quarta-feira, 23 de outubro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Quarta expedição: VI - Depredações

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Quarta expedição 

VI - 

Depredações 

     E aquele caminho, então povoado, ermou-se. Os bandos revoltos rompiam-no espalhando estragos, como se foram restos de uma caravana de bárbaros claudicantes. Doentes e feridos, em magotes ameaçadores, de onde transudavam alaridos, imprecações e frases arrepiadoras de angústias e revoltas irrefreáveis, abeiravam-se das choupanas, apelando para a hospitalidade incondicional dos tabaréus. Fizeram a princípio pedidos coléricos, mais irritantes que intimações. Depois o assalto franco. Repruía-lhes o ânimo, escandalizando-lhes a vida tormentosa, o quadro tranquilo daqueles lares pobres, onde deriva, quieta, a existência dos matutos. E varejavam-nos —impulsivamente, numa irreprimível hipnose de destruição— fazendo saltar as portas a coices d'armas, enquanto a família sertaneja, apavorada, fugia para os recessos das macegas.


Incêndios

     Depois — era preciso uma diversão qualquer estupidamente dramática que lhes distraísse um momento as agonias fundas ! —tomando de tições em fogo chegavam-nos aos colmos de sapé. Irrompiam as flamas, num deflagrar instantâneo. Passavam os haustos rijos do nordeste e esparziam as fagulhas pela caatinga seca. Em breve, céleres arrebatadas pelo vento, enoveladas em rolos de fumo cindidos de labaredas, rolando pelas quebradas e transpondo-as, circulando todas as encostas, avassalando o topo dos morros, repentinamente acesos num relampaguear de crateras súbitas, crepitavam as queimadas, inextinguíveis, derramando-se por muitas léguas em roda.
     Os foragidos, já agora salvos, suportavam os últimos transes do êxodo penosíssimo requintando nas tropelias, ampliando o círculo de ruínas da guerra e iam-se de abalada para o litoral —ao mesmo tempo miserandos e maus, inspirando a piedade e o ódio — rudemente vitimados, brutalmente vitimando .Chegavam a Queimadas esparsos e exaustos, alguns quase moribundos. Atulhavam os trens da estrada de ferro e desciam para a Bahia.


