terça-feira, 22 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Pensou que fosse morrer de alegria

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Pensou que fosse morrer de alegria. Sem tempo para pensar, lavou as mãos de qualquer jeito, murmurando: "Graças, Deus meu, graças, como és bom", pensando que ainda não tinha tomado banho devido às malditas berinjelas que Hildebranda lhe pedira sem dizer quem é que vinha almoçar, pensando que estava tão velha e feia, e com o rosto tão descascado pelo sol, que ele ia se arrepender de ter vindo quando a visse em tal estado, maldita seja. Mas enxugou as mãos como pôde no avental, arrumou a aparência como pôde, apelou para toda a altivez com que a mãe a pusera no mundo para botar ordem no coração enlouquecido, e foi ao encontro do homem com seu doce andar de corça, a cabeça erguida, o olhar lúcido, o nariz de guerra, e grata ao seu destino pelo alívio imenso de voltar para casa, embora com menos facilidade do que acreditava ele, diga-se logo, porque partia feliz com ele, diga-se logo, mas também resolvida a lhe cobrar em silêncio os sofrimentos amargos que lhe haviam acabado com a vida.
      Quase dois anos depois do desaparecimento de Fermina Daza, aconteceu um desses acasos impossíveis que Trânsito Ariza teria qualificado como uma brincadeira de Deus. Fiorentino Ariza não se deixara impressionar de modo especial pela invenção do cinema, mas Leona Cassiani o levou sem resistência à estréia espetacular de Cabiria, cuja publicidade se baseava nos diálogos escritos pelo poeta Gabriel D'Annunzio. O grande pátio a céu aberto do senhor Galileo Daconte, onde certas noites se desfrutava mais o esplendor das estrelas do que os amores mudos da tela, estava repleto de uma clientela seleta. Leona Cassiani seguia as peripécias da história com a alma por um fio. Florentino Ariza, em compensação, cabeceava de sono sob o peso esmagador do drama. Às suas costas, uma voz de mulher pareceu adivinhar seu pensamento:

 — Deus meu, isso dura mais tempo que uma dor!

