O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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NO DIA EM QUE Florentino Ariza viu Fermina Daza no adro da catedral, grávida
de seis meses e com pleno domínio de sua nova condição de mulher do mundo,
tomou a decisão feroz de ganhar nome e fortuna para merecê-la. Sequer perdeu
tempo em pensar no inconveniente de ser ela casada, porque ao mesmo tempo
resolveu, como se dependesse dele, que o doutor Juvenal Urbino tinha que morrer.
Não sabia quando nem como, mas estabeleceu como inelutável o acontecimento,
que estava resolvido a esperar sem pressas nem arrebatamentos, ainda que fosse
até o fim dos séculos.
Começou pelo princípio. Apresentou-se sem aviso no escritório do tio Leão XII,
presidente da Junta Diretora e Diretor Geral da Companhia Fluvial do Caribe, e
manifestou a disposição de se submeter ao seus desígnios. O tio estava sentido com
ele devido à maneira por que malbaratara o bom emprego de telegrafista na Vila de
Leyva, mas se deixou levar por sua convicção de que os seres humanos não nascem
para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim que a vida os obriga outra
vez e muitas vezes a se parirem a si mesmos. Além disso, a viúva do irmão tinha
morrido no ano anterior, com os rancores em carne viva mas sem deixar herdeiros.
Por isso deu o emprego ao sobrinho errante.
Era uma decisão típica do senhor Leão XII Loayza. Dentro de sua casca grossa de
traficante sem alma, carregava escondido um lunático genial, que tanto fazia brotar
um manancial de limonada no deserto da Guajira como inundava de pranto um
funeral solene com seu canto lancinante de In questa tomba oscura. Com seu
cabelo crespo e seus beiços de fauno, só lhe faltavam a lira e a coroa de louros para
ser idêntico ao Nero incendiário da mitologia cristã. As horas que lhe ficavam livres
entre a administração de seus navios decrépitos, ainda flutuantes por pura distração
da fatalidade, e os problemas cada dia mais críticos da navegação fluvial, ele as
consagrava a enriquecer seu repertório lírico. Nada lhe agradava mais do que cantar
em enterros. Tinha uma voz de galeote, sem nenhuma disciplina acadêmica, mas
capaz de registros impressionantes. Alguém lhe contara que Enrico Caruso podia
fazer um jarro de flores em pedaços com o simples poder de sua voz, e durante anos
tratou de imitá-lo até com o vidro das janelas. Os amigos traziam os jarros mais
tênues que encontravam em viagens pelo mundo, e organizavam festas especiais
para que ele conseguisse por fim a culminação do seu sonho. Não conseguiu nunca.
Contudo, no fundo do seu trovão havia uma luzinha de ternura que fendia o coração
dos ouvintes como o grande Caruso as ânforas de cristal, e era isto que o tornava
tão venerável nos enterros. Com exceção de um, no qual teve a boa ideia de cantar
When I Wake up in Glory, um canto fúnebre da Luisiana, formoso e aterrador, e foi
silenciado pelo capelão que não conseguiu entender aquela intromissão luterana
dentro da sua igreja.
Assim, entre bises de ópera e serenatas napolitanas, seu talento criador e seu
invencível espírito de empreendimento o converteram no prócer da navegação
fluvial em sua época de maior esplendor. Tinha saído do nada, como os dois irmãos
mortos, e todos chegaram até onde quiseram apesar do estigma de serem filhos
naturais, e com o agravante de jamais terem sido reconhecidos. Eram a flor do que
então se chamava a aristocracia de balcão, cujo santuário era o Clube do Comércio.
No entanto, mesmo quando dispôs de recursos para viver como o imperador
romano que parecia ser, tio Leão XII morava na cidade velha por comodidade de
trabalho, com a esposa e três filhos, e de maneira tão austera e numa casa tão
despojada que nunca conseguiu se livrar de uma injusta reputação de avarento. Mas
seu único luxo era ainda mais simples: uma casa de mar, a duas léguas dos
escritórios, que não tinha como móveis nada além de seis tamboretes artesanais, a
talha de filtrar água e uma rede na varanda para dormir e pensar aos domingos.
Ninguém o definiu melhor do que ele próprio quando alguém o acusou de ser rico:
— Rico não — disse: — sou um pobre com dinheiro, o que não é o mesmo.
