quinta-feira, 10 de outubro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Quarta expedição: II - Crítica

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



Quarta expedição 


II - 

Crítica 

     Eram três requisitos essenciais, completando-se. Mas nem um só foi satisfeito . As tropas partiriam da base de operações — à meia ração. Seguiriam chumbadas às toneladas de um canhão de sítio. E avançariam em brigadas cujos batalhões, a quatro de fundo, guardavam esses intervalos de poucos metros.
     Persistia a obsessão de uma campanha clássica. Mostram-na as instruções entregues, dias antes, aos comandantes de corpos. Resumo de uns velhos ;preceitos que cada um de nós, leigos no ofício, pode encontrar nas páginas do Vial, o que em tal documento se depara — é a teimosia no imaginar, impactas, dentro de traçados gráficos, as guerrilhas solertes dos jagunços.
     O chefe expedicionário alongou-se exclusivamente numa distribuição de formaturas. Não se preocupou com o aspecto essencial de uma campanha que, reduzida ao domínio estrito da tática — se resumia no aproveitamento do terreno e numa mobilidade vertiginosa. Porque a sua tropa mal distribuída ia seguir para o desconhecido, sem linhas de operações — adstrita aos reconhecimentos ligeiros feitos anteriormente, ou dados colhidos, de relance, por oficiais das outras expedições — e nada existe de prático naquelas instruções sobre serviço de segurança na vanguarda e nos flancos. Em compensação ostenta a preocupação da ordem mista, em que os corpos, na emergência da batalha , se deveriam desenvolver, com as distâncias regulamentares , de modo que cada brigada, desarticulando-se em campo raso, pudesse, geometricamente — cordões de atiradores, linhas de apoio e reforço, e reservas — agir com a segurança mecânica estatuída pelos luminares da guerra. E o chefe expedicionário citou, a propósito, Ther Brun. Não quis inovar. Não imaginou que o frio estrategista invocado, um gênio que não valia na ocasião as ardilezas de um capitão do mato, capitularia os dispositivos preceituados de idealização sem nome, nas guerras sertanejas — guerras à gandaia, sem programas rígidos, sem regras regulares, rodeadas de mil casos fortuitos, e aos recontros súbitos em todas as voltas dos caminhos ou tocaias em toda a parte.
     Copiou instruções que nada valiam, porque estavam certas demais. Quis desenhar o imprevisto. A luta, que só pedia um chefe esforçado e meia dúzia de sargentos atrevidos e espertos, ia iniciar-se enleada em complexa rede hierárquica — uns tantos batalhões maciços entalando-se em veredas flexuosas e emperrados diante de adversários fugitivos e bravos. Prendeu-se-lhe, além disto, às ilhargas, a mola de aço de um With-worth de 32, pesando 1.700 quilos ! A tremenda máquina, feita para a quietude das fortalezas costeiras — era o entupimento dos caminhos, a redução da marcha, a perturbação das viaturas, um trambolho a qualquer deslocação vertiginosa de manobras. Era, porém, preciso assustar os sertões com o monstruoso espantalho de aço, ainda que se pusessem de parte medidas imprescindíveis.
     Exemplifiquemos: as colunas partiram da própria base das operações em situação absolutamente inverossímil — à meia ração. Marcharam em desdobramentos que, como veremos em breve, não as forravam dos assaltos. Por fim, não tiveram a garantia de uma vanguarda eficaz, de flanqueadores capazes de as subtraírem a surpresas.
     Os que as acompanhavam nada valiam. Tinham que marchar, ladeando o grosso da tropa por dentro das caatingas, e estas tolhiam-lhes o passo. Soldados vestidos de pano, rompendo aqueles acervos de espinheirais e bromélias, mal arriscariam alguns passos, deixando por ali, esgarçados, os fardamentos, em tiras.
     Entretanto, poderiam avançar adrede predispostos à remoção de tais inconvenientes. Bastava que fossem apropriadamente fardados. O hábito dos vaqueiros era um ensinamento. O flanqueador devia meter-se pela caatinga, envolto na armadura de couro do sertanejo — garantido pelas alpercatas fortes, pelos guarda-pés e perneiras, em que roçariam inofensivos os estiletes dos xiquexiques pelos gibões e guarda-peitos, protegendo-lhe o tórax, e pelos chapéus de couro, firmemente apresilhados ao queixo, habilitando-o a arremessar-se, imune, por ali adentro. Um ou dois corpos assim dispostos e convenientemente adestrados acabariam por copiar as evoluções estonteadoras dos jagunços, sobretudo considerando que ali estavam, em todos os batalhões, filhos do Norte, nos quais o uniforme bárbaro não se ajustaria pela primeira vez.
     Não seria, isto, excessiva originalidade. Mais extravagantes são os dólmãs europeus de listas vivas e botões fulgentes, entre os gravetos da caatinga decídua. Além disto, atestam-no os nossos admiráveis patrícios dos sertões, aquela vestidura bizarra, capaz, em que pese ao seu rude material, de se afeiçoar aos talhos de uma plástica elegante, parece que robustece e enrija. É um mediador de primeira ordem ante as intempéries. Atenua o calor no estio, atenua o frio no inverno; amortece as mais repentinas variações de temperatura; normaliza a economia fisiológica e produz atletas. Harmoniza-se com as maiores vicissitudes da guerra. Não se gasta; não se rompe. Depois de um combate longo, o lutador exausto tem o fardamento intacto e pode repousar sobre uma moita de espinhos. Ao ressoar de um alarma súbito, apruma-se, de golpe, na formatura, sem uma prega na sua couraça flexível. Marcha sob uma chuva violenta e não tirita encharcado; depara, adiante, um hervaçal em chamas e rompe-o aforradamente; entolha-se-lhe um ribeirão correntoso e vadeia-o, leve, da véstia impermeável.
     Mas isto seria uma inovação extravagante. Temeu-se colar à epiderme do soldado a pele coriácea do jagunço. A expedição devia marchar corretíssima. Corretíssima e fragílima.
     Partira em primeiro lugar, no dia 14, a comissão de engenharia, protegida por uma brigada. Levava uma tarefa árdua. afeiçoar à marcha as trilhas sertanejas; e retificá-las, ou alargá-las, ou nivelá-las, ou ligá-las por estivas e pontilhões ligeiros, de modo que em tais veredas, cindidas de boqueirões e envesgando pelos morros, passasse aquela artilharia imprópria — as baterias de Krupp, alguns canhões de tiro rápido, e o aterrador 32, que por si só requeria estrada de rodagem, consolidada e firme.
     Esta estrada foi feita. Abriu-a num belo esforço, e com tenacidade rara, a comissão de engenharia, desenvolvendo-a ao alto da Favela, num percurso de quinze léguas.


