terça-feira, 29 de outubro de 2024

Sarau... Mulheres: Confissão do artista (Eduardo Galeano)

Mulheres




Eduardo Galeano


026.


CONFISSÃO DO ARTISTA

     
     Eu sei que ela é uma cor e um som. Se pudesse mostrá-la a você!
     Dormia ali, nua, abraçando as próprias pernas. Eu amava nela a alegria de animal jovem e ao mesmo tempo amava o pressentimento da decomposição, porque ela havia nascido para desfazer-se e eu sentia pena que fôssemos parecidos nisso. Mostrava a pele do ventre, que parecia raspada por um pente de metal. Essa mulher! Algumas noites saía luz de seus olhos e ela não sabia.
     Passo as horas procurando-a, sentado na frente do cavalete, mordendo os punhos, com os olhos cravados numa mancha de tinta vermelha que parece ao entusiasmo dos músculos e a tortura dos anos. Olho até sentir que meus olhos doem e finalmente creio que começo a sentir, no escuro, as pulsações da pintura crescendo e transbordando, viva, sobre a tela branca, e creio que escuto o ruído dos pés descalços sobre a madeira do chão, sua canção triste. Mas não. Minha própria voz avisa: “A cor é outra. O som é outro”.
     Levanto, e cravo a espátula nessa víscera vermelha e rasgo a tela de cima para baixo. Depois de matá-la, deito de boca para cima, arfando como um cão.
     Mas não posso dormir. Lentamente vou sentindo que volta a nascer em mim a necessidade de pari-la. Ponho o casaco e vou beber vinho nos botecos do porto.


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Galeano, Eduardo, 3 set 1940 - 13 abr 2015
Mulheres / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.
1. Ficção uruguaia- Crônicas. I. Título. II. Série.
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Las intrusas perturban una tranquila digestión del cuerpo de Dios


1979. Madrid

     En una gran iglesia de Madrid, con misa especial se celebra el aniversario de la independencia argentina. Diplomáticos, empresarios y militares han sido invitados por el general Leandro Anaya, embajador de la dictadura que allá lejos se está ocupando de asegurar la herencia de la patria, la fe y demás propiedades.
     Bellas luces caen desde los vitrales sobre los rostros y vestimentas de señoras y señores. En domingos como este, Dios es digno de confianza. Muy de vez en cuando alguna tosecita decora el silencio, mientras el sacerdote va cumpliendo el rito: imperturbable silencio de la eternidad, eternidad de los elegidos del Señor.
     Llega el momento de la comunión. Rodeado de guardaespaldas, el embajador argentino se acerca al altar. Se arrodilla, cierra los ojos, abre la boca. Pero ya se despliegan los blancos pañuelos, ya los pañuelos están cubriendo las cabezas de las mujeres que avanzan por la nave central y las naves laterales: las madres de Plaza de Mayo caminan suavemente, algodonoso rumor, hasta rodear a los guardaespaldas que rodean al embajador. Entonces lo miran fijo. Simplemente, lo miran fijo. El embajador abre los ojos, mira a todas esas mujeres que lo están mirando sin parpadear y traga saliva, mientras se paraliza en el aire la mano del sacerdote con la hostia entre dos dedos.
     Toda la iglesia está llena de ellas. De pronto en el templo ya no hay santos ni mercaderes, ni nada más que una multitud de mujeres no invitadas, negras vestiduras, blancos pañuelos, todas calladas, todas de pie.


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