domingo, 6 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Mal acabava de fazê-lo

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Mal acabava de fazê-lo e ela já o assaltava sem dar tempo de nada, no próprio sofá onde acabava de desnudá-lo, e só de vez em quando na cama. Metia-se debaixo dele, e se apoderava dele todo para ela, encerrada dentro de si mesma, tateando com os olhos fechados em sua absoluta escuridão interior, avançando por aqui, retrocedendo, corrigindo seu rumo invisível, tentando outra via mais intensa, outra forma de andar sem naufragar no alagado de mucilagem que fluía do seu ventre, se perguntando e se respondendo a si mesma com um zumbido de varejeira em seu jargão nativo onde ficava essa alguma coisa nas trevas que só ela conhecia e ansiava só para ela, até que sucumbia sem esperar ninguém, se desbarrancava só em seu abismo com uma explosão jubilosa de vitória total que fazia tremer o mundo. Florentino Ariza ficava exausto, incompleto, flutuando no charco dos suores de ambos, mas com a impressão de não passar de um instrumento de gozo. Dizia: "Você me trata como se eu fosse um a mais." Ela dava uma risada de fêmea livre, e dizia: "Pelo contrário: como se você fosse um a menos." E ele ficava com a impressão de que ela ficava com tudo, com uma voracidade mesquinha, e o orgulho se rebelava e saía da casa com a determinação de não voltar mais. Mas logo acordava sem motivo, com a lucidez tremenda da solidão no meio da noite, e a lembrança do amor ensimesmado de Ausência Santander lhe aparecia como aquilo que era: uma armadilha da felicidade que o entediava e atraía ao mesmo tempo, mas da qual era impossível escapar.
      Um certo domingo, dois anos depois de se haverem conhecido, a primeira coisa que ela fez quando ele chegou, em lugar de despi-lo, foi tirar os óculos dele para melhor beijá-lo, e desse modo Florentino Ariza soube que ela começara a gostar dele. Apesar de se sentir tão bem desde o primeiro dia naquela casa que já amava como sua, jamais permanecera mais de duas horas de cada vez, nunca para dormir, e só uma vez para comer, por ter recebido dela convite formal. Lá só ia na realidade para o que ia, trazendo sempre o presente único de uma rosa solitária, e desaparecia até a seguinte ocasião imprevisível. Mas no domingo em que ela lhe tirou os óculos para beijá-lo, em parte por isso, e em parte porque ficaram dormindo depois de um amor repousado, passaram a tarde nus na enorme cama do comandante. Ao despertar da sesta, Florentino Ariza conservava ainda a lembrança dos grasnidos da cacatua, cujos metais estridentes iam no sentido contrário da sua beleza. Mas o silêncio era diáfano no calor das quatro, e pela janela do quarto se via o perfil da cidade antiga com o sol da tarde nas costas, suas cúpulas douradas, seu mar de chamas até a Jamaica. Ausência Santander estendeu a mão aventureira buscando às tontas o animal jacente, mas Florentino Ariza a afastou. Disse: "Agora não: sinto uma coisa esquisita, como se estivessem nos vendo." Ela tornou a alvoroçar a cacatua com seu riso feliz. Disse: "Esse pretexto nem a mulher de Jonas engole." Tampouco ela, diga-se logo, mas o admitiu como válido, e ambos se amaram durante longo tempo em silêncio sem repetir o amor. Às cinco, com o sol ainda alto, ela se levantou da cama, nua até a eternidade e com o laço de organdi na cabeça, e foi à cozinha buscar alguma coisa de beber. Mas não chegou a dar um passo fora do quarto quando lançou um grito de espanto.
      Não conseguia acreditar. Os únicos objetos que restavam na casa eram as luzes fixas. Os demais, os móveis assinados, os tapetes indianos, as estátuas e os gobelinos, as miudezas incontáveis de pedrarias e metais preciosos, tudo quanto tinha feito de sua casa uma das mais aprazíveis e bem guarnecidas da cidade, tudo, até a cacatua sagrada, tudo se havia evaporado. Tudo carregado pelo terraço marinho sem perturbar o amor. Só ficaram os salões desertos com quatro janelas abertas, e um letreiro a broxa grossa na parede do fundo: Isto acontece a vocês por andarem trepando. O comandante Rosendo de Ia Rosa jamais compreendeu por que Ausência Santander não denunciou a pilhagem, nem tentou estabelecer qualquer contato com os traficantes de coisas roubadas, nem permitiu que se tornasse a falar de sua desgraça.
     Florentino Ariza continuou a visitá-la na casa saqueada, cujo mobiliário ficou reduzido a três tamboretes de couro que os ladrões esqueceram na cozinha, e ao quarto de dormir onde eles estavam. Mas veio com menos frequência do que antes, não pela desolação da casa, como supôs e disse ela, e sim pela novidade do bonde de burros em princípios do novo século, que foi para ele um ninho pródigo e original de passarinhas soltas. Tomava-o quatro vezes por dia, duas para ir ao escritório e duas para voltar para casa, e às vezes enquanto lia de verdade e na maioria das vezes fingindo ler, conseguia estabelecer pelo menos os primeiros contatos para um encontro posterior. Mais tarde, quando tio Leão XII pôs à sua disposição um carro puxado por duas mulinhas pardas de gualdrapas douradas, iguais às do presidente Rafael Núnez, sentiria saudades dos tempos do bonde como os mais fecundos de suas andanças de falcoeiro. Tinha razão: não havia pior inimigo dos amores secretos do que um carro esperando na porta. Tanto assim que quase sempre o deixava escondido em casa e ia a pé em suas rondas de altanaria, para não deixar sequer o sulco das rodas no pó. Por isso evocava com tanta saudade o velho bonde com seus burros macilentos, roídos de peladuras, dentro do qual bastava um olhar de soslaio para saber onde estava o amor. Contudo, entre tantas lembranças enternecedoras, não conseguia afastar a de uma passarinha desamparada cujo nome nunca soube e com a qual apenas conseguiu viver uma metade frenética de noite, mas que tinha bastado para lhe deixar pelo resto da vida um travo amargo nas desordens inocentes do carnaval.
      Tinha chamado sua atenção no bonde pela impavidez com que viajava em meio ao escândalo da pândega pública. Não devia ter mais de vinte anos, e não parecia com ânimo de carnaval, a menos que estivesse fantasiada de inválida: tinha o cabelo muito claro, comprido e liso, solto ao natural s*obre os ombros, e usava uma túnica de pano ordinário sem nenhum enfeite. Estava alheia por completo ao rodopio da música das ruas, aos punhados de pó-de-arroz, aos jorros de anilina que atiravam aos passageiros do bonde em marcha, cujos burros iam brancos de polvilho e com chapéus de flores durante aqueles três dias de loucura. Aproveitando-se da confusão, Florentino Ariza a convidou a tomar um sorvete, pois não achou que desse para mais. Ela o olhou sem surpresa. Disse: "Aceito com muito prazer, mas lhe aviso que estou louca." Ele riu do gracejo, e a levou para assistir ao desfile de carros da sacada da sorveteria. Enfiou depois um dominó alugado, e ambos se meteram na ronda de bailes da Praça da Alfândega, e se divertiram juntos como noivos acabados de nascer, pois a indiferença dela foi parar no extremo contrário no fragor da noite: dançava feito uma profissional, e era imaginativa e audaz para a pândega, e de um encanto arrasador.