A comissão de engenharia

     Para este trabalho notável houve um chefe — o tenente-coronel Siqueira de Meneses.


Siqueira de Meneses

     Ninguém até então compreendera com igual lucidez a natureza da campanha, ou era mais bem aparelhado para ela. Firme educação teórica e espírito observador tornavam-no guia exclusivo daqueles milhares de homens, tateantes em região desconhecida e bárbara. Percorrera-a quase só, acompanhado de um ou dois ajudantes, em todos os sentidos. Conhecia-a toda; e infatigável, alheio a temores, aquele campeador, que se formara fora da vida dos quartéis, surpreendia os combatentes mais rudes. Largava pelas chapadas amplas, perdia-se no deserto referto de emboscadas, observando, estudando e muitas vezes lutando. Cavalgando animais estropiados, inaptos a um meio galope frouxo, afundava nos grotões; varava-os; galgava os cerros abruptos, em reconhecimentos perigosos; e surgia no Caipã, em Calumbi e no Cambaio, em toda a parte, mais preocupado com a carteira de notas e os croquis ligeiros do que com a vida.
     Atraía-o aquela natureza original. A sua flora estranha, o seu facies topográfico atormentado, a sua estrutura geognóstica ainda não estudada — antolhavam-se-lhe, largamente expandidas, em torno, escritas numa página revolta da terra que ainda ninguém lera. E o expedicionário destemeroso fazia-se, não raro, o pensador contemplativo. Um pedaço de rocha, o cálice de uma flor ou um acidente do solo, despeavam-no das preocupações da guerra, levando-o à região remansada da ciência.
     Conheciam-no os vaqueiros amigos das cercanias e por fim os próprios jagunços. Assombrava-os aquele homem frágil, de fisionomia nazarena, que, apontando em toda a parte com uma carabina à bandoleira e um podômetro preso à bota, lhes desafiava a astúcia e não tremia ante as emboscadas e não errava a leitura da bússola portátil entre os estampidos dos bacamartes.
     Por sua vez o comandante-em-chefe avaliara o seu valor. O tenente-coronel Meneses era o olhar da expedição. Oriundo de família sertaneja do Norte e tendo até próximos colaterais entre os fanáticos, em Canudos, aquele jagunço alourado, de aspecto frágil, física e moralmente brunido pela cultura moderna, a um tempo impávido e atilado — era a melhor garantia de uma marcha segura. E deu-lhe um traçado que surpreendeu os próprios sertanejos.


