O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
continuando... O doutor Juvenal Urbino sentiu que se esgueirava junto a ele feito um bichinho
assustado, procurando se manter o mais longe possível num leito onde era difícil
estarem dois sem se tocar. Tomou-lhe a mão, fria e crispada de terror, entrelaçou
seus dedos nos dela, e quase num sussurro começou a contar suas lembranças de
outras viagens por mar. Ela estava tensa outra vez, porque ao voltar à cama
percebeu que ele se desnudara por completo enquanto ela estava no banheiro, o que
fez renascer seu terror do passo seguinte. Mas o passo seguinte demorou várias
horas, pois o doutor Urbino continuou falando muito devagar, enquanto se
apoderava milímetro a milímetro da confiança de seu corpo. Falou-lhe de Paris, do
amor em Paris, dos namorados de Paris que se beijavam na rua, no ônibus, nos
terraços floridos dos cafés abertos ao hálito de fogo e aos acordeões lânguidos do
verão, e faziam o amor de pé nos cais do Sena sem que ninguém os incomodasse.
Enquanto falava nas sombras, acariciou-lhe a curva do pescoço com a ponta dos
dedos, lhe acariciou a penugem de seda dos braços, o ventre evasivo, e quando
sentiu que a tensão cedera, fez uma primeira tentativa de lhe levantar a camisola,
mas ela o deteve com um impulso típico do seu caráter. Disse: "Sei fazer isso
sozinha." Tirou-a, de fato, e depois ficou tão imóvel que o doutor Urbino poderia
pensar que já não estava ali, não fosse o calor de sol do seu corpo nas trevas.
Ao fim de um momento tornou a lhe agarrar a mão, e então sentiu-a quente e
solta, embora úmida ainda de um orvalho suave. Ficaram outro momento
silenciosos e imóveis, ele aguardando a ocasião para o passo seguinte, ela a esperá-lo sem saber por onde, enquanto a escuridão se ampliava com sua respiração cada
vez mais intensa. Ele a soltou de repente e deu o salto no vácuo: umedeceu na
língua a ponta do dedo médio e lhe tocou apenas no bico desprevenido do seio, e ela
sentiu uma descarga de morte, como se tocada num nervo vivo. Alegrou-se de estar
às escuras para que ele não visse o rubor esbraseado que lhe fez tremer até as raízes
do crânio. "Calma", disse ele, muito calmo. "Não esqueça que os conheço." Sentiu
que ela sorria, e sua voz soou doce e nova nas trevas.
— Lembro muito bem — disse — e ainda não passou minha raiva.
Então ele soube que tinham passado o cabo da boa esperança, e tornou a pegar
lhe na mão grande e macia, e cobriu-a de beijinhos órfãos, primeiro o metacarpo
áspero, os grandes dedos clarividentes, as unhas diáfanas, e depois o hieróglifo do
seu destino na palma suada. Ela não soube como foi que sua mão chegou até o peito
dele, e esbarrou em algo que não soube adivinhar o que fosse. Ele disse: "É um
escapulário." Ela lhe acariciou os pêlos do peito, e depois agarrou o matagal
completo com os cinco dedos para arrancá-lo pela raiz. "Mais forte", disse ele. Ela
tentou, até o ponto em que sabia que não ia machucá-lo, e depois foi sua mão que
buscou a dele perdida nas trevas. Mas ele não deixou que os dedos de novo se
entrelaçassem, agarrando-lhe o pulso e conduzindo a mão dela ao longo do próprio
corpo com uma força invisível mas muito bem dirigida, até que ela sentiu o sopro
ardente de um animal em carne viva, sem forma corporal, mas ansioso e arvorado.
Ao contrário do que ele imaginou, mesmo ao contrário do que ela própria teria
imaginado, não retirou a mão, nem a deixou inerte onde ele a pôs, mas,
encomendando-se de corpo e alma à Santíssima Virgem, cerrou os dentes com
medo de rir da própria loucura, e começou a identificar pelo tato o inimigo
empinado, tomando conhecimento do seu tamanho, a força do seu talo, a extensão
de suas asas, assustada com sua determinação mas compadecida de sua solidão,
tornando-o seu com uma curiosidade minuciosa que alguém menos experiente que
seu esposo teria confundido com carícias. Ele fez apelo às suas últimas forças para
resistir à vertigem do escrutínio mortal, até que ela o largou com uma graça infantil,
como se o tivesse jogado no lixo.
