sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: A relação com Sara Noriega

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      A relação com Sara Noriega foi uma das mais longas e estáveis de Florentino Ariza, embora não fosse a única que manteve naqueles cinco anos. Quando compreendeu que se sentia bem com ela, sobretudo na cama, mas que jamais conseguiria substituir Fermina Daza por ela, recrudesceram suas noites de caçador solitário, e dava um jeito de repartir seu tempo e suas forças para que bem rendessem. Contudo, Sara Noriega operou o milagre de aliviá-lo durante algum tempo. Ao menos pôde viver sem ver Fermina Daza, ao contrário do que acontecia antes, quando interrompia a qualquer hora o que estivesse fazendo para buscá-la pelos rumos incertos dos seus presságios, nas ruas menos imagináveis, em lugares irreais onde era impossível que estivesse, vagando sem sentido com umas ânsias no peito que não lhe davam trégua até que a visse por um instante que fosse. O rompimento com Sara Noriega, pelo contrário, alvoroçou de novo suas saudades adormecidas, e se sentiu outra vez como nas tardes da pracinha e das leituras intermináveis, agora agravadas pela urgência da noção de que o doutor Juvenal Urbino tinha que morrer.
      Sabia havia algum tempo que estava predestinado a fazer feliz uma viúva, e a ser feito feliz por ela, e isso não o preocupava. Pelo contrário: estava preparado. De tanto conhecê-las em suas incursões de caçador solitário, Florentino Ariza acabaria por saber que o mundo estava cheio de viúvas felizes. Ele as vira enlouquecer de dor diante do cadáver do marido, suplicando que as enterrassem vivas dentro do mesmo caixão para não enfrentar sem ele os azares do futuro, mas à medida que se reconciliavam com a realidade do seu novo estado ele as vira surgir das cinzas com uma vitalidade reverdecida. Começavam vivendo feito parasitas de sombra nos casarões desertos, viravam confidentes das criadas, amantes dos próprios travesseiros, sem nada que fazer depois de tantos anos de cativeiro estéril. Desperdiçavam as horas de sobra cosendo na roupa do morto os botões que nunca tinham tido tempo de pregar, passavam e tornavam a passar a ferro suas camisas de punhos e colarinhos de goma para que estivessem sempre perfeitos. Continuavam botando seu sabonete no banheiro, a colcha com suas iniciais na cama, o prato e os talheres em seu lugar na mesa, caso voltassem da morte sem avisar, como costumavam fazer em vida. Mas naquelas missas de solidão iam tomando consciência de que eram outra vez donas de seu arbítrio, depois de terem renunciado não só ao seu nome de família como à própria identidade, e tudo isso em troca de uma segurança que não foi mais do que mais uma de suas tantas ilusões de noivas. Só elas sabiam como pesava o homem que amavam com loucura, e que talvez as amasse, mas que tinham tido que continuar a criar até o último suspiro, dando-lhe de mamar, mudando-lhe as fraldas borradas, distraindo-o com historinhas de mãe para lhe aliviar o terror de sair de manhã e dar de cara com a realidade. E no entanto, quando o viam sair de casa instigado por elas próprias a enfrentar o mundo, então eram elas que ficavam com o terror de que o homem não voltasse nunca. Isso era a vida. O amor, caso houvesse, era uma coisa à parte: outra vida.
      No ócio reparador da solidão, em compensação, as viúvas descobriam que a forma honrada de viver era à mercê do corpo, só comendo por fome, amando sem mentir, dormindo sem ter que fingir que dormiam para escapar à indecência do amor oficial, donas por fim do direito a uma cama inteira só para elas, na qual ninguém lhes disputasse a metade do lençol, a metade do ar de respirar, a metade da noite, até que o corpo se fartava de sonhar seus sonhos próprios, e despertava só. No seu madrugar de caçador furtivo, Florentino Ariza as encontrava à saída da missa das cinco, amortalhadas de preto e com o corvo do destino no ombro. Logo que o vislumbravam na claridade da alba atravessavam a rua e mudavam de calçada com passos miúdos e entrecortados, passos de passarinho, pois o mero passar perto de um homem podia enodoar-lhes a honra. Contudo, era sua convicção que uma viúva desconsolada, mais do que qualquer outra mulher, podia carregar em si a semente da felicidade.
     As muitas viúvas de sua vida, a partir da viúva de Nazaret, tinham tornado possível que ele vislumbrasse como eram as casadas felizes depois da morte dos maridos. O que até então tinha sido para ele mera ilusão se converteu graças a elas numa possibilidade que se podia colher com a mão. Não encontrava razões para que Fermina Daza não fosse uma viúva igual, preparada pela vida a aceitá-lo tal como era, sem fantasias de culpa pelo marido morto, resolvida a descobrir com ele a outra felicidade de ser feliz duas vezes, com um amor de uso cotidiano que convertesse cada instante num milagre de viver, e com outro amor, dela só, preservado de todo contágio pela imunidade da morte.