Estrada de Calumbi

     Entre os caminhos que demandavam Canudos, dois, o do Cambaio e o de Maçacará, haviam sido trilhados pelas expedições anteriores. Restava o de Calumbi, mais curto e em muitos pontos menos impraticável, sem as trincheiras alterosas do primeiro ou vastos plainos estéreis do último. Tais requisitos faziam crer que fosse inevitavelmente escolhido. Neste pressuposto os sertanejos fortificaram-no de tal maneira que a marcha da expedição por ali acarretaria desastre completo, muito antes do arraial.
     O plano esboçado pela comissão de engenharia evitou-o, norteando a estrada mais para o levante, beirando os contrafortes de Aracati.


A marcha para Canudos

     Por ali avançaram, parceladamente, as brigadas.
     A de artilharia, decampando de Monte Santo, a 17, deparou, logo aos primeiros passos, dificuldades sérias. Enquanto os canhões mais ligeiros chegavam, transcorridos dez quilômetros, ao Rio Pequeno, o obstruente 32 ficara distanciado de uma légua. Pela estrada, escorregadia e cheia de tremedais, ronceavam penosamente as vinte juntas de bois que o arrastavam, guiadas por inexpertos carreiros, uns e outros pouco afeitos àquele gênero de transportes, inteiramente novo e em que toda a sorte de empecilhos surgiam a todo o instante e a cada passo, nas flexuras fortes do caminho, na travessia das estivas mal feitas, ou em repentinos desnivelamentos, fazendo adornar a máquina pesadíssima.
     Somente no dia 19, à tarde, gastando três dias para percorrer três léguas, chegou o canhão retardatário ao Caldeirão Grande, permitindo que se reorganizasse a brigada de artilharia que, juntamente com a 2.ª, de Infantaria, tendo à vanguarda o 25.° Batalhão do tenente-coronel Dantas Barreto, prosseguiria na manhã subsequente para a Gitirana, distante oito quilômetros da estação anterior, com a mesma marcha fatigante e remorada.
     Naquele mesmo dia saíra de Monte Santo o comandante geral e o grosso da coluna constituído pelas 1.ª e 3.ª Brigadas, com o efetivo de 1.933 soldados.
     Toda a expedição em caminho, forte de uns 3 mil combatentes, avançou até ao Aracati, 46 quilômetros além de Monte-Santo, de idêntico modo: as grandes divisões progredindo isoladas, ou concentrando-se e dispersando-se logo, distanciando-se às vezes demais, contrastando sempre a investida ligeira da vanguarda com o tardo caminhar da artilharia.


O 5.° Corpo de Polícia Baiana

     Mais afastado ainda, no coice de toda a tropa, ia o grande comboio geral de munições, sob o mando direto do deputado do quartel-mestre-general, coronel Campelo França, e guarnecido com 432 praças, o 5.° Corpo de Polícia Baiana — o único entre todos que se talhara pelas condições da campanha. Recém formara-se com sertanejos engajados nas regiões ribeirinhas do S. Francisco. Mas não era um batalhão de linha, como não era um batalhão de polícia. Aqueles caboclos rijos e bravos, joviais e bravateadores, que mais tarde, nos dias angustiosos do assédio de Canudos, descantariam, ao som dos machetes, modinhas folgazãs, debaixo de fuzilarias rolantes eram um batalhão de jagunços. Entre as forças regulares de um e outro matiz, imprimiam o traço original da velha bravura a um tempo romanesca e bruta, selvagem e heroica, cavaleira e despiedada, dos primeiros mestiços, batedores de bandeiras. Eram o temperamento primitivo de uma raça, guardado, intacto, no insulamento das chapadas, fora da intrusão de outros elementos e aparecendo, de chofre, com a sua feição original; misto interessante de atributos antilógicos, em que uma ingenuidade adorável e a lealdade levada até ao sacrifício, e o heroísmo distendido até à barbaridade, se confundem e se revezam, indistintos. Vê-lo-emos ao diante.


