quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza, em compensação

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Florentino Ariza, em compensação, enfrentou as insídias da velhice com uma temeridade encarniçada, mesmo consciente como era da estranha sorte sua de parecer velho desde muito menino. A princípio foi uma necessidade. Trânsito Ariza desmanchava e tornava a coser para ele as roupas que o pai resolvia jogar no lixo, por isso frequentava a escola primária com sobrecasacas que tocavam o chão quando se sentava, e chapéus ministeriais que afundavam até suas orelhas, apesar de terem a fôrma reduzida com recheio de algodão. Como além disso usava óculos de míope desde os cinco anos, e tinha o mesmo cabelo índio da mãe, que era eriçado e grosso feito crina de cavalo, seu aspecto não esclarecia nada. Por sorte, depois de tantas desordens governo devido a tantas guerras civis superpostas, os critérios escolares eram menos seletivos do que antes, e havia a mixórdia de origens e condições sociais nas escolas públicas. Meninos que ainda não tinham sido acabados de criar chegavam às aulas fedendo a pólvora de barricada, com insígnias e uniformes de oficiais rebeldes ganhos a bala em combates incertos, e com as armas do regulamento bem visíveis no cinto. Combatiam a tiros por qualquer briga de recreio, ameaçavam os professores que lhes dessem nota ruim nos exames, e um deles, estudante do terceiro grau no colégio La Salle e coronel de milícias reformado, matou com um balaço o irmão João Eremita, prefeito da comunidade, porque disse na aula de catecismo que Deus era membro nato do partido conservador.
      Por outro lado, os filhos das grandes famílias em desgraça andavam vestidos de príncipes antigos, e alguns muito pobres andavam descalços. Entre tantas raridades vindas de todas as partes, Florentino Ariza se situava de todas as maneiras entre os mais raros, mas nem tanto que chamasse demais a atenção. O mais duro que ouviu foi alguém lhe gritando na rua: "Quem tem a cara feia e os bolsos vazios passa a vida a ver navios." De qualquer modo, aquela indumentária imposta pela necessidade já era desde então, e continuou sendo pelo resto da vida, a mais adequada à sua índole enigmática e seu caráter sombrio. Quando lhe deram o primeiro cargo importante na C.F.C., mandou fazer roupas sob medida no mesmo estilo das do pai, a quem evocava como um ancião morto na venerável idade de Cristo: trinta e três anos. Assim, Florentino Ariza deu sempre a impressão de ser muito mais velho do que era. Tanto assim que a faladeira Brígida Zuleta, uma amante fugaz que dizia as verdades sem papas na língua, lhe disse desde o primeiro dia que gostava mais dele quando tirava a roupa, porque nu tinha vinte anos menos. Contudo, remédio nunca encontrou, primeiro porque seu gosto pessoal não deixava que se vestisse de outro modo, e segundo porque ninguém sabia como se vestir de mais moço aos vinte anos, a menos que tirasse de novo do armário as calças curtas e o gorro de marinheiro. Por outro lado, ele próprio não conseguia escapar à noção de velhice do seu tempo, o que tornava apenas natural que ao ver Fermina Daza tropeçar à saída do cinema fosse abalado pelo raio pânico de que a puta da morte ia acabar ganhando sem remédio sua encarniçada guerra de amor.
      Até então, sua grande batalha, travada de peito aberto e perdida sem glória, tinha sido a da calvície. Desde que viu os primeiros cabelos que ficavam emaranhados no pente, percebeu que estava condenado a um inferno cujo suplício escapa à imaginação dos que dele não padecem. Resistiu durante anos. Não houve glostoras nem loções que não experimentasse, nem crendice em que não cresse, nem sacrifício que não suportasse para defender da devastação voraz cada polegada da cabeça. Decorou as instruções do Almanaque Bristol para a agricultura, por ouvir alguém dizer que o crescimento do cabelo tinha relação direta com os ciclos das colheitas. Abandonou seu barbeiro de toda a vida, um calvo extremado, e adotou um forasteiro recém chegado que só cortava cabelo quando a lua entrava em quarto crescente. O novo barbeiro começara a demonstrar que na realidade tinha a mão fértil, quando se descobriu que era um estuprador de noviças procurado por várias polícias das Antilhas, e o carregaram arrastando correntes.
     Florentino Ariza tinha recortado nessas alturas todos os anúncios para calvos que encontrou nos jornais da bacia do Caribe, nos quais saíam os dois retratos juntos do mesmo homem, primeiro pelado como um melão e depois mais peludo que um leão: antes e depois de usar o remédio infalível. No fim de seis anos tinha experimentado cento e setenta e dois, além de outros métodos complementares que apareciam no rótulo dos vidros, e a única coisa que conseguiu com um deles foi um eczema do crânio, urticante e fétido, chamado tinha boreal pelos santarrões da Martinica, porque irradiava um resplendor fosforescente na escuridão. Recorreu por último a tudo quanto era erva de índio apregoada no mercado, e a todos os específicos mágicos e poções orientais que se vendiam no Portal dos Escrivães, mas quando deu o balanço das fraudes já ostentava uma tonsura de santo. No ano zero, enquanto a guerra civil dos Mil Dias dessangrava o país, passou pela cidade um italiano que fabricava perucas de cabelo natural sob medida. Custavam uma fortuna, e o fabricante não se responsabilizava por nada depois de três meses de uso, mas foram poucos os calvos solventes que não cederam à tentação. Florentino Ariza foi um dos primeiros. Experimentou uma peruca tão parecida com seu cabelo original que ele mesmo temia que se arrepiasse com mudanças de humor, mas não conseguiu assimilar a ideia de carregar na cabeça os cabelos de um morto. Seu único consolo foi que a avidez da calvície não lhe deu tempo de conhecer os próprios cabelos brancos. Um dia um dos bêbados alegres do cais fluvial o abraçou com mais efusão que de costume quando o viu sair do escritório, tirou o chapéu dele entre as troças dos estivadores, e lhe deu um beijo sonoro na grimpa.

