sábado, 26 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: FERMINA DAZA não podia imaginar

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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      FERMINA DAZA não podia imaginar que aquela carta sua, instigada por uma raiva cega, pudesse ser interpretada por Florentino Ariza como uma carta de amor. Tinha posto nela toda a fúria de que era capaz, suas palavras mais cruéis, os opróbrios mais injuriosos, e injustos aliás, que no entanto lhe pareciam mínimos diante do tamanho da ofensa. Foi o último ato de um amargo exorcismo com o qual procurava criar um pacto de conciliação com seu novo estado. Queria ser outra vez ela mesma, recuperar tudo que tivera de ceder em meio século de uma servidão que a fizera feliz, sem dúvida, mas que uma vez morto o marido não deixava a ela nem traços da sua identidade. Era um fantasma numa casa alheia que de um dia para outro se tornara imensa e solitária, e na qual vagava à deriva, perguntando a si mesma angustiada quem estava mais morto: o que tinha morrido ou a que tinha ficado.
     Não podia afugentar um recôndito sentimento de rancor contra o marido por havê-la deixado só no meio do oceano tenebroso. Tudo que era dele a fazia chorar: o pijama debaixo do travesseiro, os chinelos que sempre lhe pareceram de doente, a recordação de sua imagem se despindo no fundo do espelho enquanto ela se penteava para dormir, o cheiro de sua pele que havia de persistir na dela muito tempo depois da morte. Parava no meio de qualquer coisa que estivesse fazendo e dava um tapinha na própria testa, porque de repente se lembrava de alguma coisa que esquecera de lhe dizer. A cada instante lhe vinham à mente as tantas perguntas cotidianas que só ele podia responder. Certa vez ele dissera algo que ela não podia conceber: os amputados sentem dores, cãibras, cócegas, na perna que não têm mais. Assim se sentia ela sem ele, sentindo que ele estava onde não mais se encontrava.
     Ao despertar em sua primeira manhã de viúva, tinha se virado na cama, ainda sem abrir os olhos, em busca de uma posição mais cômoda para continuar dormindo, e foi nesse momento que ele morreu para ela. Pois só então tomou consciência de que ele passara a noite pela primeira vez fora de casa. A outra impressão foi à mesa, não porque se sentisse só, como de fato estava, mas pela certeza estranha de estar comendo com alguém que já não existia. Esperou que sua filha Ofélia viesse de Nova Orleans, com o marido e as três filhas, para de novo se sentar à mesa para comer, mas não na de sempre e sim numa mesa improvisada, menor, que mandou botar no corredor. Até então não tinha feito nenhuma refeição regular. Passava pela cozinha a qualquer hora, quando tinha fome, e metia o garfo nas panelas e comia um pouco de tudo sem nada pôr num prato, de pé na frente do fogão, falando com as empregadas, as únicas com quem se sentia bem, e com quem se entendia melhor. Contudo, por mais que tentasse, não conseguia afastar a presença do marido morto: por onde quer que fosse, por onde quer que passasse, em qualquer coisa que fizesse esbarrava em alguma coisa que a fazia lembrar-se dele. E se por um lado lhe parecia honesto e justo que lhe doesse o que doía, queria por outro lado fazer todo o possível para não se deleitar com a dor. Por isso impôs a si mesma a resolução drástica de desterrar da casa tudo quanto relembrasse o marido morto, como única coisa que lhe ocorria para continuar vivendo sem ele.
