O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Assim era. Trinta anos tinham passado também para Fermina Daza, sem dúvida,
mas tinham sido para ela os mais gratos e reparadores de sua vida. Os dias de
horror do Palácio de Casalduero estavam relegados à lixeira da memória. Morava
em sua nova casa da Mangueira, dona absoluta do seu destino, com um marido que
tornaria a preferir entre todos os homens do mundo se tivesse tido que escolher
outra vez, com um filho que prolongava a tradição da estirpe na Escola de Medicina,
e uma filha tão parecida com ela quando tinha sua idade que às vezes a perturbava a
impressão de se sentir repetida. Tinha voltado três vezes à Europa depois da viagem
de desespero prevista como sem retorno para não continuar a viver num susto
perpétuo.
Deus deve ter escutado por fim as orações de alguém: depois de dois anos de
estada em Paris, quando Fermina Daza e Juvenal Urbino mal começavam a buscar o
que sobrara do amor entre os escombros, um telegrama de meia-noite os acordou
com a notícia de que dona Blanca de Urbino estava com doença grave, e quase foi
alcançado pelo outro, com a notícia da morte. Voltaram de pronto. Fermina Daza
desembarcou com uma túnica de luto cuja largueza não dava para disfarçar seu
estado. Estava grávida de novo, com efeito, e a notícia deu origem a uma canção
popular mais maliciosa que maligna, cujo estribilho esteve na moda o resto do ano:
O que será que dá na bela em Paris, que sempre que vai volta para parir! Apesar da
letra ordinária, o doutor Juvenal Urbino mandava tocá-la até muitos anos depois
nas festas do Clube Social como prova de sua boa disposição.
O nobre palácio do Marquês de Casalduero, de cuja existência e brasões não se
encontrou nunca uma notícia certa, foi vendido primeiro à Tesouraria Municipal
por um preço adequado, e depois revendido por uma fortuna ao governo central,
quando um pesquisador holandês andou fazendo escavações para provar que ali
estava o verdadeiro túmulo de Cristóvão Colombo: o quinto. As irmãs do doutor
Urbino foram morar no convento das Salesianas, em reclusão sem votos, e Fermina
Daza permaneceu na antiga casa do pai até que se terminou a quinta da Mangueira.
Entrou nela pisando firme, entrou para mandar, com os móveis ingleses trazidos
desde a viagem de núpcias e os complementares que fez vir depois da viagem de
reconciliação, e a partir do primeiro dia começou a enchê-la de toda classe de bichos
exóticos que ela própria ia comprar nas goletas das Antilhas. Entrou com o marido
recuperado, o filho bem criado, a filha que nasceu quatro meses depois da volta e à
qual batizaram com o nome de Ofélia. O doutor Urbino, de sua parte, entendeu que
era impossível recuperar a esposa de um modo tão completo como a tivera na
viagem de núpcias, porque a parte de amor que ele queria ela a dera aos filhos com
o melhor do seu tempo, mas aprendeu a viver e a ser feliz com os resíduos. A
harmonia pela qual tanto aspiravam culminou por onde menos esperavam num
jantar de cerimônia em que serviram um prato delicioso que Fermina Daza não
conseguiu identificar. Começou com uma boa porção, mas gostou tanto que repetiu
com outra igual, e estava com pena de não se servir outra igual por princípio de
boas maneiras quando descobriu que acabava de comer com um prazer
insuspeitado dois pratos transbordantes de purê de berinjela. Perdeu com galhardia:
a partir de então, na quinta da Mangueira foram servidas berinjelas em todas as
suas formas quase com tanta frequência quanto no Palácio de Casalduero, e eram
tão apetecidas por todos que o doutor Juvenal Urbino alegrava os tempos livres da
velhice dizendo que queria ter outra filha para lhe pôr o nome bem-amado na casa:
Berinjela Urbino.
Fermina Daza sabia então que a vida privada, ao contrário da vida pública, era
mutável e imprevisível. Não lhe era fácil estabelecer diferenças reais entre crianças
e adultos, mas em última análise preferia as crianças, por terem critérios mais
certos. Mal dobrara o cabo da maturidade, desprovida por fim de qualquer ilusão,
começou a vislumbrar a decepção de não ter sido nunca o que sonhava ser quando
jovem, na praça dos Evangelhos, e sim algo que nunca ousara dizer sequer a si
mesma: uma criada de luxo. Em sociedade passou a ser a mais amada, a mais
mimada, e por isso mesmo a mais temida, mas em nada exigia de si mesma rigor
maior ou se perdoava menos do que no governo da casa. Sempre se sentiu vivendo
uma vida emprestada pelo marido: soberana absoluta de um vasto império de
felicidade edificado por ele e só para ele. Sabia que ele a amava para lá de tudo, mais
do que ninguém no mundo, mas só para ele: a seu santo serviço.