     Foi só o que disse, coibida talvez pela ressonância da sua voz na penumbra, pois ainda não se impusera aqui o costume de adornar as fitas mudas com acompanhamento de piano, e na platéia em penumbra só se escutava o sussurro de chuva do projetor. Florentino Ariza só se lembrava de Deus nas situações mais difíceis, mas desta vez lhe deu graças com toda sua alma. Pois mesmo vinte braças debaixo da terra teria reconhecido de pronto aquela voz de metais surdos que carregava na alma desde a tarde em que a ouviu dizer no tapete de folhas amarelas de um parque solitário: "Agora vá embora, e não volte até que eu lhe avise." Sabia que estava sentada no assesto atrás do seu, junto do esposo inevitável, e percebia sua respiração cálida e bem medida, e aspirava com amor o ar purificado pela boa saúde do seu alento. Não a sentiu roída pela traça da morte, como a imaginava no abatimento dos últimos meses, mas pelo contrário a evocou de novo na sua idade radiante e feliz, com o ventre arredondado pela semente do primeiro filho debaixo da túnica de Minerva. Imaginou-a como se a estivesse vendo sem olhar para trás, alheio por completo aos desastres históricos que transbordavam da tela. Deleitava se com os hálitos do perfume de amêndoas que lhe chegava vindo da intimidade dela, ansioso por saber como achava ela que deviam se apaixonar as mulheres do cinema para que seus amores doessem menos que os da vida. Pouco antes do final, num clarão de júbilo, percebeu de repente que nunca estivera tanto tempo tão perto de alguém que amava tanto.
     Esperou que os outros se levantassem quando se acenderam as luzes. Depois se levantou sem pressa, voltou-se distraído, abotoando o colete que sempre abria durante a função, e os quatro se viram tão perto que teriam que se cumprimentar de todos os modos, mesmo que algum deles não tivesse querido. Juvenal Urbino cumprimentou primeiro Leona Cassiani, que conhecia bem, e depois apertou a mão de Florentino Ariza com a gentileza habitual. Fermina Daza dirigiu a ambos ura sorriso cortês, nada mais do que cortês, mas ainda assim um sorriso de alguém que os vira muitas vezes, que sabia quem eram, e que portanto não era preciso que lhe apresentassem. Leona Cassiani retribuiu com sua graça mulata. Em compensação, Florentino Ariza não soube o que fazer, porque ficou atônito ao vê-la.
     Era outra. Não havia em sua cara nenhum indício da terrível enfermidade da moda, nem de nenhuma outra, e seu corpo conservava ainda o peso e a esbeltez dos seus melhores tempos, mas era evidente que os dois últimos anos tinham passado por ela com o rigor de dez mal vividos. O cabelo curto lhe assentava bem, com uma curva de asa nas faces, mas não era mais cor de mel e sim de alumínio, e os formosos olhos lanceolados tinham perdido meia vida de luz por trás de suas lunetas de avó. Florentino Ariza viu-a afastar-se pelo braço do marido entre a multidão que abandonava o cinema, e se surpreendeu de vê-la em lugar público com uma mantilha de pobre e chinelos de andar em casa. Mas o que mais o comoveu foi que o marido teve que agarrá-la pelo braço para lhe indicar o caminho melhor da saída, e mesmo assim ela calculou mal a altura e esteve a ponto de cair no degrau da porta.
     Florentino Ariza era muito sensível a esses tropeços da idade. Quando ainda jovem, interrompia a leitura de versos nos parques para observar os casais de anciãos que se ajudavam na travessia da rua, e eram lições de vida que lhe haviam ajudado a vislumbrar as leis de sua própria velhice. Na idade do doutor Juvenal Urbino aquela noite do cinema, os homens floresciam numa espécie de juventude outonal, pareciam mais dignos com as primeiras cãs, se tornavam engenhosos e sedutores, sobretudo aos olhos das mulheres jovens, enquanto que suas murchas esposas tinham que se aferrar ao braço deles para não tropeçarem até na própria sombra. Poucos anos depois, no entanto, os maridos despencavam de repente no precipício de uma velhice infame do corpo e da alma, e então eram as esposas restabelecidas que tinham de guiá-los pelo braço como cegos de caridade, sussurrando-lhes ao ouvido, para não ferir seu orgulho de homens, que reparassem bem que eram três e não dois os degraus, que havia uma poça no meio da rua, que esse volume atravessado na calçada era um mendigo morto, enquanto os ajudavam a duras penas a atravessar a rua como se fosse o único vau no último rio da vida. Florentino Ariza se mirara tantas vezes nesse espelho que nunca teve tanto medo da morte quanto da infame idade em que Precisasse ter uma mulher a guiá-lo pelo braço. Sabia que nesse dia, e só nesse, teria que renunciar à esperança de Fermina Daza.
      O encontro lhe afugentou o sono. Em vez de levar Leo na Cassiani no carro, acompanhou-a a pé através da cidade velha, onde seus passos ressoavam como ferraduras da cavalaria sobre as lajes. Às vezes retalhos de vozes fugidias escapavam dos balcões abertos, confidencias de alcovas, soluços de amor ampliados pela acústica fantasmagórica e a fragrância quente dos jasmins nas vielas adormecidas. Uma vez mais, Florentino Ariza teve que fazer apelo a todas as suas forças para não revelar a Leona Cassiani seu amor reprimido por Fermina Daza. Caminhavam juntos, com seus passos contados, se amando sem pressa como noivos velhos, ela pensando nas graças de Cabrera, e ele pensando em sua própria desgraça. Um homem cantava num balcão da Praça da Alfândega, seu canto se repetindo por todo o recinto em ecos encadeados: Quando eu cruzava as ondas imensas do mar. Na rua dos Santos de Pedra, bem quando se despedia diante da sua casa, Florentino Ariza pediu a Leona Cassiani que o convidasse a um conhaque. Era a segunda vez que fazia o pedido em circunstâncias semelhantes. Na primeira, dez anos antes, ela havia dito: "Se subir a essa hora você vai ter que ficar para sempre." Não subiu. Mas agora teria subido de todas as maneiras, mesmo que depois tivesse que faltar com a palavra. Não obstante, Leona Cassiani o convidou a subir sem compromissos.
      Foi assim que ele se achou quando menos esperava no santuário de um amor extinto antes de nascer. Os pais dela tinham morrido, seu único irmão tinha feito fortuna em Curaçau, e ela morava só na antiga casa familiar. Anos antes, quando ainda não tinha renunciado à esperança de fazê-la sua amante, Florentino Ariza costumava visitá-la aos domingos com o consentimento dos pais, e às vezes noite adentro até muito tarde, e tinha feito tantas contribuições ao arranjo da casa que acabou por reconhecê-la como sua. Contudo, aquela noite depois do cinema teve a sensação de que a sala de visitas tinha sido purificada de lembranças dele. Os móveis estavam em lugares diferentes, havia outros cromos pendurados nas paredes, e ele achou que tantas mudanças encarniçadas tinham sido feitas de propósito para perpetuar a certeza de que ele jamais existira. O gato não o reconheceu. Assustado com a sanha do esquecimento, disse: "Não se lembra mais de mim." Mas ela lhe respondeu de costas, enquanto servia os conhaques, que se isso o preocupava podia dormir tranquilo, porque os gatos não se lembram de ninguém.
      Recostados no sofá, muito juntos, falaram de si mesmos, do que eram antes de se conhecer certa tarde de quem sabe quando no bonde de burro. Suas vidas transcorriam em escritórios contíguos, e nunca até então tinham falado de nada que não fosse o trabalho diário. Enquanto conversavam, Florentino Ariza lhe pôs a mão na coxa, começou a acariciá-la com seu suave tato de sedutor curtido, e ela deixou, mas não retribuiu nem com um tremor de cortesia. Só quando ele procurou ir mais longe é que ela pegou a mão exploradora e lhe deu um beijo na palma.

