O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Ele estava ensopado de suor, como se estivesse saindo vestido de dentro de um
tanque, e secou as mãos e a cara numa toalha.
— A ética — disse — imagina que nós médicos somos de ferro.
Ela lhe estendeu a mão agradecida.
— O fato de eu achar uma coisa não quer dizer que ela não se possa fazer —
disse. — Imagine só o que será para uma pobre negra como eu que preste atenção
em mim um homem de tanta fama.
— Não deixei de pensar em você um só instante — disse ele.
Foi uma confissão tão trêmula que teria merecido compaixão. Mas ela o livrou
de todo mal dando uma gargalhada que iluminou o quarto.
— Isso eu sei desde que vi você na hospital, doutor — disse. — Negra sou, mas
bronca não.
Não foi nada fácil. A senhorita Lynch queria sua honra limpa, queria segurança e
amor, nessa ordem, e acreditava merecê-los. Deu ao doutor Urbino a oportunidade
de seduzi-la, mas sem entrar no quarto ainda que ela estivesse sozinha na casa. O
mais longe que chegou foi deixar que ele repetisse a cerimônia de apalpação e
auscultação com todas as violações éticas que quisesse, mas sem lhe tirar a roupa.
Ele, de sua parte, não pôde largar a isca uma vez mordida, e perseverou nos assédios
quase diários. Por motivos de ordem prática, a relação continuada com a senhorita
Lynch lhe era quase impossível, mas ele era fraco de mais para se deter a tempo,
como depois também havia de ser para seguir em frente. Foi seu limite.
O reverendo Lynch não tinha uma vida regular, ia embora a qualquer momento
na mula carregada por um lado de bíblias e folhetos de propaganda evangélica,
carregada de provisões por outro lado, e voltava quando menos se esperava. Outro
inconveniente era a escola fronteira, pois as crianças cantavam as lições olhando a
rua pelas janelas, e o que melhor viam era a casa da calçada oposta, com portas e
janelas abertas de par em par desde as seis da manhã, e viam a senhorita Lynch
pendurando a gaiola no beirai para que o turpial aprendesse as lições cantadas,
viam-na com um turbante colorido a cantá-las ela também com sua brilhante voz
caribe enquanto fazia os serviços da casa, e a viam depois sentada na varanda
cantando em inglês os salmos da tarde.
Tinham que escolher uma hora em que não houvesse crianças, o que deixava
duas possibilidades: a pausa do almoço, entre as doze e as duas, que era quando
também o doutor almoçava, ou o final da tarde, quando as crianças iam para casa.
Esta última foi sempre a hora melhor, mas quando ela soava o doutor já terminara
suas visitas e dispunha de poucos minutos se quisesse jantar com a família. O
terceiro problema, o mais grave para ele, era sua própria condição. Não podia ir sem
o carro, que era muito conhecido e devia estar sempre à porta. Teria sido possível
fazer o cocheiro cúmplice, como faziam quase todos os seus amigos do Clube Social,
mas isso estava fora do alcance dos seus costumes. Tanto assim que, quando as
visitas à senhorita Lynch se tornaram evidentes demais, o próprio cocheiro familiar
de libré se atreveu a perguntar se não seria melhor voltar mais tarde para buscá-lo
para que o carro não ficasse tanto tempo estacionado à porta. O doutor Urbino,
numa reação estranha a seu modo de ser, o cortou de um talho.
— Desde que conheço você, essa é a primeira vez que o ouço dizer uma coisa que
não devia — disse. — Pois bem: dou o dito por não dito.
Não havia solução. Numa cidade como esta era impossível esconder uma
enfermidade enquanto o carro do médico estivesse parado na porta. Às vezes o
próprio médico tomava a iniciativa de ir a pé, se a distância permitisse, ou em carro
de praça, para evitar suposições malignas ou prematuras. Mesmo assim, esses
estratagemas de pouco serviam, pois as receitas que se aviavam nas farmácias
permitiam decifrar a verdade, a tal ponto que o doutor Urbino prescrevia remédios
falsos junto com os corretos, para preservar o direito sagrado dos doentes de morrer
em paz com o segredo de suas doenças. Também podia justificar de diversas
maneiras honestas a presença do carro na frente da casa da senhorita Lynch, mas
não por muito tempo, e menos ainda por tanto quanto desejaria ele: toda a vida.