 — Você nem sabe a encrenca em que se meteu comigo — gritava morta de rir na febre do carnaval. — Sou uma louca de hospício.

     Para Florentino Ariza, aquela era uma noite de regresso aos desmandos cândidos da adolescência, quando o amor ainda não o havia desgraçado. Mas sabia, mais por escarmento que por experiência, que uma felicidade tão fácil não podia durar muito tempo. Por isso é que antes que a noite começasse a decair, como sempre acontecia depois da distribuição dos prêmios às melhores fantasias, propôs à moça que fossem contemplar o amanhecer no farol. Ela aceitou agradecida, mas depois que acabassem de distribuir os prêmios.
     Florentino Ariza ficou com a certeza de que aquela demora lhe salvou a vida. Com efeito, a moça tinha feito um sinal de que fossem para o farol, quando dois cérberos e uma enfermeira do manicômio da Divina Pastora lhe caíram em cima. Estavam à procura dela desde que tinha fugido às três da tarde, não só eles como toda a força pública. Tinha decapitado um guarda e ferido com gravidade outros dois com um facão arrebatado ao jardineiro, porque queria sair para brincar no carnaval. Mas ninguém imaginou que estivesse dançando na rua, e sim escondida em alguma das tantas casas onde tinham revistado até as cisternas.
      Não foi fácil prendê-la. Defendeu-se com tesouras de podar que tinha escondidas no corpinho, e foram necessários seis homens para pôr lhe a camisa-de-força, enquanto a multidão apinhada na Praça da Alfândega aplaudia e assobiava de júbilo, pensando que a captura sangrenta era uma das farsas do carnaval. Florentino Ariza ficou desarvorado, e na Quarta-Feira de Cinzas, foi pela primeira vez à rua da Divina Pastora com uma caixa de bombons ingleses para ela. Ficava olhando as reclusas que lhe gritavam toda sorte de impropérios e piadas pelas janelas, enquanto ele as alvoroçava com a caixa de bombons para ver se tinha a sorte de fazer com que ela assomasse também às barras de ferro. Mas nunca a viu. Meses depois, ao saltar do bonde de burro, uma meninazinha que estava com o pai lhe pediu um dos chocolates da caixa que carregava na mão. O pai ralhou com ela e pediu desculpas a Florentino Ariza. Mas ele deu a caixa completa à menina achando que aquele gesto o redimia de todo amargor, e acalmou o papai com um tapinha no ombro.

