quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Pois não só recebera as cartas

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Pois não só recebera as cartas como as lera com grande interesse, encontrando nelas sérios motivos de reflexão para continuar vivendo. Estava na mesa, tomando café com a filha, quando recebeu a primeira. Abriu-a por curiosidade ao ver que estava escrita a máquina, e um rubor súbito lhe abrasou o rosto ao reconhecer a inicial da assinatura. Mas se dominou e guardou a carta no bolso do avental. Disse: "São pêsames do governo." A filha se espantou: "Já chegaram todos." Ela não se alterou: "Chegou mais um." Seu propósito era queimar a carta mais tarde, longe das perguntas da filha, mas não resistiu à tentação de dar antes uma olhada. Esperava uma réplica merecida à sua carta de injúrias, que tinha começado a lhe pesar no momento mesmo em que a mandou, mas a partir do cabeçalho senhorial e dos propósitos do primeiro parágrafo compreendeu que alguma coisa tinha mudado no mundo. Ficou tão intrigada que se trancou no quarto para ler a carta com tranquilidade antes de queimá-la, e leu três vezes sem tomar fôlego.
     Eram meditações sobre a vida, o amor, a velhice, a morte: ideias que tinham passado muitas vezes a voejar como pássaros noturnos sobre sua cabeça, mas que se desmanchavam numa esteira de penas quando procurava segurá-las. Ali estavam, nítidas, simples, tal como teria gostado de dizê-las, e uma vez mais lamentou que o marido não estivesse vivo para comentá-las com ele, como costumavam comentar antes de dormir certos acontecimentos do dia. Desse modo se revelava um Florentino Ariza desconhecido, com uma clarividência que não correspondia às missivas febris da juventude nem à sua conduta sombria da vida inteira. Eram antes as palavras do homem que tia Escolástica imaginava inspirado pelo Espírito Santo, e este pensamento tornou a assustá-la como da primeira vez. Em todo caso, o que mais contribuiu para acalmar seu ânimo foi a certeza de que aquela carta de velho sábio não era uma tentativa «e reiterar a impertinência da noite do luto, e sim uma maneira muito nobre de apagar o passado.
     As cartas seguintes acabaram de apaziguá-la. Queimou as de todos os modos, depois de lê-las com um interesse crescente, ainda que elas enquanto as queimava lhe fossem deixando um sedimento de culpa que não conseguia dissipar. Foi por isso que quando começou a recebê-las numeradas encontrou a justificação moral que estava desejando para não destruí-las. Sua intenção inicial, em todo caso, não era conservá-las para si mas esperar uma ocasião de devolvê-las a Florentino Ariza para que não se perdesse algo que a ela parecia de tanta utilidade humana. O mal foi que o tempo passou e as cartas continuaram chegando, uma cada três ou quatro dias de todo o ano, e ela não soube como devolvê-las sem dar a impressão da desfeita que não queria cometer, e sem ter que apresentar razões numa carta que seu orgulho se negava a escrever.
