O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Não se voltou a falar no assunto, mas no escritório de Florentino Ariza foi
impossível trabalhar na semana seguinte. Os eletricistas entraram segunda-feira em
tropel para instalar um ventilador de pás no teto baixo. Os serralheiros chegaram
sem aviso, e armaram um escândalo de guerra pondo um ferrolho na porta para que
se pudesse fechá-la por dentro. Os carpinteiros tomaram medidas sem dizer para
quê, os tapeceiros levaram amostras de cretones para ver se combinavam com a cor
das paredes, e na semana seguinte tiveram que meter pela janela, pois não cabia
pelas portas, um enorme sofá matrimonial com estampados de flores dionisíacas.
Trabalhavam nas horas menos plausíveis, com uma impertinência que não parecia
casual, e para quem quer que protestasse tinham a mesma resposta: "Ordem da
direção geral." Florentino Ariza nunca soube se semelhante intromissão foi uma
amabilidade do tio, velando por seus amores descarrilados, ou se era uma maneira
muito sua de fazê-lo ver sua conduta abusiva. A verdade não lhe ocorreu, e era que
tio Leão XII o estimulava porque a ele também chegara o rumor de que o sobrinho
tinha costumes diferentes dos da maioria dos homens, e isto o atormentava como
um obstáculo para fazê-lo seu sucessor.
Ao contrário do irmão, Leão XII Loayza tinha tido um casamento estável que
durou sessenta anos, e sempre se vangloriou de não ter trabalhado domingo. Tivera
quatro filhos e uma filha, e a todos quis preparar para herdeiros do seu império,
mas a vida o confrontou com uma dessas casualidades que eram de uso corrente
nos romances do seu tempo, e nas quais ninguém acreditava na vida real: os quatro
filhos tinham morrido, um atrás do outro, à medida que escalavam posições de
mando, e a filha carecia por completo de vocação fluvial, e preferiu morrer
contemplando os navios do Hudson de uma janela a cinquenta metros de altura.
Tanto foi assim que não faltou quem desse como certa a patranha de que Florentino
Ariza, com seu aspecto sinistro e seu guarda-chuva de vampiro, tinha feito alguma
coisa para que sucedessem tantas casualidades juntas.
Quando o tio se aposentou contra a vontade, por prescrição médica, Florentino
Ariza começou a sacrificar de bom grado alguns amores dominicais. Acompanhavao ao seu refúgio campestre, a bordo de um dos primeiros automóveis que se viram
na cidade, cuja manivela de arranque tinha tal força de retrocesso que destroncara o
braço do primeiro chofer. Falavam durante horas, o velho na rede que tinha seu
nome bordado em fios de seda, longe de tudo e de costas para o mar, numa antiga
fazenda de escravos de cujos terraços floridos de astromélias se viam à tarde as
cristas nevadas da serra. Sempre tinha sido difícil que Florentino Ariza e o tio
falassem de algo que não fosse a navegação fluvial, e continuou sendo naquelas
tardes lentas, nas quais a morte foi sempre um convidado invisível. Uma das
preocupações recorrentes de tio Leão XII era que a navegação fluvial não passasse
às mãos dos empresários do interior vinculados aos consórcios europeus. "Este foi
sempre um negócio de matacongos", dizia em seu jargão. "Se caí na mão dos
cachaços estes tornam a dá-lo de presente aos alemães." Sua preocupação resultava
de uma convicção política que gostava de repetir mesmo que não viesse ao caso.
— Vou fazer cem anos, e já vi mudar tudo, até a posição dos astros no universo,
mas ainda não vi mudar nada neste país — dizia. — Aqui se fazem novas
constituições, novas leis, novas guerras cada três meses, mas continuamos na
Colônia.
A seus irmãos maçons que atribuíam todos os males ao malogro do federalismo,
respondia sempre: "A guerra dos Mil Dias se perdeu vinte e três anos antes, na
guerra de 76." Florentino Ariza, cuja indiferença política tocava as raias do absoluto,
ouvia estas arengas cada vez mais frequentes como se ouvisse o rumor do mar. Em
compensação, era um contestador severo quanto a política da empresa. Contra o
critério do tio, achava que o atraso da navegação fluvial, que sempre parecia à beira
do desastre, só podia se remediar com a renúncia espontânea ao monopólio dos
navios a vapor, concedido pelo Congresso Nacional à Companhia Fluvial do Caribe
por noventa e nove anos e um dia. O tio protestava: "Quem te mete estas ideias na
cabeça é minha xará Leona com suas tramas de anarquista." Mas só era certo em
parte. Florentino Ariza fundamentava suas razões na experiência do comodoro
alemão João B. Elbers, que destroçara seu nobre engenho com o exagero de sua
ambição pessoal. O tio achava, em compensação, que o malogro de Elbers não
resultará dos seus privilégios, e sim dos compromissos pouco realistas que
contraíra ao mesmo tempo, e que tinham sido quase como chamar a si a
responsabilidade pela geografia nacional: assumiu a responsabilidade de manter a
navegabilidade do rio, as instalações portuárias, as vias terrestres de acesso, os
meios de transporte. Além do mais, dizia, a oposição virulenta do presidente Simão
Bolívar não foi obstáculo de fazer ninguém rir.
