quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Conto: A Quinta História

Clarice Lispector 



um conto que nos dá infinitas interpretações sobre o símbolo das baratas em nossas vidas, muitos caminhos para serem trilhados e contados mesmo num tema banal sobre como matar baratas






     Esta história poderia chamar-se "As Estátuas". Outro nome possível é "O Assassinato". E também "Como Matar Baratas". Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
     A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
     A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
     A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te… Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de…” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
     A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? – como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? – no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.
     A quinta história chama-se “Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas…

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Clarice Lispector: Desvendando 'A Quinta História
| Análise Completa



Embora o nome do conto seja “A quinta história”, a narradora inicia mencionando que contará três, já lhes adiantando os títulos. Num exercício de metalinguagem, eis que Clarice revela que as histórias não se contradirão, mas sim fariam parte de uma única história (como toda a literatura, de todos os tempos e espaços, parece ser), que também se poderia desmembrar em mil e uma, a serem contadas aos poucos, uma se conectando a outra, como Sherazade fizera certa vez.

A primeira história se passa numa perspectiva objetiva, quase impessoal. Tem um tom telegráfico, de frases curtas. Mesmo o título dessa história, “Como matar baratas”, dá uma ideia de receita, de algo instrucional.

A segunda, sendo a mesma, começa do mesmo modo: “queixei-me de baratas” (que se torna uma espécie de expressão geradora de histórias). Mas essa já desloca o foco e o estilo, torna-se “O assassinato” e a narradora assume um protagonismo que não havia na primeira história. Há essa “concentração intensa” na preparação do veneno da noite, do “elixir da longa morte”. A construção da cena revela como há um “mal secreto” presente no indivíduo. Não havia baratas durante o dia, mas havia um rancor, uma sensação de ultraje sobre essa invasão que começara a corroer a alma. Como se revelasse o lado Mrs. Hyde dessa Dra. Jekyll (o monstro oculto que aflora), ou então um Fortunato do conto machadiano “A causa secreta”, a narradora é meticulosa, tanto na preparação quanto na disposição da armadilha, como uma assassina à espreita de suas vítimas. Por isso declara, ao final: “Durante a noite eu matara”.

Na terceira, após o início que explica que ainda é a mesma história (com a queixa das baratas), ocorre a mudança de visão: ao invés da mulher-assassina, serão as baratas-vítimas, em sua “perspectiva de ladrilhos”. Pensando que a autora é Clarice Lispector, as baratas mortas pelo gesso se tornam alegorias: o processo de se tornar estátua. E logo se amplia não mais para baratas mortas, mas para o próprio ato de perder a vida e tornar-se pedra. Assim, a narradora vê o alvorecer de Pompeia, isto é, todos os seres que foram surpreendidos e se petrificaram. Só que o Vesúvio espalhou as cinzas e tornou as pessoas em estátuas de fora para dentro. Ela tem a epifania (que é a descoberta súbita das profundezas da existência humana, mesmo presente nas mais triviais ações, e é marca registrada de Clarice) de que é possível petrificar-se de dentro para fora. Não necessariamente por ingerir gesso (no caso das baratas), mas com outras ações, que tornam uma pessoa endurecida para a vida. É assim que, em algumas, esse gesso metafórico vai aos poucos solidificando a humanidade (“com movimentos cada vez mais penosos (…) tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência”.) Como se cada instante e ação fosse tornando a pessoa em estátua, sem que ela percebesse, até não poder voltar atrás. Em outras, “molde interno” acaba por petrificar a humanidade, deixando somente estátua, de modo súbito, quase como se cortasse o próprio pensamento e expressão (“Eu te…”). De modo que todas as baratas, agora estátuas, tornam-se símbolos da alteração da essência interna dos indivíduos em sólida pedra morta.

Na quarta história, por sua vez, há uma forma de síntese – inclusive não possuindo título. Nela, embora o enredo seja o mesmo das anteriores, mostra a situação após a noite fatídica. A narradora, diante do espetáculo das baratas, percebe que terá de repetir continuamente a receita e a armadilha (“como quem já não dorme sem a avidez de um rito”). E associa todo o processo de petrificação das baratas com uma forma de endurecimento próprio. Ela, ao matar as baratas e repetir esse gesto, estaria começando a se endurecer, perdendo a humanidade. O caminho encontrado foi romper com o “molde interno” que se estava formando, aceitando as baratas da cozinha, mas dedetizando as de seu coração…

A quinta funciona como uma retomada do que já tinha dito no primeiro parágrafo. O título é grandioso e múltiplo. Leibniz é o filósofo e matemático alemão que, entre outras coisas, trabalhou com a noção de mônada, que seria algo como uma partícula de força presente na própria alma e que, metafisicamente, conecta-se a tudo que existiu, existe e existirá, sendo, portanto, infinita. A Transcendência é o termo que designa uma forma de “ir além” do plano físico, da matéria, atingindo um plano espiritual e, possivelmente, infinito. A Polinésia é o conjunto de várias ilhas no Pacífico Sul, com vários povoados e uma cultura que estaria, em relação à cultura brasileira, a uma distância infinita. E o Amor, que é algo recorrente em Clarice, justamente por sua face misteriosa, inatingível e, afinal de contas, infinita.

Ou seja, a quinta história é a história infinita, que se prolonga e se projeta em todas as histórias, indo desde Sherazade até as baratas mortas com farinha, açúcar e gesso.

Por certo que as baratas se tornam esse símbolo da existência marginal, indesejada, mas que até mesmo elas podem propiciar lampejos da compreensão humana (que o diga GH, personagem de Clarice). E isso é uma forma de, por meio da ficção, descobrir a grandiosidade que há em cada ser humano e, mais do que isso, buscar a própria essência, escapando da automatização e da rotina, no processo contínuo de ver o mundo e as pessoas.

E pronto!


por Saulo Gomes Thimóteo


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