     Não teria sido talvez tão entusiástico se tivesse sequer suspeitado como Fermina Daza estava longe daqueles cálculos ilusórios, quando mal começava a vislumbrar o horizonte de um mundo em que tudo estava previsto, menos a adversidade. Ser rico naquele tempo tinha muitas vantagens, e também muitas desvantagens, é claro, mas meio mundo aspirava à riqueza como a maior possibilidade de ser eterno. Fermina Daza tinha repelido Florentino Ariza num rasgo de maturidade que pagou de pronto com uma crise de pena, mas jamais duvidou de que sua decisão tinha sido certa. No momento não pôde explicar a si mesma que causas ocultas da razão lhe haviam dado aquela clarividência, mas muitos anos mais tarde, já nas vésperas da velhice, descobriu-as de repente e sem saber como numa conversação casual sobre Florentino Ariza. Todos os interlocutores conheciam sua condição de delfim da Companhia Fluvial do Caribe em sua época culminante, todos estavam certos de havê-lo visto muitas vezes, inclusive de haverem tratado com ele, mas nenhum conseguia identificá-lo na memória. Foi então que Fermina Daza teve a intuição dos motivos inconscientes que tinham impedido que o amasse. Disse: "É como se não fosse uma pessoa e sim uma sombra." Era isso: a sombra de alguém que ninguém jamais conhecera. Mas enquanto resistia aos assédios do doutor Juvenal Urbino, que era o homem contrário, se sentia atormentada pelo fantasma da culpa: o único sentimento que era incapaz de suportar. Quando o sentia vir se apoderava dela uma espécie de pânico que só conseguia controlar quando encontrava alguém para lhe aliviar a consciência. Desde muito menina, quando se quebrava um prato na cozinha, quando alguém caía, quando ela própria espremia o dedo na porta, voltava se assustada para o adulto que estivesse mais perto, e se apressava em acusá-lo: "Foi sua culpa." Embora na realidade não lhe importasse quem fosse o culpado, nem quisesse se convencer da própria inocência: bastava deixá-la estabelecida.
      Era um fantasma tão notório que o doutor Urbino percebeu em tempo até que ponto ameaçava a harmonia de sua casa, e logo que o vislumbrava se apressava em dizer à mulher: "Não se preocupe, meu amor, a culpa foi minha." Pois não havia nada que temesse mais do que as decisões súbitas e definitivas da mulher, e estava convencido de que sempre tinham origem num sentimento de culpa. Contudo, a confusão proveniente do repúdio a Florentino Ariza não se resolvia com alguma frase de consolo. Fermina Daza continuou abrindo o balcão de manhã durante vários meses, e sempre notava a falta do fantasma solitário que a vigiava da pracinha deserta, via a árvore que foi sua, o banco menos visível em que se sentava para ler pensando nela, sofrendo por ela, e tinha que fechar a janela, suspirando: "Pobre homem." Sofreu inclusive a decepção de ver que ele não era tão pertinaz quanto supusera, quando já era tarde demais para remendar o passado, e não deixou de sentir de vez em quando a ansiedade tardia de uma carta que não chegou nunca. Mas quando teve que enfrentar a decisão de se casar com Juvenal Urbino sucumbiu a uma crise maior, ao perceber que não tinha razões válidas para preferi lo depois de ter repudiado Florentino Ariza sem razões válidas. Na realidade, amava-o tão pouco quanto ao outro, e além disso o conhecia muito menos, e suas cartas não tinham a febre das cartas do outro, nem lhe dera tantas provas comovedoras de sua determinação. A verdade é que as pretensões de Juvenal Urbino nunca tinham sido formuladas em termos de amor, e era pelo menos curioso que um militante católico como ele só lhe oferecesse bens terrenos: a segurança, a ordem, a felicidade, cifras imediatas que uma vez somadas poderiam talvez se assemelhar ao amor: quase amor. Mas não eram, e estas dúvidas aumentavam sua confusão, porque também estava convencida de que o amor era na realidade aquilo que mais falta lhe fazia para viver.
      Em todo caso, o fator principal contra o doutor Juvenal Urbino era sua semelhança mais que suspeita com o homem ideal que Lorenzo Daza desejara com tanta ansiedade para a filha. Era impossível não vê-lo como a criatura de uma conspiração paterna, ainda que na verdade não fosse, e Fermina Daza estava convencida de que era logo que o viu entrar em sua casa pela segunda vez para uma visita médica não solicitada. As conversações com a prima Hildebranda acabaram de confundi-la. Por sua própria situação de vítima, esta tendia a se identificar com Florentino Ariza, esquecendo inclusive de que talvez Lorenzo Daza a tivesse feito vir para que influísse a favor do doutor. Deus sabia do esforço feito por Fermina Daza para não acompanhá-la quando a prima foi conhecer Florentino Ariza na agência do telégrafo. Ela também teria gostado de vê-lo outra vez para confrontá-lo com suas dúvidas, falar com ele a sós, conhecê-lo a fundo para estar segura de que sua decisão impulsiva não ia precipitá-la em outra mais grave, que era capitular na guerra pessoal contra o pai. Mas foi o que fez no minuto crucial da sua vida, sem levar em conta para nada a beleza viril do pretendente, nem sua riqueza lendária, nem sua glória precoce, nem nenhum dos seus méritos reais, e sim aturdida pelo medo da oportunidade que lhe escapava e da iminência dos vinte e um anos, que era seu limite confidencial para se render ao destino. Bastou-lhe esse minuto único para assumir a decisão como estava previsto nas leis de Deus e dos homens: até a morte. Então se dissiparam todas as dúvidas, e pôde fazer sem remorsos o que a razão lhe indicou como o mais decente: passou uma esponja sem lágrimas por cima da lembrança de Florentino Ariza, apagou-o por completo, e no espaço que ele ocupava em sua memória deixou que florescesse uma campina de papoulas. A única coisa que permitiu a si mesma foi um suspiro mais fundo que de costume, o último: "Pobre homem!"