     Foi uma cerimônia de extermínio. O filho aceitou levar a biblioteca para que ela instalasse no gabinete o quarto de costura que jamais tivera depois de casada. Pelo seu lado, a filha levaria alguns móveis e numerosos objetos que lhe pareciam muito apropriados para os leilões de antiguidades de Nova Orleans. Tudo isto foi um alívio para Fermina Daza, ainda que não achasse graça nenhuma em comprovar que as coisas compradas por ela na viagem de núpcias já fossem relíquias de antiquário. Contra o estupor mudo das criadas, dos vizinhos, das amigas da vizinhança que vinham acompanhá-la naqueles dias, fez atear uma fogueira num terreno vazio detrás da casa, e nela queimou tudo que lhe lembrava o marido: as roupas mais custosas e elegantes que se viram na cidade desde o século anterior, os sapatos mais finos, os chapéus que se pareciam mais com ele do que os retratos, a cadeira de balanço da sesta da qual se levantara pela última vez para morrer, inúmeros objetos tão ligados à sua vida que já formavam parte da sua identidade. Tudo fez sem uma sombra de dúvida, na certeza plena de que o marido teria aprovado, e não somente por higiene. Pois ele exprimira muitas vezes o desejo de ser incinerado, e não encerrado na escuridão sem frestas de uma caixa de cedro. Sua religião o interditava, antes de mais nada: ousara sondar a opinião do arcebispo, pois não custava tentar, e este respondera com uma negativa terminante. Era uma pura ilusão, porque a Igreja não permitia a existência de fornos crematórios em nossos cemitérios, nem para uso de religiões diferentes da católica, e a ninguém mais do que ao próprio Juvenal Urbino teria ocorrido a conveniência de construí-los. Fermina Daza não esqueceu aquele terror do esposo, e mesmo na confusão das primeiras horas se lembrou de mandar que o carpinteiro lhe deixasse o consolo de uma brecha de luz no caixão.
     De todas as maneiras foi um holocausto inútil. Fermina Daza percebeu em pouco tempo que a lembrança do marido morto era tão refratária ao fogo como parecia ser à passagem dos dias. Pior: depois da incineração das roupas não só continuava penando pelo muito que tinha amado nele, como ainda pelo que mais a incomodava: os barulhos que fazia quando se levantava. Essas lembranças a ajudaram a sair dos charcos do luto. Acima de tudo, adotou a resolução firme de prosseguir na vida lembrando o marido como se não tivesse morrido. Sabia que o despertar de cada manhã continuaria sendo difícil, mas cada vez menos.
     No término da terceira semana, com efeito, começou a vislumbrar as primeiras luzes. Mas à medida que aumentavam e se tornavam mais claras, tomava consciência de que havia em sua vida um fantasma atravessado que não lhe dava um instante de sossego. Não era o fantasma digno de compaixão que a espreitava na pracinha dos Evangelhos, e que ela evocava a partir da velhice com certa ternura, e sim o fantasma abominável da sobrecasaca de verdugo e do chapéu apoiado no peito, cuja impertinência estúpida a perturbara de tal modo que já lhe era impossível não pensar nele. Sempre, desde que o repudiara aos dezoito anos, guardou a convicção de ter deixado nele uma semente de ódio que o tempo só faria dilatar. Contara com esse ódio em todos os momentos, sentia-o no ar quando o fantasma estava perto, sua mera visão a perturbava, a assustava de tal modo que nunca encontrou uma maneira natural de se comportar com ele. Na noite em que ele reiterou seu amor, com as flores do marido morto perfumando ainda a casa, ela não pôde aceitar que aquele desplante não fosse o primeiro passo de quem sabe lá que sinistro propósito de vingança.
     A persistência da lembrança aumentava sua raiva. Quando acordou pensando nele, no dia seguinte ao do enterro, conseguiu varrê-lo da memória com um simples gesto da vontade. Mas a raiva voltava sempre, e em breve percebeu que o desejo de esquecê-lo era o mais forte estímulo para se lembrar dele. Então se atreveu a evocar pela primeira vez, vencida pela saudade, os tempos ilusórios daquele amor irreal. Tratava de precisar como era a pracinha de então, as amendoeiras ao vento, o banco de onde ele a amava, porque nada disso existia mais como naquele tempo. Tinha mudado tudo, haviam carregado as árvores com seu tapete de folhas amarelas, e em lugar da estátua do herói decapitado tinham posto a de outro com uniforme de gala, sem nome, sem datas, sem motivos que o justificassem, sobre um pedestal aparatoso dentro do qual estavam instalados os controles elétricos do bairro. Sua casa, por fim vendida há muitos anos, caía aos pedaços nas mãos do governo provincial. Não lhe era fácil recuperar a imagem de Florentino Ariza, e muito menos conceber que aquele rapaz taciturno, tão desvalido debaixo da chuva, fosse aquela mesma ruína carunchosa que se plantara diante dela sem nenhuma consideração pelo seu estado, sem o menor respeito pela sua dor, e que lhe abrasara a alma como uma injúria de chamas vivas que até agora lhe atalhava a respiração.