Esse curioso modo de ser, que alguém certa vez elogiou num discurso como uma
demência lúcida, permitiu que visse na hora o que ninguém via antes nem viu
depois em Florentino Ariza. A partir do momento em que este se apresentou
pedindo emprego nos seus escritórios, com seu aspecto lúgubre e seus vinte e sete
anos inúteis, ele o pôs à prova na dureza de um regime de quartel capaz de dobrar o
mais valente. Mas não conseguiu amedrontá-lo. O que tio Leão XII nunca suspeitou
foi que essa tempera do sobrinho não lhe vinha de necessidade de subsistir, nem de
uma pachorra de bruto herdada do pai, e sim de uma ambição de amor que
nenhuma contrariedade deste mundo ou do outro conseguiria desalentar.
Os piores anos foram os primeiros, quando o nomearam escrevente da Direção
Geral, que parecia um ofício inventado sob medida para ele. Lotário Thugut, antigo
professor de música do tio Leão XII, foi quem aconselhou este a nomear o sobrinho
para um emprego de escrever, porque era um consumidor incansável de literatura a
granel, embora não tanto da boa quanto da pior. Tio Leão XII não fez caso da
observação quanto à má classe das leituras do sobrinho, pois também dele dizia
Lotário Thugut que tinha sido seu pior aluno de canto, e apesar disso fazia chorar
até as lápides dos cemitérios. Em todo caso, o alemão teve razão naquilo em que
menos pensara, e era que Florentino Ariza escrevia qualquer coisa com tanta paixão
que até os documentos oficiais pareciam de amor. Os manifestos de embarque lhe
saíam rimados por mais que se esforçasse em evitá-lo, e as cartas comerciais de
rotina tinham um sopro lírico que lhe cerceava a autoridade. O tio em pessoa lhe
apareceu um dia no escritório com um pacote de correspondência que não tinha
tido coragem de assinar como sua, e lhe deu a última oportunidade de salvar a alma.
— Se você não é capaz de escrever uma carta comercial, vai recolher o lixo do cais
— disse.
Florentino Ariza aceitou o desafio. Fez um esforço supremo para aprender a
simplicidade terrena da prosa mercantil, imitando modelos de arquivos notariais
com tanta aplicação como a que dedicava antes aos poetas da moda. Era essa a
época em que passava suas horas livres no Portal dos Escrivães, ajudando os
enamorados implumes a escrever suas missivas perfumadas, para descarregar o
coração de tantas palavras de amor que ficavam dentro dele por falta de uso nos
informes de alfândega. Mas ao fim de seis meses, por mais voltas que lhe desse, não
lograra torcer o pescoço do seu cisne empedernido. Por isso, quando o tio Leão XII
o repreendeu pela segunda vez, ele se deu por vencido, mas com uma certa altivez.
— A única coisa que me interessa é o amor — disse.
— O mau — disse o tio — é que sem navegação fluvial não há amor.
Cumpriu a ameaça de mandá-lo recolher o lixo no cais, mas lhe deu a palavra de
fazê-lo subir passo a passo pela escada do bom serviço até que encontrasse seu
lugar. Assim foi. Nenhuma espécie de trabalho conseguiu derrubá-lo, por duro ou
humilhante que fosse, nem o desmoralizou a miséria do soldo, nem perdeu por um
instante sua impavidez essencial diante das insolências dos superiores. Tampouco
foi inocente: todo aquele que se atravessou em seu caminho sofreu as
consequências de uma determinação arrasadora, capaz de qualquer coisa, por trás
de uma aparência desvalida. Tal como tio Leão XII previra e desejara para que ele
não ficasse sem conhecer qualquer segredo da empresa, passou por todos os cargos
em trinta anos de consagração e tenacidade a toda prova. Desempenhou-os todos
com uma capacidade admirável, estudando cada fio daquela urdidura misteriosa
que tanto tinha a ver com os ofícios da poesia, mas sem conseguir a medalha de
guerra mais anelada por ele, que era escrever uma carta comercial aceitável: uma
só. Sem propor a si mesmo, sem nem saber, demonstrou com sua vida a razão que
tinha o pai, que repetiu até o último suspiro que não havia ninguém com mais
sentido prático, nem pedreiros mais obstinados nem gerentes mais lúcidos e
perigosos do que os poetas. Isso, pelo menos, foi o que lhe contou o tio Leão XII,
que costumava falar-lhe no pai durante os ócios do coração, e que lhe deu dele a
ideia mais de um sonhador que de um empresário.
