um conto sobre a busca incessante por uma identidade que não nos pertence
por Jammylly Ferreira (Celebração do centenário)
Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo lhe os motivos e perdoo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo.
Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo lhe os motivos e perdoo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo.
Um dia, no avião... ah, meu Deus - implorei - isso não, não quero ser essa missionária.
Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria
missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida de missionária já me haviam
tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que
vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto-de-vista prático: ando
agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa
vida que não conheço - mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo
que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é
paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar no chão, como se pisar mais forte
viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto
fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.
Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque
sobretudo me tornei toda moral. No entanto quando entrei no avião estava tão sadiamente
amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil:
toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto
ela lê a Bíblia.
Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. E ela cora mal o
rapaz se aproxima.
Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias
longas e cinzentas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a
entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso,
como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não
entendo, é com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida que facilmente cora à
aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.
Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida.
Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, senão no momento de nascer, e o resto tenha
sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma -
então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro
da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim,
e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.
Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava
entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava
sendo hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos
entrefechados para o único homem ao alcance de minha visão intencionada. Mas o homem
gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no
New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo.
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