     Aquele primeiro ano tinha bastado para que assumisse a viuvez. A lembrança purificada do marido deixou de ser um tropeço em seus atos cotidianos, em seus pensamentos íntimos, em suas intenções mais simples, e se converteu numa presença vigilante que a guiava sem estorvá-la. Às vezes o encontrava, não como uma aparição mas em carne e osso, onde em verdade lhe fazia falta. Animava-se com a certeza de que ele estava ali, vivo ainda mas sem seus caprichos de homem, sem suas exigências patriarcais, sem a necessidade exaustiva de que ela o amasse com o mesmo ritual de beijos importunos e palavras ternas com que a amava. Agora o entendia melhor que quando estava vivo, entendia a ansiedade de seu amor, a urgência de encontrar nela a segurança que parecia ser o suporte de sua vida pública, e que na realidade nunca teve. Um dia, no cúmulo da exasperação, ela havia gritado: "Você nem repara como sou infeliz." Ele tirou os óculos com um gesto muito seu, sem se alterar, inundou-a com as águas diáfanas de seus olhos pueris, e numa só frase atirou-lhe em cima o peso de sua sapiência insuportável: "Lembre sempre que o mais importante num bom casamento não é a felicidade e sim a estabilidade." Desde suas primeiras solidões de viúva ela compreendeu que a frase não escondia a ameaça mesquinha que lhe havia atribuído em seu tempo, e sim a pedra de toque que a ambos proporcionara tantas horas felizes.
     Em suas tantas viagens pelo mundo, Fermina Daza comprava todas as coisas que lhe chamassem a atenção pela novidade. Ela as desejava devido a um impulso primário que o marido se comprazia em racionalizar, e eram coisas belas e úteis enquanto estavam sem seu meio de origem, nas vitrines de Roma, de Paris, de Londres, ou daquela Nova York trepidante do charleston onde começavam a crescer os arranha-céus, mas não resistiam à prova das valsas de Strauss com torresmos e das batalhas de flores a quarenta graus à sombra. Por isso regressava com meia dúzia de baús verticais, enormes, de metal laqueado, fechaduras e cantoneiras de cobre como féretros de fantasia, dona e senhora das últimas maravilhas do mundo, que no entanto só valiam seu peso em ouro no instante fugaz em que alguém do seu mundo local as via por uma vez. Pois com essa finalidade tinham sido compradas: para que os outros as vissem uma vez. Ela adquirira noção do vazio de sua imagem pública desde muito antes de começar a envelhecer, e com frequência dizia em casa: "Precisamos nos livrar de tantas bugigangas que já não nos deixam onde viver." O doutor Urbino fazia troça dos seus propósitos estéreis, pois sabia que os espaços liberados só iam servir para que ela os enchesse de novo. Mas ela insistia, já que na verdade não havia lugar para uma coisa mais, nem havia em canto algum algo que na realidade servisse para algo, como camisas penduradas em maçanetas de porta ou abrigos de inverno europeu socados nos armários da cozinha. Havia por isso as manhãs em que se levantava de espírito destemido e investia contra os guarda-roupas, esvaziava os baús, desmantelava os desvãos, e armava uma guerra sem quartel aos montões de roupa demasiado vista, chapéus nunca usados por falta de ocasião enquanto ainda estavam na moda, sapatos copiados por artistas da Europa dos que as imperatrizes usavam para ser coroadas, e que aqui eram desprezados pelas senhoritas de alta linhagem por serem idênticos aos que as pretas compravam no mercado para andar em casa. Durante toda a manhã o pátio permanecia em estado de emergência, e dava trabalho respirar na casa devido às lufadas acres das bolas de naftalina. Mas a calma se restabelecia em poucas horas, já que no final ela se compadecia de tanta seda espalhada pelo chão, tantos brocados inúteis e desperdícios de passamanaria, tantas caudas de raposas azuis condenadas à fogueira.

