou o que fazia, ele negou. Tornou a pôr a cabeça no travesseiro, e disse:

 — Deve ter sido sonho seu.

      Depois dessa noite, e por outros episódios semelhantes dessa época em que Fermina Daza não sabia de ciência certa onde acabava a realidade e onde começava o sonho, teve a revelação deslumbrante de que estava ficando louca. Reparou afinal que o marido não comungara na quinta-feira de Corpus Christi, nem em nenhum domingo das últimas semanas, nem encontrara tempo para os retiros espirituais do ano. Quando ela perguntou a que se deviam essas mudanças insólitas na sua saúde espiritual, recebeu uma resposta confusa. Esta foi a chave decisiva, porque ele não deixara de comungar numa data tão importante desde sua primeira comunhão aos oito anos. Desse modo viu não só que o marido estava em pecado mortal, como que resolvera persistir nele, posto que não acudia aos auxílios do confessor. Jamais imaginara que se pudesse sofrer tanto por algo que parecia ser o exato contrário do amor, mas nisso caíra, e resolveu que o único recurso para não morrer disso era tocar fogo no ninho de víboras que lhe empeçonhava as entranhas. Assim foi. Uma tarde começou a cerzir calcanhares de meias no terraço, enquanto o marido acabava sua leitura diária depois da sesta. De repente, interrompeu o trabalho, levantou os óculos para a testa, e o interpelou sem o mínimo tom de dureza:

— Doutor.

      Ele estava mergulhado na leitura de L'Ile des pingouins, o romance que todo mundo estava lendo naqueles dias, e respondeu sem vir à tona: "Oui.” Ela insistiu:

— Você me olhe na cara.

     Ele obedeceu, olhando sem vê-la pela bruma dos óculos de leitura, mas não precisou tirá-los para se queimar na brasa do olhar dela.

 — Que está acontecendo? — perguntou.

— Você sabe melhor do que eu — disse ela.