— Nunca pude entender como é esse aparelho — disse.
Então ele o explicou a sério com seu método magistral, enquanto lhe carregava a
mão pelos lugares que mencionava, e ela a deixava entregue com uma obediência de
aluna exemplar. Ele sugeriu num momento propício que tudo aquilo era mais fácil
com a luz acesa. Ia acendê-la, mas ela lhe deteve o braço, dizendo: "Eu vejo melhor
com as mãos." Na realidade queria acender a luz, mas queria fazê-lo ela própria e
não recebendo ordens, e assim foi. Ele a viu então em posição fetal, e além do mais
coberta com o lençol, sob a claridade repentina. Mas viu-a agarrar outra vez sem
afetações o animal da sua curiosidade, virou-o do direito e do avesso, observou-o
com um interesse que já começava a parecer mais do que científico, e disse em
conclusão: "Para lá de feio, mais feio que o das mulheres." Ele concordou, e
assinalou outros inconvenientes mais graves que a feiura. Disse: "É como o filho
mais velho, que a gente passa a vida trabalhando para ele, sacrificando tudo por ele,
e na hora da verdade acaba fazendo o que lhe dá na veneta." Ela continuou a
examiná-lo, perguntando para que servia isso, e para que servia aquilo, e quando se
considerou bem informada sopesou-o com ambas as mãos, como para concluir que
nem pelo peso valia a pena, e o deixou cair com um muxoxo de menosprezo.
— Além de tudo, acho que tem muita coisa de sobra — disse.
Ele ficou perplexo. A proposta original de sua tese de graduação tinha sido essa:
a conveniência de simplificar o organismo humano. Parecia-lhe antiquado, com
muitas funções inúteis ou repetidas que foram imprescindíveis para outras idades
do gênero humano, mas não para a nossa. Sim: podia ser mais simples e por isso
mesmo menos vulnerável. Concluiu: "É coisa que só Deus pode fazer, sem dúvida,
mas dê todas as maneiras seria bom deixá-lo estabelecido em termos teóricos." Ela
riu divertida, de um modo tão natural que ele aproveitou a ocasião para abraçá-la e
lhe deu o primeiro beijo na boca. Ela correspondeu, e ele continuou a lhe dar beijos
muito suaves nas faces, no nariz, nas pálpebras, enquanto deslizava a mão por baixo
do lençol, e lhe acariciou o púbis redondo e liso: um púbis de japonesa. Ela não lhe
afastou a mão, mas conservou a sua em estado de alerta, caso ele avançasse um
passo mais.
— Não vamos continuar com a aula de medicina — disse.
— Não — disse ele. — Esta vai ser de amor.
Então, tirou o lençol de cima dela e ela não só não se opôs como o atirou para
longe do beliche com um golpe rápido dos pés, pois já não aguentava o calor. Mais
do que parecia quando ela estava vestida, seu corpo era ondulante e elástico, com
um cheiro próprio de animal montes que permitia distingui-la entre todas as
mulheres do mundo. Indefesa à plena luz, uma onda de sangue fervente lhe subiu à
cara, e a única coisa que lhe ocorreu como disfarce foi se grudar ao pescoço do seu
homem, e beijá-lo a fundo, bem forte, até que gastaram no beijo todo o ar de
respirar.
Ele tinha consciência de que não a amava. Casara-se porque gostava da sua
altivez, sua seriedade, sua força e também por um tico de vaidade, mas enquanto ela
o beijava pela primeira vez teve a certeza de que não haveria nenhum obstáculo
para inventar um bom amor. Não falaram a respeito nessa primeira noite em que
falaram de tudo até o amanhecer, nem falariam nunca. Mas de um modo geral,
nenhum dos dois se equivocou.
Ao despontar do dia, quando adormeceram, ela continuava virgem, mas não o
seria por muito tempo. A noite seguinte, com efeito, depois que ele lhe ensinou a
dançar as valsas de Vieña debaixo do céu sideral do Caribe, ele teve que ir ao
banheiro depois dela, e quando voltou ao camarote encontrou-a esperando por ele
nua na cama. Então foi ela quem tomou a iniciativa, e se entregou sem medo, sem
dor, com a alegria de uma aventura de alto mar, e sem vestígios de cerimônia
sangrenta além da rosa da honra no lençol. Ambos o fizeram bem, quase como um
milagre, e continuaram a fazê-lo bem de noite e de dia e cada vez melhor no resto
da viagem, e quando chegaram a La Rochelle se entendiam como amantes antigos.
