quinta-feira, 24 de outubro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Quarta expedição: VII - Outros reforços

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Quarta expedição 

VII - 

Outros reforços 

     Era urgente uma intervenção mais enérgica do governo. Impunham-na, no mesmo passo, as apreensões crescentes, as ultimas peripécias da luta e a própria insciência sobre o curso real das operações. As opiniões como sempre disparatavam, discordes. Para a maioria os rebeldes contavam com elementos sérios. Era evidente. Não se compreendia que batidos em todas as ordens do dia — heroicamente escritas - eles, tendo ainda franca a fuga para os sertões de S. Francisco, onde não havia descobri-los, esperassem, pertinazes, no arraial, que se lhes fechassem, pelo complemento do assédio, as derradeiras saídas. Deduziam-se, lógicos, corolários graves. À parte a hipótese do sobre-humano devotamento, fazendo-os sucumbir em massa sob os escombros dos templos consagrados, imaginavam-se-lhes traças guerreiras formidáveis embaralhando de todo a estratégia regular. O número, que se dizia diminuto, dos que permaneciam em Canudos arrostando tudo, era, certo, um engodo armado a arrastar para ali exclusivamente o exército e iludi-lo em combates estéreis, até que se congregassem, noutros lugares, fortes contingentes para o assalto final, por toda a banda, sobre os sitiantes, pondo-os entre dois fogos.
     Contravinham, porém, juízes mais animadores. O coronel Carlos Teles, em carta dirigida à imprensa, afirmou de maneira a clara o número reduzido de jagunços — duzentos homens válidos, talvez sem recursos nenhuns — , abastecidos e aparelhados apenas do que haviam tomado às anteriores expedições. O otimismo, de fato exageradíssimo, do valente, porém, afogou-se na incredulidade geral. Aniilavam-no todos os fatos e sobretudo aquelas irrupções diárias de feridos, abalando num crescendo a comoção nacional.


A Brigada Girard

     Sobrevieram outros por igual desastrosos. Atendendo aos primeiros reclamos do general Artur Oscar, o governo tinha prontamente organizado uma brigada auxiliar que, ao revés das demais, não entrava na luta distinta por um número seco e inexpressivo. Tinha, segundo louvável praxe, sem curso entre nós, mercê da qual se amplia sobre os comandados a glória do comandante, um nome — Brigada Girard.
     Dirigia-a o general Miguel Maria Girard e formavam-na três corpos, saídos da guarnição da capital federal: o 22.°, do coronel Bento Tomás Gonçalves, o 24.°, do tenente Rafael Tobias, e o 38.°, do coronel Filomeno José da Cunha. Eram 1.042 praças e 68 oficiais, perfeitamente armados e levando para a luta insaciável o repasto esplêndido de 850 mil cartuchos Mauser.
     Mas, por um conjunto de circunstâncias, que fora longo miudear, ao invés de auxiliar esta tropa tornou-se um agente debilitante. Abalou do Rio de Janeiro comandada pelo chefe que lhe dera o nome e foi com ele até Queimadas, onde se reuniu a 31 de julho. Partiu de Queimadas a 3 de agosto, dirigida por um coronel, até Monte Santo. Largou de Monte Santo para Canudos, a 10 de agosto, sob o comando de um major. Deixara na Bahia um coronel e alguns oficiais — doentes. Deixara em Queimadas um general, um tenente-coronel e mais alguns oficiais — doentes. Deixara em Monte Santo um coronel e mais alguns oficiais — doentes...


Heroísmo estranho

     Decompunha-se pelas estradas. Partiam-lhe do seio pedidos de reforma mais alarmantes do que aniquilamentos de brigadas. Salteara-a um beribéri excepcional exigindo não já a perícia de provectos médicos senão o exame de psicólogos argutos. Porque afinal o medo teve ali os seus grandes heróis, revelando a coragem estupenda de dizer a um país inteiro que eram cobardes.
     Ao endireitar de Queimadas para o sertão aquela força encontrara as primeiras turmas de feridos e fora sulcada pelo assombro da guerra. Passaram-lhe pelo meio do acampamento, em Contendas, o general Savaget, o coronel Néri, o major Cunha Matos, o capitão Chachá Pereira e outros oficiais. Recebeu-os ainda entusiasticamente: oficiais e praças enfileirados às margens do caminho, saudando-os. Mas depois amorteceu-se-lhe o fervor. Apenas com três dias de viagem, começou de sofrer privações, vendo diminuídos os víveres que levava e repartia com as sucessivas turmas de feridos encontrados, chegando exausta e esmorecida a Monte Santo.


Em viagem para Canudos

     Tomou para Canudos onde era ansiosamente esperada, a 10 de agosto, despida inteiramente do esplêndido aparato hierárquico com que nascera. Dirigia-a o fiscal do 24.°, Henrique de Magalhães, estando os corpos comandados pelo major Lídio Porto e capitães Afonso de Oliveira e Tito Escobar. A marcha foi difícil e morosa. Desde Queimadas lutava-se com dificuldades sérias de transporte. Os cargueiros, animais imprestáveis, velhos e cansados, muares refugados das carroças da Bahia e tropeiros improvisados — rengueavam, tropeçando pelos caminhos, imobilizando os batalhões, e remorando a avançada.
     Chegou desse modo a Aracati, onde lhe foi entregue um comboio que devia guarnecer até Canudos.
     Neste comenos dizimava-a a varíola. Destacavam-se das suas fileiras, diariamente, dois ou três enfermos, volvendo para o hospital, em Monte Santo. Outros, estropiados, naquela repentina transição das ruas calçadas da capital federal para aquelas ásperas veredas, distanciavam-se, perdidos à retaguarda, confundindo-se com os feridos, que vinham em direção oposta.
     De sorte que ao passar em Juetê, no dia 14 de agosto, lhe foi providencial o encontro com o 15.° Batalhão de Infantaria, já endurado na luta, e que viera de Canudos. Porque no dia seguinte, depois de decampar das Baixas, onde parara na véspera para aguardar a vinda de grande número de praças retardatárias, foi no rancho do Vigário violentamente atacada. Os jagunços aferraram-na de flanco, pela direita, do alto de um cerro dominante, e quase de frente, de uma trincheira marginal. Abrangeram-na toda uma descarga única. Tombaram mortos na guarda da frente um alferes do 24.° e, na extrema retaguarda, outro, do 38.°. Baquearam algumas praças nas fileiras intermédias. Alguns pelotões se embaralharam estonteadamente surpresos, bisonhos ainda ante os guerrilheiros ferozes. A maioria disparou desesperadamente as armas. Estrugiram cornetas, vozes trêmulas, altas, entrecortadas, desencontradas, de comando. Dispararam, espavoridos, os cargueiros. A boiada estourou, mergulhando na caatinga...
     O 15.° Batalhão tomando a vanguarda guiou os lutadores vacilantes. Não se repeliu o inimigo. A retaguarda ao passar pelo mesmo ponto foi, por sua vez, alvejada.
     Depois deste revés, porque o foi, bastando dizer-se que de 102 bois que comboiava restaram apenas onze, foi a brigada novamente investida no Angico. Deu uma carga de baionetas platônica em que não perdeu um soldado, entrando afinal em Canudos, onde os enrijados campeadores, que ali estavam sob a disciplina tirânica dos tiroteios diuturnos, a acolheram com a denominação de "Mimosa", nome, que, entretanto, mais tarde, os bravos oficiais fizeram que se apagasse, a exemplo do primeiro título.

continua na página 290...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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