 — Careca divino! — gritou.

      Nessa noite, aos quarenta e oito anos, mandou cortar as escassas penugens que lhe restavam na fronte e na nuca, e assumiu a fundo seu destino de calvo absoluto. A tal ponto que todas as manhãs antes do banho cobria de espuma não só o queixo, como ainda as partes do crânio onde acaso ameaçassem brotar de novo pelos, e punha tudo como nádegas de criança com a navalha de barba. Até então não tirava o chapéu nem mesmo dentro do escritório, pois a calvície lhe causava uma sensação de nudez que achava indecente. Mas quando a assimilou a fundo atribuiu-lhe virtudes varonis das quais ouvira falar, e que menosprezava como meras fantasias de calvos. Mais tarde adotou o novo costume de atravessar o crânio com os cabelos compridos do lado direito do repartido, e nunca mais o abandonou. Mas ainda assim continuou usando o chapéu, sempre no mesmo estilo fúnebre, mesmo depois de se impor a moda do chapéu de tartarita, que era o nome local do canotier.
      A perda dos dentes, em compensação, não tinha sido uma calamidade natural, e sim fruto da incompetência de um dentista ambulante que resolveu aplicar remédios heroicos a uma infecção ordinária. O horror às brocas de pedal tinha impedido Florentino Ariza de visitar o dentista apesar de suas contínuas dores de dente, até que não pôde mais suportá-las. Sua mãe se assustou ao ouvir a noite inteira as queixas inconsoláveis no quarto pegado, porque achou que eram as mesmas de outros tempos já quase esfumados nas névoas de sua memória, mas quando o fez abrir a boca para ver onde é que o amor doía, descobriu que estava cheio de postemas.
      Tio Leão XII mandou-o ao doutor Francis Adonay, um gigante negro de polainas e culotes de montar que andava nos navios fluviais com um gabinete dentário completo dentro de uns alforjes de capataz, e mais parecia um caixeiro viajante do terror nos povoados do rio. Com um único olhar dentro da boca, determinou que era preciso tirar de Florentino Ariza até os dentes bons, para pô-lo de uma vez a salvo de novos percalços. Ao contrário da calvície, aquela cura de burro não lhe deu nenhuma preocupação, salvo o temor natural do massacre sem anestesia. Tampouco lhe desgostou a ideia da dentadura postiça, primeiro porque uma das nostalgias da sua infância era a lembrança de um mágico de feira que arrancava de si as duas mandíbulas e as deixava falando sozinhas numa mesa, e segundo porque punha fim às dores de dente que o haviam atormentado desde menino, quase tanto e com tanta crueldade quanto as dores de amor. Não lhe pareceu um golpe manhoso da velhice, como havia de lhe parecer a calvície, porque estava convencido de que, apesar do odor acre da borracha vulcanizada, sua aparência seria mais limpa com um sorriso ortopédico. De maneira que se submeteu sem resistência às tenazes incandescentes do doutor Adonay, e suportou a convalescença com um estoicismo de burro de carga.
      Tio Leão XII se ocupou dos detalhes da operação como se fosse em sua própria carne. Tinha um interesse singular pelas dentaduras postiças, contraído numa de suas primeiras navegações pelo rio Madalena, e por culpa de sua dedicação maníaca ao bel canto. Numa noite de lua cheia, à altura do porto de Gamarra, apostou com um agrimensor alemão que era capaz de despertar as criaturas da selva cantando uma romança napolitana do passadiço do comandante. Por pouco não ganhou. Nas trevas do rio sentia-se o voejar das garças nos pântanos, o rabear dos jacarés, o pavor das savelhas procurando saltar em terra firme, mas na nota culminante, quando se receou que as artérias do cantor se fossem romper com a potência do canto, a dentadura postiça lhe saltou da boca com o alento final, e afundou nas águas.