     A prima Hildebranda Sánchez tinha vindo visitá-la pouco depois de sua estada na fazenda de Flores de Maria recuperando-se da hora negra da senhorita Lynch. Tinha chegado velha, gorda, feliz, acompanhada do filho mais velho, que tinha sido coronel do exército, como o pai, mas repudiado por ele devido à sua atuação indigna na matança dos trabalhadores dos bananais em São João da Ciénaga. As duas primas se haviam visto muitas vezes, e sempre deixavam correr as horas nas saudades da época em que se haviam conhecido. Na última visita, Hildebranda estava mais nostálgica do que nunca, e muito atingida pela carga da velhice. Para fruírem melhor as saudades, trouxe sua cópia do retrato de dama antiga que tirara o fotógrafo belga na tarde em que o jovem Juvenal Urbino deu a estocada de misericórdia na voluntariosa Fermina Daza. A cópia desta se perdera, e a de Hildebranda era quase invisível, mas ambas se reconheceram através das brumas do desencanto: moças e belas como jamais voltariam a ser.
     Para Hildebranda era impossível não falar de Florentino Ariza, porque sempre identificou a sorte dele com a sua. Evocava-o como no dia em que passou o primeiro telegrama, e jamais conseguira tirar do coração a lembrança do passarinho triste condenado ao esquecimento. De sua parte, Fermina o vira muitas vezes, sem conversar com ele, é claro, e não podia conceber que fosse a mesma pessoa do seu primeiro amor. Sempre lhe haviam chegado notícias dele, como mais cedo ou mais tarde chegavam as de tudo que significasse alguma coisa na cidade. Dizia-se que ele não tinha casado por ser de costumes diferentes, mas tampouco a isso prestou atenção, em parte por nunca fazer caso de rumores, e em parte porque de todos os modos diziam-se coisas semelhantes de muitos homens inatacáveis. Em compensação, achava estranho que Florentino Ariza persistisse na indumentária mística, nas loções raras, e que continuasse tão enigmático depois de abrir seu caminho na vida de um modo tão espetacular, além de tão honesto. Não conseguia acreditar que fosse o mesmo, e sempre se admirava quando Hildebranda suspirava: "Pobre homem, como deve ter sofrido!" Pois ela o via sem sofrimento desde muito tempo: era uma sombra apagada.
     Mesmo assim, na noite em que o encontrou no cinema, nos tempos em que voltou de Flores de Maria, algo estranho aconteceu no seu coração. Não se admirou que estivesse com uma mulher, e preta, ainda por cima. Admirou-se de vê-lo tão bem conservado, comportando-se com mais naturalidade, e não lhe ocorreu achar que talvez fosse ela e não ele quem havia mudado depois da irrupção perturbadora da senhorita Lynch em sua vida privada. A partir de então, e durante mais de vinte anos, continuou a vê-lo com olhos mais compassivos. Na noite do velório do marido não só lhe pareceu compreensível que estivesse ali, como até interpretou o fato como término natural do rancor: um ato de perdão e esquecimento. Por isso foi tão imprevista a reiteração dramática de um amor que para ela não existira nunca, e numa idade em que não restava a ela e a Florentino Ariza nada mais que esperar da vida.
