quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      O doutor Juvenal Urbino sentiu que se esgueirava junto a ele feito um bichinho assustado, procurando se manter o mais longe possível num leito onde era difícil estarem dois sem se tocar. Tomou-lhe a mão, fria e crispada de terror, entrelaçou seus dedos nos dela, e quase num sussurro começou a contar suas lembranças de outras viagens por mar. Ela estava tensa outra vez, porque ao voltar à cama percebeu que ele se desnudara por completo enquanto ela estava no banheiro, o que fez renascer seu terror do passo seguinte. Mas o passo seguinte demorou várias horas, pois o doutor Urbino continuou falando muito devagar, enquanto se apoderava milímetro a milímetro da confiança de seu corpo. Falou-lhe de Paris, do amor em Paris, dos namorados de Paris que se beijavam na rua, no ônibus, nos terraços floridos dos cafés abertos ao hálito de fogo e aos acordeões lânguidos do verão, e faziam o amor de pé nos cais do Sena sem que ninguém os incomodasse. Enquanto falava nas sombras, acariciou-lhe a curva do pescoço com a ponta dos dedos, lhe acariciou a penugem de seda dos braços, o ventre evasivo, e quando sentiu que a tensão cedera, fez uma primeira tentativa de lhe levantar a camisola, mas ela o deteve com um impulso típico do seu caráter. Disse: "Sei fazer isso sozinha." Tirou-a, de fato, e depois ficou tão imóvel que o doutor Urbino poderia pensar que já não estava ali, não fosse o calor de sol do seu corpo nas trevas.
     Ao fim de um momento tornou a lhe agarrar a mão, e então sentiu-a quente e solta, embora úmida ainda de um orvalho suave. Ficaram outro momento silenciosos e imóveis, ele aguardando a ocasião para o passo seguinte, ela a esperá-lo sem saber por onde, enquanto a escuridão se ampliava com sua respiração cada vez mais intensa. Ele a soltou de repente e deu o salto no vácuo: umedeceu na língua a ponta do dedo médio e lhe tocou apenas no bico desprevenido do seio, e ela sentiu uma descarga de morte, como se tocada num nervo vivo. Alegrou-se de estar às escuras para que ele não visse o rubor esbraseado que lhe fez tremer até as raízes do crânio. "Calma", disse ele, muito calmo. "Não esqueça que os conheço." Sentiu que ela sorria, e sua voz soou doce e nova nas trevas.

 — Lembro muito bem — disse — e ainda não passou minha raiva.

      Então ele soube que tinham passado o cabo da boa esperança, e tornou a pegar lhe na mão grande e macia, e cobriu-a de beijinhos órfãos, primeiro o metacarpo áspero, os grandes dedos clarividentes, as unhas diáfanas, e depois o hieróglifo do seu destino na palma suada. Ela não soube como foi que sua mão chegou até o peito dele, e esbarrou em algo que não soube adivinhar o que fosse. Ele disse: "É um escapulário." Ela lhe acariciou os pêlos do peito, e depois agarrou o matagal completo com os cinco dedos para arrancá-lo pela raiz. "Mais forte", disse ele. Ela tentou, até o ponto em que sabia que não ia machucá-lo, e depois foi sua mão que buscou a dele perdida nas trevas. Mas ele não deixou que os dedos de novo se entrelaçassem, agarrando-lhe o pulso e conduzindo a mão dela ao longo do próprio corpo com uma força invisível mas muito bem dirigida, até que ela sentiu o sopro ardente de um animal em carne viva, sem forma corporal, mas ansioso e arvorado. Ao contrário do que ele imaginou, mesmo ao contrário do que ela própria teria imaginado, não retirou a mão, nem a deixou inerte onde ele a pôs, mas, encomendando-se de corpo e alma à Santíssima Virgem, cerrou os dentes com medo de rir da própria loucura, e começou a identificar pelo tato o inimigo empinado, tomando conhecimento do seu tamanho, a força do seu talo, a extensão de suas asas, assustada com sua determinação mas compadecida de sua solidão, tornando-o seu com uma curiosidade minuciosa que alguém menos experiente que seu esposo teria confundido com carícias. Ele fez apelo às suas últimas forças para resistir à vertigem do escrutínio mortal, até que ela o largou com uma graça infantil, como se o tivesse jogado no lixo.

