sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: A simples ideia lhe alvoroçou

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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      A simples ideia lhe alvoroçou as querências. Voltou a rondar a quinta de Fermina Daza com as mesmas ânsias com que o fazia tantos anos antes na pracinha dos Evangelhos, não com a intenção calculada de que ela o visse, e sim com a única de vê-la para se certificar de que continuava no mundo. Só que agora era difícil passar despercebido. O bairro de Mangueira ficava numa ilha semideserta, separada da cidade histórica por um canal de águas verdes, e coberta de matagais de icaqueiro que tinham sido guarida de namorados domingueiros durante a Colônia. Em anos recentes tinham demolido a velha ponte de pedra dos espanhóis e construído uma de cimento com globos de luz, para dar passagem aos novos bondes de burro. No princípio, os moradores da Mangueira tinham que suportar um suplício que não se levara em conta no projeto, e que era dormir perto demais da primeira usina elétrica que teve a cidade, cuja trepidação era um terremoto contínuo. Nem o doutor Juvenal Urbino com todo seu poder conseguira que a mudassem para onde não estorvasse, até que intercedeu a seu favor sua comprovada cumplicidade com a Divina Providência. Uma noite a caldeira da usina arrebentou com uma explosão pavorosa, voou por cima das casas novas, atravessou metade da cidade pelos ares e fez desmoronar a galeria maior do antigo convento de São Julião o Hospitaleiro. O velho edifício em ruínas tinha sido abandonado em princípios daquele ano, mas a caldeira causou a morte de quatro presos que se haviam evadido à noitinha do cárcere local e estavam escondidos na capela.
      Aquele subúrbio aprazível, com tão belas tradições de amor, não foi em compensação muito propício aos amores contrariados quando se converteu em bairro de luxo. As ruas eram poeirentas no verão, enlameadas no inverno e desoladas durante o ano inteiro, e as casas escassas se escondiam entre jardins frondosos, com varandas de mosaico em vez das sacadas salientes de outrora, como que feitas de propósito para desalentar os namorados furtivos. Ainda bem que naquela época se impôs a moda de passear de tarde nas velhas vitórias de praça reformadas para um cavalo só, e o trajeto terminava numa eminência de onde se apreciavam os crepúsculos desatinados de outubro melhor do que da torre do farol, e se avistavam os tubarões sigilosos tocaiando a praia dos seminaristas, e o transatlântico das quintas-feiras, imenso e branco, que quase se podia tocar com as mãos quando passava pelo canal do porto. Florentino Ariza costumava tomar uma vitória depois do duro dia de escritório, mas não arriava a capota como era costume nos meses de calor, permanecendo escondido no fundo do assento, invisível na sombra, sempre só, e ordenando itinerários imprevistos para não despertar os maus pensamentos do cocheiro. A única coisa do passeio que na realidade o interessava era o partenom de mármore rosado entre plantações de banana e mangueiras frondosas, réplica desafortunada das mansões idílicas dos algodoais da Luisiana. Os filhos de Fermina Daza voltavam para casa pouco antes das cinco. Florentino Ariza os via chegar no carro da família, e via sair depois o doutor Juvenal Urbino para suas visitas médicas de rotina, mas em quase um ano de rondas não pôde sequer vislumbrar a janela que buscava.
      Uma tarde em que insistiu no passeio solitário apesar de estar caindo o primeiro aguaceiro devastador de junho, o cavalo resvalou na lama e tombou de bruços. Florentino Ariza viu com horror que estava bem na frente da quinta de Fermina Daza, e implorou ao cocheiro, sem pensar que sua consternação podia delatá-lo.

— Aqui não, por favor — gritou. — Em qualquer lugar menos aqui.