Primeiras notícias certas 

     Aguardava-os uma curiosidade ansiosa.
     Iam chegar, afinal, as primeiras vítimas da luta que empolgara R atenção do país inteiro. A multidão desbordando da estação terminal da linha férrea, na Calçada, derramando-se pelas ruas próximas até ao forte de Jequitaia, contemplava diariamente a passagem do heroísmo infeliz. E nunca lhe imaginou aspectos tão dramáticos.
     Sacudiam-na frêmitos de emoções nunca sentidas.
     Os feridos chegavam em estado miserando. Prolongavam pelas ruas da cidade aquela onda repulsiva de trapos e carcaças, que vinham rolando pelas veredas sertanejas o refluxo repugnante da campanha.
     Era um desfilar cruel. Oficiais e soldados, uniformizados pela miséria, vinham indistintos, revestidos do mesmo fardamento inclassificável: calças em fiapos, mal os reguardando como tangas; camisas estraçoadas; farrapos de dólmãs sobre os ombros; farrapos de capotes, em tiras, escorridos pelos torsos desfibrados, dando ao conjunto um traço de miséria trágica. Coxeando, arrastando-se penosamente, em cambaleios, titubeantes e imprestáveis, traziam no escavado das faces e na atitude dobrada um traço comovente da campanha. Esta desvendava pela primeira vez sua feição real, naqueles corpos combalidos, varados de balas e de espinhos, retalhados de golpes. E chegavam às centenas todos os dias: a 6 de agosto, 216 praças e 26 oficiais; a 8, 150; a 11, 400; a 12, 260; a 14, 270; a 18, 53; e assim por diante.
     A população da capital recebia-os comovida. Como sempre sucede, o sentimento coletivo ampliara as impressões individuais. O grande número de pessoas, identificadas pela mesma comoção, fez-se o expoente do sentir de cada um e, vibrando uníssonas todas as almas, presas do mesmo contágio, e sugestionadas pelas mesmas imagens, todas as individualidades se apagaram no anonimato nobilitador da multidão piedosa que bem poucas vezes apareceu tão digna na História. A vasta cidade fez-se um grande lar. Organizaram-se em toda a linha comissões patrióticas, para agenciar donativos, que espontaneamente surgiram numerosos, constantes. No Arsenal de Guerra, na Faculdade Médica, nos hospitais, nos próprios conventos, se improvisaram enfermarias. Em cada uma dessas os gloriosos mutilados foram postos sob o patrocínio de algum nome ilustre: Esmarck, Claude Bernard, Duplay, Pasteur, jamais tiveram tão bela consagração no futuro. Avantajando-se à ação do governo, o povo constituíra-se tutor natural dos enfermos, amparando-os incondicionalmente, abrindo-lhes os lares, rodeando-os, animando-os, auxiliando-lhes os passos trôpegos nas ruas. Nos dias facultados às visitas, invadia os hospitais, em massa, em silêncio — religiosamente. Abeiravam-se então os visitantes dos leitos como se neles jazessem velhos conhecidos; tratavam com os doentes menos graves sobre as provações sofridas e lances arriscados ocorridos; e, ao deixarem aquelas trágicas exposições da guerra feitas de traumatismos e moléstias horríveis, levavam, afinal, um juízo claro sobre a luta mais brutal dos nossos tempos. Mas, por um contraste inexplicável, sobre esta comiseração profunda e geral pairava, intenso, um entusiasmo vibrante. Os mártires tinham ovações de triunfadores. E estas despontavam ao acaso, sem combinações prévias, rápidas, espontâneas, incisivas, aparecendo e desaparecendo em quartos de hora, num desencadear intermitente de movimentos impulsivos. Os dias sucediam-se agitados numa larga movimentação de multidões ruidosas, turbilhonando nas ruas e nas praças, no meio de expansões discordes, numa alacridade singular rorejada de prantos, por meio da qual se fazia a comemoração sombria do heroísmo. Os feridos eram uma revelação dolorosíssima, certo, mas de algum modo alentadora. Naquelas sevícias retratava-se a energia de uma raça. Aqueles homens que chegavam dilacerados pelas garras do jagunço e pelos espinhos da terra eram o vigor de um povo posto à prova do ferro, à prova do fogo e à prova da fome. Abaladas pelo cataclismo da guerra, as camadas superficiais de uma nacionalidade cindiam-se, pondo à luz os seus elementos profundos naqueles titãs resignados e estoicos. Sobre tudo isto um pensamento diverso, não boquejado sequer mas por igual dominador, latente em todos os espíritos: a admiração pela ousadia dos sertanejos incultos, homens da mesma raça, de encontro aos quais se despedaçavam daquele modo batalhões inteiros...
     E um longo frêmito tonificador vibrava nas almas. Faziam-se romarias ao quartel da Palma, onde estava ferido o coronel Carlos Teles; à Jequitaia, onde convalescia o general Savaget; e quando este último pode arriscar alguns passos nas ruas, paralisou-se inteiramente toda a azáfama comercial da cidade baixa, em ovação espontânea e imensa, que, irradiando de repente e congregando a população em torno do heroico chefe da 2.ª coluna, transmudou um dia comum de trabalho em dia de festa nacional.


Baixas

     Sobre esta agitação chegavam diuturnamente pormenores que a acirravam. Sabia-se, por fim, positivamente, com rigor aritmético, a extensão do desastre. Era surpreendente.
     De 25 de junho, em que trocara os primeiros tiros com o inimigo, até 10 de agosto, tivera a expedição 2.049 baixas.
     Detalhavam-nas os mapas oficiais.
     No total entrava a 1.ª coluna com 1.171 homens e a 2.ª com 878. Discriminadamente eram estes os algarismos:

