O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Estava ali. A primeira reação de Fermina Daza foi de pânico. Chegou a pensar
que não, que ele voltasse outro dia em hora mais apropriada, que não estava em
condições de receber visitas, que não havia nada de que falar. Mas se repôs em
seguida, e deu ordens para que o fizessem passar à sala e lhe levassem café
enquanto ela se arrumava para atendê-lo. Florentino Ariza tinha esperado na porta
da rua, ardendo sob o sol infernal das três, mas com as rédeas na mão. Estava
preparado para não ser recebido, ainda que mediante desculpas amáveis, e essa
certeza o mantinha tranquilo. Mas a decisão do recado o abalou à medula dos ossos,
e ao entrar na sombra fresca da sala não teve tempo de pensar no milagre que
estava vivendo, porque suas entranhas se encheram de pronto com uma explosão
de espuma dolorosa. Sentou-se sem respirar, assediado pela lembrança maldita da
cagada de pássaro em sua primeira carta de amor, e permaneceu imóvel na
penumbra enquanto passava a primeira rajada de calafrios, resolvido a aceitar nesse
momento qualquer desgraça, menos aquele percalço injusto.
Ele se conhecia bem: apesar de sua prisão de ventre congênita, os intestinos o
haviam traído em público três ou quatro vezes em seus muitos anos, e nas três ou
quatro vezes tinha tido que se render. Só nessas ocasiões, e em outras de igual
urgência, percebia a verdade de uma frase que gostava de repetir de brincadeira:
"Não creio em Deus, mas tenho medo dele." Não teve tempo para dúvidas: tratou de
rezar qualquer oração de que se lembrasse, mas não encontrou nenhuma. Quando
menino, outro menino lhe ensinara umas palavras mágicas para que acertasse num
passarinho com uma pedra: "Tino tino se não te acerto te escarabino."
Experimentou quando foi ao monte pela primeira vez, com bodoque novo, e o
pássaro caiu fulminado. De maneira confusa, achou que uma coisa tinha algo a ver
com a outra, e repetiu a fórmula com fervor de oração, mas não surtiu o mesmo
efeito. Uma torcedura das tripas feito um eixo de espiral o ergueu do assento, a
espuma do seu ventre cada vez mais espessa e dolorida emitiu um queixume, e o
deixou coberto de um suor gelado. A criada que trazia o café se assustou com seu
semblante de morto. Ele suspirou: "É o calor." Ela abriu a janela, para ser amável,
mas o sol da tarde deu em cheio no rosto dele, e foi preciso fechá-la de novo. Ele
tinha compreendido que não aguentaria um momento mais, quando apareceu
Fermina Daza quase invisível na penumbra, e se assustou ao vê-lo em semelhante
estado.
— Pode tirar o paletó — disse.
Mais que a torcedura mortal, ele sofreria se ela conseguisse ouvir suas tripas
borbulhando. Mas conseguiu sobreviver ainda um instante para dizer que não, que
só tinha passado para lhe perguntar quando poderia fazer uma visita. Ela, de pé,
desconcertada, disse: "Mas já está aqui." E o convidou a passar ao pátio onde faria
menos calor. Ele recusou com uma voz que a ela mais pareceu um suspiro de dor.
— Eu lhe imploro que seja amanhã.
Ela lembrou que amanhã era quinta-feira, dia da visita infalível de Lucrécia dei
Real dei Obispo, mas encontrou uma solução definitiva: "Depois de amanhã às
cinco." Florentino Ariza agradeceu, fez uma despedida de emergência com o chapéu,
e foi embora sem provar o café. Ela continuou perplexa no centro da sala, sem
entender o que acabava de acontecer, até que se extinguiu no fundo da rua a
petardaria do automóvel. Florentino Ariza buscou então a posição menos dolorida
no assento posterior, fechou os olhos, afrouxou os músculos e se entregou à
vontade do corpo. Foi como tornar a nascer. O chofer, que depois de tantos anos a
seu serviço já não se espantava com nada, manteve-se impassível. Mas ao abrir a
porta diante do portal da casa, disse:
— Tome cuidado, Seu Floro, que isso parece cólera.