Permaneceram dezesseis meses na Europa, com base em Paris, e fazendo
viagens curtas pelos países vizinhos. Durante esse tempo fizeram amor todos os
dias, e mais de uma vez nos domingos de inverno, quando ficavam até a hora do
almoço preguiçando na cama. Ele era homem de bons ímpetos, além de bem
treinado, e ela não fora feita para aceitar vantagem de ninguém, de maneira que
tiveram que se conformar com o poder compartilhado na cama. Depois de três
meses de amores febris ele compreendeu que um dos dois era estéril, e ambos se
submeteram a exames severos no Hospital de La Salpêtrière, onde ele fora interno.
Foi uma diligência árdua mas infrutífera. Contudo, quando menos o esperavam, e
sem nenhuma mediação científica, aconteceu o milagre. Em fins do ano seguinte,
quando voltaram a casa, Fermina estava grávida de seis meses, e se julgava a
mulher mais feliz da terra. O filho tão desejado por ambos, que nasceu sem
novidades sob o signo de Aquário, foi batizado em homenagem ao avô morto de
cólera.
Era impossível saber se foi a Europa ou o amor que os tornou diferentes, pois as
duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Ambos estavam mudados, e a fundo,
não só em si mesmos como em relação aos demais, como percebeu Florentino Ariza
ao vê-los à saída da missa duas semanas depois da volta, naquele domingo da sua
desgraça. Voltaram com uma concepção nova da vida, carregados de novidades do
mundo, e prontos para mandar. Ele com as primícias da literatura, da música, e
sobretudo as de sua ciência. Trouxe uma assinatura de Le Fígaro, para não perder o
fio da realidade, e outra da Revue des Deux Mondes para não perder o fio da poesia.
Tinha feito além disso um acordo com seu livreiro de Paris para receber as
novidades dos escritores mais lidos, entre eles Anatole France e Pierre Loti, e
daqueles de que gostava mais, como Remy de Gourmont e Paul Bourget, mas em
nenhum caso Émile Zola, que lhe parecia insuportável, apesar de sua valente
irrupção no julgamento de Dreyfus. O mesmo livreiro se comprometeu a mandar
pelo correio as partituras mais sedutoras do catálogo de Ricordi, sobretudo de
música de câmara, para manter o título bem ganho por seu pai de primeiro
promotor de concertos na cidade.
Fermina Daza, sempre contrária aos rigores da moda, trouxe seis baús com
roupas de tempos diversos, pois não a convenceram as grandes marcas. Tinha
estado nas Tulherias, em pleno inverno, para o lançamento da coleção de Worth, o
indiscutível tirano da alta costura, e a única coisa que conseguiu foi uma bronquite
que a derrubou por cinco dias na cama. Laferrière lhe pareceu menos pretensioso e
voraz, mas sua decisão sábia foi arrebanhar o que mais lhe agradava nas lojas de
liquidação, ainda que o esposo jurasse aterrado que eram roupas de defunto. Da
mesma forma, trouxe quantidades de sapatos italianos sem marca, que preferiu aos
afamados e extravagantes de Ferry, trouxe uma sombrinha de Dupuy, vermelha
como os fogos do inferno, que deu muito que escrever aos nossos assustadiços
cronistas sociais. Só comprou um chapéu de Madame Reboux, mas em
compensação encheu um baú de cachos de cerejas artificiais, ramalhetes de quantas
flores de feltro conseguiu encontrar, feixes de penas de avestruz, morriões de
pavões, rabos de gaios asiáticos, faisões inteiros, colibris, e uma variedade
incontável de pássaros exóticos dissecados em pleno voo, em pleno grito, em plena
agonia: tudo quanto servira nos últimos vinte anos para que os mesmos chapéus
parecessem outros. Trouxe uma coleção de leques de diversos países do mundo, e
um diferente e apropriado para cada ocasião. Trouxe uma essência perturbadora
escolhida entre muitas na perfumaria do Bazar de La Charité, antes que os ventos
primaveris dispersassem suas cinzas, mas usou-a uma vez só, porque se
desconheceu a si mesma com o perfume trocado. Trouxe também um estojo de
cosméticos que era a última novidade no mercado da sedução, e foi a primeira
mulher que apareceu com ele nas festas, quando o simples ato de retocar o rosto
em público era considerado indecente.