— Comporte-se bem — disse. — Há muito tempo descobri que você não é o homem que procuro.

      Quando era muito jovem, um homem forte e destro, cujo rosto nunca viu, a derrubara de surpresa no cais, a desnudara aos tapas, fizera com ela um amor instantâneo e frenético. Atirada sobre as pedras, cheia de cortes pelo corpo todo, ela teria querido que aquele homem ficasse ali para sempre, para morrer de amor em seus braços. Não lhe vira o rosto, não lhe ouvira a voz, mas tinha a certeza de que o reconheceria entre milhares por sua forma e sua medida «seu modo de fazer amor. Desde então, aos que quisessem ouvi-la dizia: "Se você souber alguma vez de um tipo grande e forte que violou uma pobre negra da rua no Cais dos ' afogados, um quinze de outubro por volta das onze e meia noite, diga a ele onde pode me encontrar." Dizia por puro hábito, e tinha dito a tantos que já não lhe restavam esperanças. Florentino Ariza tinha escutado muitas vezes relato como teria ouvido os adeuses de um navio na noite. Quando soaram as duas da madrugada tinham tomado três conhaques cada um, e ele sabia, sem dúvida, que não era o homem que ela esperava, e se alegrou em saber.

 — Bravo, leoa — disse indo embora — matamos o tigre.

      Não foi só isso que acabou aquela noite. O falso segredo do pavilhão de tísicos lhe roubara o sono, porque lhe segredara a suspeita inconcebível de que Fermina Daza era mortal, e portanto podia morrer antes do marido. Mas quando a viu tropeçar na saída do cinema, deu por sua própria conta um passo mais rumo ao abismo, com a revelação súbita de que era ele e não ela aquele que podia morrer primeiro. Foi um presságio, e dos mais temíveis, porque se apoiava na realidade. Para trás haviam ficado os anos da espera imóvel, das esperanças venturosas, mas no horizonte só se vislumbrava o pélago insondável das doenças imaginárias, as micções gota a gota nas madrugadas de insônia, a morte diária ao entardecer. Pensou que cada um dos instantes do dia, que antes tinham sido mais do que seus aliados, seus cúmplices juramentados, começavam a conspirar do lado oposto. Poucos anos antes acudira a um encontro aventuroso com o coração oprimido pelo terror do risco, encontrara a porta sem ferrolho e os gonzos acabados de azeitar para que ele entrasse sem ruído, mas se arrependeu no último instante, por temor de causar a uma mulher alheia e serviçal o prejuízo irreparável de morrer na cama dela. De maneira que era razoável pensar que a mulher mais amada sobre a terra, a quem havia esperado de um século para o outro sem um suspiro de desencanto, mal teria tempo de lhe tomar o braço através de uma rua de túmulos lunares e canteiros de papoulas desordenadas pelo vento, para ajudá-lo a chegar são e salvo à outra calçada da morte.
     A verdade é que para os critérios de sua época, Florentino Ariza tinha passado ao largo das lindes da velhice. Tinha cinquenta e seis anos, feitos e bem feitos, e achava que eram também muito bem vividos, por terem sido anos de amor. Mas nenhum homem da época teria afrontado o ridículo de parecer jovem na sua idade, ainda que fosse ou acreditasse ser, nem todos teriam tido o atrevimento de confessar sem pejo que ainda choravam às escondidas devido a uma desfeita do século anterior. Era uma época ruim para ser jovem: havia um modo de se vestir para cada idade, mas o modo da velhice começava pouco depois da adolescência, e durava até a tumba. Era, mais que uma idade, uma dignidade social. Os jovens se vestiam como seus avós, se faziam mais respeitáveis com óculos prematuros, e a bengala era muito bem vista a partir dos trinta anos. Para as mulheres só havia duas idades: a idade de casar, que não ia além dos vinte e dois anos, e a idade de ser solteiras eternas: as esquecidas. As outras, as casadas, as mães, as viúvas, as avós, eram uma espécie diferente que não contava a idade em relação aos anos vividos, e sim em relação ao tempo que ainda faltava para morrerem.

continua na página 194...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Pensou que fosse morrer de alegria
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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