Mas era o de sempre. Florentino Ariza o agradeceu a Deus na sexta-feira às cinco
em ponto, quando a criada o conduziu pela penumbra da sala até o pátio, onde
encontrou Fermina Daza junto a uma mesinha posta para duas pessoas. Ofereceu-lhe chá, chocolate ou café. Florentino Ariza pediu café, muito quente e muito forte,
e ela disse à criada: "Para mim o de sempre." O de sempre era uma infusão bem
carregada de diversas classes de chás orientais, que lhe erguiam o ânimo depois da
sesta. Quando ela terminou com o bule, e ele com a cafeteira, ambos já haviam
ensaiado e interrompido vários temas, não tanto porque deveras tivessem interesse
neles, como para evitar outros que nem ele nem ela ousavam abordar. Estavam
ambos intimidados, sem entender o que faziam tão longe da juventude na varanda
enxadrezada de uma casa de ninguém que ainda recendia a flores de cemitério. Pela
primeira vez achavam-se diante um do outro a tão curta distância e com tempo
bastante para se verem com serenidade depois de meio século, e ambos se haviam
visto tal como eram: dois anciãos espreitados pela morte, sem nada em comum
além da lembrança de um passado efêmero que já não era deles mas de dois jovens
desaparecidos que podiam ser seus netos. Ela achou que ele ia convencer-se afinal
da irrealidade de seu sonho, o que o redimiria da impertinência.
Para evitar silêncios incômodos ou temas indesejáveis, ela fez perguntas óbvias
sobre os navios fluviais. Parecia mentira que ele, sendo o dono, só tivesse viajado
uma vez, havia muitos anos, quando não tinha nada a ver com a empresa. Ela não
sabia o motivo, e ele teria dado a alma para dizer qual. Tampouco ela conhecia o rio.
Seu marido compartilhava sua aversão pelos ares andinos, e a disfarçava com
argumentos variados: os perigos da altura para o coração, o risco de uma
pneumonia, a falsidade dos da terra, as injustiças do centralismo. Por isso
conheciam meio mundo mas não conheciam seu país. No momento havia um
hidroavião Junkers que ia de povoado em povoado pela bacia do Madalena, como
um gafanhoto de alumínio, com dois tripulantes, seis passageiros e os sacos do
correio. Florentino Ariza comentou: "É feito um caixão de defunto aéreo." Ela
estivera na primeira viagem de balão, e não tinha sofrido nenhum susto, mas mal
podia crer que fosse a mesma pessoa que se atrevera a semelhante aventura. Disse:
"É diferente." Querendo dizer que ela é que tinha mudado, não as maneiras de
viajar.
Às vezes se surpreendia com o barulho dos aviões. Ela os vira passar muito
baixo, fazendo manobras acrobáticas, no centenário da morte do Libertador. Um
deles, preto como um urubu enorme, passou roçando os telhados da Mangueira,
deixou um pedaço de asa numa árvore vizinha, e ficou pendurado nos fios elétricos.
Mas nem mesmo assim Fermina Daza assimilara a existência dos aviões. Nem
tivera a curiosidade de ir nos últimos anos até a enseada de Manzanillo, onde
amerissavam os hidroaviões depois que as lanchas da guarda enxotavam as canoas
de pescadores e os botes de recreio, cada vez mais numerosos. Velha como estava,
tinha sido escolhida para receber com um ramo de rosas Charles Lindbergh quando
veio em seu voo de boa vontade, e não entendeu como podia se elevar nos ares um
homem tão grande, tão louro, tão bonito, dentro de um aparelho que parecia de
folha enrugada, e que dois mecânicos empurravam pela cauda para ajudar a subir. A
ideia de que uns aviões não muito maiores pudessem carregar oito pessoas não lhe
entrava na cabeça. Em compensação, tinha ouvido dizer que os navios fluviais eram
uma delícia porque não jogavam como os do mar, mas enfrentavam outros perigos
mais graves, como os bancos de areia e os assaltos de bandoleiros.