O mundo se transformou num inferno. Pois uma vez saciada a loucura inicial,
ambos tomaram consciência dos riscos, e o doutor Juvenal Urbino não teve nunca a
determinação de afrontar o escândalo. Nos delírios da febre prometia tudo, mas
depois que tudo passava tudo tornava a ficar para depois. Em compensação, à
medida que aumentavam as ânsias de estar com ela aumentava também o temor de
perdê-la, de modo que os encontros foram ficando cada vez mais apressados e
difíceis. Não pensava em outra coisa. Esperava as tardes com uma ansiedade
insuportável, esquecia os outros compromissos, esquecia tudo menos ela, mas à
medida que o carro se aproximava do alagado da Má Criação ia rogando a Deus que
um inconveniente de última hora o obrigasse a passar ao largo. Ia em tal estado de
angústia que às vezes se alegrava de ver da esquina a cabeça algodoada do
reverendo Lynch lendo na varanda, e a na sala, catequizando as crianças do bairro
com os Evangelhos cantados. Então ia feliz para casa para não continuar desafiando
o azar, mas depois se sentia enlouquecer de ansiedade para que o dia inteiro se
transformasse nas cinco da tarde de todos os dias.
De modo que os amores se tornaram impossíveis quando o carro se tornou
notório demais à porta, e no fim de três meses já não passavam de ridículos. Sem
tempo para se dizerem nada, a senhorita Lynch se metia no quarto logo que via
entrar o amante aturdido. Adotara a precaução de vestir uma bata folgada nos dias
em que o esperava, um lindo camisolão da Jamaica com babados de flores coloridas,
mas sem roupa de baixo, sem nada, acreditando que a facilidade ia ajudá-lo contra o
medo. Mas ele desperdiçava tudo que ela fazia para fazê-lo feliz. Ia atrás dela
ofegante até o quarto, empapado de suor, e entrava estabanado atirando tudo no
chão, a bengala, a maleta de médico, o chapéu panamá, e fazia um amor de pânico
com as calças enroladas nos joelhos, o paletó abotoado para atrapalhar menos, com
a corrente de ouro no colete, com os sapatos calçados, com tudo, e mais inclinado a
ir embora quanto antes do que a cumprir com seu prazer. Ela ficava em jejum, mal
entrando em seu túnel de solidão, quando ele já se abotoava de novo, exausto, como
se tivesse feito o amor absoluto na linha divisória entre a vida e a morte, quando na
realidade se limitara a fazer aquilo que o ato amoroso tem de façanha física. Mas
estava em sua lei: o tempo justo para aplicar uma injeção endovenosa num
tratamento de rotina. Então voltava a casa envergonhado de sua debilidade, com
vontade de morrer, maldizendo-se por não ter a coragem de pedir a Fermina Daza
que lhe arriasse as calças e o sentasse de bunda num braseiro. Não jantava, rezava
sem convicção, fingia continuar na cama a leitura da sesta enquanto a mulher dava
voltas e voltas pela casa pondo o mundo em ordem antes de se deitar. À medida que
cabeceava sobre o livro ia afundando pouco a pouco no mangue inevitável da
senhorita Lynch, em sua exalação de floresta jacente, sua cama de morrer, e então
não conseguia pensar em nada além das cinco menos cinco da tarde de amanhã, e
ela à sua espera na cama sem nada além do monte de bucha escura embaixo da bata
de louca da Jamaica: o círculo infernal.
Havia já alguns anos que começara a ter consciência do peso do próprio corpo.
Reconhecia os sintomas. Lera a respeito deles nos textos, confirmara-os na vida
real, em pacientes mais velhos sem antecedentes graves que de repente começavam
a descrever síndromes perfeitas que pareciam tiradas dos livros de medicina, e que
no entanto se comprovavam imaginárias. Seu professor de clínica infantil de La
Salpêtrière o aconselhara a pediatria como a especialidade mais honesta, porque as
crianças só adoecem quando na realidade estão doentes, e não podem se comunicar
com o médico com palavras convencionais e sim com sintomas concretos de
doenças reais. Os adultos, em compensação, a partir de certa idade, ou bem tinham
os sintomas sem as doenças, ou algo pior: enfermidades graves com sintomas de
outras inofensivas. Ele os entretinha com paliativos, dando tempo ao tempo, até
que aprendiam a não sentir seus achaques à força de conviver com eles na lixeira da
velhice. Numa coisa nunca pensara o doutor Juvenal Urbino, e era que um médico
da sua idade, que julgava ter visto tudo, não pudesse superar a inquietação de se
sentir doente quando não estava. Ou pior: não crer que estava, por puro preconceito
científico, quando talvez na realidade estivesse. Já aos quarenta anos, meio a sério
meio de troça, dissera na cátedra: "A única coisa de que necessito na vida e alguém
que me entenda." Mas quando se viu perdido no labirinto da senhorita Lynch, não
havia mais troça no dito.
Todos os sintomas reais ou imaginários de seus pacientes mais velhos se
acumularam em seu corpo. Sentia a forma do fígado com tal nitidez que podia dizer
seu tamanho sem tocá-lo. Sentia o roncar de gato adormecido dos seus rins, sentia o
brilho cambiante da vesícula, sentia o zumbido do sangue nas artérias. Às vezes
amanhecia como um peixe sem ar para respirar. Tinha água no coração. Sentia que
ele perdia o passo um instante, sentia que se atrasavam uma batida como nas
marchas militares do colégio, uma vez e outra vez, e por fim sentia que se
recuperava porque Deus é grande. Mas em vez de apelar para os mesmos remédios
de distração que aconselhava aos doentes, estava transido de terror. Era certo: a
única coisa de que necessitava na vida, também aos cinquenta e oito anos, era
alguém que o entendesse. De maneira que apelou para Fermina Daza, o ser que
mais o amava e ao qual mais amava neste mundo, e com quem acabava de pôr em
paz sua consciência.