A maioria dos sócios encarava essas disputas como brigas matrimoniais, nas
quais ambos os lados têm razão. A teimosia do velho parecia a eles natural, não
porque a velhice o tornasse menos visionário do que sempre fora, o que se dizia
com demasiada facilidade, mas porque a renúncia ao monopólio devia ser para ele
como jogar no lixo os troféus de uma batalha histórica que ele e os irmãos tinham
travado sozinhos nos tempos heroicos, contra adversários poderosos do mundo
inteiro. Por isso ninguém o contrariou quando amarrou seus direitos de tal modo
que ninguém podia tocar neles antes de sua extinção legal. Mas de repente, quando
Florentino Ariza já depusera as armas nas tardes de meditação da fazenda, tio Leão
XII deu seu consentimento para a renúncia ao privilégio centenário, com a única e
respeitável condição de que não se fizesse antes da sua morte.
Foi seu ato final. Não tornou a falar de negócios, nem permitiu sequer que lhe
fizessem consultas, nem perdeu um só cacho de sua esplêndida cabeça imperial,
nem um átimo de sua lucidez, mas fez o possível para não ser visto por ninguém
que pudesse ter pena dele. Passava os dias contemplando do terraço as neves
perpétuas, balançando-se muito devagar numa cadeira de balanço vienense, junto
de uma mesinha onde as criadas mantinham sempre quente um bule de café puro e
um copo d'água de bicarbonato com duas dentaduras postiças, que agora só
colocava para receber visitas. Via muito poucos amigos, e só falava de um passado
tão remoto que era muito anterior à navegação fluvial. Contudo, adotou um tema
novo: o desejo de que Florentino Ariza se casasse. Exprimiu-o várias vezes, e
sempre da mesma forma.
— Se eu tivesse cinquenta anos menos — dizia — me casava com a xará Leona.
Não posso imaginar uma esposa melhor.
Florentino Ariza estremecia com a ideia de que seu trabalho de tantos anos se
frustrasse à última hora por esta condição imprevista. Teria preferido renunciar,
atirar tudo pela janela, morrer, a falhar a Fermina Daza. Por sorte, tio Leão XII não
insistiu. Quando fez noventa e dois anos reconheceu o sobrinho como herdeiro
único, e se retirou da empresa.
Seis meses depois, por acordo unânime dos sócios, Florentino Ariza foi nomeado
Presidente da Junta Diretora e Diretor Geral. No dia em que tomou posse do cargo,
depois da taça de champanha, o velho leão em retiro pediu desculpas por falar sem
se levantar da cadeira de balanço, e improvisou um breve discurso que mais pareceu
uma elegia. Disse que sua vida tinha começado e terminava com dois
acontecimentos providenciais. O primeiro foi que o Libertador o carregara nos
braços, na povoação de Turbaco, quando ia em sua desditosa viagem rumo à morte.
A outra tinha sido encontrar, contra todos os obstáculos que o destino lhe
interpusera, um sucessor digno da sua empresa. No final, procurando
desdramatizar o drama, concluiu:
— A única frustração que levo desta vida é a de ter cantado em tantos enterros,
menos no meu.
Para fechar o ato, cantou a ária E Lucevan le Stelle, da Tosca. Cantou a capella,
como gostava mais, e ainda com voz firme. Florentino Ariza se comoveu, o que
apenas deixou transparecer no tremor dá voz com que apresentou seus
agradecimentos. Tal como tinha feito e pensado tudo que tinha feito e pensado na
vida, chegava ao cume sem qualquer causa que não fosse a determinação
encarniçada de estar vivo e em bom estado de saúde no momento de assumir seu
destino à sombra de Fermina Daza.
Contudo, não foi só a lembrança dela que o acompanhou aquela noite na festa
que lhe ofereceu Leona Cassiani. Acompanhou-o a lembrança de todas: tanto as que
dormiam nos cemitérios, pensando nele através das rosas que semeava em cima
delas, como as que ainda apoiavam a cabeça no mesmo travesseiro em que dormia o
marido com os cornos dourados sob a lua. À falta de uma desejou estar com todas
ao mesmo tempo, como sempre que ficava assustado. Pois mesmo em suas épocas
mais difíceis e nos momentos piores, tinha mantido algum vínculo, por frágil que
fosse, com as incontáveis amantes de tantos anos: sempre seguiu o fio de suas
vidas.
Assim, aquela noite se lembrou de Rosalba, a mais antiga de todas, a que
guardou o troféu da sua virgindade, cuja lembrança continuava a lhe doer como no
primeiro dia. Bastava fechar os olhos para vê-la com a roupa de musselina e o
chapéu de grandes fitas de seda, balançando a gaiola do menino no convés do navio.