Florentino Ariza explicou que tudo isso eram lendas de outros tempos: os navios
atuais tinham salão de baile, camarotes amplos e luxuosos como quartos de hotel,
com banheiro privado e ventiladores elétricos, e desde a última guerra civil não
havia mais assaltos armados. Explicou ainda, com a satisfação de um triunfo
pessoal, que estes progressos se deviam antes de mais nada à liberdade de
navegação propugnada por ele, que estimulara a concorrência: em vez de uma
empresa única, como antes, havia três muito ativas e prósperas. Contudo, o rápido
progresso da aviação era um perigo real para todos. Ela procurou consolá-lo: os
navios existiriam sempre, porque não eram muitos os loucos dispostos a se
meterem num aparelho que parecia ser contra a natureza. Por último, Florentino
Ariza falou nos progressos do correio, tanto no transporte como na distribuição,
vendo se ela falava nas suas cartas. Não conseguiu.
Pouco depois, no entanto, a ocasião chegou espontânea. Estavam muito
afastados do tema, quando uma criada os interrompeu para entregar a Fermina
Daza uma carta recebida nesse instante pelo correio urbano especial, de criação
recente, que utilizava o mesmo sistema de distribuição dos telegramas. Ela não
encontrou os óculos de ler, o que sempre lhe acontecia. Florentino Ariza conservou
a serenidade.
— Não é necessário — disse: — esta carta é minha.
Era. Ele a escrevera na véspera, num terrível estado de depressão por não ter
podido superar a vergonha da primeira visita frustrada. Nela se desculpava pela
impertinência de querer visitá-la sem permissão prévia, e desistia dos Propósitos de
voltar. Ele a pusera na caixa sem pensar duas vezes, e quando refletiu melhor já era
tarde. Mesmo assim, não lhe pareceram necessárias tantas explicações, embora
pedisse a Fermina Daza o favor de não ler a carta.
— Claro — disse ela. — No fim das contas, as cartas são de quem as escreve. Não
é certo?
Ele deu um passo firme.
— Sem dúvida — disse. — Por isso são a primeira coisa que se devolve quando há
um rompimento.
Ela passou ao largo da intenção e devolveu a carta, dizendo: "É pena que não
possa lê-la porque as outras me serviram muito." Ele respirou fundo, surpreendido
de ouvir dela muito mais que esperara, e disse: "Não imagina como fico feliz em
saber." Mas ela mudou o assunto, e ele não conseguiu que o retomasse pelo resto
da tarde.
Despediu-se passadas as seis, quando começaram a acender as luzes da casa.
Sentia-se mais seguro, mas sem demasiadas ilusões, porque não esquecia o caráter
volúvel e as reações imprevistas de Fermina Daza aos vinte anos, e não tinha razões
para pensar que ela tivesse mudado. Por isso se atreveu a perguntar com uma
humildade sincera se podia voltar outro dia, e a resposta tornou a surpreendê-lo.
— O senhor volte quando quiser — disse ela. — Quase sempre estou só.
Quatro dias depois, terça-feira, voltou sem se anunciar, e ela não esperou que
servissem o chá para lhe falar de quanto tinham sido úteis suas cartas. Ele disse que
não eram cartas num sentido estrito e sim folhas soltas de um livro que teria
gostado de escrever. Ela também tinha entendido assim. Tanto assim que pensava
em devolvê-las, desde que ele não visse isso como um desdouro, para que lhes
desse melhor destino. Continuou falando do bem que lhe haviam feito no duro
transe que estava vivendo, e o fazia com tanto entusiasmo, com tanta gratidão,
talvez com tanto afeto, que Florentino Ariza ousou dar algo mais que um passo
firme: um salto mortal.
— Antes nós nos tratávamos por você — disse.
Era uma palavra proibida: antes. Ela sentiu passar o anjo quimérico do passado,
e procurou evitá-lo. Mas ele foi mais fundo: "Em nossas cartas de antes, quero
dizer." Ela se aborreceu, e teve que fazer um esforço sério para não demonstrá-lo.
Mas ele percebeu, e compreendeu que devia avançar com mais tato, embora o
tropeço lhe ensinasse que ela continuava tão arisca como na juventude, mas tinha
aprendido a ser arisca com doçura.
— Quero dizer — disse ele — que estas cartas são coisa muito diferente.
— Tudo mudou no mundo — disse ela.
— Eu não — disse ele. — E a senhora?
Ela ficou com a segunda chávena de chá no meio do caminho e o increpou com
uns olhos que eram sobreviventes dos tempos da inclemência.
— Tanto faz — disse. — Acabo de completar setenta e dois anos.
continua na página 231...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza recebeu o golpe no centro do coração
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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