 — Nunca pude entender como é esse aparelho — disse.

     Então ele o explicou a sério com seu método magistral, enquanto lhe carregava a mão pelos lugares que mencionava, e ela a deixava entregue com uma obediência de aluna exemplar. Ele sugeriu num momento propício que tudo aquilo era mais fácil com a luz acesa. Ia acendê-la, mas ela lhe deteve o braço, dizendo: "Eu vejo melhor com as mãos." Na realidade queria acender a luz, mas queria fazê-lo ela própria e não recebendo ordens, e assim foi. Ele a viu então em posição fetal, e além do mais coberta com o lençol, sob a claridade repentina. Mas viu-a agarrar outra vez sem afetações o animal da sua curiosidade, virou-o do direito e do avesso, observou-o com um interesse que já começava a parecer mais do que científico, e disse em conclusão: "Para lá de feio, mais feio que o das mulheres." Ele concordou, e assinalou outros inconvenientes mais graves que a feiura. Disse: "É como o filho mais velho, que a gente passa a vida trabalhando para ele, sacrificando tudo por ele, e na hora da verdade acaba fazendo o que lhe dá na veneta." Ela continuou a examiná-lo, perguntando para que servia isso, e para que servia aquilo, e quando se considerou bem informada sopesou-o com ambas as mãos, como para concluir que nem pelo peso valia a pena, e o deixou cair com um muxoxo de menosprezo.

 — Além de tudo, acho que tem muita coisa de sobra — disse.

      Ele ficou perplexo. A proposta original de sua tese de graduação tinha sido essa: a conveniência de simplificar o organismo humano. Parecia-lhe antiquado, com muitas funções inúteis ou repetidas que foram imprescindíveis para outras idades do gênero humano, mas não para a nossa. Sim: podia ser mais simples e por isso mesmo menos vulnerável. Concluiu: "É coisa que só Deus pode fazer, sem dúvida, mas dê todas as maneiras seria bom deixá-lo estabelecido em termos teóricos." Ela riu divertida, de um modo tão natural que ele aproveitou a ocasião para abraçá-la e lhe deu o primeiro beijo na boca. Ela correspondeu, e ele continuou a lhe dar beijos muito suaves nas faces, no nariz, nas pálpebras, enquanto deslizava a mão por baixo do lençol, e lhe acariciou o púbis redondo e liso: um púbis de japonesa. Ela não lhe afastou a mão, mas conservou a sua em estado de alerta, caso ele avançasse um passo mais.

  — Não vamos continuar com a aula de medicina — disse.

— Não — disse ele. — Esta vai ser de amor.

