O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
.
.
continuando...
Florentino Ariza, em compensação, enfrentou as insídias da velhice com uma
temeridade encarniçada, mesmo consciente como era da estranha sorte sua de
parecer velho desde muito menino. A princípio foi uma necessidade. Trânsito Ariza
desmanchava e tornava a coser para ele as roupas que o pai resolvia jogar no lixo,
por isso frequentava a escola primária com sobrecasacas que tocavam o chão
quando se sentava, e chapéus ministeriais que afundavam até suas orelhas, apesar
de terem a fôrma reduzida com recheio de algodão. Como além disso usava óculos
de míope desde os cinco anos, e tinha o mesmo cabelo índio da mãe, que era eriçado
e grosso feito crina de cavalo, seu aspecto não esclarecia nada. Por sorte, depois de
tantas desordens governo devido a tantas guerras civis superpostas, os critérios
escolares eram menos seletivos do que antes, e havia a mixórdia de origens e
condições sociais nas escolas públicas. Meninos que ainda não tinham sido
acabados de criar chegavam às aulas fedendo a pólvora de barricada, com insígnias e
uniformes de oficiais rebeldes ganhos a bala em combates incertos, e com as armas
do regulamento bem visíveis no cinto. Combatiam a tiros por qualquer briga de
recreio, ameaçavam os professores que lhes dessem nota ruim nos exames, e um
deles, estudante do terceiro grau no colégio La Salle e coronel de milícias
reformado, matou com um balaço o irmão João Eremita, prefeito da comunidade,
porque disse na aula de catecismo que Deus era membro nato do partido
conservador.
Por outro lado, os filhos das grandes famílias em desgraça andavam vestidos de
príncipes antigos, e alguns muito pobres andavam descalços. Entre tantas raridades
vindas de todas as partes, Florentino Ariza se situava de todas as maneiras entre os
mais raros, mas nem tanto que chamasse demais a atenção. O mais duro que ouviu
foi alguém lhe gritando na rua: "Quem tem a cara feia e os bolsos vazios passa a
vida a ver navios." De qualquer modo, aquela indumentária imposta pela
necessidade já era desde então, e continuou sendo pelo resto da vida, a mais
adequada à sua índole enigmática e seu caráter sombrio. Quando lhe deram o
primeiro cargo importante na C.F.C., mandou fazer roupas sob medida no mesmo
estilo das do pai, a quem evocava como um ancião morto na venerável idade de
Cristo: trinta e três anos. Assim, Florentino Ariza deu sempre a impressão de ser
muito mais velho do que era. Tanto assim que a faladeira Brígida Zuleta, uma
amante fugaz que dizia as verdades sem papas na língua, lhe disse desde o primeiro
dia que gostava mais dele quando tirava a roupa, porque nu tinha vinte anos menos.
Contudo, remédio nunca encontrou, primeiro porque seu gosto pessoal não deixava
que se vestisse de outro modo, e segundo porque ninguém sabia como se vestir de
mais moço aos vinte anos, a menos que tirasse de novo do armário as calças curtas
e o gorro de marinheiro. Por outro lado, ele próprio não conseguia escapar à noção
de velhice do seu tempo, o que tornava apenas natural que ao ver Fermina Daza
tropeçar à saída do cinema fosse abalado pelo raio pânico de que a puta da morte ia
acabar ganhando sem remédio sua encarniçada guerra de amor.
Até então, sua grande batalha, travada de peito aberto e perdida sem glória, tinha
sido a da calvície. Desde que viu os primeiros cabelos que ficavam emaranhados no
pente,
percebeu que estava condenado a um inferno cujo suplício escapa à imaginação
dos que dele não padecem. Resistiu durante anos. Não houve glostoras nem loções
que não experimentasse, nem crendice em que não cresse, nem sacrifício que não
suportasse para defender da devastação voraz cada polegada da cabeça. Decorou as
instruções do Almanaque Bristol para a agricultura, por ouvir alguém dizer que o
crescimento do cabelo tinha relação direta com os ciclos das colheitas. Abandonou
seu barbeiro de toda a vida, um calvo extremado, e adotou um forasteiro recém
chegado que só cortava cabelo quando a lua entrava em quarto crescente. O novo
barbeiro começara a demonstrar que na realidade tinha a mão fértil, quando se
descobriu que era um estuprador de noviças procurado por várias polícias das
Antilhas, e o carregaram arrastando correntes.