Várias vezes nos anos numerosos da sua idade aprontou tudo para ir procurá-la sem
sequer saber onde, sem saber seu sobrenome, sem saber se era a ela que procurava,
mas certo de encontrá-la em algum lugar entre florestas de orquídeas. A cada vez,
devido a um inconveniente real de última hora, ou por uma falha intempestiva da
sua vontade, a viagem era adiada quando já estavam a ponto de recolher a escada do
navio: sempre por um motivo que tinha algo a ver com Fermina Daza.
Lembrou-se da viúva de Nazaret, a única com quem profanou a casa materna da
Rua das Janelas, embora não tivesse sido ele e sim Trânsito Ariza quem a fez entrar.
Consagrou a ela mais compreensão que a outra qualquer, por ser a única que
irradiava ternura de sobra como se quisesse substituir Fermina Daza, embora fosse
tão lerda na cama. Mas sua vocação de gata errante, mais indômita que a própria
força da sua ternura, manteve ambos condenados à infidelidade. Contudo,
conseguiram ser amantes intermitentes durante quase trinta anos graças à sua
divisa de mosqueteiros: Infiéis, mas não desleais. Foi aliás a única que levou
Florentino Ariza a assumir responsabilidades: quando lhe avisaram que tinha
morrido e ia ser enterrada como indigente, enterrou-a à sua custa e assistiu só ao
enterro.
Lembrou-se de outras viúvas amadas. De Prudência Pitre, a mais antiga das
sobreviventes, conhecida de todos como a Viúva de Dois, porque era duas vezes. E
da outra Prudência, a viúva de Arellano, a amorosa, que lhe arrancava os botões da
roupa para que ele tivesse que demorar na casa enquanto ela os cosia de novo. E de
Josefa, a viúva de Zúniga, louca de amor por ele, que esteve a ponto de lhe cortar o
bilro com as tesouras de podar, para que ele não fosse de ninguém embora não
fosse dela.
Lembrou-se de Angeles Alfaro, a efêmera e a mais amada de todas, que veio por
seis meses ensinar instrumentos de arco na Escola de Música e passava com ele as
noites de lua no terraço de sua casa, como a mãe a pusera no mundo, tocando as
suítes mais belas de toda a música no violoncelo, com sua voz de homem entre suas
coxas douradas. Desde a primeira noite de lua, cada um fez em pedaços o coração do
outro num amor de principiantes ferozes. Mas Angeles Alfaro foi como veio, com
seu sexo meigo e seu violoncelo de pecadora, num transatlântico sob a bandeira do
esquecimento, e a única coisa que dela restou nos terraços enluarados foram seus
sinais de adeus com um lenço branco que parecia uma pomba no horizonte,
solitária e triste, como nos versos dos Jogos Florais. Com ela aprendeu Florentino
Ariza o que já padecera muitas vezes sem saber: pode-se estar apaixonado por várias
pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma.
Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: "O
coração tem mais quartos que uma pensão de putas." Estava banhado em lágrimas
com a dor dos adeuses. Contudo, mal desaparecera o navio na linha do horizonte e a
lembrança de Fermina Daza tinha voltado a ocupar seu espaço total.
Lembrou-se de Andréia Varón, diante de cuja casa passara a semana anterior,
mas a luz alaranjada na janela do banheiro advertiu-o de que não podia entrar:
alguém tinha chegado antes. Alguém: homem ou mulher, porque Andréia Varón
não se detinha em minúcias dessa índole nas desordens do amor. De todas as da
lista era a única que vivia do seu corpo, mas o administrava a seu bel-prazer, sem
capataz de campo. Nos seus anos bons tinha feito uma lendária carreira de cortesã
clandestina, que lhe valeu o nome de guerra de Nossa Senhora de Todos.
Enlouqueceu governadores e almirantes, viu chorar no seu ombro alguns próceres
das armas e das letras que não eram tão ilustres quanto acreditavam ser, e mesmo
alguns que eram. Foi verdade, por outro lado, que o presidente Rafael Reyes, em
apenas uma apressada meia hora entre duas visitas casuais à cidade, estabeleceu
para ela uma pensão vitalícia por serviços excepcionais prestados ao Ministério do
Tesouro, onde não fora empregada um só dia. Repartiu suas dádivas de prazer até
os limites do corpo, e embora sua conduta imprópria fosse do domínio público,
ninguém teria podido exibir contra ela uma prova terminante, porque seus
cúmplices insignes a protegeriam como à própria vida, conscientes de que não era
ela e sim eles os que mais tinham a perder com o escândalo. Florentino Ariza tinha
violado por ela seu princípio sagrado de não pagar, e ela violara o seu de não fazê-lo
grátis nem com o marido. Tinham ficado de acordo quanto ao preço simbólico de
um peso por vez, mas ela não recebia nem ele entregava, guardando o dinheiro num
porquinho mealheiro até poderem comprar com ele algum engenho ultramarino no
Portal dos Escrivães. Foi ela que atribuiu uma sensualidade diferente aos clisteres
que ele usava para suas crises de prisão de ventre, convencendo-o a compartilhá-los, a fazerem juntos as aplicações no transcurso de suas tardes loucas, tratando de
inventar ainda mais amor dentro do amor.
continua na página 203...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Não se voltou a falar no assunto
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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