Se alguma coisa a mortificava era a cadeia perpétua das refeições diárias. Pois
não tinham só que estar na hora: tinham que ser perfeitas, e tinham que ser justo o
que ele queria comer sem que antes lhe fosse perguntado. Se ela o fazia alguma vez,
como uma das tantas cerimônias inúteis do ritual doméstico, ele sequer levantava a
vista do jornal para responder: "Qualquer coisa." Dizia a sério, com seu jeito
amável, porque não se podia conceber um marido menos despótico. Mas à hora de
comer não podia ser. qualquer coisa, e sim justo o que ele queria, e sem a mínima
falha: que a carne não soubesse a carne, que o peixe não soubesse a peixe, que o
porco não soubesse a sarna, que o frango não soubesse a penas. Mesmo quando não
era tempo de aspargos era preciso encontrá-los a qualquer preço para que ele
pudesse se extasiar no vapor de sua própria urina fragrante. Não punha a culpa
nele: punha a culpa na vida. Mas ele era um protagonista implacável da vida.
Bastava o tropeço de uma dúvida para que ele empurrasse o prato na mesa, dizendo:
"Esta comida foi feita sem amor." Nesse sentido chegava a rasgos fantásticos de
inspiração. Certa vez, mal provou uma tisana de camomila devolveu-a com uma
única frase: "Esta droga está com gosto de janela." Tanto ela quanto as criadas se
espantaram, pois ninguém sabia de alguém que tivesse bebido uma janela fervida,
mas quando provaram a tisana procurando entender, entenderam: tinha gosto de
janela.
Era um marido perfeito: nunca apanhava nada no chão, nem apagava a luz, nem
fechava a porta. Na escuridão da manhã, quando faltava um botão na roupa, ela o
ouvia dizer: "A gente devia ter duas mulheres, uma para querer bem, outra para
pregar botão." Todos os dias, ao primeiro gole do café, e à primeira colherada de
sopa fumegante, dava um uivo desesperado que já não assustava ninguém, e em
seguida o suspiro: "No dia em que me mande desta casa, podem saber que foi
porque me cansei de viver com a boca queimada." Dizia que nunca o almoço era
mais apetitoso e fino do que nos dias em que ele não podia comê-lo por ter tomado
purgante, e estava tão convencido de que era uma perfídia da mulher que acabou
por não se purgar se ela não se purgasse com ele.
Aborrecida com sua incompreensão, ela lhe pediu um insólito presente de
aniversário: que ele fizesse por um dia os trabalhos domésticos. Ele aceitou
divertido, e com efeito tomou posse da casa desde o amanhecer. Serviu um café
esplêndido, mas esqueceu que ela não se dava bem com ovos fritos e não tomava
café com leite. Deu logo instruções para o almoço de aniversário com oito
convidados e tomou disposições para a arrumação da casa, e tanto se esforçou por
fazer um governo melhor que o dela que antes do meio-dia teve que capitular sem
um gesto de vergonha. Desde o primeiro momento percebeu que não tinha a menor
idéia de onde estava nada, sobretudo na cozinha, e as criadas deixaram que
revirasse tudo para encontrar cada coisa, pois também jogaram o jogo. Às dez não se
haviam tomado decisões para o almoço porque ainda não estava terminada a
limpeza da casa nem a arrumação dos quartos, o banheiro estava por limpar, e ele
esquecera de mandar botar o papel higiênico, trocar os lençóis e mandar o cocheiro
buscar os filhos, e confundiu as tarefas das criadas: ordenou à cozinheira que
fizesse as camas e pôs as arrumadeiras na cozinha. Às onze, quando já estavam a
ponto de chegar os convidados, era tal o caos na casa que Fermina Daza reassumiu
o comando, morta de rir, mas não com a atitude triunfal que teria querido adotar, e
sim trêmula de compaixão diante da inutilidade doméstica do marido. Ele tirou sua
forra com o argumento de sempre: "Pelo menos não me saí tão mal quanto você
sairia procurando curar doentes." Mas a lição foi útil, e não só para ele. No curso
dos anos ambos chegaram por caminhos diferentes à conclusão sábia de que não
era possível morar juntos de outro modo, nem se amarem de outro modo: nada
neste mundo era mais difícil do Que o amor.
Na plenitude de sua nova vida, Fermina Daza via Florentino Ariza em diversas
ocasiões públicas, e com tanto mais frequência quanto mais ele ascendia em seu
trabalho, mas aprendeu a vê-lo com tanta naturalidade que mais de uma vez se
esqueceu de cumprimentá-lo por distração. Ouvia falar dele amiúde, porque no
mundo dos negócios era um tema constante sua escalada cautelosa mas irresistível
na C.F.C. Ela o via melhorar de maneiras, sua timidez se decantava num certo
distanciamento enigmático, assentava-lhe bem um ligeiro aumento de peso,
convinha-lhe a lentidão da idade, e soubera resolver com dignidade a calvície
arrasadora. Só continuou desafiando para sempre o tempo e a moda com a
indumentária sombria, as sobrecasacas anacrônicas, o chapéu extraordinário, as
gravatas de poeta, de fitas do armarinho da mãe, o guarda-chuva sinistro. Fermina
Daza foi se acostumando a vê-lo de outro modo, e acabou por não relacioná-lo com
o adolescente lânguido que se sentava a suspirar por ela exposto às ventanias de
flores amarelas da praça dos Evangelhos. De qualquer maneira, nunca o viu com
indiferença, e sempre se alegrou com as boas notícias que lhe davam a respeito
dele, porque pouco a pouco iam aliviando sua culpa.
Contudo, quando já o imaginava apagado por completo da memória, reapareceu
por onde menos o esperava, convertido em fantasma de suas saudades. Foram as
primeiras auras da velhice, quando começou a sentir que algo irreparável
acontecera em sua vida sempre que ouvia trovejar antes da chuva. Era a ferida
incurável do trovão solitário, pedregoso e pontual, que retumbava todos os dias de
outubro às três da tarde na serra de Villanueva, e cuja lembrança ia ficando mais
recente com o passar dos anos. Enquanto as lembranças novas se confundiam na
memória em poucos dias, as da viagem lendária pela província da prima
Hildebranda se tornavam tão vividas que pareciam de ontem, com a nitidez
perversa da saudade. Lembrava-se de Manaure, a da serra, sua rua única, reta e
verde, seus pássaros de bom agouro, a casa dos espantos onde acordava com a
camisola empapada com as lágrimas de Petra Morales, morta de amor muitos anos
antes na mesma cama em que ela dormia. Lembrava-se do gosto das goiabas de
então que nunca mais tinha tornado a ser o mesmo, dos presságios tão intensos que
seu barulho se confundia com o da chuva, das tardes de topázio de São João de
César, quando saía a passeio com a corte de primas assanhadas e mantinha os
dentes apertados para que o coração não lhe saísse pela boca à medida que se
aproximavam do telégrafo. Vendeu de qualquer maneira a casa do pai porque não
podia aguentar a dor da adolescência, a visão da pracinha desolada tal como
aparecia da sacada, a fragrância sibilina das gardênias nas noites de calor, o susto do
retrato de dama antiga na tarde de fevereiro em que se decidiu seu destino, e onde
quer que se revolvia sua memória daqueles tempos esbarrava na lembrança de
Florentino Ariza. Contudo, sempre teve bastante serenidade para perceber que não
eram lembranças de amor, nem de arrependimento, e sim a imagem de uma
insipidez que lhe deixava um rastro de lágrimas. Sem saber, estava ameaçada pelo
mesmo ardil de compaixão que levara à perdição tantas vítimas desprevenidas de
Florentino Ariza.
Aferrou-se ao marido. E justo na época em que ele mais precisava dela, porque ia
adiante dela com dez anos de desvantagem tateando só entre as névoas da velhice, e
com as desvantagens piores de ser homem e mais fraco. Acabaram por se conhecer
tanto que antes dos trinta anos de casados eram como um mesmo ser dividido, e se
sentiam pouco à vontade com a frequência com que adivinhavam sem querer o
pensamento um do outro, ou pelo acidente ridículo de um se antecipar a dizer em
público o que o outro ia dizer. Tinham contornado juntos as incompreensões
cotidianas, os ódios instantâneos, as grosserias recíprocas e os fabulosos
relâmpagos de glória da cumplicidade conjugal. Foi a época em que se amaram
melhor, sem pressa e sem excessos, e ambos foram mais conscientes e gratos pelas
vitórias inverossímeis contra a adversidade. A vida ainda havia de confrontá-los
com outras provas mortais, sem dúvida, mas já não tinha importância: estavam na
outra margem.
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Uma criada de luxo
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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