     Então, tirou o lençol de cima dela e ela não só não se opôs como o atirou para longe do beliche com um golpe rápido dos pés, pois já não aguentava o calor. Mais do que parecia quando ela estava vestida, seu corpo era ondulante e elástico, com um cheiro próprio de animal montes que permitia distingui-la entre todas as mulheres do mundo. Indefesa à plena luz, uma onda de sangue fervente lhe subiu à cara, e a única coisa que lhe ocorreu como disfarce foi se grudar ao pescoço do seu homem, e beijá-lo a fundo, bem forte, até que gastaram no beijo todo o ar de respirar.
     Ele tinha consciência de que não a amava. Casara-se porque gostava da sua altivez, sua seriedade, sua força e também por um tico de vaidade, mas enquanto ela o beijava pela primeira vez teve a certeza de que não haveria nenhum obstáculo para inventar um bom amor. Não falaram a respeito nessa primeira noite em que falaram de tudo até o amanhecer, nem falariam nunca. Mas de um modo geral, nenhum dos dois se equivocou.
      Ao despontar do dia, quando adormeceram, ela continuava virgem, mas não o seria por muito tempo. A noite seguinte, com efeito, depois que ele lhe ensinou a dançar as valsas de Vieña debaixo do céu sideral do Caribe, ele teve que ir ao banheiro depois dela, e quando voltou ao camarote encontrou-a esperando por ele nua na cama. Então foi ela quem tomou a iniciativa, e se entregou sem medo, sem dor, com a alegria de uma aventura de alto mar, e sem vestígios de cerimônia sangrenta além da rosa da honra no lençol. Ambos o fizeram bem, quase como um milagre, e continuaram a fazê-lo bem de noite e de dia e cada vez melhor no resto da viagem, e quando chegaram a La Rochelle se entendiam como amantes antigos.
     Permaneceram dezesseis meses na Europa, com base em Paris, e fazendo viagens curtas pelos países vizinhos. Durante esse tempo fizeram amor todos os dias, e mais de uma vez nos domingos de inverno, quando ficavam até a hora do almoço preguiçando na cama. Ele era homem de bons ímpetos, além de bem treinado, e ela não fora feita para aceitar vantagem de ninguém, de maneira que tiveram que se conformar com o poder compartilhado na cama. Depois de três meses de amores febris ele compreendeu que um dos dois era estéril, e ambos se submeteram a exames severos no Hospital de La Salpêtrière, onde ele fora interno. Foi uma diligência árdua mas infrutífera. Contudo, quando menos o esperavam, e sem nenhuma mediação científica, aconteceu o milagre. Em fins do ano seguinte, quando voltaram a casa, Fermina estava grávida de seis meses, e se julgava a mulher mais feliz da terra. O filho tão desejado por ambos, que nasceu sem novidades sob o signo de Aquário, foi batizado em homenagem ao avô morto de cólera.
     Era impossível saber se foi a Europa ou o amor que os tornou diferentes, pois as duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Ambos estavam mudados, e a fundo, não só em si mesmos como em relação aos demais, como percebeu Florentino Ariza ao vê-los à saída da missa duas semanas depois da volta, naquele domingo da sua desgraça. Voltaram com uma concepção nova da vida, carregados de novidades do mundo, e prontos para mandar. Ele com as primícias da literatura, da música, e sobretudo as de sua ciência. Trouxe uma assinatura de Le Fígaro, para não perder o fio da realidade, e outra da Revue des Deux Mondes para não perder o fio da poesia. Tinha feito além disso um acordo com seu livreiro de Paris para receber as novidades dos escritores mais lidos, entre eles Anatole France e Pierre Loti, e daqueles de que gostava mais, como Remy de Gourmont e Paul Bourget, mas em nenhum caso Émile Zola, que lhe parecia insuportável, apesar de sua valente irrupção no julgamento de Dreyfus. O mesmo livreiro se comprometeu a mandar pelo correio as partituras mais sedutoras do catálogo de Ricordi, sobretudo de música de câmara, para manter o título bem ganho por seu pai de primeiro promotor de concertos na cidade.
     Fermina Daza, sempre contrária aos rigores da moda, trouxe seis baús com roupas de tempos diversos, pois não a convenceram as grandes marcas. Tinha estado nas Tulherias, em pleno inverno, para o lançamento da coleção de Worth, o indiscutível tirano da alta costura, e a única coisa que conseguiu foi uma bronquite que a derrubou por cinco dias na cama. Laferrière lhe pareceu menos pretensioso e voraz, mas sua decisão sábia foi arrebanhar o que mais lhe agradava nas lojas de liquidação, ainda que o esposo jurasse aterrado que eram roupas de defunto. Da mesma forma, trouxe quantidades de sapatos italianos sem marca, que preferiu aos afamados e extravagantes de Ferry, trouxe uma sombrinha de Dupuy, vermelha como os fogos do inferno, que deu muito que escrever aos nossos assustadiços cronistas sociais. Só comprou um chapéu de Madame Reboux, mas em compensação encheu um baú de cachos de cerejas