      Perturbado pela pressa, o cocheiro procurou levantar o cavalo sem desatrelá-lo, e o eixo do carro quebrou. Florentino Ariza saltou como pôde, e aguentou a vergonha de baixo do rigor da chuva até que outros passantes se ofereceram para levá-lo a casa. Enquanto esperava, uma criada da família Urbino o vira com a roupa ensopada e chapinhando na lama até os joelhos, e lhe levou um guarda-chuva para que viesse se abrigar no terraço. Florentino Ariza não sonhava com tanta sorte nem no mais descomedido dos seus delírios, mas naquela tarde teria preferido morrer a ser visto por Fermina Daza em semelhante estado.
      Quando moravam na cidade velha, Juvenal Urbino e a família iam aos domingos a pé da casa até a catedral, para a missa das oito, que era mais um ato mundano do que religioso. Mais tarde, quando mudaram de casa, continuaram indo de carro durante vários anos, e às vezes se deixavam ficar em tertúlias de amigos sob as palmeiras do parque. Mas quando se construiu o templo do seminário conciliar da Mangueira, com praia particular e cemitério próprio, passaram a só ir à catedral em ocasiões muito solenes. Sem saber destas mudanças, Florentino Ariza esperou vários domingos no terraço do Café da Paróquia, vigiando a saída das três missas. Depois percebeu o erro e foi à igreja nova, que esteve na moda até há poucos anos, e lá viu o doutor Juvenal Urbino com os filhos, pontuais às oito nos quatro domingos de agosto, mas Fermina Daza não estava com eles. Num desses domingos visitou o novo cemitério contíguo, onde os residentes do bairro de Mangueira estavam construindo seus panteões suntuosos, e seu coração deu um salto quando encontrou à sombra das grandes paineiras o mais suntuoso de todos, já terminado, com vitrais góticos e anjos de mármore, e com as lápides para toda a família em letras douradas. Entre elas, é claro, a de dona Fermina Daza de Urbino de Ia Calle, e em continuação a do marido, com um epitáfio comum: Juntos também na paz do Senhor.
     Durante o restante do ano, Fermina Daza não assistiu a nenhum dos atos cívicos ou sociais, nem mesmo os do Natal, nos quais ela e o marido costumavam ser protagonistas de luxo. Mas onde mais se notou sua ausência foi na recita inaugural da temporada de ópera. No intervalo, Florentino Ariza surpreendeu um grupo em que sem dúvida falavam nela sem mencioná-la. Diziam que alguém a vira, numa certa meia-noite do junho anterior, subir ao transatlântico da Cunard, rumo ao Panamá, e que usava um véu escuro para que não se notassem os estragos causados pela doença secreta que a consumia. Alguém perguntou que mal tão terrível podia ser que se atrevia a atacar mulher de tantos poderes, e a resposta que recebeu veio saturada de uma bílis negra:

 — Uma dama tão distinta só pode ter a tísica.