Contou-lhe que Pio Quinto Loayza dava aos escritórios um uso mais prazenteiro
que o do trabalho, e os arranjava sempre para sair de casa aos domingos, a pretexto
de que tinha de receber ou despachar um navio. Mais ainda: tinha feito instalar no
pátio das mercadorias uma caldeira fora de uso, com uma sereia a vapor que apitava
em claves de navegação, para o caso da esposa estar atenta. Fazendo as contas, tio
Leão XII estava certo de que Florentino Ariza fora concebido em cima da
escrivaninha de algum escritório mal fechado numa tarde de bochorno dominical,
enquanto a esposa de seu pai ouvia em casa os adeuses de um navio que jamais
partiu. Quando o descobriu já era tarde para cobrar a infâmia, porque o marido
estava morto. Sobreviveu a ele muitos anos, destruída pelo azedume de não ter um
filho, e pedindo a Deus em suas orações maldição eterna para o bastardo.
A imagem do pai perturbava Florentino Ariza. A mãe falava nele como num
grande homem sem vocação comercial, que acabara nos negócios do rio porque o
irmão mais velho fora colaborador muito próximo do Comodoro alemão João B.
Elbers, precursor da navegação fluvial. Eram filhos naturais da mesma mãe,
cozinheira de ofício, que os tivera de homens diferentes, e todos traziam o
sobrenome dela por trás do nome de um Papa escolhido ao acaso no santoral, salvo
o do tio Leão XII, que era o nome do que reinava quando ele nasceu. O que se
chamava Florentino era o avô materno de todos, por isso o nome chegara até o filho
de Trânsito Ariza saltando por cima de toda uma geração de pontífices.
Florentino conservou sempre um caderno no qual o pai escrevia versos de amor,
alguns inspirados por Trânsito Ariza, e as folhas estavam adornadas com desenhos
de corações feridos. Duas coisas o surpreenderam. Uma era a personalidade da
caligrafia do pai, idêntica à sua, apesar do fato de que a escolhera por ser a de que
mais gostara entre muitas de um manual. A outra foi encontrar-se com uma frase
que julgava sua, e que o pai escrevera num caderno muito antes dele nascer: Só me
dói morrer se não for de amor.
Tinha visto também os dois últimos retratos do pai. Um tirado em Santa Fé,
muito moço, na idade que ele tinha quando o viu pela primeira vez, com um
sobretudo que era como estar metido dentro dum urso, e recostado num pedestal
de cuja estátua só restavam as perneiras decepadas. A criança ao seu lado era tio
Leão XII com um gorrinho de capitão de navio. Na outra fotografia aparecia o pai
com um grupo de guerreiros, em quem sabe qual de tantas guerras, e tinha o fuzil
maior e uns bigodes cujo cheiro de pólvora se exalava da imagem. Era liberal e
maçom, assim como os irmãos, e no entanto queria que o filho entrasse para o
seminário. Florentino Ariza não achava que fossem parecidos, mas segundo o tio
Leão XII, também a Pio Quinto criticavam o lirismo dos documentos. Em todo caso,
nem nos retratos se parecia com ele, não correspondia às suas lembranças nem à
imagem que pintava a mãe, transfigurada pelo amor, nem à que dele despintava tio
Leão XII com sua graciosa crueldade. Contudo, Florentino Ariza descobriu a
parecença muitos anos depois, enquanto se penteava na frente do espelho, e só
então compreendeu que. Um homem sabe quando começa a envelhecer porque
começa a parecer com o pai.
Não se lembrava dele na Rua das Janelas. Julgava saber que por um tempo
dormira ali, muito no princípio dos seus amores com Trânsito Ariza, mas que não
tinha tornado a visitá-la depois do seu nascimento. A certidão de batismo foi
durante muitos anos nosso único instrumento válido de identificação, e a de
Florentino Ariza, assentada na paróquia de Santo Toríbio, só dizia que era filho
natural de outra filha natural solteira que se chamava Trânsito Ariza. Esta condição
social fechou a Florentino Ariza as portas do seminário, mas fez também com que
escapasse ao serviço militar na época mais sangrenta de nossas guerras, por ser
filho único de mãe solteira.
Todas as sextas-feiras depois da escola se sentava na frente dos escritórios da
Companhia Fluvial do Caribe, repassando um livro de estampas de animais tantas
vezes repassado que caía aos pedaços. O pai entrava sem olhá-lo, vestido com as
sobrecasacas de casimira que Trânsito Ariza devia ajustar depois para ele, e com
uma cara idêntica à do São João Evangelista dos altares. Quando saía, depois de
muitas horas e procurando não ser visto nem pelo próprio cocheiro, lhe dava o
dinheiro para os gastos de uma semana. Não se falavam, não só porque o pai não
tentava como porque ele tinha terror do pai. Um dia, depois de esperar muito mais
que de costume, o pai lhe deu as moedas, dizendo:
— Tome e não volte mais.
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
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