     E mais não disse. Abaixou de novo os óculos e continuou cerzindo as meias. O doutor Juvenal Urbino soube então que as longas horas de ansiedade haviam terminado. Ao contrário da forma em que prefigurava aquele instante, não houve um abalo sísmico do coração*, e sim um golpe de paz. Era o grande alívio de que tivesse acontecido mais cedo que tarde aquilo que tarde ou cedo tinha que acontecer: o fantasma da senhorita Bárbara Lynch tinha afinal entrado na casa.
     O doutor Juvenal Urbino a conhecera quatro meses antes, esperando a vez na consulta externa do Hospital da Misericórdia, e viu logo que algo de irreparável acabava de ocorrer em seu destino. Era uma mulata alta, elegante, de ossos grandes, com a pele da mesma cor e da mesma natureza branda do melado, vestida aquela manhã com um vestido vermelho com pintas brancas e um chapéu do mesmo gênero de abas muito amplas que lhe sombreavam o rosto até as pálpebras. Parecia de um sexo mais definido do que o resto dos humanos. O doutor Juvenal Urbino não atendia no serviço externo, mas sempre que passava por ali com sobra de tempo gostava de relembrar aos alunos mais velhos que não há medicina melhor do que um bom diagnóstico. De maneira que arrumou um jeito de estar presente ao exame da mulata imprevista, tratando de ver que os discípulos não lhe notassem qualquer gesto que não parecesse casual, e mal se deteve nela, mas anotou muito bem na memória os dados de sua identidade. Nessa tarde, depois da última visita, fez o carro passar pelo endereço que ela dera na consulta, e lá estava, com efeito, tomando a fresca de março na varanda.
     Era uma típica casa antilhana pintada toda de amarelo até o teto de zinco, as janelas com toldos e potes de cravos e samambaias pendurados no portal, e assentada sobre estacas de madeira no alagado da Má Criação. Um passarinho, um turpial, cantava na gaiola pendente do beirai. Na calçada do outro lado havia uma escola primária, e as crianças que saíam em tropel obrigaram o cocheiro a manter as rédeas firmes para impedir que o cavalo se espantasse. Foi uma sorte, porque a senhorita Bárbara Lynch teve tempo de reconhecer o doutor. Cumprimentou-o com um aceno de velhos conhecidos, convidou-o a tomar um café enquanto se acalmava a desordem, e ele o tomou encantado, contra seu costume, ouvindo-a falar de si mesma, que era a única coisa que a ele interessava a partir daquela manhã, e a única coisa que ia interessar-lhe, sem um minuto de paz, nos próximos meses. Certa ocasião, ele recém-casado, um amigo lhe dissera na frente da mulher que mais cedo ou mais tarde teria que se haver com uma paixão enlouquecedora, capaz de pôr em risco a estabilidade do seu casamento. Ele, que julgava conhecer-se a si mesmo, que conhecia a fortaleza de suas raízes morais, rira do prognóstico. Pois bem: aí estava.
     A senhorita Bárbara Lynch, doutora em teologia, era filha única do reverendo Jonathan B. Lynch, pastor protestante, preto e seco, que andava de mula pelo casario indigente do alagado, pregando a palavra de um dos tantos deuses que o doutor Juvenal Urbino escrevia com minúscula para diferenciá-los do seu. Falava um bom castelhano, com uma pedrinha na sintaxe cujos tropeços frequentes aumentavam sua graça. Ia fazer vinte e oito anos em dezembro, se divorciara fazia pouco de outro pastor, discípulo do pai, com o qual estivera mal casada dois anos, e não guardara desejos de reincidir. Disse: "Meu único amor é o meu turpial." Mas o doutor Urbino era demasiado sério para achar que ela dissesse isso com segundas intenções. Pelo contrário: perguntou a si mesmo, confuso, se tantas facilidades juntas não seriam uma armadilha de Deus para depois cobrá-las em dobro, o que em seguida afastou de sua mente como um disparate teológico devido ao seu estado de confusão.
     Na hora de se despedir, fez um comentário casual sobre a consulta médica da manhã, sabendo que nada agrada mais ao doente do que falar dos seus males, e ela foi tão esplêndida falando dos seus que ele prometeu voltar no dia seguinte, às quatro em ponto, para examiná-la de maneira mais completa. Ela se assustou: sabia que um médico daquela classe estava muito acima das suas possibilidades, mas ele a tranquilizou: "Nesta profissão tratamos de ver que os ricos paguem pelos pobres." Em seguida anotou em seu caderno de bolso: senhorita Bárbara Lynch, alagado da Má Criação, sábado, 4 p.m. Meses depois, Fermina Daza leria aquela ficha aumentada com os pormenores do diagnóstico, e com a evolução da enfermidade. O nome lhe chamou a atenção, e de momento lhe ocorreu que era uma dessas artistas extraviadas dos navios fruteiros de Nova Orleans, mas o endereço lhe deu a ideia de que o mais provável é que ela fosse da Jamaica, e preta, é claro, e a afastou sem cuidados do gosto do marido.
     O doutor Juvenal Urbino chegou ao encontro de sábado dez minutos antes da hora, quando a senhorita Lynch ainda não tinha acabado de se vestir para recebê-lo. Desde seus tempos de Paris, quando tinha que se apresentar a um exame oral, não sentia tamanha tensão. Estendida na cama de linho, com uma tênue combinação de seda, a senhorita Lynch era de uma beleza interminável. Tudo nela era grande e intenso: suas coxas de sereia, a pele a fogo brando, os seios atônitos, as gengivas diáfanas de dentes perfeitos, e todo seu corpo irradiava um vapor de boa saúde que era o cheiro humano que Fermina Daza encontrava na roupa do marido. Tinha ido à consulta externa porque sofria de algo que chamava com muita graça cólicas torcidas, e o doutor Urbino achava que era um sintoma que não se devia encarar com ligeireza. De maneira que apalpou seus órgãos internos com mais intenção do que atenção, e enquanto isso ia esquecendo a própria sabedoria e descobrindo assombrado que aquela criatura de maravilha era tão bela por dentro quanto por fora, e então se abandonou às delícias do tato, já não como o médico mais qualificado do litoral caribe, e sim como um pobre homem de Deus atormentado pela desordem dos instintos. Só uma vez lhe acontecera algo assim em sua severa vida profissional, e tinha sido seu dia de maior vergonha, porque a paciente, indignada, lhe afastou a mão, sentou na cama, e disse: "O que o senhor quer pode acontecer, mas assim não há de ser." A senhorita Lynch, porém, se abandonou às suas mãos, e quando não teve mais nenhuma dúvida de que o médico já não estava pensando em sua ciência, disse:

 — Eu achava que isso não era permitido pela ética.

continua na página 182...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: A verdade
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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