     A raiva mortal do primeiro impacto continuava intacta depois da cremação simbólica do marido, e mais crescia e se ramificava quanto menos capaz se sentia de dominá-la. Pior: os espaços da memória onde lograva apaziguar as lembranças do morto iam sendo ocupados pouco a pouco de um modo inexorável pela campina de papoulas onde estavam enterradas as lembranças de Florentino Ariza. Assim, pensava nele sem querer, e quanto mais pensava nele mais raiva lhe dava, e quanto mais raiva lhe dava mais pensava nele, até que a coisa ficou tão insuportável que lhe afogou a razão. Então sentou no gabinete do marido morto, e escreveu a Florentino Ariza uma carta de três páginas irracionais, tão carregadas de injúrias e de provocações infames que lhe deixaram o alívio de ter cometido em sã consciência o ato mais indigno de sua longa vida.
     Também para Florentino Ariza aquelas três semanas tinham sido de agonia. Na noite em que reiterou seu amor a Fermina Daza tinha vagado sem rumo pelas ruas descompostas pelo dilúvio da tarde, a si mesmo perguntando aterrado o que ia fazer com a pele do tigre que acabava de matar depois de haver resistido ao seu assédio durante mais de meio século. A cidade estava em estado de emergência devido à violência das águas. Em algumas casas havia homens e mulheres meio nus procurando salvar do dilúvio o que Deus quisesse, e Florentino Ariza teve a impressão de que aquele desastre de todos tinha algo a ver com o seu. Mas o ar era manso e as estrelas do Caribe estavam quietas em seu lugar. De repente, em meio a um silêncio das outras vozes, Florentino Ariza reconheceu a do homem que Leona Cassiani e ele tinham ouvido cantar muitos anos antes, à mesma hora e na mesma esquina: Da ponte me retirei banhado em lágrimas. Uma canção que de algum modo, aquela noite e só para ele, tinha algo a ver com a morte.
     Nunca como então lhe fez tanta falta Trânsito Ariza, sua palavra sábia, sua cabeça de rainha de brincadeira enfeitada com flores de papel. Não podia evitar: sempre que se encontrava à beira do cataclismo, fazia-lhe falta o amparo de uma mulher. De maneira que passou pela Escola Normal buscando o rumo das atingíveis, e viu que havia luz na grande fileira de janelas do dormitório de América Vicuña. Teve que fazer um grande esforço para não incorrer na loucura de avô de carregá-la às duas da madrugada, morna de sono entre as fraldas, cheirando ainda a emanações de berço.
     No outro extremo da cidade estava Leona Cassiani, só e livre, e disposta sem dúvida a lhe proporcionar às duas da madrugada, às três, a qualquer hora e em qualquer circunstância a compaixão que lhe fazia falta. Não teria sido a primeira vez que batia à sua porta no ermo de suas insônias, mas compreendeu que ela era demasiado inteligente, e se amavam demais, para que ele fosse chorar no seu regaço sem revelar o motivo. Ao cabo de muito pensar, sonâmbulo pela cidade deserta, ocorreu a ele que com nenhuma estaria melhor do que com Prudência Pitre: a Viúva de Dois. Era dez anos mais moça que ele. No século anterior se haviam conhecido, e se haviam deixado de se encontrar era porque ela se empenhara em não se deixar ver como estava, meio cega, e deveras à beira da decrepitude. Logo que se lembrou dela, Florentino Ariza voltou à Rua das Janelas, meteu numa sacola de mercado duas garrafas de vinho do porto e um vidro de conservas, e foi procurá-la sem saber sequer se estava em sua casa de sempre, se estava só, ou se estava viva.
     Prudência Pitre não tinha esquecido a senha das unhas arranhando a porta, com a qual ele se identificava quando ainda se acreditavam jovens embora já não fossem, e abriu sem perguntas. A rua estava às escuras, e ele era apenas visível com a roupa de lã preta, o chapéu duro e o guarda-chuva de morcego pendurado no braço, e ela não tinha olhos para vê-lo a menos que fosse à plena luz, mas o reconheceu pelo clarão do lampião na armação metálica dos óculos. Parecia um assassino de mãos ainda ensanguentadas.

— Asilo para um pobre órfão — disse.

continua na página 213...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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