     Florentino Ariza sabia que os ricos de sua terra não tinham doenças curtas. Ou bem morriam de repente, quase sempre às vésperas de uma festa maior que o luto prejudicava, ou iam se apagando em enfermidades lentas e abomináveis, cujas intimidades acabavam por cair no domínio público. A reclusão no Panamá era quase uma penitência obrigatória na vida dos ricos. Submetiam-se ao que Deus quisesse no Hospital dos Adventistas, um imenso galpão branco extraviado nos aguaceiros pré-históricos do Darién, onde os doentes perdiam a conta da pouca vida que lhes restava, e em cujos quartos solitários com janelas de cortina opaca ninguém podia saber com certeza se o cheiro do ácido fênico era de saúde ou de morte. Os que se restabeleciam voltavam carregados de presentes esplêndidos que repartiam a mancheias com uma certa angústia de quem pede perdão pela indiscrição de continuar vivo. Alguns voltavam com o abdome atravessado de costuras bárbaras que pareciam feitas com cânhamo de sapateiro, levantavam a camisa para mostrá-las às visitas, comparavam-nas com as de outros que tinham morrido sufocados pelos excessos da felicidade, e pelo restante dos seus dias continuavam contando e tornando a contar as aparições angelicais que tinham visto sob os efeitos do clorofórmio. Em compensação, ninguém jamais conheceu as visões dos que não voltaram, e entre estes os mais tristes: os que morreram desterrados no pavilhão dos tísicos, mais pela tristeza da chuva do que pelos padecimentos da doença.
     A ter que escolher, Florentino Ariza não sabia o que teria preferido para Fermina Daza. Mas antes de mais nada preferia a verdade, ainda que insuportável, e por muito que a buscasse não deu com ela. Achava inconcebível que ninguém pudesse lhe dar pelo menos um indício para confirmar a versão. No mundo dos navios fluviais, que era o seu, não havia mistério que se pudesse conservar nem confidencia que se pudesse guardar. No entanto, ninguém ouvira falar na mulher do véu preto. Ninguém sabia nada, numa cidade onde tudo se sabia, e onde muitas coisas se sabiam inclusive antes que acontecessem. Sobretudo as coisas dos ricos. Mas ninguém tinha explicação nenhuma para o desaparecimento de Fermina Daza. Florentino Ariza continuava rondando a Mangueira, ouvindo missas sem devoção na basílica do seminário, assistindo a atos cívicos que nunca lhe teriam interessado em outro estado de ânimo, mas a Passagem do tempo só fazia aumentar o crédito da versão. Tudo parecia normal na casa dos Urbino, exceto a falta da mãe.
     No meio de tantas averiguações encontrou outras novidades que não conhecia, ou que não andava buscando, e entre elas a da morte de Lorenzo Daza na aldeia cantábrica onde nascera. Recordava tê-lo visto durante muitos anos nas ruidosas guerras de xadrez no Café da Paróquia, a voz enrouquecida de tanto falar, e mais gordo e áspero à medida que afundava nas areias movediças de uma velhice ruim. Não tinham tornado a se dirigir a palavra desde o ingrato café da manhã de aguardente de anis no século anterior, e Florentino Ariza tinha certeza de que Lorenzo Daza ainda o recordava com rancor igual ao seu, mesmo depois de conseguir para a filha o casamento de fortuna que se convertera na única razão que tinha para viver. Mas estava tão decidido a encontrar uma informação inequívoca sobre a saúde de Fermina Daza que voltara ao Café da Paróquia para obtê-la do pai, na época em que ali se celebrou o torneio histórico em que Jeremiah de Saint Amour enfrentou sozinho quarenta e dois adversários. Foi assim que se inteirou de que Lorenzo Daza tinha morrido, e se alegrou de todo o coração, embora sabendo que o preço daquela alegria podia ser o de continuar vivendo sem a verdade. No final admitiu como certa a versão do hospital de desenganados, sem mais consolo que não fosse o refrão conhecido: Mulher enferma, mulher eterna. Em seus dias de desalento, se conformava com a ideia de que a notícia da morte de Fermina Daza, caso ocorresse, a ele chegaria mesmo que não a buscasse.
     Não chegaria nunca. Pois Fermina Daza estava viva e saudável na fazenda onde sua prima Hildebranda Sánchez vivia esquecida do mundo, a meia légua do povoado de Flores de Maria. Tinha ido sem escândalo, de comum acordo com o marido, enrolados ambos como adolescentes na única crise séria que sofriam em tantos anos de um casamento estável. Tinham sido apanhados de supetão no repouso da maturidade, quando já se sentiam a salvo de qualquer emboscada da adversidade, com os filhos grandes e bem criados, e com o futuro aberto para que aprendessem a ser velhos sem azedumes. Tinha sido algo tão imprevisto para ambos que não quiseram resolver o caso aos gritos, com lágrimas e mediadores, como era de uso natural no Caribe, e sim com a sabedoria das nações da Europa, e de tanto não serem de cá nem de lá acabaram escorregando numa situação pueril que não era de lugar nenhum. Afinal ela decidira ir embora, sem saber sequer por que, ou para quê, de pura raiva, e ele não fora capaz de dissuadi-la, impedido por sua consciência de culpa.