Alteração da formatura

     O 5.° Corpo e o comboio, partindo por último, de Monte Santo, à reçaga da expedição, quando deviam centralizá-la, seguiam, ao cabo, completamente isolados. E isto acontecia aos demais batalhões. A despeito da formatura estatuída, verificara-se logo a impossibilidade de uma concentração imediata, na emergência da batalha. Adstrito ao trabalho dos sapadores, todo o trem da artilharia ficava, por vezes, longamente separado do resto da coluna, como um trambolho obstruente entre a vanguarda e comboio geral. De sorte que se, por um golpe de ousadia, os jagunços, em trechos adrede escolhidos, houvessem salteado o último, o refluxo da primeira, correndo em auxílio, estacaria de encontro às baterias engasgadas nas veredas estreitas.
     Revela-o o roteiro pormenorizado da marcha. Enquanto o grosso da coluna decampava, no alvorecer de 21, do Rio Pequeno, pouco mais de uma légua de Monte Santo, e chegava, seriam nove horas da manhã, ao Caldeirão Grande, depois de caminhar duas léguas, já desta escala largara à retaguarda da artilharia o canhão 32, protegido pela Brigada Medeiros. Na mesma ocasião, mais avantajada, a Brigada Gouveia atingia a Gitirana, à noite, onde já se achavam a comissão de engenheiros e o general Artur Oscar, que até lá fora, escoteiro, seguido de um piquete de vinte praças de cavalaria e do 9.° de Infantaria. Considerando-se que o comboio dirigido pelo coronel Campelo França e protegido pelo 5.º de Polícia ficara à retaguarda , vê-se que a tropa se espalhara em longura de quase quatro léguas, violando-se inteiramente as instruções preestabelecidas.
     No amanhecer do dia 22, enquanto o general Barbosa, que permanecera o resto do dia anterior em Caldeirão, levantava acampamento seguindo para Gitirana, daí partia o comandante geral com a Primeira Brigada, o 9.º Batalhão da 3.ª e 25.° da 2.ª, a ala de cavalaria do major Carlos de Alencar e a artilharia, levando o dispositivo prefixado: na frente o 14.° e 30.° Batalhões, no centro a cavalaria e a artilharia; depois dois outros corpos, o 9.° e o 25.°. Ora, enquanto o comandante geral seguia rapidamente naquele dia, chegando em pouco tempo com a vanguarda a Juá, 7.600 metros além de Gitirana, imobilizava-se a artilharia nesta última escala aguardando que a comissão de engenheiros ultimasse a abertura de picadas e trabalhos de sapa; e, como o grosso das forças vinha ainda pela estrada do Caldeirão, estas mais uma vez se subdividiam forçadamente, ficando em condições desvantajosas na emergência de um assalto, porque não vinham adrede dispostas a afastamentos tão largos, que deviam ter sido de antemão estabelecidos, realizando-se não como um vício de mobilidade mas como requisito tático indispensável.
     As brigadas reuniram-se, por fim, na noite daquele dia, em Juá. Ali chegou, às 6 horas, logo após a artilharia, o resto da coluna composta dos 5.°, 7.°, 15.°, 16.° e 27.° corpos de infantaria. Executava-se o comboio, retardado num trecho qualquer dos caminhos.
     Daquele ponto seguiram os dois generais, na manhã de 23, para Aracati, 12.800 metros na frente, fazendo a vanguarda os batalhões do coronel Gouveia. Mas a artilharia, protegida pelos do coronel Medeiros, só se moveu ao meio-dia, depois que os engenheiros, apoiados pela Brigada Flores, executaram penosíssimos trabalhos de reparos.
     Pormenorizamos, miudeando-a aos menores incidentes, esta marcha, para que se revelem as condições excepcionais que a rodearam.
     Depois da partida de Juá e atingida a velha fazenda do Poço, totalmente em ruínas, sobreveio incidente indicador do quanto era conhecido o terreno em que se avançava.

continua na página 224...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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