Traziam, ademais, três lembranças inesquecíveis: a estreia sem precedentes dos
Contos de Hoffmann, em Paris, o incêndio pavoroso de quase todas as gôndolas de
Veneza diante da Praça de São Marcos, que haviam presenciado com o coração
dolorido da janela de seu hotel, e a visão fugaz de Oscar Wilde na primeira nevada
de janeiro. Mas no meio dessas e de tantas outras lembranças, o doutor Juvenal
Urbino conservava uma que sempre lamentou não compartilhar com a esposa, pois
vinha de seus tempos de estudante solteiro em Paris. Era a lembrança de Victor
Hugo, que desfrutava aqui de uma celebridade comovente a margem de seus livros,
porque alguém disse que ele tinha dito, sem que jamais alguém o ouvisse dizer na
realidade, que nossa Constituição não era para um país de homens e sim de anjos.
Desde então foi-lhe rendido um culto especial, e a maioria dos numerosos
compatriotas que viajavam para a França morria de vontade de vê-lo. Uma meia
dúzia de estudantes, entre eles Juvenal Urbino, montaram guarda por um tempo
diante da sua residência na avenida Eylau, e nos cafés onde se dizia que ele ia
chegar sem falta e nunca chegou, e por último tinham solicitado por escrito uma
audiência privada, em nome dos anjos da Constituição de Rionegro. Nunca
receberam resposta. Um dia qualquer, Juvenal Urbino passou por acaso na frente
do Jardim do Luxemburgo e o viu sair do Senado com uma mulher moça que lhe
dava o braço. Achou-o muito velho, movendo-se a duras penas, com a barba e o
cabelo menos radiantes que nos retratos, e dentro de um sobretudo que parecia de
alguém mais corpulento. Não quis estragar a lembrança com um cumprimento
impertinente: bastava essa visão quase irreal que havia de durar-lhe a vida toda.
Quando voltou casado a Paris, em condição de vê-lo de um modo mais formal,
Victor Hugo já morrera.
Como consolo, Juvenal e Fermina traziam a lembrança compartilhada de uma
tarde de neves em que ficaram intrigados pelo grupo que desafiava a tempestade
diante de uma pequena livraria do Boulevard des Capucines, e era que Oscar Wilde
estava lá dentro. Quando por fim saiu, elegante deveras, mas talvez demasiado
consciente disso, o grupo o cercou para pedir autógrafos em seus livros. O doutor
Urbino se detivera só para vê-lo, mas sua impulsiva esposa quis atravessar o
bulevar para que ele autografasse a única coisa que lhe pareceu apropriada à falta
de um livro: sua formosa luva de gazela, grande, macia, suave, e da mesma cor de
sua pele de recém-casada. Estava certa de que um homem tão refinado ia apreciar
aquele gesto. Mas o marido se opôs com firmeza, e quando ela procurou fazê-lo
apesar de suas razões, ele sentiu que não sobreviveria à vergonha.
— Se atravessar essa rua — lhe disse — ao voltar aqui você me encontrará morto.
Era algo natural a ela. Antes de um ano de casada se movimentava pelo mundo com o mesmo desembaraço com que o fazia desde menina no morredouro de São João da Ciénaga, como se tivesse nascido sabendo, e tinha uma facilidade de trato com os desconhecidos que deixava o marido perplexo, e um talento misterioso para se entender em castelhano com quem fosse e em qualquer parte. "A gente precisa Saber os idiomas quando vai vender alguma coisa", dizia com risos de troça. "Mas quando vai comprar, todo o mundo dá um jeito de entender." Era difícil imaginar alguém que tivesse assimilado tão depressa e com tanta animação a vida cotidiana de Paris, que aprendeu a amar na lembrança apesar de suas chuvas eternas. No entanto, quando regressou a casa esmagada por tantas experiências juntas, cansada de viajar e meio sonolenta com a gravidez, a primeira coisa que lhe perguntaram no porto foi o que achara das maravilhas da Europa, e ela resumiu dezesseis meses de ventura com três palavras, no seu modo de falar caribe:
— É mais onda.
continua na página 124...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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