Florentino Ariza tinha recortado nessas alturas todos os anúncios para calvos
que encontrou nos jornais da bacia do Caribe, nos quais saíam os dois retratos
juntos do mesmo homem, primeiro pelado como um melão e depois mais peludo
que um leão: antes e depois de usar o remédio infalível. No fim de seis anos tinha
experimentado cento e setenta e dois, além de outros métodos complementares que
apareciam no rótulo dos vidros, e a única coisa que conseguiu com um deles foi um
eczema do crânio, urticante e fétido, chamado tinha boreal pelos santarrões da
Martinica, porque irradiava um resplendor fosforescente na escuridão. Recorreu
por último a tudo quanto era erva de índio apregoada no mercado, e a todos os
específicos mágicos e poções orientais que se vendiam no Portal dos Escrivães, mas
quando deu o balanço das fraudes já ostentava uma tonsura de santo. No ano zero,
enquanto a guerra civil dos Mil Dias dessangrava o país, passou pela cidade um
italiano que fabricava perucas de cabelo natural sob medida. Custavam uma
fortuna, e o fabricante não se responsabilizava por nada depois de três meses de
uso, mas foram poucos os calvos solventes que não cederam à tentação. Florentino
Ariza foi um dos primeiros. Experimentou uma peruca tão parecida com seu cabelo
original que ele mesmo temia que se arrepiasse com mudanças de humor, mas não
conseguiu assimilar a ideia de carregar na cabeça os cabelos de um morto. Seu
único consolo foi que a avidez da calvície não lhe deu tempo de conhecer os
próprios cabelos brancos. Um dia um dos bêbados alegres do cais fluvial o abraçou
com mais efusão que de costume quando o viu sair do escritório, tirou o chapéu
dele entre as troças dos estivadores, e lhe deu um beijo sonoro na grimpa.
— Careca divino! — gritou.
Nessa noite, aos quarenta e oito anos, mandou cortar as escassas penugens que
lhe restavam na fronte e na nuca, e assumiu a fundo seu destino de calvo absoluto.
A tal ponto que todas as manhãs antes do banho cobria de espuma não só o queixo,
como ainda as partes do crânio onde acaso ameaçassem brotar de novo pelos, e
punha tudo como nádegas de criança com a navalha de barba. Até então não tirava o
chapéu nem mesmo dentro do escritório, pois a calvície lhe causava uma sensação
de nudez que achava indecente. Mas quando a assimilou a fundo atribuiu-lhe
virtudes varonis das quais ouvira falar, e que menosprezava como meras fantasias
de calvos. Mais tarde adotou o novo costume de atravessar o crânio com os cabelos
compridos do lado direito do repartido, e nunca mais o abandonou. Mas ainda
assim continuou usando o chapéu, sempre no mesmo estilo fúnebre, mesmo depois
de se impor a moda do chapéu de tartarita, que era o nome local do canotier.
A perda dos dentes, em compensação, não tinha sido uma calamidade natural, e
sim fruto da incompetência de um dentista ambulante que resolveu aplicar
remédios heroicos a uma infecção ordinária. O horror às brocas de pedal tinha
impedido Florentino Ariza de visitar o dentista apesar de suas contínuas dores de
dente, até que não pôde mais suportá-las. Sua mãe se assustou ao ouvir a noite
inteira as queixas inconsoláveis no quarto pegado, porque achou que eram as
mesmas de outros tempos já quase esfumados nas névoas de sua memória, mas
quando o fez abrir a boca para ver onde é que o amor doía, descobriu que estava
cheio de postemas.
Tio Leão XII mandou-o ao doutor Francis Adonay, um gigante negro de polainas
e culotes de montar que andava nos navios fluviais com um gabinete dentário
completo dentro de uns alforjes de capataz, e mais parecia um caixeiro viajante do
terror nos povoados do rio. Com um único olhar dentro da boca, determinou que
era preciso tirar de Florentino Ariza até os dentes bons, para pô-lo de uma vez a
salvo de novos percalços. Ao contrário da calvície, aquela cura de burro não lhe deu
nenhuma preocupação, salvo o temor natural do massacre sem anestesia.