Pois isto aconteceu depois que ela o interrompeu na leitura da tarde para pedir
que a, olhasse na cara, e ele teve o primeiro indício de que seu círculo infernal fora
descoberto. Não entendia como, no entanto, porque não podia imaginar que
Fermina Daza tivesse encontrado a verdade por puro olfato. De todas as maneiras, e
desde muito antes, esta não era uma cidade boa para se guardar segredos. Pouco
tempo depois de instalados os primeiros telefones domésticos, vários casamentos
que pareciam estáveis se acabaram devido a intrigas de chamadas anônimas, e
muitas famílias atemorizadas suspenderam o serviço ou se negaram a adotá-lo
durante anos. O doutor Urbino sabia que sua mulher se respeitava demais a si
mesma para sequer admitir uma tentativa de inconfidência anônima por telefone, e
não podia imaginar ninguém ousado a ponto de fazê-la em seu próprio nome. Em
compensação, temia o método antigo: um papel enfiado por baixo da porta por mão
desconhecida podia ser eficaz, não só por garantir o duplo anonimato do remetente
e destinatário, como porque sua estirpe lendária permitia atribuir-lhe alguma
relação metafísica com os desígnios da Divina Providência.
Os ciúmes não conheciam sua casa: durante mais de trinta anos de paz conjugal,
o doutor Urbino se havia gabado em público muitas vezes, e até então tinha sido
verdade, de ser como os fósforos suecos, que só acendem na própria caixa. Mas
ignorava qual poderia ser a reação de uma mulher com tanto orgulho quanto a sua,
com tanta dignidade e um caráter tão forte, diante de uma infidelidade comprovada.
De maneira que depois de olhá-la na cara como ela lhe havia pedido, só soube
baixar de novo o olhar para dissimular a perturbação, e continuou se fingindo de
extraviado nos doces meandros da ilha de Alça, enquanto pensava no que fazer.
Fermina Daza, de sua parte, também não disse mais nada. Quando acabou de cerzir
as meias, atirou tudo sem qualquer ordem dentro da cesta de costura, deu na
cozinha instruções para o jantar, e se retirou para o quarto.
Ele já tinha então sua resolução tão bem tomada que às cinco da tarde não
passou pela casa da senhorita Lynch. As promessas de amor eterno, a ilusão de uma
casa discreta para ela só onde a pudesse visitar sem sobressaltos, a felicidade sem
pressa até a morte, tudo quanto prometera nas labaredas do amor ficou cancelado
para sempre jamais. A última coisa que a senhorita Lynch teve dele foi um diadema
de esmeraldas que o cocheiro lhe entregou sem comentários, sem um recado, sem
uma nota escrita, e dentro de uma caixinha envolta em papel de farmácia para que o
próprio cocheiro pensasse que se tratava de um remédio urgente. Não tornou a vê
la nem por acaso pelo resto da sua vida, * só Deus soube quanta dor lhe custou essa
resolução, e quantas lágrimas de fel teve que derramar trancado na privada para
sobreviver a seu desastre íntimo. Às cinco, em vez de ir ao encontro dela, fez
perante seu confessor um ato de contrição profunda, e no domingo seguinte
comungou com o coração em pedaços, mas com a alma tranquila.
Na mesma noite da renúncia, enquanto se despia para dormir, repetiu a Fermina
Daza a amarga ladainha de suas insônias matinais, as pontadas súbitas, as ânsias de
chorar ao entardecer, os sintomas cifrados do amor escondido que ele agora lhe
contava como se fossem as misérias da velhice. Tinha que fazê-lo com alguém para
não morrer, para não ter que contar a verdade, e no fim das contas aqueles
desabafos se consagravam nos ritos domésticos do amor. Ela o ouviu com atenção,
mas sem olhá-lo, sem dizer nada, enquanto recebia a roupa que ele ia tirando.
Cheirava cada peça sem nenhum gesto que denunciasse sua raiva, a enrolava de
qualquer jeito e a jogava na canastra de vime da roupa suja. Não encontrou o cheiro,
mas dava no mesmo: amanhã será outro dia. Antes de se ajoelhar para rezar diante
do pequeno altar do quarto de dormir, ele concluiu a narrativa de suas penúrias
com um suspiro triste, e sincero, além disso: "Acho que vou morrer." Ela nem
pestanejou antes de replicar.
— Seria o melhor — disse. — Assim ficaremos os dois mais tranquilos.
continua na página 186...
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Leia também:
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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