      O navio teve que demorar três dias no porto de Tenerife, enquanto lhe faziam outra dentadura de emergência. Ficou perfeita. Mas na navegação de volta, tratando de explicar ao comandante como perdera a dentadura anterior, tio Leão XII aspirou a pleno pulmão o ar ardente da selva, deu a nota mais alta de que foi capaz, susteve a até o último alento procurando espantar os jacarés deitados ao sol que contemplavam sem pestanejar a passagem do navio, e também a dentadura nova afundou na corrente. Desde então teve cópias de dentes por toda parte, em diferentes lugares da casa, na gaveta da escrivaninha, e uma em cada um dos três navios da empresa. Além disso, quando comia fora de casa costumava levar uma sobressalente no bolso dentro de uma caixinha de pastilhas para a tosse, porque uma se partira quando ele comia torresmos num almoço campestre. Temendo que o sobrinho fosse vítima de sobres saltos semelhantes, tio4Leão XII mandou que o doutor Adonay lhe fizesse de uma só vez duas dentaduras: uma de materiais baratos, para uso diário no escritório, e outra para os domingos e feriados, com uma chispa de ouro no dente do sorriso, para lhe imprimir um toque adicional de verdade. Por fim, num Domingo de Ramos alvoroçado por sinos de festa, Florentino Ariza voltou à rua com uma identidade nova, cujo sorriso sem jaça lhe deu a impressão de que alguém diferente dele tinha ocupado seu lugar no mundo.
      Isto foi pela época em que morreu sua mãe e Florentino Ariza ficou só na casa. Era um rincão adequado ao seu modo de amar, porque a rua era discreta, não obstante o fato de que as tantas janelas de seu nome fizessem pensar em demasiados olhos por trás das cortinas. Mas tudo isso tinha sido feito para que Fermina Daza fosse feliz, e ela só, de maneira que Florentino Ariza preferiu perder muitas oportunidades durante seus anos mais fecundos a macular a casa com outros amores. Por sorte, cada degrau que escalava na C.F.C. implicava novos privilégios, sobretudo privilégios secretos, e um dos mais úteis para ele foi a possibilidade de usar os escritórios durante a noite, ou aos domingos e feriados, com a complacência dos zeladores. Uma vez, quando era vice-presidente, estava fazendo um amor de emergência com uma das moças do serviço dominical, ele sentado numa cadeira de escrivaninha, e ela acavalada sobre ele, quando de repente se abriu a porta. Tio Leão XII avançou a cabeça, como se tivesse errado de porta, e ficou olhando por cima dos óculos o sobrinho aterrorizado. "Porra!", disse o tio sem o menor espanto. "A mesma mania que tinha o seu pai!" E antes de fechar de novo a porta, a vista perdida no vácuo, disse:

 — Quanto à senhorita, continue, não se vexe. Dou minha palavra de honra que nem vi seu rosto.

continua na página 198...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza, em compensação
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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