      As dúvidas mais temíveis, contudo, começaram logo que voltou da viagem de núpcias. Mal haviam acabado de abrir os baús, de desencaixotar os móveis e esvaziar as onze caixas que trouxera para tomar posse como ama e senhora do antigo palácio do Marquês de Casalduero, e já percebera numa vertigem mortal que estava aprisionada na casa errada, e o que era ainda pior, com o homem que não era. Precisou de seis anos para sair. Os piores da sua vida, desesperada com o azedume de dona Blanca, sua sogra, e o atraso mental das cunhadas, que se não tinham ido apodrecer vivas numa cela de claustro é porque já a carregavam dentro de si.
      O doutor Urbino, resignado a pagar os tributos da estirpe, se fez surdo às suas súplicas, confiando em que a sabedoria de Deus e a infinita capacidade de adaptação da esposa haviam de pôr as coisas no seu devido lugar. Doía-lhe o declínio da mãe, cuja alegria de viver infundia outrora o desejo de estar vivos até nos mais incrédulos. Era certo: aquela mulher formosa, inteligente, de uma sensibilidade humana nada comum em seu meio, tinha sido durante quase quarenta anos a alma e o corpo do seu paraíso social. A viuvez a perturbara a ponto de não se acreditar que fosse a mesma, e a tornara balofa e ácida, e inimiga do mundo. A única explicação possível de sua degradação era seu rancor por achar que o marido se sacrificara em sã consciência por uma montoeira de negros, como dizia ela, quando o único sacrifício justo teria sido o de sobreviver para ela. Em todo caso, o casamento feliz de Fermina Daza tinha tido a duração da viagem de núpcias, e a única pessoa que podia ajudá-la a impedir o naufrágio final vivia paralisada de terror perante a potestade da mãe. Era a ele, e não às cunhadas imbecis e à sogra meio doida, que Fermina Daza atribuía a culpa pela armadilha de morte em que fora apanhada. Tarde demais, desconfiava de que, por trás da sua autoridade profissional e seu fascínio mundano, o homem com quem se casara era um fraco sem redenção: um pobre-diabo avalentoado pelo peso social de um sobrenome.
     Refugiou-se no filho recém-nascido. Ela o sentira sair do seu corpo com o alívio de se livrar de algo que não era seu, e tinha sofrido com o próprio espanto ao comprovar que não sentia o menor afeto pôr aquele bezerro nonato que a parteira lhe mostrou em carne viva, sujo de sebo e de sangue, e com a tripa umbilical enrolada no pescoço. Mas na solidão do palácio aprendeu a conhecê-lo, se conheceram, e descobriu com uma grande emoção que os filhos não são queridos por serem filhos e sim pela amizade que surge quando os criamos. Acabou por não suportar nada nem ninguém que não fosse ele na casa da sua desventura. A solidão a deprimia, o jardim de cemitério, a desídia do tempo nos enormes aposentos sem janelas. Sentia-se enlouquecer nas noites dilatadas pelos gritos das loucas no manicômio vizinho. Tinha vergonha do costume de pôr a mesa de banquetes todos os dias, com toalhas bordadas, serviços de prata e candelabros de funeral, para que cinco fantasmas jantassem uma xícara de café com leite e bolinhos de queijo. Detestava o terço ao entardecer, as posturas afetadas à mesa, as críticas constantes à sua maneira de pegar o talher, de andar com essas passadas misteriosas de mulher da rua, de se vestir como no circo, e até seu jeito matuto de tratar o marido e de dar de mamar ao filho sem tapar o seio com a mantilha. Quando fez os primeiros convites para o chá das cinco da tarde, com biscoitinhos imperiais e geléias de flores, de acordo com uma moda recente na Inglaterra, dona Blanca se opôs a que em sua casa fossem bebidos remédios para suar a febre em lugar do chocolate com queijo frito e roscas de pão de iúca. Não lhe escaparam nem os sonhos. Certa manhã em que Fermina Daza contou que sonhara com um desconhecido que passeava nu semeando punhados de cinza pelos salões do palácio, dona Blanca a interrompeu com secura:

— Uma mulher direita não pode ter essa classe de sonhos.

continua na página 155...
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O Amor nos Tempos de Cólera: A relação com Sara Noriega
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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