"1ª coluna —Artilharia: 9 oficiais e 47 praças feridas; 2 oficiais e 12 praças mortas; ala de cavalaria: 4 oficiais e 46 praças feridas; 30 oficiais e 16 praças mortas; engenheiros: 1 oficial e 8 praças feridas; 1 praça morta; corpos de polícia: 8 oficiais e 46 praças feridas; 8 oficiais e 24 praças mortas; 5.° Batalhão de Infantaria: 4 oficiais e 66 praças feridas; 1 oficial e 25 praças mortas; 7.°: 8 oficiais e 95 praças feridas; 5 oficiais e 52 praças mortas; 9.°: 6 oficiais e 59 praças feridas; 2 oficiais e 22 praças mortas; 14.°: 8 oficiais e 119 praças feridas; 5 oficiais e 42 praças mortas; 15.°: 5 oficiais e 30 praças feridas; 10 praças mortas; 16.°: 5 oficiais e 24 praças feridas; 10 praças mortas; 25.°: 9 oficiais e 134 praças feridas; 3 oficiais e 55 praças mortas; 27.°: 6 oficiais e 45 praças feridas; 24 praças mortas; 30.°: 10 oficiais e 120 praças feridas; 4 oficiais e 35 praças mortas.

2.ª coluna — 1 general ferido; artilharia: 1 oficial morto; 12.° de Infantaria: 6 oficiais e 128 praças feridas; 1 oficia l e 50 praças mortas; 26.°: 6 oficiais e 36 praças feridas; 2 oficiais e 22 praças mortas; 31.°: 7 oficiais e 99 praças feridas; 4 oficiais e 48 praças mortas; 32.°: 6 oficiais e 62 praças feridas; 4 oficiais e 31 praças mortas; 32.°: 10 oficiais e 65 praças feridas; 1 oficial e 15 praças mortas; 34.°: 4 oficiais e 18 praças feridas; 7 praças mortas; 35.°: 4 oficiais e 91 praças feridas; 1 oficial e 22 praças mortas; 40.°: 9 oficiais e 75 praças feridas; 2 oficiais e 30 praças mortas." 

     E a hecatombe progredia com uma média diária de oito homens fora de combate. Por outro lado, os adversários pareciam dispor de extraordinários recursos. 