 — Eram para um amor que foi para o caralho — segredou-lhe.

      Como compensação do destino, foi também no bonde de burro que Florentino Ariza conheceu Leona Cassiani, que foi a verdadeira mulher da sua vida, embora nem ele nem ela jamais o soubessem, ou jamais fizessem o amor. Ele a sentiu antes de vê-la quando voltava a casa no bonde das cinco: foi um olhar material que tocou nele como se fosse um dedo. Ergueu a vista e a viu, no extremo oposto, mas muito bem definida entre os outros passageiros. Ela não desviou o olhar. Pelo contrário: manteve-o com tamanho descaramento que ele não podia pensar senão o que pensou: negra, jovem e bonita, mas puta sem sombra de dúvida. Descartou-a da sua vida, porque não podia conceber nada mais indigno do que pagar pelo amor: não o fez nunca.
      Florentino Ariza saltou na Praça dos Carros, que era o ponto final dos bondes, escafedeu-se a toda pressa pelo labirinto do comércio porque a mãe o esperava às seis, e quando saiu do outro lado da multidão ouviu ressoarem os saltos de mulher alegre nas pedras, e se voltou para olhar e para se convencer do que já sabia: era ela. Estava vestida como as escravas das estampas, com uma saia rodada que levantava com um gesto de dança para passar sobre as poças da rua, um decote que deixava os ombros descobertos, um maço de colares de cor e um turbante branco. Ele as conhecia do hotel suspeito. Sucedia amiúde que às seis da tarde ainda estavam só com o café da manhã, e então o único recurso que lhes restava era usar o sexo como um punhal de salteador de estrada, e o colocavam contra a garganta do primeiro que encontrassem na rua: a piroca ou a vida. Em busca de uma prova final, Florentino Ariza mudou de direção, meteu-se pela ruela deserta do Candeeiro, e ela o seguiu cada vez mais de perto. Então ele parou, se virou, fechou a passagem dela apoiado no guarda-chuva com as duas mãos. Ela ficou firme na frente dele.

 — Você se enganou, linda — disse ele: — eu não dou.

 — Claro que sim — disse ela: — vê-se na sua cara.

     Florentino Ariza se lembrou de uma frase que ouvira menino do médico da família, seu padrinho, a propósito da sua prisão de ventre crônica: "O mundo está dividido entre os que cagam bem e os que cagam mal." Sobre esse dogma o médico elaborara toda uma teoria do caráter, que considerava mais certeira do que a astrologia. Mas com as lições dos anos, Florentino Ariza a formulou de outro modo: "O mundo está dividido entre os que trepam e os que não trepam." Desconfiava dos últimos: quando saíam dos trilhos, era para eles tão insólito que alardeavam o amor como se tivessem acabado de inventá-lo. Os que o faziam amiúde, em compensação, viviam só para isso. Sentiam-se tão bem que se comportavam como sepulcros lacrados, por saberem que da discrição dependia sua vida. Nunca falavam de suas proezas, não confiavam em ninguém, bancavam os distraídos até o ponto de ganharem fama de impotentes, de frígidos, e sobretudo de maricás tímidos, como era o caso de Florentino Ariza. Mas se compraziam no equívoco, porque o equívoco também os protegia. Eram uma loja maçônica hermética, cujos sócios se reconheciam entre si no mundo inteiro, sem necessidade de um idioma comum. Daí o fato de Florentino Ariza não se surpreender com a resposta da moça: era uma dos seus, e portanto sabia que ele sabia que ela sabia.
     Foi o erro da sua vida, tal como sua consciência ia fazer com que se lembrasse a cada hora de cada dia, até o último dia. Ela não queria lhe suplicar amor, menos ainda amor pago, e sim um emprego no que fosse, qualquer que fosse e com o salário que fosse?, na Companhia Fluvial do Caribe. Florentino Ariza ficou tão envergonhado com sua própria conduta que a levou ao chefe do pessoal, e este lhe deu um posto de ínfima categoria na seção geral, que ela desempenhou com seriedade, modéstia e consagração durante três anos.

continua na página 137...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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