Tampouco lhe desgostou a ideia da dentadura postiça, primeiro porque uma das
nostalgias da sua infância era a lembrança de um mágico de feira que arrancava de
si as duas mandíbulas e as deixava falando sozinhas numa mesa, e segundo porque
punha fim às dores de dente que o haviam atormentado desde menino, quase tanto
e com tanta crueldade quanto as dores de amor. Não lhe pareceu um golpe
manhoso da velhice, como havia de lhe parecer a calvície, porque estava convencido
de que, apesar do odor acre da borracha vulcanizada, sua aparência seria mais limpa
com um sorriso ortopédico. De maneira que se submeteu sem resistência às tenazes
incandescentes do doutor Adonay, e suportou a convalescença com um estoicismo
de burro de carga.
Tio Leão XII se ocupou dos detalhes da operação como se fosse em sua própria
carne. Tinha um interesse singular pelas dentaduras postiças, contraído numa de
suas primeiras navegações pelo rio Madalena, e por culpa de sua dedicação maníaca
ao bel canto. Numa noite de lua cheia, à altura do porto de Gamarra, apostou com
um agrimensor alemão que era capaz de despertar as criaturas da selva cantando
uma romança napolitana do passadiço do comandante. Por pouco não ganhou. Nas
trevas do rio sentia-se o voejar das garças nos pântanos, o rabear dos jacarés, o
pavor das savelhas procurando saltar em terra firme, mas na nota culminante,
quando se receou que as artérias do cantor se fossem romper com a potência do
canto, a dentadura postiça lhe saltou da boca com o alento final, e afundou nas
águas.
O navio teve que demorar três dias no porto de Tenerife, enquanto lhe faziam
outra dentadura de emergência. Ficou perfeita. Mas na navegação de volta, tratando
de explicar ao comandante como perdera a dentadura anterior, tio Leão XII aspirou
a pleno pulmão o ar ardente da selva, deu a nota mais alta de que foi capaz, susteve
a até o último alento procurando espantar os jacarés deitados ao sol que
contemplavam sem pestanejar a passagem do navio, e também a dentadura nova
afundou na corrente. Desde então teve cópias de dentes por toda parte, em
diferentes lugares da casa, na gaveta da escrivaninha, e uma em cada um dos três
navios da empresa. Além disso, quando comia fora de casa costumava levar uma
sobressalente no bolso dentro de uma caixinha de pastilhas para a tosse, porque
uma se partira quando ele comia torresmos num almoço campestre. Temendo que o
sobrinho fosse vítima de sobres saltos semelhantes, tio4Leão XII mandou que o
doutor Adonay lhe fizesse de uma só vez duas dentaduras: uma de materiais
baratos, para uso diário no escritório, e outra para os domingos e feriados, com uma
chispa de ouro no dente do sorriso, para lhe imprimir um toque adicional de
verdade. Por fim, num Domingo de Ramos alvoroçado por sinos de festa, Florentino
Ariza voltou à rua com uma identidade nova, cujo sorriso sem jaça lhe deu a
impressão de que alguém diferente dele tinha ocupado seu lugar no mundo.
Isto foi pela época em que morreu sua mãe e Florentino Ariza ficou só na casa.
Era um rincão adequado ao seu modo de amar, porque a rua era discreta, não
obstante o fato de que as tantas janelas de seu nome fizessem pensar em
demasiados olhos por trás das cortinas. Mas tudo isso tinha sido feito para que
Fermina Daza fosse feliz, e ela só, de maneira que Florentino Ariza preferiu perder
muitas oportunidades durante seus anos mais fecundos a macular a casa com
outros amores. Por sorte, cada degrau que escalava na C.F.C. implicava novos
privilégios, sobretudo privilégios secretos, e um dos mais úteis para ele foi a
possibilidade de usar os escritórios durante a noite, ou aos domingos e feriados,
com a complacência dos zeladores. Uma vez, quando era vice-presidente, estava
fazendo um amor de emergência com uma das moças do serviço dominical, ele
sentado numa cadeira de escrivaninha, e ela acavalada sobre ele, quando de repente
se abriu a porta. Tio Leão XII avançou a cabeça, como se tivesse errado de porta, e
ficou olhando por cima dos óculos o sobrinho aterrorizado. "Porra!", disse o tio sem
o menor espanto. "A mesma mania que tinha o seu pai!" E antes de fechar de novo a
porta, a vista perdida no vácuo, disse:
— Quanto à senhorita, continue, não se vexe. Dou minha palavra de honra que
nem vi seu rosto.
continua na página 198...
________________
Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza, em compensação
_______________
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Nenhum comentário:
Postar um comentário