     Fermina Daza, com efeito, embarcara à meia-noite dentro do maior sigilo e com a cara coberta por uma mantilha de luto, mas não num transatlântico da Cunard com destino ao Panamá, e sim no naviozinho regular de São João da Ciénaga, a cidade onde nasceu e onde morou até a puberdade, e cuja saudade ia ficando insuportável com os anos. Contra a vontade do marido e os costumes da época, só levou como acompanhante uma afilhada de quinze anos que se criara com a criadagem de sua casa, mas haviam avisado de sua viagem os comandantes dos navios e as autoridades de cada porto. Quando tomou sua irrefletida resolução, anunciou aos filhos que ia repousar uns três meses na companhia de tia Hildebranda, mas estava decidida a ficar. O doutor Juvenal Urbino conhecia muito bem a integridade do seu caráter, e estava tão atribulado que aceitou com humildade a decisão como um castigo de Deus pela gravidade de seus pecados. Mas não se haviam perdido de vista as luzes do navio e já estavam ambos arrependidos de suas fraquezas.
     Apesar de terem mantido uma correspondência formal sobre os filhos e outros assuntos da casa, transcorreram quase dois anos sem que um ou outro encontrasse um caminho de regresso que não estivesse minado pelo orgulho. Os filhos foram passar em Flores de Maria as férias escolares do segundo ano, e Fermina Daza fez o impossível por parecer conformada com sua nova vida. Foi essa pelo menos a conclusão que tirou Juvenal Urbino das cartas do filho. Além disso, andou então por ali num giro pastoral o bispo de Riohacha, montado sob o palio na sua célebre mula branca com gualdrapas bordadas a ouro. Atrás vieram peregrinos de comarcas remotas, sanfoneiros, vendedores ambulantes de comidas e amuletos, e a fazenda passou três dias submersa em inválidos e desenganados, que na realidade não vinham atraídos pelos sermões doutos e as indulgências plenárias, e sim pelos favores da mula, da qual se dizia que era milagreira pelas costas do dono. O bispo tinha sido íntimo da casa dos Urbino de Ia Calle desde seus anos de padre raso, e num certo meio-dia escapou de sua feira para almoçar na fazenda de Hildebranda. Depois do almoço, no qual só se falou de assuntos terrenos, levou a um canto Fermina Daza e quis ouvi-la em confissão. Ela se negou, de um modo amável mas firme, com o argumento explicito de que não tinha nada de que se arrepender. Embora não fosse esse seu propósito, pelo menos consciente, ficou com a ideia de que sua resposta ia chegar onde devia.
     O doutor Juvenal Urbino costumava dizer, não sem certo cinismo, que aqueles dois amargos anos de sua vida não tinham sido culpa sua e sim do mau costume que tinha sua mulher de cheirar a roupa que a família tirava, e a que ela própria tirava, para saber pelo cheiro se era preciso mandar lavá-la embora parecesse limpa à primeira vista. Era o que fazia desde menina, e nunca pensou que se notasse tanto, até que o marido o percebeu na própria noite de núpcias. Percebeu também que ela fumava pelo menos três vezes por dia trancada no banheiro, mas isto não lhe chamou a atenção, pois as mulheres de sua classe costumavam trancar-se em grupos para falar de homens e fumar, e mesmo beber aguardente às canadas ate se estirarem ébrias no chão. Mas o costume de farejar tudo quanto era roupa em seu caminho não só lhe pareceu insólito como perigoso para a saúde. Ela o levava na brincadeira, como levava tudo que não queria discutir, e dizia que não era para simples adorno que Deus lhe havia posto na cara aquele diligente nariz ornitológico. Certa manhã, enquanto ela andava fazendo compras, a criadagem alvoroçou a vizinhança procurando o filho de três anos que não era achado em nenhum esconderijo da casa. Ela chegou em meio ao pânico, deu duas ou três voltas de mastim rastreador, e encontrou o filho dormindo num guarda-roupa, onde ninguém pensou que pudesse se esconder. Quando o marido atônito perguntou como o encontrara, respondeu:

 — Pelo cheiro de cocô.

continua na página 177...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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