Versões e lendas 

     Transfiguravam-nos, além disto, numa distensão exagerada, as imaginações superexcitadas. Recente mensagem do Senado Federal, onde batera também a onda da comoção geral, tendo requerido, esteada em veementes denúncias, esclarecimentos sobre o terem sido despachadas em Buenos Aires com destino aos portos de Santos e Bahia armas, que tudo delatava se destinarem aos "conselheiristas", tal incidente, em que incidiam todas as fantasias, assumiu, ampliado pela nevrose comum, visos de realidade.
     Completavam-no, justificando e do mesmo passo refletindo o modo de pensar das repúblicas americanas, todas as notícias transmitidas pelos seus órgãos mais sérios. O de mais peso talvez na América do Sul, depois de se referir aos curiosos sucessos da campanha, aditava-lhes pormenores de um simbolismo estranho e pavoroso. "Trata-se de duas missivas que, com intervalo de dois dias recebemos da ' Seccion Buenos-Aires de la unión internacional de los amigos del imperio del Brasil' comunicando-nos, por ordem da seção executiva em Nova York, que a referida União tem ainda uma reserva de não menos 15 mil homens — só no Estado da Bahia — para reforçar em caso de necessidade o exército de fanáticos; além de 100 mil em vários Estados do Norte do Brasil e mais 67 mil em certos pontos dos Estados Unidos da América do Norte, prontos a sair em qualquer momento para as costas do ex-Império, todos muito bem armados e preparados para a guerra. Também temos, ajuntam as missivas, armas dos mais modernos sistemas, munições e dinheiro em abundância."
     De uma redação, caligrafia e ortografia corretas, estas enigmáticas comunicações trazem à sua frente a mesma inscrição que as subscreve, escrita com tinta que faz recordar a violácea cor dos mortos, destacando-se as maiúsculas em vermelho, na vermelha cor do sangue.
     Ante o quadro formidável de homens e armas que nos oferecem os misteriosos amigos do Império, de forma não menos misteriosa, não sabemos se pensar em uma daquelas terríveis associações que forjam nas trevas seus planos de destruição ou em alguns cavalheiros dados à mistificação do próximo.
     Entretanto, pelo que possa haver no fundo de tudo isto, é que fazemos constar e acusamos recebimento das repetidas missivas.
     Acreditava-se. A quarta expedição ilhara-se de todo, no território conflagrado, a pique de uma catástrofe. Diziam-no insuspeitos informes. Só do município de Itapicuru, garantia-se, haviam partido 3 mil fanáticos para Canudos, conduzidos por um padre que, aberrando dos princípios ortodoxos, lá se ia comungar das tolices abstrusas do cismático. Pela Barroca passavam centenares de quadrilheiros armados, seguindo o mesmo rumo. Citavam-se nomes de novos cabecilhas. Apelidos funambulescos, como o dos chouans: Pedro, o Invisível, José Gamo, Caco de Ouro, e outros.
     Agravando estas conjeturas vinham notícias verdadeiras. Os sertanejos dispartiam pelo sertão em algaras atrevidas: atacaram o termo de Mirandela, guiados por Antônio Fogueteiro; investiram, tomaram e saquearam a vila de Santana do Brejo; irradiavam para toda a banda. Alargavam o âmbito da campanha, revelando mesmo lineamentos firmes de estratégia segura. Além do arraial duas novas posições de primeira ordem e defensáveis estavam guarnecidas: as vertentes caóticas do Caipã e as cordas de cerros em torno da Várzea da Ema. Desbordando de Canudos, a insurreição espraiava-se desta maneira pelos lados de um triângulo enorme, em que podiam inscrever-se 50 mil baionetas. Alastrava-se.
     Os comboios que partiam de Monte Santo, ainda que reforçados, não por batalhões mas por brigadas, tinham viagem acidentada, tolhida de constantes assaltos. Atingido o Aracati, era indispensável que viessem de Canudos dois ou três batalhões a protegê-los. O sinistro trecho de estrada entre o rancho do Vigário e as Baixas, tornara-se o pavor dos mais provados valentes. Era o lugar clássico do estouro das boiadas e da dispersão dos cargueiros, espantados pelos tiroteios vivos e atropelando pelotões inteiros no recuar precipite da fuga.
     E nesses recontros sucessivos, adrede feitos à perturbação das marchas, começara-se a lobrigar, por fim, uma variante do jagunço, auxiliando-o, indiretamente, com outros intuitos. Distinguiam-se entre os claros das galhadas rarefeitas, passando, céleres, no vertiginoso pervagar das guerrilhas, brilhos de botões de fardas, loivos rubros de calças carmesins...
     O desertor faminto atacava os antigos companheiros.
     Era um lastimável sintoma, completando com um outro caráter a campanha, cuja feição dia a dia se agravava num episodear extremado dos sucessos mais triviais.
     Os soldados enfermos, em perene contato com o povo, que os conversava, tinham-se, ademais, constituído rudes cronistas dos acontecimentos e confirmavam-nos mercê da forma imaginosa por que a própria ingenuidade lhes ditava os casos, verídicos na essência, mas deformados de exageros, que narravam. Urdiam-se estranhos episódios. O jagunço começou a aparecer como um ente à parte, teratológico e monstruoso, meio homem e meio trasgo; violando as leis biológicas, no estadear resistências inconceptíveis; arrojando-se, nunca visto, intangível, sobre o adversário; deslizando, invisível, pela caatinga, como as cobras; resvalando ou tombando pelos despenhadeiros fundos, como espectro; mais leve que a espingarda que arrastava; e magro, seco, fantástico, diluindo-se em duende, pesando menos que uma criança, tendo a pele bronzeada colada sobre os ossos, áspera como a epiderme das múmias...
     A imaginação popular, daí por diante, delirava na ebriez dos casos estupendos, apontoados de fantasias.
     Alguns eram rápidos, espelhando incisivamente a energia inamoldável daqueles caçadores de exércitos.


"Viva o Bom Jesus !" 

     Numa das refregas subseqüentes ao assalto, ficara prisioneiro um curiboca ainda moço que a todas as perguntas respondia automaticamente, com indiferença altiva:

"Sei não !"

     Perguntaram-lhe por fim como queria morrer.

"De tiro !"

"Pois há de ser a faca !" contraveio, terrivelmente, o soldado.

     Assim foi. E; quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glote, a primeira onda de sangue borbulhou, escamando, à passagem do último grito gargarejando na boca ensanguentada: 

"Viva o Bom Jesus!...


Um lance épico

     Outros tinham delineamentos épicos:
     No dia 1.° de julho, o filho mais velho de Joaquim Macambira, rapaz de dezoito anos, abeirou-se do ardiloso cabecilha:

"Pai! Quero escangalhar a matadeira!" 