— Isto é pecado queimar — dizia — com tanta gente, que não tem o que comer. 

     Assim, a queima se acalmava, se acalmou sempre, e as coisas se limitavam a trocar de lugar, de seus cantos de privilégio às antigas cavalariças transformadas em depósito de sobras, enquanto os espaços liberados, tal como ele dizia, começavam a encher de novo, a transbordar de coisas que viviam um instante e iam morrer nos guarda-roupas: até a seguinte queima. Ela dizia: "Devia-se inventar o que fazer com as coisas que nem servem para nada nem se pode jogar fora:" Assim era: amedrontava-se com a voracidade dos objetos invadindo os espaços do viver, desalojando os humanos, encurralando-os, até que Fermina Daza os punha onde não se vissem. Pois não era tão ordenada quanto acreditava, mas tinha um método próprio e desesperado de parecer que era: escondia a desordem. No dia em que morreu Juvenal Urbino tiveram que desocupar a metade do gabinete e amontoar as coisas nos quartos para ter um espaço em que velá-lo.
     A passagem da morte pela casa deixou a solução. Uma vez que queimou a roupa do marido, Fermina Daza percebeu que o pulso não lhe havia tremido, e com o mesmo impulso continuou armando a fogueira de tempos em tempos, atirando tudo às chamas, o velho e o novo, sem pensar na inveja dos ricos nem na desforra dos pobres que morriam de fome. Por último, fez cortar pela raiz o pé de manga até não ficar nenhum vestígio da desgraça, e deu o louro vivo de presente ao novo Museu da Cidade. Só então respirou a gosto numa casa como sempre a sonhara: ampla, fácil e sua.
     Ofélia, a filha, lhe fez companhia três meses e voltou a Nova Orleans. O filho trazia os seus a almoçar em família aos domingos, e sempre que podia durante a semana. As amigas mais próximas de Fermina Daza começaram a visitá-la uma vez superada a crise do luto, jogavam baralho diante do quintal pelado, ensaiavam novas receitas de cozinha, punham-na em dia quanto à vida secreta do mundo insaciável que continuava existindo sem ela. Uma das mais assíduas foi Lucrécia dei Real dei Obispo, uma aristocrata à moda antiga com quem sempre manteve boa amizade, e que se aproximou mais dela a partir da morte de Juvenal Urbino. Entrevada de artrite e arrependida de sua vida airada, Lucrécia dei Real não só lhe fazia então a melhor companhia, como a consultava acerca dos projetos cívicos e mundanos que se preparavam na cidade, o que fazia com que ela se sentisse útil por si mesma e não pela sombra protetora do marido. Contudo, nunca como então se identificou tanto com ele, pois lhe tiraram o nome de solteira por que sempre a haviam chamado, e começou a ser a viúva de Urbino.
     Era inconcebível, mas à medida que se aproximava o primeiro aniversário da morte do marido, Fermina Daza se sentia entrando num âmbito de sombra, fresco, silencioso: a floresta do irremediável. Não estava ainda muito consciente, nem o esteve durante vários meses, de quanto a ajudaram a recobrar a paz de espírito as meditações escritas de Florentino Ariza. Foram elas, aplicadas a suas experiências, que lhe permitiram entender sua própria vida, e esperar com serenidade os desígnios da velhice. O encontro na missa de ano foi uma ocasião providencial de dar a entender a Florentino Ariza que ela também, graças às suas cartas de ânimo, estava disposta a apagar o passado.
     Dois dias depois recebeu dele uma carta diferente: escrita a mão, em papel de linho, e com seu nome completo de remetente muito claro no dorso do envelope. Era a mesma letra florida das primeiras cartas, a mesma vontade lírica, mas aplicadas a um parágrafo singelo de gratidão pela deferência do cumprimento na catedral. Fermina Daza continuou pensando nela com as saudades alvoroçadas vários dias depois de lê-la, e com a consciência tão limpa que na quinta-feira seguinte perguntou a Lucrécia dei Real dei Obispo, sem que viesse à baila, se por acaso conhecia Florentino Ariza, o dono dos navios do rio. Lucrécia respondeu que sim: "Parece que é um súcubo perdido." Repetiu a versão corrente de que nunca se soubera de mulher dele, embora fosse tão bom partido, e que tinha um escritório secreto onde levava os meninos que perseguia de noite pelo cais. Fermina Daza tinha escutado essa lenda até onde ia sua memória, e nunca acreditou nela ou lhe deu importância. Mas quando a ouviu repetida com tanta convicção por Lucrécia dei Real dei Obispo, de quem também se dissera numa época que tinha gostos esquisitos, não pôde resistir à premência de pôr as coisas no seu devido lugar. Contou que conhecia Florentino Ariza desde menino. Relembrou que a mãe dele tinha armarinho na Rua das Janelas, e que além disso comprava camisas e lençóis velhos para desfiar e vender como algodão de emergência durante as guerras civis. E concluiu com firmeza: "É gente honesta, feita à força de pulso." Foi tão veemente que Lucrécia deu o dito por não dito: "No fim das contas, de mim também dizem o mesmo." Fermina Daza não teve a curiosidade de perguntar a si mesma por que fazia uma defesa tão apaixonada de um homem que não passara de uma sombra em sua vida. Continuou pensando nele, sobretudo quando chegava o correio sem nova carta. Tinham transcorrido duas semanas de silêncio, quando uma das empregadas a despertou da sesta com um sussurro de alarma.

— Senhora — disse — aí está seu Florentino.

continua na página 227...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Pois não só recebera as cartas
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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