artificiais, ramalhetes de quantas flores de feltro conseguiu encontrar, feixes de penas de avestruz, morriões de pavões, rabos de gaios asiáticos, faisões inteiros, colibris, e uma variedade incontável de pássaros exóticos dissecados em pleno voo, em pleno grito, em plena agonia: tudo quanto servira nos últimos vinte anos para que os mesmos chapéus parecessem outros. Trouxe uma coleção de leques de diversos países do mundo, e um diferente e apropriado para cada ocasião. Trouxe uma essência perturbadora escolhida entre muitas na perfumaria do Bazar de La Charité, antes que os ventos primaveris dispersassem suas cinzas, mas usou-a uma vez só, porque se desconheceu a si mesma com o perfume trocado. Trouxe também um estojo de cosméticos que era a última novidade no mercado da sedução, e foi a primeira mulher que apareceu com ele nas festas, quando o simples ato de retocar o rosto em público era considerado indecente.
     Traziam, ademais, três lembranças inesquecíveis: a estreia sem precedentes dos Contos de Hoffmann, em Paris, o incêndio pavoroso de quase todas as gôndolas de Veneza diante da Praça de São Marcos, que haviam presenciado com o coração dolorido da janela de seu hotel, e a visão fugaz de Oscar Wilde na primeira nevada de janeiro. Mas no meio dessas e de tantas outras lembranças, o doutor Juvenal Urbino conservava uma que sempre lamentou não compartilhar com a esposa, pois vinha de seus tempos de estudante solteiro em Paris. Era a lembrança de Victor Hugo, que desfrutava aqui de uma celebridade comovente a margem de seus livros, porque alguém disse que ele tinha dito, sem que jamais alguém o ouvisse dizer na realidade, que nossa Constituição não era para um país de homens e sim de anjos. Desde então foi-lhe rendido um culto especial, e a maioria dos numerosos compatriotas que viajavam para a França morria de vontade de vê-lo. Uma meia dúzia de estudantes, entre eles Juvenal Urbino, montaram guarda por um tempo diante da sua residência na avenida Eylau, e nos cafés onde se dizia que ele ia chegar sem falta e nunca chegou, e por último tinham solicitado por escrito uma audiência privada, em nome dos anjos da Constituição de Rionegro. Nunca receberam resposta. Um dia qualquer, Juvenal Urbino passou por acaso na frente do Jardim do Luxemburgo e o viu sair do Senado com uma mulher moça que lhe dava o braço. Achou-o muito velho, movendo-se a duras penas, com a barba e o cabelo menos radiantes que nos retratos, e dentro de um sobretudo que parecia de alguém mais corpulento. Não quis estragar a lembrança com um cumprimento impertinente: bastava essa visão quase irreal que havia de durar-lhe a vida toda. Quando voltou casado a Paris, em condição de vê-lo de um modo mais formal, Victor Hugo já morrera.
      Como consolo, Juvenal e Fermina traziam a lembrança compartilhada de uma tarde de neves em que ficaram intrigados pelo grupo que desafiava a tempestade diante de uma pequena livraria do Boulevard des Capucines, e era que Oscar Wilde estava lá dentro. Quando por fim saiu, elegante deveras, mas talvez demasiado consciente disso, o grupo o cercou para pedir autógrafos em seus livros. O doutor Urbino se detivera só para vê-lo, mas sua impulsiva esposa quis atravessar o bulevar para que ele autografasse a única coisa que lhe pareceu apropriada à falta de um livro: sua formosa luva de gazela, grande, macia, suave, e da mesma cor de sua pele de recém-casada. Estava certa de que um homem tão refinado ia apreciar aquele gesto. Mas o marido se opôs com firmeza, e quando ela procurou fazê-lo apesar de suas razões, ele sentiu que não sobreviveria à vergonha.

 — Se atravessar essa rua — lhe disse — ao voltar aqui você me encontrará morto.

     Era algo natural a ela. Antes de um ano de casada se movimentava pelo mundo com o mesmo desembaraço com que o fazia desde menina no morredouro de São João da Ciénaga, como se tivesse nascido sabendo, e tinha uma facilidade de trato com os desconhecidos que deixava o marido perplexo, e um talento misterioso para se entender em castelhano com quem fosse e em qualquer parte. "A gente precisa Saber os idiomas quando vai vender alguma coisa", dizia com risos de troça. "Mas quando vai comprar, todo o mundo dá um jeito de entender." Era difícil imaginar alguém que tivesse assimilado tão depressa e com tanta animação a vida cotidiana de Paris, que aprendeu a amar na lembrança apesar de suas chuvas eternas. No entanto, quando regressou a casa esmagada por tantas experiências juntas, cansada de viajar e meio sonolenta com a gravidez, a primeira coisa que lhe perguntaram no porto foi o que achara das maravilhas da Europa, e ela resumiu dezesseis meses de ventura com três palavras, no seu modo de falar caribe: 

 — É mais onda. 

continua na página 124...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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