     O astuto guerrilheiro, espécie grosseira de Imanus, acobreado e bronco, encarou-o impassível:

"Consulta o Conselheiro — e vai.''

     O valente abalou, seguido de onze companheiros dispostos. Transpuseram o Vaza-Barris, cortado em cacimbas. Investiram com a larga encosta ondulante da Favela. Embrenharam-se, num deslizar flexuoso de cobras, pelas caatingas ralas.
     Ia em meio o dia. O Sol irradiava a pino sobre a terra, jorrando sem fazer sombras, até ao fundo dos grotões mais fundos, os raios verticais e ardentes...
     Naquelas paragens o meio-dia e mais silencioso e lúgubre que a meia-noite. Transverberando nas rochas expostas, refletindo nas chapadas nuas, repelido pelo solo recrestado e duro, todo o calor emitido para a terra reflui, tresdobrado, para o espaço, nas colunas ascensionais dos ares irrespiráveis e candentes. A natureza queda-se, enervada em quietude absoluta. Não sopra a viração mais leve. Não bate uma asa nos ares, cuja transparência junto ao chão se perturba em ondulações rápidas e ferventes. Repousa, estivando, a fauna das caatingas. Pendem, murchos os ramos das árvores estonadas.
     O exército descansava no alto da montanha, abatido pela canícula. Deitados a esmo pelas encostas, bonés caídos sobre o rosto para os resguardar, dormitando ou pensando nos lares distantes, as praças aproveitavam alguns momentos de tréguas, refazendo forças para a afanosa lide. Em frente, derramado sobre colinas — minúsculas casinhas em desordem, sem ruas e sem praças, acervo incoerente de casebres — aparecia Canudos, deserto e mudo, como uma tapera antiga.
     Todo o exército repousava...
     Nisto despontam, cautos, emergindo à ourela do matagal rasteiro e trançado, de arbúsculos em esgalhos, na clareira, no alto, onde estaciona a artilharia, doze rostos inquietos, olhares felinos, rápidos, percorrendo todos os pontos. Doze rostos apenas de homens ainda jacentes, de rastro, nos tufos das bromélias. Surgem lentamente. Ninguém os vê; ninguém os pode ver. Dão-lhes as costas com indiferença soberana vinte batalhões tranquilos. Adiante divisam a presa cobiçada. Como um animal fantástico, prestes a um bote repentino, o canhão Withworth, a "matadeira", empina-se no reparo sólido. Volta para Belo Monte a boca truculenta e rugidora que tantas granadas revessou já sobre as igrejas sacrossantas. Caem-lhe sobre o dorso luzidio e negro os raios do sol, ajaezando-a de lampejos. Os fanáticos contemplam-na algum tempo. Aprumam-se depois à borda da clareira. Arrojam-se sobre o monstro. Assaltam-no; aferram-no; jugulam-no. Um traz uma alavanca rígida. Ergue-a num gesto ameaçador e rápido...
     E a pancada bate, estrídula e alta, retinindo...
     E um brado de alarma estala na mudez universal das coisas; multiplica-se nas quebradas; enche o espaço todo; e detona em ecos que atroando os vales ressaltam pelos morros numa vibração triunfal e estrugidora, sacudindo num repelão violento o acampamento inteiro...
     Formaram-se em acelerado as divisões. Num segundo os assaltantes se veem num círculo de espingardas e sabres, sob uma irradiação de golpes e de tiros. Um apenas se salva — chamuscado, baleado, golpeado — correndo, saltando, rolando, impalpável entre os soldados tontos, varando redes de balas, transpondo cercas dilaceradoras de baionetas, caindo em cheio nas macegas, rompendo-as vertiginosamente e despenhando-se, livre afinal, alcandorado sobre abismos, pelos pendores abruptos da montanha...
     Estes e outros casos — exagerado romancear dos mais triviais sucessos — dando à campanha um tom impressionante e lendário, abalavam a opinião pública da velha capital e por fim a de todo o país…

continua na página 287...
______________________

Leia também:

OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: V  Uma missão abortada 
OS SERTÕES - Quarta expedição: VI - Depredações
OS SERTÕES - Quarta expedição: VII - Outros reforços
______________________

Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário